Peregrinaçam/XXXV

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TOmè Lobo ſe deu tanta preſſa em vender a fazenda, como quem ſe temia do que lhe tinhão certificado & fez tão bõ barato della, que em menos de oito dias as caſas eſtauão deſpejadas de toda a roupa, & não querendo tomar pimenta, nem crauo, nem outra droga nenhũa que pudeſſe fazer pejo, a trocou ſomente por ouro de Menancabo, & por diamantes que ahy tinhão vindo nos jurupangos de Laue, & de Tanjampura, & por algũas perolas de Borneo & Solor. E tendo ja quaſi tudo arrecadado, com tenção de nos embarcarmos ao outro dia, ordenou o demonio que aquella noite logo ſeguinte aconteceſſe hum caſo aſſaz eſpantoſo, o qual foy que hum Coja Geinal Embaixador del Rey de Borneo que auia ja tres ou quatro annos q̃ reſidia na corte del Rey de Pão, & era homẽ muyto rico, matou a el Rey, pelo achar cõ ſoa molher, pela qual cauſa foy tamanha a reuolta na cidade, & em todo o pouo, q̃ não parecia couſa

de homẽs, ſe não de todo o inferno junto; vendo então algũs vadios & gente octoſa, deſejoſa de tais ſucceſſos como aquelles, que o tempo & a occaſiaõ era então muyto accommodada para fazerem o que antes co temor do Rey não ouſauão, ſe ajuntaraõ nũa grande companhia quaſi quinhentos ou ſeiſcẽtos deſtes, & em tres quadrilhas ſe vieraõ à feitoria onde pouſaua o Tome Lobo, & abalroando as caſas por ſeis ou ſete partes, nolas entraraõ por força, por mais que as nos defendemos, & na defenſaõ dellas foraõ mortas da noſſa parte onze peſſoas, entre as quais foraõ os tres Portugueſes q̃ eu trouxera comigo de Malaca, & o Tome Lobo eſcapou com ſeis cutiladas, de hũa das quais lhe derrubaraõ a face direita atè o peſcoço, de que eſteue à morte, pelo que a ambos nos foy forçado largarmoslhe a pouſada cõ toda a fazenda que nella auia, & recolhermonos à lãchara, na qual prouue a Deos que eſcapamos com mais cinco moços, & oyto marinheyros, porem da fazenda não eſcapou nada, a qual ſó em ouro & pedraria paſſaua de cinquenta mil cruzados. Na lanchara nos deixamos eſtar ate que foy menham com aſſaz de afflição, porem com boa vigia, para vermos o em que paraua a grande vnião que geralmente auia em todo o pouo, & vendo que hia o negocio cada vez para pior, ouuemos por milhor conſelho paſſarmonos daly para Patane,que pormonos a riſco de nos acabarem aly de matar, como fizeraõ a mais de quarto mil peſſoas. E partindonos logo daly, dentro de ſeis dias chegamos a Patane, onde fomos bem recebidos dos Portugueſes que auia na terra, aos quais demos conta de tudo o que acontecera em Paõ, & do mao eſtado em que ficaua a miſerauel cidade, de que todos moſttaraõ peſarlhes muyto, & querendo fazer ſobre iſto algũa couſa, mouidos ſomente do zelo de bõs Portugueſes, ſe foraõ todos a caſa del Rey, & ſe lhe queixaraõ muyto da ſem razão que ſe fizera ao Capitão de Malaca, & lhe pediraõ licença para ſe entregarem da fazenda que lhe era tomada, o que el Rey lhes concedeo leuentente, dizendo: Razão he que ſaçais como vos ſazem, & que roubeis quem vos rouba, quãto mais ao Capitão de Malaca, a quem todos ſois tão obrigados. Os Portugueſes todos lhe deraõ muytas graças por aquella merce; & tornandoſe para ſuas caſas, aſſentaraõ que ſe fizeſſe repreſa em toda a couſa que achaſſem ſer do reyno de Paõ, ate que de todo ſe ſatisfizeſſe aquella perda. E daly a noue dias ſendo auiſados q̃ no rio de Calantão, q̃ era daly dezoito legoas, eſtauão tres juncos da China muyto ricos, de mercadores Mouros naturais do reyno de Paõ, que cõ tempo contrario ſe vieraõ aly meter, ordenaraõ logo de armarem ſobre elles. E embarcandoſe oitenta Portugueſes dos trezẽtos que então auia na terra, em duas fuſtas, & hum nauio redondo, bem aparelhados de todas as couſas neceſſarias á empreſa q̃
leuauão, ſe partiraõ daly a tres dias com grande preſſa, por ſe temerem que ſe foſſem ſentidos pelos Mouros da terra deſſem auiſo aos outros Mouros que elles hião buſcar Deſtas tres embarcaçoẽs era Capitão mòr hum Ioaõ Fernãdez Dabreu, natural da ilha da Madeyra, filho do amo del Rey dom Ioaõ, que hia no nauio redondo, & leuaua comſigo quarenta ſoldados, & das duas fuſtas eraõ Capitaẽs Lourenço de Goes, & Vaſco Sermento ſeu primo, ambos naturaes da cidade de Bragãça, & todos muyto esforçados & praticos na milicia naual. Ao outro dia ſeguinte chegaraõ eſtes noſſos nauios ao rio de Calantão, & vendo que eſtauão ſurtos nelle os tres juncos de que tiueraõ nouas, os cometeraõ muyto esforçadamente, & com quanto os de dẽtro trabalharaõ quanto puderaõ pelos defenderem, em fim não lhes aproueitou nada, porque em menos de hũa hora foraõ todos rendidos com morte de ſetenta & quatro delles, & dos noſſos tres fomente, mas ouue muytos feridos. E não trato de particularizar aquy o que hũs & outros fizeraõ, por me parecer deſneceſſario, ſomente direy o que me parece q̃ faz mais ao caſo. Rendidos & tomados os tres juncos, os noſſos ſe fizerão a vella, & ſe ſayrão do rio, leuãdo os juncos comſigo, porque ja neſte tẽpo toda a terra eſtaua amotinada, & nauegando daly para Patane com bom vento, chegarão lâ ao outro dia quaſi à veſpora, & ſurtos, ſaluaraõ o porto com brande feſta & eſtrondo de artilharia, a que os Mouros da terra não tinhão paciencia. E com quanto erão de pazes & ſe dauão por noſſos amigos, todauia trabalharaõ quanto foy poſſiuel, com peitas que deraõ a os regedores, & aos priuados de el Rey, para que fizeſſem com elle que nos acoimaſſe o feito, & nos lançaſſe fora da terra, o que el Rey não quiz fazer, dizendo, que por nenhum caſo auia de quebrar as pazes que ſeus antepaſſados tinhão feitas com Malaca, mas querẽdoſe fazer terceiro, & meter a mão entre nos & os tomados, nos pidio que ſatisfazendo os tres Necodàs ſenhorios dos juncos o que em Pão ſe tomara ao Capitão de Malaca, lhes largaſſem liuremente as ſuas embarcaçoẽs, o que o Ioão Fernandez Dabreu, & os mais Portugueſes outorgaraõ pelo muyto deſejo que virão que el Rey tinha diſſo, de que ſe elle moſtrou muyto contente, & lhes agardeceo aqueIla boa vontade com muytas palauras. E deſta maneyra ſe cobraraõ os cinquenta mil cruzados que Pero de Faria & Tome Lobo tinhaõ perdidos, & os Portugueſes ficaraõ na terra cõ credito & nome honroſo, & muyto temidos dos Mouros. E eſtes tres juncos que então ſe tomarão, ſe aſfirmou por dito dos que vinhão nelles, que ſò em prata trazião duzentos mil taeis, que ſaõ da noſſa moeda trezentos mil cruzados, a fora outra muyta ſazenda, de q̃ viuhão bem carregados.