Por Darwin/A respiração nos carangueijos terrestres

Wikisource, a biblioteca livre

CAPITULO V
A respiração nos carangueijos terrestres


ENTRE os numerosos factos da historia natural dos crustaceos, sobre os quaes a theoria de Darwin projecta uma nova e viva luz, além das duas formas de machos no nosso Tanais e em Orchestia darwinii, ha um que me parece de particular importancia, á saber, o caracter da cavidade branchial dos carangueijos aerobios, dos quaes, infelizmente, eu não pude investigar alguns dos mais notaveis (Gecarcinus, Ranina). Como este caracter, isto é, a existencia de uma entrada postero-branchial, tem sido attribuido até aqui, como um facto, sómente á Ranina, eu me espraiarei sobre elle, um tanto detalhadamente. Já mencionei que, tal como na verdade é necessario á theoria de Darwin, este orificio de entrada é produzido de diversos modos, nas familias differentes.

No carangueijo — Rã (Ranina) do Oceano Indico, que, segundo Rumphius, gosta de trepar ao tecto das casas, o orificio anterior falta completamente segundo Milne-Edwards, e a entrada de um canal que se abre para dentro das partes ultimas da cavidade branchial, está situada debaixo do inicio do abdomen.

O caso é o mais simples em alguns dos Grapsoideos, como em Aratus pisonii, um encantador, vivo carangueijo que trepa sobre os ramos do mangue (Rizophora) e róe as suas folhas. Por meio das suas curtas mas notavelmente agudas garras, que ferem como alfinetes, quando elle corre sobre as mãos, este carangueijo trepa, com a maior agilidade, sobre os mais delgados sarmentos. Uma vez, tendo eu um destes animaes pousado sobre a minha mão, observei que elle levantava a parte posterior da carapaça; e que assim abria uma larga fenda em cada lado. acima do ultimo par de patas, pela qual eu podia ver longe, dentro da cavidade branchial. Depois eu não pude obter uma outra vez este notavel animal, mas, em compensação, repeti frequentemente a mesma observação sobre um outro da mesma familia (apparentemente um verdadeiro Grapsus), que vive em abundancia sobre as rochas da nossa costa. Emquanto a parte posterior da carapaça se eleva formando a supra-mencionada fenda, a parte anterior parece afundar e, estreitar ou impedir o orificio anterior de entrada. Debaixo d'agua nunca se dá a elevação da carapaça. Por isso o animal abre a sua cavidade branchial, pela frente ou por traz, conforme tenha de respirar n'agua ou no ar. Como se effectua a elevação da carapaça eu não o sei, porém, creio que um sacco membranoso, que se projecta da cavidade somatica, muito além, pela cavidade branchial, por debaixo da parte posterior da carapaça, enfuna pela impulsão dos fluidos do corpo, produsindo com isso a elevação.

Tambem observei a mesma elevação da carapaça em algumas especies dos generos alliados, Sesarma e Cyclograpsus, que cavam profundos buracos na terra dos pantanos e frequentemente passeiam sobre a lama humida, ou estacionam, como se estivessem montando guarda, á entrada das suas tócas. Deve-se, entretanto, esperar muito com estes animaes, quando retirados d'agua, antes que abram ao ar a sua cavidade branchial; porque elles possuem um admiravel mechanismo, por meio do qual podem continuar a respirar n'agua por algum tempo, quando fóra d'esse meio.

Os orificios para a sahida da agua que servio á respiração, acham-se situados, n'estes, como em muitos carangueijos, nos angulos anteriores da armadura oral («cadre buccal», M. Edw.), emquanto que as fendas de entrada da cavidade branchial, se projectam dos seus angulos posteriores para cima do primeiro par de patas. Agora, essa porção da carapaça que se projecta aos lados da bocca, entre os dous orificios («regiões pterygostomianas»), parece, nos nossos animaes, ser dividida em pequenos compartimentos quadrados. Milne Edwards já salientou esse facto como uma peculiaridade particularmente notavel. Esta apparencia é produzida, parcialmente, por pequenas elevações tuberculares e parcial e especialmente, por curiosos pellos geniculados, os quaes, até certa extensão, constituem uma fina rede ou peneira de pellos, estendida immediatamente na superficie da carapaça. Assim, quando uma golfada d'agua escapa da cavidade branchial, immediatamente se diffunde n'essa reticulação de pellos e, então, é de novo reconduzida á cavidade branchial, pelos movimentos vigorosos do appendice do maxillipede externo, que funcciona na fenda de entrada. Emquanto a agua escôa desse modo sobre a carapaça, sob a forma d'uma delgada toalha, se satura tambem de oxygeneo e, pode então servir, outra vez, aos fins da respiração.

Afim de completar este arranjo os maxillipedes externos, como na verdade já é sabido de ha muito, supportam uma carena proeminente, provida de uma densa franja de cabellos, a qual começa na frente, proximo á linha mediana e passa para traz e para fóra, seguindo até o angulo externo da armação oral. Assim, as duas rugas da direita e da esquerda formam, juntas, um triangulo com o vertice virado para frente, — um quebra mar pelo qual a agua fluente da cavidade branchial é affastada da bocca e, reconduzida áquella cavidade.

Em atmosphera muito humida, a provisão d'agua contida na cavidade branchial póde durar horas e, só depois que ella foi gasta, o animal eleva a carapaça, afim de permittir que o ar tenha accesso ás suas branchias, pela parte posterior.

Em Eriphia gonagra, os orificios de entrada da cavidade respiratoria que servem para a respiração aerea, são situados, não, como nos Grapsoidæ, acima, porém atraz do ultimo par de patas, nos lados do abdomen.

FIG. 12 — Entrada posterior da cavidade branchial de Ocypoda rhombea Fab., em tamanho natural; a carapaça e a quarta parte do lado direito foram retirados.

Os celeripedes Espia-Marés (Ocypoda) são animaes exclusivamente terrestres, e apenas resistem por um dia na agua; em um periodo muito mais curto, occorre-lhe um estado de relaxamento completo e cessam todos os seus movimentos voluntarios.[1] N'estes, um mechanismo peculiar nas patas do 3º e 4º pares (fig. 12), é de ha muito conhecido, comquanto, a sua connexão com a cavidade branchial, não tenha sido suspeitada. Estes dous pares de patas, são mais estreitamente proximos do que os restantes; as superficies oppostas das suas juntas basilares (portanto a face posterior do 3º e, a anterior do 4º par) são lisas e polidas, e suas margens supportam denso debrum de pellos longos, sedosos e peculiarmente constituidos (fig. 13). Milne Edwards que, perfeitamente, compara estas superficies, quanto á sua apparencia, com as superficies articulares, pensa que ellas servem para diminuir a fricção entre as duas patas. Considerando esta interpretação, o problema não podia deixar de interjectar, porque tal dispositivo para minorar a fricção seria necessario á estes carangueijos especiaes e entre estas duas patas, deixando fóra de consideração o facto de que as notaveis escovas de pellos, as quaes, ao contrario, de vem augmentar essa fricção, tambem ficariam inexplicaveis. Porém, estando eu mexendo com as patas de um grande Espia-Maré, para lá e para cá, em varias direcções, afim de ver em que movimentos do animal, teria logar a fricção no ponto indicado e, se estes poderiam, talvez, ser movimentos de particular importancia para elle e como isto se daria, notei, quando esticava as ditas patas, separando-as grandemente, na cavidade entre ellas, um orificio redondo, de consideravel tamanho, pelo qual não só o ar poderia facilmente introduzir-se na cavidade branchial, como por elle poderia ser passada uma vara de pequenas dimensões. O orificio se abre na cavidade branchial por traz d'um lobo conico, que fica acima da terceira pata no logar d'una branchia ausente nos Ocypoda. Elle é limitado lateralmente por cristas, que se elevam acima da articulação das patas, e ás quaes se applica a margem inferior da carapaça.

FIG. 13 — Pontas de alguns dos pellos da junta basilar da pata, augmentadas de 45 decimetros.

Exteriormente, tambem, ella é recoberta por essas cristas, com excepção de uma estreita fenda. Esta é sobrepujada pela carapaça que, exactamente n'esta parte se projecta mais para baixo do que em qualquer outra; e assim fica formado um tubo completo. Enquanto em Grapsus a agua só consegue chegar ás branchias pela frente, em Ocypoda eu a vi ahi chegar pelo orificio agora descripto.

Na posição do orificio de entrada posterior e concomitantes peculiaridades do 3º e 4º pares de patas, duas outras especies não aquaticas da mesma familia, que eu tive a opportunidade de examinar, se assemellam á Ocypoda. Uma d'ellas, talvez, Gelasimus vocans que vive nos bréjos dos mangaes, e que guarnece a entrada da sua tóca com uma espessa chaminé cylindrica, de muitas pollegadas de altura, tem as escovas das juntas basilares das patas em questão, compostas de pellos ordinarios. A outra. — um Gelasimus menor, não descripto na «Historia Natural dos Crustaceos» de Milne Edwards e que, prefere logares mais seccos, não receiando correr na areia ardente, sob os raios verticaes do sol de meio dia. em Dezembro; e póde tambem supportar a immersão n'agua, ao menos por muitas semanas, – assemelha-se á Ocypoda em ter essas escovas compostas de delicados pellos não setiformes, realmente mais delicados e mais regularmente construidos do que em Ocypoda[2]. Qual seja a significação d'estes pellos peculiares, — se elles sómente afastam corpos extranhos da cavidade branchial, — se fornecem humidade ao ar que passa por elles, — ou se, pois que o seu aspecto, especialmente no Gelasimus pequeno, lembra um dos filamentos olfactivos dos Carangueijos, elles podem tambem exercer semelhantes funcções, — são problemas, cuja devida discussão, nos conduzirá demasiadamente longe do nosso assumpto. Contudo, deve se notar que, em ambas as especies, particularmente em Ocypoda, os filamentos olfactivos, na sua séde ordinaria, são muitos reduzidos e, quand n'agua, os seus flagellos jamais executam os peculiares movimentos oscillatorios que podem ser observados n'outros carangueijos e, mesmo, no Gelasimus maior; além disso, os orgãos do olfacto devem, provavelmente, ser vistos nos carangueijos que respiram o ar, como nos Vertebrados que respiram o ar, na entrada da cavidade respiratoria.

Basta para os factos que se referem á respiração aerea dos carangueijos. Já foi indicado porque a theoria de Darwin requer que quando quaesquer mechanismos peculiares existam para a respiração aerea, estes sejam differentemente construidos nas familias differentes. Que a experiencia esteja de perfeito accordo com esta exigencia, é um facto maximo em favor de Darwin, porque os escolasticos, não podendo prever ou explicar tão profundas differenças, devem, antes, consideral-as como extraordinariamente surprehendentes. Se, nas familias estreitamente alliadas, Ocypodidae e Grapsoidae, a mais estricta semelhança prevalece em todas as condições essenciaes de sua estructura; se o mesmo plano de estructura é servilmente seguido em todas as outras cousas, nos orgãos dos sentidos, na articulação dos membros, em cada trabecula e tufo villoso, na complicada armação do estomago e, em todos os arranjos subservientes á respiração aquatica, mesmo até nos pellos dos flagellos empregados no asseio das branchias, — porque é que temos, de repente, esta excepção, esta differença completa, concernente á respiração aerea?

Os escolasticos apenas terão uma resposta para este problema, a não ser que se colloquem sobre a base theologica-teleogica, que justamente cahio em desconceito para nós; e segundo a qual o modo de producção de um mechanismo, é supposto explicado, se a sua «adaptação» ao animal pode ser demonstrada. D'este ponto de vista, podemos certamente dizer, que uma fenda amplamente aberta, que nada possuia de prejudicial para Aratus pisonii entre as folhas dos ramos do mangue, não éra conveniente aos Oycpodas, vivendo na areia; que no ultimo, a fim de prevenir a penetração da areia, o orificio da cavidade branchial devesse ser collocado na sua parte infima, dirigida para baixo e, occulta entre largas superficies debruadas de protectoras escovas de cabello. Está longe da intenção d'estas paginas entrar n'uma refutação geral á esta theoria da adaptação. Realmente, pouco ha de essencial á acrescentar ás muitas e admiraveis observações que foram feitas sobre este assumpto, desde o tempo de Spinosa. Mas, note-se que eu considero como um dos mais importantes serviços da theoria Darwinista, o ter ella excluido estas considerações de utilidade, que ainda permanecem incontestaveis no dominio da vida, da sua supremacia mystica. No caso presente, basta referir ao Gelasimo dos pantanos do mangue, que, partilha as mesmas condições de vida de varios Grapsoideos e, no entanto, á elles não se assemelha, mas sim aos areniculas Ocypodas.


  1. Como isto tão era observado no mar, porém n'um vaso de vidros contendo agua do mar, poder-so-hia suppor que os animas se tornassem exhauridos e morressem não porque estivessem debaixo d'agua mas porque tivessem gsto todo o oxygeneo que ella continha. Por isso, eu puz dentro da mesma agua, da qual acabava de retirar um inerte Ocypoda. Já com as pernas mallemente penduradas, um especimen de (texto ilegível) que fôra reduzida ao mesmo estado por ter sido mantido no ar, e esta restabeleceu-se n'agha do mesmo modo que o Ocypoda no ar.
  2. Este Gelasimus menor é tambem notavel porque a mudança Chameloriforme das córes, exhibida por muitos carangueijos, é muito frisante n'elle. A carapaça de um macho que eu tenho agora deante de mim tinha a parte posterior brilhando de um branco deslumbrante, cinco minutos depois de eu tel-o capturado; e presentemente mostra na mesma região uma tinta cinzenta escura.