Pesquisando/III/1 - O que fazer?

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1a Etapa: “O que fazer?” - Escolha do tema e do orientador: esboço de um plano provisório

Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre o trabalho imposto e a pesquisa livremente escolhida. No primeiro caso, a opção é bem limitada, pois tem que obedecer às ordens de um mandante que estabelece padrões de composição. Se, por exemplo, o professor do 3o colegial manda Maria analisar um conto de Machado de Assis ou exige da classe um trabalho de aproveitamento sobre a matéria dada, é evidente que os alunos não têm escolha. Gostem ou não do autor, da obra ou da disciplina, são obrigados a fazer os trabalhos de casa, seguindo as orientações do mestre. Da mesma forma, um representante farmacêutico é obrigado, diária, semanal ou mensalmente, a apresentar o relatório sobre as atividades desenvolvidas, dizendo como e quando entrevistou médicos e donos de farmácias, relacionando as observações recebidas sobre a aceitação dos produtos. Para isso, ele deve ter recebido treinamento específico do supervisor de vendas.

Nesses e noutros casos semelhantes, trata-se apenas de “cumprir tarefas”.

O fato de ser um trabalho imposto, porém, não impede que seja bom e que possa ser considerado científico e merecer sua publicação numa revista especializada, se possuir as características enumeradas acima. Pensamos particularmente nos trabalhos em equipe, em que a vontade individual está a serviço de um projeto comum ou na participação em revistas temáticas, em dicionários ou enciclopédias. O trabalho por encomenda pode, ele também, ter um relevante valor científico ou artístico. Diz-se que o poeta latino Virgílio teria escrito o poema épico A Eneida atendendo a uma ordem de Otávio Augusto, que queria que fossem exaltadas em versos líricos as origens gloriosas do Império Romano: dessa encomenda surgiu uma das mais belas epopeias que o gênio humano soube criar!

Diferente é o trabalho de livre escolha, quando a pesquisa é feita não por imposição, mas por iniciativa própria. Aí se manifesta em toda sua plenitude a vocação do pesquisador para o trabalho intelectual, o desejo de entregar-se numa comunidade cultural para contribuir, mediante os frutos de suas pesquisas, no avanço das ciências exatas, biológicas ou humanas. Mas, por não haver um tema marcado, surge a grande dificuldade, especialmente do pesquisador principiante, em não saber o que fazer, nem por onde começar. A dúvida é muito vasta, pois não sabe decidir-se por um trabalho histórico ou teórico; se escolhe um autor antigo ou contemporâneo, nacional ou estrangeiro; se parte para a análise de textos ou estuda gêneros ou movimentos; se dá ao trabalho um caráter filológico ou filosófico, quer dizer, se vai privilegiar o significante ou o significado; se se dará melhor com o estudo de um único autor ou vai dedicar-se a um trabalho comparativo. Enfim, a escolha do tema exige sempre um estudo exploratório muito sério, pois dela depende, em grande parte, o sucesso do trabalho.

É por isso que, para a matrícula num curso de pós-graduação de mestrado ou doutorado, todas as universidades credenciadas pelo governo exigem a aceitação do candidato por um orientador, docente titulado e experimentado, a quem caberá julgar se o tema escolhido pelo orientando é factível e útil. Para tanto, o orientador terá que examinar os seguintes fatores:

1. Verificar se aquilo que Salomon (17, p. 198) chama de “marco teórico de referência” está ao alcance do orientando, quer dizer, ter certeza de que o pesquisador novato conhece, pelo menos razoavelmente, o contexto cultural em que deverá inserir-se o tema a ser tratado. E isso porque nenhum novo conhecimento surge do zero. Existe, conforme outra expressão do estudioso citado (ibidem), um “trânsito dialético”: todo saber implica um conhecimento anterior suscetível de superar-se e criar então um novo saber. Nenhum trabalho em profundidade é possível sem antes ter-se feito a terraplenagem da superfície. O conhecimento genérico é a conditio sine qua non para qualquer conhecimento especializado. Darwin pôde estudar as origens das espécies porque já existia a classificação genérica feita por Linneu!
2. Ter certeza de que as fontes de consulta e o quadro metodológico da pesquisa estejam ao alcance do candidato. Quer dizer, o material deve ser acessível, manejável e utilizado com um método bem definido, apto para a realização daquele trabalho específico. Neste item, é oportuno verificar o conhecimento de línguas estrangeiras como apoio bibliográfico. Evidentemente, o candidato a pesquisador que domine apenas a língua materna encontrará dificuldades no desenvolvimento de qualquer trabalho científico, pois livros específicos ou artigos em revistas especializadas nem sempre se encontram traduzidos para o português. Além disso, confiar em traduções é sempre perigoso, pois os significados, ao serem transcodificados para significantes diferentes, podem apresentar distorções que alteram o sentido do texto original. Vale lembrar a máxima italiana: “traduttore, traditore” (todo o tradutor é um traidor). Entretanto, também não é preciso cair no excesso oposto de excluirmos do horizonte qualquer possibilidade de trabalho intelectual sobre autores cuja língua desconhecemos. O fato de não saber grego ou russo não deve impedir o acesso ao conhecimento de textos fundamentais da Literatura Ocidental. Usando-se boas traduções é possível, por exemplo, fazer uma boa leitura temática de A Ilíada, de Homero, ou de Crime e Castigo, de Dostoievski.
3. Julgar se vale a pena explorar determinado tema. Um trabalho sério de pesquisa implica sempre um grande investimento: além do enorme desgaste da atividade intelectual do pesquisador e de seu orientador, há gastos com a compra do material necessário (livros, revistas especializadas, aparelhagens), com viagens às vezes até o exterior, com bolsas de estudo financiadas por entidades públicas ou fundações particulares, com afastamento remunerado de docentes. Ora, se não houver um retorno cultural satisfatório, o prejuízo público ou privado será irreparável. Por isso, na escolha do tema é preciso muito cuidado, tentando evitar os dois extremos: a banalidade e a excentricidade. O assunto a ser tratado não pode visar a um resultado óbvio, que não acrescente nada de interessante na área de conhecimento escolhida; de outro lado, de modo geral, não deveria ser excessivamente técnico, hermético, inteligível apenas para alguns especialistas ou apresentar algo que interesse somente a amantes de curiosidades. O fruto de longos meses ou anos de um trabalho intelectual deve ir ao encontro das necessidades culturais de uma vasta camada, contribuindo para a melhor compreensão de problemas existenciais, sociais, cívicos, humanos, enfim. Os benefícios de uma pesquisa bem realizada devem aparecer não somente nas áreas das ciências biológicas ou exatas, em que os resultados são mais práticos e palpáveis, mas também no campo das ciências humanas. Um bom trabalho de Sociologia ou de Psicologia, assim como a análise correta e a interpretação convincente de um texto literário, de uma obra de arte plástica, de um filme ou de uma peça teatral são contribuições relevantes para o conhecimento da realidade em que vivemos e um estímulo para melhorar nosso comportamento social.
4. Fazer a dosagem dos tópicos do tema, tendo em vista o tempo disponível. Quanto menor for o prazo atribuído ao orientando, mais restrita deve ser a área de abrangência do tema. Umberto Eco (8, p. 14) acha que para fazer um trabalho de tese é preciso “não mais de três anos e não menos de seis meses”. Ele se refere à tese exigida pelas universidades italianas para a conclusão do curso de graduação. Realmente, com um período de tempo inferior a um semestre, é difícil realizar um trabalho científico sério, uma monografia de certo fôlego, porque, além do tempo cronológico indispensável para a busca do material, sua sistematização, a redação final e a preparação do aparato bibliográfico, necessita-se de um tempo psicológico para que o tema e seus tópicos amadureçam no espírito do pesquisador. Se, como vimos, segundo Platão, o saber é um recordar, pois ninguém aprende pela primeira vez, é preciso voltar constantemente ao assunto a ser tratado, refletir profundamente sobre as opiniões colhidas, formar seu ponto de vista a respeito do tema e expressá-lo com um estilo próprio. Pesquisar não é fazer colagem, transcrição ou paráfrase de textos críticos sobre determinado assunto de forma quase automática, mas amadurecimento intelectual, reflexão profunda, exercício constante de uma redação própria que confira ao pesquisador um estilo peculiar de expressão e um modo próprio de pensar.

De outro lado, o mesmo assunto estudado por mais de três anos torna o tema cansativo, enfadonho, correndo o risco de passar a sofrer da chamada “neurose de tese”. Isso ocorre ou porque escolhemos um tema errado, maior do que nossa capacidade, ou por falha de orientação ou por sermos acometidos da doença do perfeccionismo: queremos esgotar toda a bibliografia existente sobre o assunto, não importa em que lugar ou em que idioma, tendo a pretensão de realizar um trabalho definitivo, inquestionável. A experiência e a humildade nos ensinam que todo trabalho é sempre relativo e provisório, susceptível de ser retomado posteriormente, pois a atividade científica implica avanço constante e qualquer tema nunca poderá ser esgotado de forma absoluta, visto que a perfeição é um alvo intangível. Lembramos o ditado popular:

“O ótimo é o pior inimigo do bom.”

O papel do orientador, porém, não se limita apenas a ajudar na escolha do tema: sua função é acompanhar seu pupilo também nas outras etapas da pesquisa, que veremos a seguir. Sem dúvida, para que a orientação seja eficiente e produtiva, são necessários encontros constantes e periódicos para dirimir dúvidas acerca do trabalho. Isso só será possível se se estabelecer uma relação “simpatética” entre o orientador e orientando. É o respeito e a admiração mútua que tornam agradáveis os contatos. Se não se estabelecer um clima de estima e de afeição, as sessões de orientação tornar-se-ão fadigosas e desestimulantes. Enfim, nada se consegue a frio, porque na vida tudo é um ato de amor, um dar e um receber.

Geralmente, um trabalho de pesquisa de largo fôlego acaba constituindo um triângulo amoroso, uma comunhão espiritual entre três personalidades: a do pesquisador, a do orientador e a do autor escolhido. Exemplificando: estudar a obra literária de Machado de Assis exige que o orientador e o orientando gostem das coordenadas estéticas e dos conteúdos ideológicos do grande escritor carioca, e que haja certas afinidades de caráter que tornem agradável o convívio entre mestre e aluno. E isso porque, na maioria das vezes, o discípulo aprende mais pelas longas conversas que tem com seu orientador do que com a leitura de livros. Lembramos que o diálogo entre mestre e alunos era a forma pedagógica mais desenvolvida na Grécia antiga. As escolas, nada convencionais e frequentadas pela elite, eram denominadas pelo lugar onde ocorria o convívio: a Academia (ginásio de esportes), de Platão; o Peripato (os pórticos), de Aristóteles; o Jardim, de Epicuro. As aulas eram ministradas na forma dialógica de perguntas e respostas entre o sábio e seus seguidores, durante as atividades corriqueiras da vida: banquetes, passeios públicos, banhos coletivos. E porque as mulheres eram excluídas da vida social, confinadas ao gineceu, o convívio assíduo apenas entre homens podia levar à pederastia. Transcrevemos um trecho de um livro clássico sobre o assunto, História da Educação na Antiguidade, de H. Marrou, (38, p. 59):

“Para o homem grego, a educação (paideia) residia essencialmente nas relações profundas e estreitas que uniam pessoalmente um espírito jovem a um mais velho – que era, ao mesmo tempo, seu modelo, seu guia e seu iniciador – relações essas que uma chama passional iluminava com um turvo e cálido revérbero.”

Evidentemente, para nós, educados na civilização cristã, causa estranhamento, para não dizer espanto, tal tipo de relação entre mestre e discípulos. É preciso, porém, considerar que a Grécia clássica cultivou uma moral aberta, em que ainda não existia o conceito pecado. Uma relação hetero ou homossexual era considerada como algo natural, sem nenhuma implicação de ordem ética. O contato físico de dois corpos, entre os quais existisse atração mútua, podia causar uma troca de energias positivas, uma transmissão de sabedoria quase por osmose, além de ser uma fonte de prazer. Mas aqueles eram outros tempos, quando o ser humano ainda gozava do direito à felicidade, aos prazeres da vida, podendo exercer sua liberdade individual sem medo de ser castigado pela sociedade, nem de ser condenado às penas do inferno!

Voltando ao papel do orientador de hoje, após a escolha do tema, ele deve ajudar o aprendiz na formulação de um Plano Provisório das atividades da pesquisa. Chamamos este plano de provisório porque ele vai ser alterado, quase inevitavelmente, ao longo do avanço do trabalho intelectual. Ele serve para quebrar um círculo vicioso: o pesquisador não saberia que material procurar, se não tivesse um plano preestabelecido e, de outro lado, não poderia definir os tópicos do plano que pretende desenvolver antes de ter todo o material a sua disposição. Portanto, à medida que a busca vai apresentando novos elementos, o plano inicial necessitará ser modificado, eliminando uns tópicos, acrescentando outros, diminuindo ou aumentando capítulos. Enfim, a discussão sobre o trabalho científico deve produzir o que Salomon (17, p. 18) chama de “diálogo criador” entre professor e aluno, funcionando o orientador como interlocutor crítico. As relações entre mestre e discípulo devem sempre visar ao alcance de dois objetivos fundamentais: a busca da verdade e o exercício da liberdade. Se, de um lado, o orientador não pode ser um carrasco, impondo tema e metodologia em desacordo com as aspirações do mestrando ou doutorando, de outro lado, não pode ser tão liberal a ponto de aceitar orientar qualquer tipo de trabalho sem alertar sobre sua exequibilidade e utilidade.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é que o processo de aprendizagem não se limita apenas às relações entre orientador e orientando. O discente, especialmente se estiver engajado num curso de mestrado ou doutorado, receberá auxílios valiosos dos outros docentes de disciplinas da área de concentração escolhida e das de domínio conexo, do convívio com os colegas e professores do campus universitário, dos encontros em reuniões acadêmicas e científicas. No dizer de Severino (18, p. 122), “a pós-graduação, mais que um conjunto de cursos, deveria constituir-se num espaço em que se desdobrasse um constante debate de ideias, de troca de conhecimentos, de reflexão, de estudo, de leitura e de discussão”.