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Pensar é preciso/XI/Franz Kafka: o absurdo existencial

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Franz Kafka: o absurdo existencial

A complexa personalidade de Franz Kafka (1883-1924) é fruto do cruzamento de quatro culturas: judaica, cristã, alemã e checa, pois ele nasceu de família judia, na cidade de Praga, de tradição católica e dominada pelo império germânico. Sua portentosa ficção literária acusa a influência dessas etnias, bem como de sua educação familiar e de suas atividades profissionais. Isto pode ser verificado através de uma breve análise das três narrativas mais importantes de Kafka, consideradas suas obras-prima: O Processo, O Castelo e A Metamorfose.

O protagonista do romance O Processo, Joseph K., uma manhã é acordado no seu quarto de pensão por dois indivíduos que lhe comunicam sua prisão, sem dar-lhe explicação alguma. Apenas dizem que ele pode responder ao inquérito em liberdade, continuando sua vida normal de alto funcionário de um banco. Ele tem somente a obrigação de submeter-se aos interrogatórios no tribunal de justiça, quando intimado. Avisado pelo telefone, Joseph se apresenta ao juiz de instrução, que o confunde com um pintor de paredes. Enquanto K. pronuncia um longo discurso tentando demonstrar o absurdo de sua detenção, o juiz fica olhando revistas pornográficas e um estudante de direito faz sexo com a lavadeira que, com o consentimento do marido, se entrega ao pessoal do tribunal para não perder o emprego. Não conseguindo saber do que ele é acusado, K. contrata um advogado que lhe faz longos discursos sobre a máquina burocrática do tribunal, mas, quanto ao seu processo, pede tempo para apresentar a petição inicial, pois está aguardando o momento oportuno. Além disso, ele vive acamado. O único consolo de K. é transar com a jovem e bela empregada do advogado, que costuma satisfazer sexualmente os clientes do patrão, condoída pelo pressentimento de serem condenados. Ele vai ter alguma notícia sobre o processo apenas pelo capelão da prisão, durante uma visita à Catedral, que o informa sobre o processo, dizendo-lhe que o tribunal inferior considerara sua culpa provada. Às reclamações de K. contra a justiça, o abade responde narrando-lhe o apólogo do homem que passa longos anos de sua vida perante a porta da lei, impedido por uma sentinela de entrar, morrendo sem ter acesso a ela. Depois de um ano de idas e vindas do tribunal sem conseguir descobrir qual é o delito cometido, dois oficiais de justiça chegam, de noite, à pensão e levam Joseph até uma pedreira. Lá, tiram suas roupas, dobram sua cabeça numa pedra, sacam um facão de açougueiro e cortam seu pescoço, como se fosse um frango. No alto de um prédio, uma mulher olha o assassinato e fecha a janela.

Este é um pequeno resumo do enredo do romance de Kafka, objeto de inúmeros estudos de críticos de todos os países civilizados. O Processo, como as outras obras do ficcionista checo, só pode ser analisado ao nível simbólico, pelo princípio da analogia. As personagens ficcionais representam idéias, sentimentos ou comportamentos da vida real. Eis algumas leituras possíveis:

a) Interpretação psicanalítica. O estudo da biografia de Kafka nos informa que seu pai era uma pessoa austera e intransigente. A imagem do seu progenitor incomunicável e insensível à necessidade de afeto teria criado no pequeno Joseph um complexo de inferioridade, personificado no juiz inatingível que aparece no romance, símbolo do autoritarismo paterno.

b) Interpretação religiosa. Pela educação judaica recebida, Kafka é levado a acreditar no relato bíblico do pecado original, pelo qual os homens são acusados de uma culpa que não cometeram. A salvação estaria na graça divina, mas Deus, simbolizado pelo Juiz da Suprema Corte de Justiça, é um ser misterioso e inatingível. E seus intermediários, representados por padres, juízes, advogados e funcionários do tribunal, são seres ineptos e corruptos. A revolta de K. no tribunal simbolizaria a revolta do homem contra Deus, que o acusa de um pecado que não cometeu e lhe nega a possibilidade de defesa pela sua incomunicabilidade.

c) Interpretação racista. Alguns estudiosos vêm neste romance, como em outras obras kafkianas, a antecipação do holocausto dos judeus que irá acontecer uma década após a morte do escritor. É a reativação do mito bíblico do “hebreu errante” que, sem pátria, se sente estrangeiro na terra onde vive. O regime nazista, como a corte da Justiça no romance, acusará os judeus de uma culpa inexistente e sem direito de defesa. Basta ser circuncidado para ser considerado um criminoso!

d) Interpretação sociológica. O Processo pode ser visto como a representação artística da impotência do indivíduo face às instituições políticas e religiosas irracionais e corruptas, contra as quais é inútil lutar. A organização social destrói a individualidade: todos sabem que ele é acusado, embora ninguém saiba do quê; todos estão dispostos a ajudá-lo, embora ninguém possa fazer nada por ele. Quem acusa, quem julga e quem condena K. não é um ser determinado, mas o sistema como um todo.

e) Interpretação existencial. A culpa do protagonista do romance poderia ser vista no isolamento humano. O personagem de ficção Joseph K., como a pessoa do mundo da realidade Franz Kafka, não consegue se integrar no consórcio social onde reina a hipocrisia. Ele fica à margem dos valores ideológicos: não tem um lar, vivendo sozinho numa pensão, não tem esposa, mas apenas amantes, não curte amizades nem tem envolvimento afetivo com colegas ou clientes do banco onde trabalha. E paga por isso, como toda pessoa que não consegue se integrar no convívio social. Configura-se, assim, o absurdo existencial: os homens se reúnem em sociedades, criam instituições civis, militares e religiosas para sua proteção material e espiritual, e são essas mesmas instituições que esmagam os homens que as criaram.

No romance O Castelo, encontramos alguns pontos temáticos já explorados em O Processo. O protagonista é nomeado apena com a letra K. Ele é descrito como um agrimensor que, numa noite, chega num vilarejo governado por um senhor que vive num castelo sobre a colina. Para poder trabalhar, ele necessita chegar até o dono das terras que mora lá no alto, mas é impedido pela hostilidade dos moradores do burgo e dos burocratas do castelo. Para conseguir seu intento, ele seduz a jovem Frieda, amante do poderoso funcionário Klamm. Assim ele penetra nos meandros da burocracia castelana. Mas, abandonado pela moça, sozinho e sem forças para chegar ao dono do castelo, acaba perdendo até a noção da própria identidade.

Nesta obra de Kafka predomina o tema da xenofobia, simbolizando o judeu errante, sem pátria, que luta em vão para ser bem aceito pelo povo que o hospeda. Mas, de um modo geral, pode representar o esforço de qualquer indivíduo que queira se integrar numa comunidade, o homem que luta para obter um lar e um trabalho, sendo hostilizado pela incomunicabilidade humana, pelo egoísmo grupal que fecha as portas para quem vem de fora. Essa lógica parece absurda, olhando de fora, mas por dentro é de uma coerência que nos assusta. Ainda hoje assistimos ao triste espetáculo de emigrantes de regiões pobres que são enxotados ao chegarem em cidades prósperas, cujos habitantes não estão dispostos a dividir nada com gente que tem outra cultura.

A Metamorfose é a obra mais conhecida de Kafka. O titulo, etimologicamente, significa “além da forma”, transformação. O tema da mudança de forma é bem antigo. Famosa é a obra As Metamorfoses, do escritor latino Apuleio (séc. II d.C.), conhecida vulgarmente pelo nome O Asno de Ouro, que narra a história do jovem Lúcio transformado em burro pelas artes mágicas de uma feiticeira. No conto do escritor checo, o protagonista Gregor Samsa, ao acordar certa manhã, percebe que seu corpo está transformado num inseto medonho, parecido com uma enorme barata, não sabendo entender o que aconteceu. Trata-se de um fato completamente extraordinário, pois não há uma explicação de ordem científica, religiosa ou mágica. A mudança de forma é um fantástico absoluto, fruto de um puro acaso.

Gregor, apesar de seu aspecto animalesco, não perdeu as características humanas do sentir e do pensar e, por isso, pode refletir sobre sua nova situação. Ele tenta sair da cama para não perder o horário do trem que o levaria à firma onde trabalha como caixeiro-viajante. Mas não consegue e fica preocupado, pois ele é o único sustento dos pais e da irmã, uma mocinha que estuda piano. O atraso provoca a chegada do inspetor da firma na sua casa e a revelação da sua nova forma de inseto monstruoso. Seu aspecto provoca nojo e repulsa no empregador e nos familiares. Apenas a irmã fica com dó e lhe leva comida no quarto. Não podendo mais contar com ele, seus familiares são obrigados a providenciar o próprio sustento: o pai arruma um emprego de guarda num banco, a irmã vai trabalhar como garçonete e a mãe intensifica seus bordados. Gregor, sentindo-se rejeitado e inútil, decide não mais se alimentar, entregando-se à morte.

A Metamorfose, como outras ficções de grande valor artístico e humano, é uma obra aberta, possibilitando interpretações variadas ao longo do tempo. O protagonista Gregor Samsa pode simbolizar o indivíduo esmagado pela sociedade, sofrendo uma tríplice degradação: física, pela deformação do seu corpo; funcional, pela perda do emprego; afetiva, pelo abandono da família. Quando ganha dinheiro, é estimado; quando se torna inútil, é varrido como lixo. Mas é preciso observar que seu processo de degradação provoca, por ironia do destino, um processo de melhoramento da família que ele tanto amara. Pai, mãe e irmã encontram no trabalho sua realização existencial, passando a viver melhor do que quando eram sustentados por Gregor. Dá-se uma inversão de perspectiva, pela qual quem tenta ajudar acaba, sem querer, prejudicando as pessoas que ama. É uma das sutilezas do mundo “kafkiano”, o adjetivo que passou a indicar o que é ilógico, estranho, apavorante, burocraticamente tortuoso.