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Os Filhos do Padre Anselmo/XVI

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Dois dias depois da conferencia entre o procurador e Custodio, Beatriz, que fôra convidada pela mulher e a cunhada do Belchior para as acompanhar n'um passeio ao campo, levantou-se de manhã muito contrariada por não poder furtar-se ao convite que lhe não proporcionava o minimo prazer.

O Custodio fingia-se tambem contrariado, e tendo-se levantado muito cêdo, resmungava de modo que a filha o ouvisse, maldizendo a lembrança de o convidarem para um passeio que alterava os seus habitos e talvez lhe puzesse a saude em risco.

— Ora a minha desgraça! — clamava elle — Não basta ter tanta coisa que me afflija, senão ainda agora obrigarem-me a andar um dia inteiro pelo campo, a apanhar sol e a aturar senhoras!

— Mas se o papá não quer — propoz Beatriz — manda-se dizer que está doente e não vamos...

— Isso não! Não póde ser. O Belchior ficaria desgostoso...

— Mas se é um caso de força maior...

— Não, já agora, estou a pé, sempre vou... Não quero que o homem supponha que não tenho desejo de lhe acompanhar a familia. Mas isto custa-me muito, porque a minha idade já não permitte estas folias...

A este tempo parava um trem á porta e o Belchior e a familia subiam açodadamente, gritando:

— Então vamos?

— Vamos lá... estou prompto! — disse o Custodio ao Belchior — A pequena tambem já está preparada, acho eu...

A mulher e a cunhada do procurador dirigiram-se aos aposentos de Beatriz n'uma grande alegria:

— Vamos, avie-se, sua preguiçosa! Então ainda n'esse estado?

— Estou prompta. É só levar para o carro um pequeno cesto com umas coisas que mandei preparar...

— O quê! Mandou fazer de comer? Que tolice! Nós levamos alli comida que chega para um regimento!...

— Por demais não perde... — apoiou o procurador — Vamos embora que são horas... O bonito é sahir cedo para andarmos por lá todo o dia...

Entraram no carro, um char-á-bancs enorme, e seguiram as duas familias aos solavancos em direcção á quinta da Lavandeira.

A mulher e a cunhada do procurador não faziam senão soltar exclamações de admiração e alegria, encantadas com a paisagem.

A tudo achavam graça, tudo achavam muito bonito.

Obtida a permissão de entrarem na quinta, n'essa epocha ao cuidado dos caseiros, seguiram os passeiantes por baixo do copado arvoredo, dividindo-se em dois grupos: um formado pelas tres senhoras, e o outro pelos dois homens.

O procurador, allegando que para baixo todos os santos ajudam, despediu o cocheiro, dizendo-lhe que não voltasse, porque regressariam a pé para a cidade.

— Vamos indo devagar por ahi fóra e até é mais pittoresco... não acha, amigo Custodio?

— A distancia, realmente, não é grande...

— Em chegando á Bandeira, estamos em casa... A rua do General Torres desce-se bem...

— Eu cuidei que o passeio era para mais longe — disse a mulher de Belchior.

— Mais longe para que? Aqui estamos muito bem... A quinta é bonita e é muito grande, dá bem logar para passearmos... E quando nos sentirmos cançados, abancamos e toca a palestrar... Aqui o que faz bem é o ar...

Passou-se o dia como não podia deixar de ser n'uma horrivel monotonia para Beatriz, que de modo algum podia achar-se bem n'uma companhia que não lhe offerecia o menor sentimento de agrado.

O Custodio conversava com o Belchior sobre negocios, repisando o assumpto. As duas senhoras que constituiam a familia do procurador, esgotado o reportorio da má lingua contra a vizinhança e varias outras familias conhecidas, calaram-se e, sentadas á sombra de uma arvore frondosissima, começaram a cabecear com somno.

Haviam-se levantado cêdo e resentiam-se do longo passeio.

Beatriz, portanto, ficou uma grande parte do dia entregue a um aborrecimento cruel, que a punha de muito mau humor.

Pensava por vezes em Paulo, lembrando-se de que talvez não lhe fosse possivel vel-o, fallar-lhe na noite que ia seguir-se a um dia tão horroroso.

Não pudera prevenil-o d'aquelle passeio, porque o mancebo havia duas noites que não apparecia a fallar-lhe.

Dissera-lhe que negocios importantes de que dependia o futuro dos dois o deviam ter afastado do Porto por alguns dias, mas não se affligisse ella, porque elle voltaria com boas novas.

— Mas o que vaes fazer? — perguntara-lhe interessada em tudo o que o mancebo intentava.

— Permitte-me que por ora t'o não diga, meu amor. Breve saberás tudo e tenho bem fundadas esperanças de que has-de applaudir o meu procedimento.

Esta persistencia em guardar absoluto segredo sobre os seus designios, quando Paulo não tinha tido até alli um unico pensamento que lhe não communicasse, impressionou-a.

E era ainda sob a influencia d'este estranho procedimento do seu bem amado que a pobre Beatriz se encontrava n'aquelle dia, um dos mais aborrecidos e tristes de toda a sua vida, porque, além das mágoas intimas que a torturavam, tinha ainda a constrangel-a e a aggravar-lhe o soffrimento a presença de pessoas que, se não lhe eram odiosas, eram-lhe pelo menos antipathicas.

Ao cahir da tarde Custodio e o procurador fingiram enthusiasmar-se n'uma grande polemica a proposito de uma questão commercial palpitante; e com grande profusão de gestos e de berros, interrompiam-se frequentemente um ao outro, sem chegarem a accôrdo. De modo que, esquecidos da distancia que os separava do Porto, foram deixando-se ficar até ao cahir da tarde.

A noite estava de luar, serena e calma, convidativa de longo passeio pela fresca.

— São horas de nos irmos chegando a casa... — advirtiu a mulher de Belchior, quando notou que a conversa se ia demorando.

— É verdade, vamos indo... — disse o procurador, travando de braço de Custodio para continuar na discussão acalorada em que estava interessado.

E voltando-se para as senhoras:

— Andem lá adiante...

Sahiram para a estrada, a essa hora silenciosa e deserta.

As damas, levando Beatriz cada uma por seu braço, tomaram a dianteira, e muito alegres, muito lepidas, iam cantarolando por entre dentes alguns numeros mais populares de uma revista em voga.

— Ah! que dia tão bem passado! — exclamava a cunhada do procurador — Não ha nada para abrir o appetite e dar saude á gente como é um passeio ao campo!

— E a noite está linda! — accudiu a mulher do Belchior — dá mesmo gosto passeiar por uma noite assim! Não gosta do campo, Beatrisinha?

— Não desgosto... — volveu a namorada de Paulo com o coração oppresso de ignoto receio.

O procurador e Custodio, de cada vez mais encarniçados na controversia, paravam de vez emquando, falando muito, gesticulando, adduzindo argumentos sem tom nem som.

Era uma esperteza dos dois velhacos para justificarem a distancia a que queriam encontrar-se no momento do assalto.

— Deixe-as ir... deixe-as ir... — murmurava o Belchior — Quanto mais longe estivermos d'ellas, mais facilmente o Eugenio e os amigos deitam a luva á pequena.

Assim foram caminhando, até que, n'uma volta da estrada, as damas deram de frente com um trem parado, quasi obstruindo a passagem.

Detiveram-se esperando, que o carro seguisse na direcção que ellas levavam, para poderem continuar o seu caminho. Mas rapidamente dois homens mascarados saltaram á estrada e, sem darem tempo á mais leve resistencia, apoderaram-se de Beatriz e atiraram-n'a para dentro do carro, que partiu em carreira desabrida.

— A mulher e a cunhada do procurador, industriadas pelo marido e perfeitamente conhecedoras do que havia de succeder, quando viram partir o carro, desataram a gritar por soccorro, simulando uma grande afflicção.

Os dois patifes ao ouvir gritar as damas, correram para ellas muito açodados, perguntando:

— O que é? O que aconteceu?

— Dois homens, sahindo-nos ao caminho, agarraram a Beatrizinha e fugiram com ella dentro d'aquelle trem!

E apontavam a carruagem que desapparecia n'uma curva da estrada.

— E ella não gritou? — disse o procurador.

— Ella soltou um grito, mas elles abafaram-lhe a voz, de modo que a pobresinha não se tornou a ouvir!

— Talvez a amordaçassem... — aventurou o Belchior.

— Ou talvez perdesse os sentidos... — concluiu a mulher.

O Custodio julgou conveniente fingir grande desespero, e levando as mãos á cabeça, não fazia senão gritar:

— Oh! minha filha! minha filha! desgraçado de mim, que me roubaram a minha filha!

— Um rapto! — gritava o procurador — O crime foi praticado de noite, e de noite bastam os indicios... Vamos já ter com a auctoridade da freguezia e apresentemos-lhe a queixa...

— E quem diremos que foi o raptor? — perguntou o Custodio.

— Ora essa! Foi o Eugenio de Mello... Pois quem havia de ser?

— Sim... foi elle...

— Está visto que foi — tornou o procurador — Elle queria, ella não queria... raptou-a!

E em tom mais baixo:

— Convem affirmar desde já que o vimos e o reconhecemos perfeitamente, que é para o entalarmos logo desde o principio, de modo que não haja outro remedio senão fazer-se o casamento sem escripturas.

— Vamos a isso! Foi elle, o grande maroto!... Eu bem o reconheci... Isto não é coisa que se faça a um pae!

— Mas que coisa! que coisa! — dizia a mulher do procurador, simulando a maior consternação. — Ainda não estou em mim!

— Ai, meu Deus! — accrescentava a cunhada — Em que perigo nós nos mettemos! Olhem se aquelles malditos se lembravam de me raptar tambem a mim!

— Á senhora?! — disse inconvenientemente o Custodio, com um sorriso escarninho.

— E então? — retorquiu a cunhada do Belchior, offendida — Eu sou solteira, e elles eram dois...

— Ahi está a prova! — affirmou o procurador — Vinham dois e raptaram só uma... Logo, provará que o reu premeditou o crime, porque escolheu a que lhe fazia conta. Foi o Eugenio de Mello, não ha que ver... Vamos ter com o regedor para perseguir os fugitivos!

Tudo isto era dito a andar esbofadamente pelo caminho que conduzia ao largo da Bandeira, em Villa Nova de Gaya, onde afinal chegaram depois das nove horas da noite.

Tendo indagado onde morava o regedor, apresentaram-se-lhe, e contaram-lhe o succedido.

— E para onde fôram elles? — perguntou o funccionario.

— Nós ainda os seguimos um bocado gritando; mas ninguem nos accudiu, e afinal perdemol-os de vista...

— Os senhores reconheceram os raptores ou suspeitam quem fossem?

— Elles levavam a cara coberta, mas um d'elles descobriu-se sem querer, deixando vêr o rosto, e todos nós reconhecemos um rapaz que vive no Porto e que se chama Eugenio de Mello.

— Bem! — concluiu o regedor — Eu vou mandar os meus cabos indagar, a vêr se descobrem os criminosos... E amanhã dou parte para a administração. Mas sempre será bom os senhores apparecerem lá para formularem a queixa.

E preparando-se para tomar nota n'um papel:

— Os seus nomes, fazem favor?

O Belchior declinou os nomes de todos, figurando elle, a mulher e cunhada como testemunhas e o Custodio de Jesus como queixoso.

— Vou já mandar proceder a rigorosas pesquizas na minha freguezia — disse o regedor — a vêr se se encontram os delinquentes. Mas, amanhã, o sr. administrador terá conhecimento do facto e tomará as providencias precisas...

— Veja v. s.ª, sr. regedor, a situação em que me encontro com uma filha roubada nas minhas barbas!... — lamuriou o Custodio.

— E demais a mais, menor! — declamou o procurador — É crime de casamento ou penitenciaria!

— Tudo vem a dar na mesma... Pobre de quem as tem! — Concluiu o regedor.

— E agora — disse o Belchior muito solicito — em chegando á cidade, vamos direitos ao commissario de policia, apresentar a queixa...

— Está visto... — apoiou o regedor — Ninguem sabe o caminho que os fugitivos tomaram, e a policia, telegraphando para todos os concelhos, póde muito bem fazel-os capturar...

— O que vale é que nós conhecemos o raptor...

— Sim, isso é meio caminho andado — disse o regedor — e se tivessem photographias, ainda melhor...

— A verdadeira photographia é o nome — accudiu o procurador — Elle é conhecido.

— Bem, bem! Eu vou tratar de ver se elles estão na minha freguesia, mas não me parece... Amanhã, amanhã na administração do concelho, o snr. administrador dará as ordens.

Despediram se do pacifico funccionario que, interrompido no trabalho de empacotar prégos para a Africa, voltou á sua tarefa, logo que os viu sahir.

— E d'aqui para a policia! — bradou o Belchior já na rua.

Metteram pela rua do General Torres abaixo, em direcção á cidade.

— Tudo correu bem! — segredava o procurador ao Custodio — Agora, na policia, é que a coisa vae dar echo... Talvez amanhã saia nos jornaes...

— Ó diabo! mas isso é uma vergonha... fica-me a rapariga perdida!

— E você a dar-lhe! Ella fica mas é achada, porque não terá outro remedio senão casar com o Eugenio...

— Sim... isso é verdade.

— Pois ahi está! Quanto maior fôr o escandalo, melhor. Deixe fallar os jornaes... Tomaramos nós que elles berrassem bastante... Até nos convinha...

— Mas os jornaes só depois d'amanhã é que se occuparão do caso, porque já hoje não vão á policia...

— Pois sim; mas vou eu aos jornaes... Isto é preciso não deixar arrefecer... Precisamos de lhe tapar todas as sahidas... Ella ha-de casar, quer queira, quer não!

Deixemo-los seguir caminho da policia e dos jornaes, e vejamos o que foi feito de Beatriz, a essa hora seguindo caminho desconhecido na companhia dos dois mascarados que a raptaram.

Surprehendida pelo assalto inesperado d'aquelles dois homens, Beatriz quiz resistir e gritar, mas vendo-se cingida por uns braços possantes e atirada para dentro do carro com uma rapidez assombrosa, foi tal a commoção que soffreu, que perdeu os sentidos.

Quando o trem se poz em fuga n'uma corrida vertiginosa, um dos mascarados quiz naturalmente serenal-a, porque disse n'uma voz repassada de ternura, pegando-lhe na mão:

— Beatriz!

Mas a pobre pequena reclinada sobre um dos lados do trem, não se mexeu.

— Beatriz! — tornou a dizer a voz, sacudindo-lhe levemente a mão fina e delicada.

O mesmo silencio e a mesma immobilidade.

Estão o desconhecido que a chamava, inclinou-se-lhe sobre o rosto, poz-lhe a mão na fronte, que estava banhada de suor frio, e notou que a filha do Custodio não respirava.

— Perdeu os sentidos! — disse elle visivelmente commovido.

— É natural — replicou o companheiro. — Compleição franzina e delicada, assustou-se e desmaiou.

— E agora? — perguntou o que primeiro fallara.

— Agora é caminhar... caminhar sempre até chegarmos a casa... O trem vae em boa carreira e não devemos demorar muito a chegar lá.

E vendo que o companheiro se mostrava de cada vez mais inquieto e afflicto:

— Não te assustes — tranquillisou. — Isso passa. É um ligeiro deliquio, que até nos favorece o bom exito da empreza.

— Parece-me que não somos seguidos. — tornou o outro, inquieto.

— Quem querias tu que nos seguisse, se tudo estava tão bem combinado e tudo correu tão de molde ao nosso desejo que os que podiam impedir-nos foram os proprios que nos auxiliaram?...

— É verdade. Elles conservavam-se a distancia, mandando as senhoras adiante...

— Já esperavam o lance, os patifes!

— Pois é claro. O que eu queria era vêr a cara d'elles quando souberem que a raptada seguiu caminho differente d'aquelle que lhe haviam assignalado...

— Era para Villar do Paraiso, pois não era?

— Era.

O trem havia descido a rua do General Torres e parara á entrada do taboleiro inferior da ponte D. Luiz para pagar a portagem.

— Estamos na ponte — disse o primeiro dos dois desconhecidos.

— Estamos. Agora falta-nos atravessar a cidade. É questão de meia hora.

Paga a portagem pelo cocheiro, o trem continuou o seu caminho, sem que alguem reparasse na veloz corrida que levava. Andou assim meia hora, até que a final entrou na estrada do Carvalhido, parando em frente de um largo portão de ferro.

— Eis-nos, emfim! — disse um dos dois raptores.

E levando um apito aos labios, tirou d'elle um silvo agudo e prolongado.

Immediatamente o portão se abriu e a carruagem entrou n'um largo pateo, seguindo por uma extensa alea de frondosos castanheiros, até junto de uma casa de severo aspecto, que alli se erguia, dominando os vastos campos que a circumdavam.

Os dois desconhecidos saltaram do trem, conduzindo nos braços Beatriz, ainda em deliquio, para uma sala interior ricamente mobilada.

Depositaram a pobre creança sobre um sofá, e rapidamente, correndo-se um reposteiro, appareceu na sala uma dama alta, de nobre aspecto, que fez aspirar a Beatriz um frasco de saes.

Dos dois mascarados, um murmurou algumas palavras ao ouvido da dama e retirou-se; o outro, tirando a mascara, ficou com os olhos pregados em Beatriz, sem preferir palavra.

Momentos depois, a filha de Custodio, suspirou, abriu os olhos e circumvagando um olhar pela sala, soltou um grito d'alegria.

— Paulo! És tu? — disse ella.

— Sou eu, Beatriz, sou eu! E Paulo aproximou-se da namorada, pegou-lhe na mão e beijou-lh'a com transporte.

— Paulo! — tornou a filha de Custodio, visivelmente intrigada — o que é isto? Como me encontro eu aqui?

— Encontras-te aqui, minha querida, porque eu te salvei de um grande, de um enorme perigo...

— Ah! bem sei... aquelles homens que nos assaltaram na estrada... Meu Deus! — disse ella, recordando-se da scena estranha que se déra. — Mas como pudeste tu saber?

— Pude saber que te queriam raptar, d'accôrdo com teu pae e com o procurador Belchior — esclareceu Paulo: — Era uma cilada infame que te estava armada e em que te queriam fazer cahir...

— Com o consentimento de meu pae?! — gritou Beatriz horrorisada.

— Com o consentimento de teu pae, sim. E eu que fui advertido da desgraça a que semelhante infamia ia condemnar-te, resolvi substituir os raptores e, em vez d'elles, apresentar-me eu a raptar-te.

— Ah! então os dois homens que me assaltaram no caminho e me lançaram dentro do carro...

— Era eu e um meu amigo. Teu pae e o Belchior ficaram persuadidos de que foi Eugenio de Mello quem effectuou o rapto, porque tinha de se realisar, estava combinado entre elles, e nem por sombras suspeitam a esta hora que, em vez de cahires nas mãos do noivo que te queriam impôr, estás ao lado do escolhido do teu coração!...

Beatriz relanceou um olhar curioso para a dama desconhecida que, junto d'ella, o estava fitando com expressão de ternura maternal.

— E esta senhora — disse ella — quem é?

Antes que Paulo respondesse, madre Paula, pois que era ella, respondeu á pergunta:

— É uma amiga que muito a estima e que só deseja a sua felicidade, minha filha.

— É minha mãe! — accrescentou Paulo, beijando carinhosamente a mão á religiosa, mais elegante e sympathica nos seus trajes seculares.

Madre Paula sorriu amavel e dirigindo-se a Beatriz:

— Este louco — disse ella — teima em querer impôr-me um titulo que me não pertence e a que de forma alguma tenho direito...

— Não diga isso, minha mãe! — protestou Paulo — Pois quem me acalentou na infancia, quem protegeu e amparou os meus primeiros passos, quem tem tido sempre para mim todos os disvellos, todas as ternuras e carinhos de uma mãe por seu filho? Conheci eu outra mãe? Ouvi alguma vez palpitar junto do meu berço outro coração que não fosse o seu, grande e generoso?

— Mas, meu filho... — ia a dizer madre Paula commovida.

— Meu filho! vês? — interrompeu o mancebo voltando-se para Beatriz — Diz que não é minha mãe e chama-me seu filho!

Madre Paula replicou n'um tom cheio de bondade e doçura:

— «Meu filho», é a formula terna, cariciosa do meu tratamento para comtigo... Mas se me deves affeições e cuidados que outra qualquer no meu logar te dispensaria, é todavia bem certo que outra tem direito á funda veneração e aos ternissimos affectos do teu coração de filho...

— Outra! — exclamou Paulo indignado — Quem quer que ella seja não a conheço, nunca a vi nem desejo vel-a! Se tive outra mãe, aquella de quem a natureza ou a fatalidade se serviu para me lançar a este mundo, é tão pouco o que lhe devo em affeição e tanto o que d'ella me veio em dôres e soffrimentos, que já faço muito não a odiando, para sómente sentir por ella indifferença.

— Paulo, não digas isso! — reprehendeu madre Paula — Sabes que me mortificas fallando assim. Não te aconselhei e não busquei sempre incutir no teu coração o sentimento do amor e respeito que se deve aos paes?

— Perdôe-me, minha boa mãe! Os seus conselhos não foram esquecidos nem os seus esforços baldados. E a prova é que a amo e a respeito com todas as véras da minha alma, com todas as forças do meu coração. Mas como quer que eu tenha os mesmos affectos, os mesmos ternos sentimentos de respeitosa veneração por uma outra que não conheço, que nunca vi, que me abandonou e me deixou entregue á generosa caridade de seu nobre coração, minha boa e santa mãe? A ella devo os soffrimentos, as angustias da vida que eu lhe não pedi e que de bom grado dispensava. A madre Paula devo tudo o que um filho deve a sua mãe: devo-lhe o amparo, o carinho, a protecção o amor que uma boa mãe tem sempre por seu filho. Quem é, pois, minha mãe? A quem devo eu todo o respeito, toda a obediencia, toda a estima e gratidão que constituem a obrigação de um filho para com seus paes: aos que me crearam e protegeram, ou aos que me deram o sêr e me abandonaram?

E voltando-se para Beatriz, que assistia silenciosa e commovida a esta scena:

— Responde tu, minha amiga! Tu, que tens sido tambem victima da crueldade e dureza de um pae descaroado e egoista, que a todo o momento te torturava, consulta o teu coração e dize-me se sentes por elle o mesmo enternecido affecto que sentias por tua mãe, de quem me tens fallado com tão viva saudade?

Beatriz corou e disse:

— Se é um crime não amar os paes, que, depois de nos terem lançado ao mundo, se julgaram dispensados de ter por nós disvellos e amoravel compaixão para com a nossa infancia desvalida, confesso que sou tambem uma grande criminosa... Por meu pae não senti nunca o suave e dôce affecto que me inspirava minha pobre mãe. Ella era meiga, terna e bondosa para mim. Elle, rispido, austero, sêcco, intratavel. Nunca me dispensou um affago, nunca teve para mim um sorriso, a não ser agora, nos ultimos tempos, quando, representando commigo uma comedia... inclassificavel, queria sacrificar o meu coração ao dinheiro de um homem que eu não podia amar. Até ahi, porém, só teve para mim arremessos, gestos bruscos, despotismos de senhor que se vê compellido a tolerar um escravo de que deseja desfazer-se. Depois da morte de minha mãe, esse mau tratamento accentuou-se de cada vez com mais rigor. Cheguei a pensar que, se eu morresse, a minha morte seria motivo de grande alegria para meu pae. Não ia vêr-me ao collegio, não me escrevia uma carta, não buscava saber de mim, nem mesmo quando uma ligeira doença me prostrava no leito. Contentava-se em pagar todas as despezas mas ternura paternal, este dôce sentimento que liga, n'uma cadeia interminavel, a humanidade de um ao outro extremo dos seculos, eu conhecia bem que não existia n'elle... Chorei muito a minha orphandade, cheguei mesmo a pedir a Deus a morte. E quando via o alegre alvoroço das minhas companheiras ao receberem noticias dos paes que adoravam, perguntava a mim mesma porque é que a lembrança de meu pae não despertava em mim o mesmo sentimento, e o meu coração ficava frio e indifferente.

Madre Paula escutava Beatriz, visivelmente commovida com o tom de sinceridade e candura que ella punha n'estes dizeres.

— Minha filha — disse-lhe a abbadessa — eu creio bem que, apesar de não sentir por seu pae os extremos de ternura que seriam para desejar, não sentiu nunca por elle indifferença e muito menos odio...

— Oh, não, minha senhora! Meu pae inspirava-me receio e temor pelo seu genio desabrido, pela rispidez e quasi rancor com que me tratava. Mas eu não pensei jamais em faltar aos meus deveres de filha obediente... E ainda mesmo quando elle falsamente allegava que dependia de mim a sua velhice socegada e tranquilla, estava resolvida a sacrificar-me por elle, tanto quanto fosse compativel com a minha honestidade e com os sentimentos do meu coração.

E cortou a phrase para envolver Paulo n'um olhar caricioso e apaixonado.

— E todavia — observou Paulo — esse homem não tem o minimo direito á obediencia e ao affecto de Beatriz! Um pae que desce á ignominia de consentir no rapto violento de sua filha para a obrigar a casar com o homem que ella detesta, é um miseravel, um monstro despresivel, não é um pae!

— Paulo! Paulo... então! — supplicou Beatriz.

Madre Paula interveio:

— O procedimento do pae d'esta menina foi incorrecto, não ha duvida; mas a Providencia encarregou-se de o punir, fazendo voltar contra elle as proprias armas da perfidia que queria empregar contra a filha.

E dirigindo-se a Beatriz:

— Minha menina — accrescentou — agradeça ao céo o havel-a protegido e amparado contra a odiosa cilada em que queriam fazel-a cahir. Sem praticar nenhum acto de desobediencia para com seu pae, encontra-se liberta do homem a quem queriam entregal-a com manifesta repugnancia do seu coração e grave offensa da sua reputação e da sua honestidade. Aqui se conservará em minha companhia, se assim o deseja, em quanto não puder livremente dispôr do seu destino, unindo-se pelos laços conjugaes ao escolhido do seu coração. Servir-lhe-hei de mãe e serei uma garantia segura da rectidão e honestidade de seu comportamento. Quer assim?

— Oh, minha senhora! quanto lhe devo e quanto a minha alma se sente agradecida por tanta bondade e tão valiosa protecção!

— Paulo virá vêl-a — continuou Madre Paula — mas fallar-lhe-ha sempre na minha presença, para que a todo o tempo eu possa testemunhar a nobreza e correcção com que ambos procuram unir os seus destinos. Espero, pois, que d'este modo concorrerei para a realisação dos seus mais vivos e ardentes desejos, sem que uma leve sombra de suspeita possa macular a honra e a reputação dos meus queridos filhos.

Beatriz e Paulo ajoelharam, beijando enternecidamente a mão da gentil abbadessa.

Esta, sorrindo com um carinho e uma doçura verdadeiramente maternal, disse para Beatriz, levantando-a nos braços:

— Deve estar fatigada, minha filha... Vou mandar servir-lhe uma leve refeição e acompanhal-a em seguida ao seu quarto.

E dirigindo-se a Paulo:

— Vae, meu filho. Despede-te da tua noiva e faze por merecer sempre a estima e o affecto que tens encontrado no meu coração.