Recordações Gaúchas/V

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Da beira do mato, onde se enfileirava um grande número de barracas e ramadas, em uma extensão quase de meia légua, começavam a sair, levados ao passeio da madrugada, os parelheiros, todos cuidados a campo, como se usava em geral naquele tempo, principalmente se tratava-se de algum bagual, uma ramada e raras vezes um galpão, onde havia, bastava-lhe para agasalho noturno.

A alfafa não estava ainda em uso, e pouco ou quase nenhum milho dava-se como alimento, mas procurava-se com empenho a boa palha de jerivá bem destalada e picada, ou, na falta, folha de taquara, cresciume ou outras das nossas forragens silvestres.

Por isso os carreiristas, com suas parcerias, procuravam sempre acampar à beira de rios ou matos, atendendo aos recursos de água fresca e pastagem para os animais.

Capa, biqueira e escova eram desconhecidas; somente uma rasqueta feita de chifre, com dentes à laia de serra, à qual se punha um cabo, servia para limpar e alisar o pêlo do cavalo.

O cuidado principal consistia em adestrá-lo na cancha, aligeirando-o ou estendendo-o, fazendo-lhe enfim, adquirir pelo exercício, a rapidez e resistência necessária conforme o tiro que se propunha correr. Este serviço era feito sempre de madrugada, a tempo de dar um passeio e estar de volta ao sair do sol, hora própria para dar-se-lhe a ração da manhã e esperar o tempo de dar água.

Para apreciar a velocidade eram os cotejos com outros cavalos de carreira conhecida - nada de relógio para graduar ou tirar o tempo, como hoje. Isto fazia-se quase sempre às escondidas, nalgum sítio apartado, ou muito de madrugada, para escapar das vistas dalgum competidor ou curioso indiscreto.

Havia até corredores que avaliavam a carreira de um animal pelo ruído das patas quando corriam, conforme amiudavam ou não, produzindo um rumor contínuo, semelhante a um rufo de caixa.

Assim, muitas vezes deitado a um lado da cancha com o ouvido encostado no chão, havia quem apreciasse, principalmente em tiro curto, se aquele ruído era sustentado uniforme desde a saída até a chegada, ou se o animal mermava ou aumentava a carreira.

O andarível estava apenas inventado e poucos o adotavam.

As carreiras se faziam corpo-a-corpo de modo que uma parte da força dos animais perdia-se no empenho de impelir para o lado o adversário.

Além disso, havia-se em boa fé, às vezes, porque isto foi sempre coisa rara, mas sucedia algum trazer consigo qualquer peso oculto, que jogava fora antes de montar tornando-se mais leve e portanto com vantagem sobre o competidor; só não era permitido o mau jogo que se pudese fazer pondo as mãos no corredor, no cavalo ou nas rédeas.

Alguns davam com a ponta do pé no costado do cavalo contrário de tal modo que se este era arisco ou cosquilhoso, afastava-se e dificilmente depois emparelhava-se ao outro para correr, perdendo com isto tempo e atrasando-se.

Outros, jogando a perna para a frente, batiam com o pé contra o freio do outro cavalo, fazendo refrear e muitas vezes parar, e finalmente haviam os repontes, fora da cancha, saídas por fora do laço, etc, etc.

Mas, o mais em uso, por ser menos visível, era o que se chamava trancar e consistia em o corredor estirar bem a perna para trás, afirmando o pé contra o osso do cavalo contrário, de maneira que este, sendo obrigado a vencer a força oposta pelo corredor trapaceiro, afinal cedia extenuado. Tal jogo porém, quando era percebido pelo competidor, este desquitava-se baixando o quanto podia a mão e, fingindo castigar o animal, dava por baixo, com a ponta do rebenque no pé do parceiro, o qual sentindo forte dor, retirava o pé.

Entretanto, não era raro ver-se indivíduo tal, que resistia aos lategaços do adversário, contanto que ganhasse, embora tivesse o pé destroçado a golpes de rebenque.