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Peregrinaçam/XXXVI

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AVendo ja vinte & ſeis dias que eu eſtaua aquy em Patane acabãdo de auiar hũa pouca de fazenda que viera da China para me tornar logo, chegou hũa fuſta de Malaca, de que vinha por Capitão hum Antonio de Faria de Souſa, o qual, por mandado de Pero de Faria, vinha a fazer aly certo negocio com el Rey, & aſſentar com elle de nouo as pazes antiguas que tinha com Malaca, & agradecerlhe o bom tratamento que no ſeu reyno fazia aos Portugueſes, & outras couſas a eſte modo de boa amizade, importantes ao tempo, & ao intereſſe da mercancia, que na verdade era o que mais ſe pretendia que tudo, porem eſta tenção vinha rebuçada com hũa carta a modo de embaixada, acompanhada de hum preſentede boas peças, mandadas em nome del Rey noſſo Senhor, & â cuſta de lua fazenda, como he cuſtume fazerem os Capitaẽs todos naquellas partes. Eſte Antonio de Faria trazia hũs dez ou doze mil cruzados em roupas da India que em Malaca lhe empreſtaraõ, as quais eraõ de tão mà digeſtaõ naquella terra, que não auia peſſoa que lhe prometeſſe nada por ellas, pelo que vendoſe elle de todo deſeſperado de as poder gaſtar, determinou de inuernar aly ate lhe buſcar cſpediente por qualquer via que foſſe poſsiuel; & foy acõſelhado por algũs homẽs mais antiguos na terra q̃ a mandaſſe a Lugor, que era hũa cidade do reyno Sião mais abaixo para o norte cem legoas, por ſer porto rico, & de grande eſcala, em que auia grande ſoma de jũcos da ilha da Iaoa, dos portos de Laue, Tanjampura, Iapara, Demaa, Panaruca, Sidayo, Paſſaruão, Solor, & Borneo, que a troco de pedraria & ouro coſtumauão a comprar bem aquellas fazendas. Antonio de Faria parecendolhe bẽ eſte conſelho, determinou de o fazer aſsi, & ordenando logo ahy na terra hũa embarcaçaõ para a mandar, porque a fuſta em que viera não eſtaua para iſſo, fez ſeu feitor hum Chriſtouão Borralho homem bem entendido no negocio da mercancia, com o qual foraõ dezaſſeis homẽs chatins, & ſoldados com ſuas fazendas, parecendolhes que pelo menos fariaõ de hũ ſeis ou ſete, aſsi no que leuaſſem como no que trouxeſſem, na qual yda, o pobre de mim acertou de ſer hum dos deſta companhia. Partidos daquy hum Sabbado pela menham, & nauegando ſempre ao longo da coſta com ventos bonanças, chegamos à barra de Lugor à quinta feira ſeguinte pela menham. E ſurgindo na boca do rio, nos deixamos ahy eſtar todo aquelle dia, enformandonos muyto miudamente do que conuinha, aſsi para a mercancia, como para a ſegurança de noſſas peſſoas. E as nouas que ahy achamos foraõ taõ boas, que na veniaga eſperauamos

de dobrar o dinheyro quaſi ſeis vezes, & no mais auia ſegurança para todos, com liberdade & franquia por todo aquelle mes de Setembro, conforme ao eſtatuto do Rey de Sião, por ſer o mès das Çumbayas dos Reys. E para que ſe iſto milhor entenda, he neeeſſario ſaber ſe que em toda eſta coſta do Malayo, & por dẽtro do ſertão domina hum grande Rey, que por titulo famoſo ſobre todos os outros ſe chama Prechau Saleu Emperador de todo o Sornau, q̃ he hũa prouincia de treze reynos a q̃ vulgarmẽte chamamos Sião, ao qual ſaõ ſogeitos, & pagaõ pareas cada anno catorze Reys pequenos, os quais por coſtume antigo eraõ obrigados a irem peſſoalmente todos os annos à cidade Odiaa metropoli deſte imperio Sornau, & reyno Sião, leuar eſtas pareas que erao obrigados pagar, & fazeremlhe a çumbaya, que era beijaremlhe o treçado que tinha na cinta. E porque eſta cidade eſtá cinquenta legoas pela terra dentro, & as correntes do rio ſaõ muyto grandes, pela qual razão ſe acontecia inuernarem là eſtes Reys muytas vezes, com muyta deſpeſa de ſuas fazendas, informado o Prechau Rey de Sião diſto por petiçaõ que todos os catorze Reys lhe fizeraõ, ouue por bẽ mudarlhe eſta ſugeição taõ graue noutra mais leue, & ordenou que daly por diante ouueſſe neſta cidade de Lugor hum Viſorrey, a que em ſua lingoa chamão, Poyno, ao qual eſtes catorze Reys de tres em tres annos vieſſem peſſoalmente dar obediencia, como antes cuſtumauão dar a el Rey, & pagaſſem então por junto todas as pareas que cada hum deueſſe de todos tres annos, & que naquelle mès em que elles vieſſem dar aquella obediencia, os franqueaua em ſuas fazendas, & a todos os mais mercadores que naquelle mès entraſſem & ſaiſſem, aſsi naturaes como eſtrangeiros. E porque na conjunçaõ em que aquy chegamos, como atras diſſe, era o tempo deſta franquia, eraõ tantos os mercadores que vinhaõ de todas as partes, que ſe affirmaua ſerem entradas neſta cidade paſſante de mil & quinhentas embarcaçoẽs de diuerſas partes com infinidade de fazẽdas ricas. E eſta he a noua que achamos quando ſurgimos na boca do rio, cõ a qual ficamos todos bem aluoroçados & contentes, & determinamos q̃ tanto que vieſſe a viraçaõ entrarmos para dentro, porem quiz a deſauentura por noſſos peccados, que não viſſemos iſto que tanto deſejauamos, porque ſendo quaſi às dez horas, eſtando ja para jantar, & com a amarra a pique para em acabando nos fazermos à vella, vimos vir de dentro do rio hum junco muyto grande ſó co traquete, & mezena, &em emparelhando com noſco ſurgio, hũ pouco a balrauento donde nos eſtauamos, & tanto que foy ſurto, conhecendo que eramos Portugueſes, & muyto poucos, & nos vio a embarcação taõ pequena, arriando da amarra, ſe deixou deſcayr ſobre nos, & igualandoſe cõ a noſſa proa pela banda daſtribordo nos lançou dous arpeos talingados

em duas cadeas de ferro muyto compridas com que nos atracou a bordo. E como a ſua embarcaçaõ era muyto grande, & a noſſa muyto pequena, lhe ficamos metidos debaixo da gorja dos eſcouuẽs de proa. Saindo entaõ da tolda, onde ate então eſtiueraõ eſcondidos, obra de ſetenta ou oitenta Mouros, entre os quais auia algũs Turcos de miſtura, deraõ hũa grande grita, & apos ella foraõ tantas as pedras, os zargunchos, as lãças, & as chuças de arremeſſo ſobre nòs, que parecia chuua que cahia do Ceo, com que logo em menos de hũ credo, dos dezaſſeis Portugueſes que eramos, os doze foraõ mortos com mais trinta & ſeis moços & marinheyros. Os quatro que eſcapamos nos lançamos ao mar, onde ſe afogou logo hum delles, & os tres fomos ter a terra bem eſcalaurados, & ſaindo por hũa vaſa onde atolauamos atè a cinta, nos metemos pelo mato. Os Mouros do Iunco, entrando logo na noſſa embarcacaõ, acabaraõ inda de matar hũs ſeis ou ſete moços que no conuès acharaõ feridos, ſem a nenhum quererem dar vida. E metendo no junco com a mayor preſſa que puderaõ toda a fazenda quanta acharaõ na embarcaçaõ, lhe fizeraõ hum rõbo, com que a meteraõ no fundo. E largando á amarra & os arpeos da abalroa com que nos atracaraõ, ſe fizeraõ logo â vella, porque arrecearaõ poderem ſer conhecidos.