Peregrinaçam/LIII

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Auendo ja ſete meſes & meyo que continuauamos neſta enſeada de hum bordo no outro, & de rio em rio, aſsi em ambas as coſtas de Norte & Sul, como na deſta ilha de Ainão, ſem Antonio de Faria em todo eſte tempo poder ter nouas nem recado de Coja Acem, enfadados os ſoldados deſte trabalho em que auia tanto tempo q̃ continuauão, ſe ajuntaraõ todos, & lhe requereraõ que do que tinhaõ aquirido lhes deſſe ſuas partes conforme a hum aſsinado que delle tinhaõ, porque com iſſo ſe querião yr para a India, ou para onde lhes bem vieſſe, & ſobre iſto ouue aſſaz de deſgosto & enfadamentos, por fim dos quais ſe concertaraõ em irẽ inuernar a Sião, onde ſe venderia a fazenda que trazião nos juncos, & que deſpois de ella ſer feita em ouro ſe faria a repartição que requeriaõ, & com eſte concerto jurado & aſsinado por todos, ſe vieraõ ſurgir a hũa ilha que ſe dezia dos ladroẽs, por eſtar mais fora da enſeada que todas as outras, para dahy cõ as primeyras bafugẽs da monção fazerem ſua viagem, & auendo ja doze dias que aquy eſtauão, & todos com muyto deſejo de darem effeito a iſto q̃ tinhaõ aſſentado, quiz a fortuna que com a conjunçaõ da lũa noua de Oitubro, de que nos ſempre tememos, veyo hum tempo tão tempeſtuoſo de chuuas & vẽtos que não ſe julgou por couſa natural, & como nòs vinhamos faltos de amarras, porque as que tinhamos eraõ quaſi todas gaſtadas, & meyas podres, tanto que o mar começou a ſe empollar, & o vento Sueſte nos tomou em deſabrigado, & traueſſaõ à coſta, fez hum eſcarceo taõ alto de vagas taõ groſſas, que com quanto ſe buſcaraõ todos os meyos poſsiueis para nos ſaluarmos, com cortar maſtos, desfazer chapiteos & obras mortas de popa & de proa, alijar o conuès, guarnecer bõbas de nouo, baldear fazẽdas ao mar, & ahuſtar calabretes & viradores para talingar em outras ancoras com a

artilharia groſſa que ſe deſencarretara dos repairos em que eſtaua, nada diſto nos baſtou para nos podermos ſaluar, porque como o eſcuro era grãde, o tempo muyto frio, o mar muyto groſſo, o vento muyto rijo, as agoas cruzadas, o eſcarceo muyto alto, & a força da tempeſtade muyto terriuel, não auia couſa que baſtaſſe a nos dar remedio ſenão ſó a miſericordia de noſſo Senhor, por quem todos com grandes gritos & muytas lagrimas continuamẽte chamauamos, mas como.por noſſos peccados, não eramos merecedores de nos elle fazer eſta merce, ordenou a ſua diuiua juſtiça, que ſendo ja paſſadas as duas horas deſpois da meya noite nos deu hum pegaõ de vento taõ rijo, que todas as quatro embarcaçoẽs aſsi como eſtauão vieraõ à coſta, & ſe fizeraõ em pedaços, onde morreraõ quinhẽtas & oitenta & ſeis peſſoas, em que entraraõ vinte & oito Portugueſes, & os mais que nos ſaluamos pela miſericordia de noſſo Senhor (que ao todo fomos cinquenta & tres, de que os vinte & dous foraõ Portugueſes, & os mais, eſcrauos & marinheyros) nos fomos aſsi nùs & feridos meter num charco de agoa; no qual eſtiuemos atè pela menham, & como o dia foy bem claro, nos tornamos à praya, a qual achamos toda juncada de corpos mortos, couſa taõ laſtimoſa & eſpantoſa de ver, que não auia homem que ſó deſta viſta não cayſſe paſmado no chaõ, fazcendo ſobre elles hum triſtiſsimo pranto, acompanhado de muytas bofetadas q̃ hũs & os outros dauão em ſy meſmos. Durou iſto ate quaſi a veſpora, em q̃ Antonio de Faria (q̃ prouue a Deos que foſſe hũ dos q̃ ficaraõ viuos, com que tiuemos algũ pequeno de aliuio reprimindo em ſy a dor q̃ nos outros não podiamos diſsimular, ſe veyo a onde todos eſtauão, veſtido nũa cabaya de gram, q̃ deſpira a hũ dos q̃ jazião mortos, & com roſto alegre, & os olhos enxutos, fez a todos hũa breue fala, tocãdo por vezes nella quão varias & mentiroſas eraõ as couſas do mundo, pelo que lhes pedia como a irmãos, que trabalhẽ todo o poſsiuel pelas porem em eſquecimento, viſto como a lembrãça dellas não ſeruia de mais que de ſe magoarem hũs aos outros. Porque viſto bem o tempo, & o miſerauel eſtado em q̃ a fortuna, por noſſos peccados, nos tinha poſto, conheceriamos, & entẽderiamos quão neceſſario nos era o q̃ nos dezia & aconſelhaua, porque elle eſperaua em Deos noſſo Senhor, q̃ aly naquelle deſpouoado & eſpeſſo mato lhes auia de trazer couſas em q̃ ſe ſaluaſſem, porq̃ ſe auia de crer firmemente q̃ nũca elle permitia males q̃ não foſſe para muyto mayores bẽs, pelo q̃ elle eſperaua cõ firme fè, q̃ ſe aly perderamos quinhentos mil cruzados, q̃ antes de pouco tempo tornariamos a ganhar mais de ſeiſcentos mil, a qual breue pratica, de todos foy ouuida com aſſaz de lagrimas & deſconſolação. E prouendoſe logo no enterrar dos mortos que jazião na praya, ſe gaſtaraõ niſſo dous dias & meyo, em que tambem ſaluamos

algum mantimento molhado para nos ſuſtentarmos, o qual inda que foy muyto, não durou mais que ſós cinco dias de quinze que aquy eſtiuemos, porque como vinha paſſado de agoa ſalgada, apodreceo de maneyra que nenhnm proueito nos fazia o comer delle. Paſſados com aſſaz de trabalho eſtes quinze dias q̃ digo, prouue a noſſo Senhor, que nũca falta aos que nelle confiaõ de verdade, trazernos milagroſamente o remedio, com que aſsi nùs & deſpidos como eſtauamos nos ſaluamos, como logo direy.