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Remissão de Pecados/II

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Salão da frente do Teatro Provisório: portas ao fundo comunicando com

o corredor dos camarotes da segunda ordem.

CENA I

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FÁBIO E ÚRSULA, que entram


FÁBIO – Que é isto, Úrsula?... deixaste arrebatada o camarote, como se fugisses ao bote de uma serpente.

ÚRSULA – Sim... eu vi, não uma serpente, mas um homem que eu supunha bem longe daqui: é ele... eu o reconheci no fundo do camarote de Adriano.

FÁBIO – Quem? ...

ÚRSULA – Clarimundo... o antigo tutor de Helena...

FÁBIO – Clarimundo! então chegou hoje no paquete do Rio da Prata: mas... que comoção, Úrsula! estás convulsa... (Chega uma cadeira.)

ÚRSULA (Sentando-se.) – A surpresa... eu não esperava... oh!... esse homem...

FÁBIO – Tão profunda sensação!...(Úrsula estremece.) ah! já compreendo: receias que ele venha destruir a minha obra...

ÚRSULA – É isso mesmo... adivinhaste.

FÁBIO – Ora!... enriqueceu muito, negociando no Rio da Prata; mas por último arruinou-se em uma grande e desastrosa especulação: li há poucos dias cartas, em que ele se lastimava do seu infortúnio: pobre como chega não pode salvar Adriano, e por pouco que me auxilies, Helena abandonada pelo marido...

ÚRSULA (Em pé.) – Escuta aqui mesmo e já. (Olhando em torno.) Meu único irmão, meu único amor na terra, tenho-te amado com fraqueza de mãe... pobre e ocioso, jogador e libertino tens achado alimento para teus vícios na riqueza que herdei de meu marido...

FÁBIO – É melhor deixar esse sermão velho lá para casa.

ÚRSULA – Além do esbanjamento da minha fortuna, um dia me impuseste cruel sacrifício: pretextando intimidade de relações com Adriano, obrigaste-me a procurar a amizade de sua esposa; jurei-te que em outros tempos um abismo de ódio me separara da mãe de Helena: resisti, chorei; porém tu venceste.

FÁBIO – E daí?

ÚRSULA – Oh! pérfido amigo de Adriano, tu me querias para vil instrumento da sedução de sua esposa; colocaste-me na mais triste posição, porque todas as aparências me condenam como tua cúmplice.

FÁBIO – E daí?

ÚRSULA – E a minha consciência também me acusa, porque com o meu ouro pagas a perversão de Adriano, e eu, ainda imprudente, preveni Helena de paixão criminosa de seu marido.

FÁBIO (Rindo.) – E por último propuseste-lhe vir esta noite ao Teatro Provisório, no que Helena conveio logo, porque uma cartinha anônima levada pelo correio urbano já lhe havia anunciado em que camarote poderia ver a rival feliz.

ÚRSULA – Oh! Fábio... tu és mau e me sacrificas sem piedade; agora porém não me submeto mais: eu te peço... por quanto amor me deves, deixa em paz Helena, abafa essa paixão insensata e condenável; liberta-me de um remorso que me punge...

FÁBIO – Estás fora de ti... isso é nervoso, minha irmã...

ÚRSULA – Ingrato que me ridicularizas! vê bem: eu romperei o véu desta intriga... Helena saberá tudo, e ainda mais... eu me compadeço de Adriano, e posso vingar-me de ti, estendendo-lhe mão amiga, e desvendando-lhe os olhos...

FÁBIO – Que revolução!... o simples encontro inesperado de Clarimundo!...

ÚRSULA – Sim... é isso mesmo; Clarimundo conhece as razões da inimizade que houve entre mim e a mãe de Helena, e na fraqueza imperdoável de tua irmã ele veria somente a perversidade do ódio velho... do ódio de além túmulo... do ódio da mulher demônio...

FÁBIO – Tens medo desse homem... (Aparece Bráulio à porta do fundo.)

ÚRSULA – Medo!... oh!... seja medo... supõe o que te parecer... imagina embora que eu me confundo nos turvos segredos dessa sociedade brilhante, onde às vezes se escondem traições e vergonhas nas dobras dos ricos vestidos de seda; mas, eu to disse já, não abusarás mais de mim...

FÁBIO – Isso passa... são recordações da mocidade... pecados veniais do outro tempo...

ÚRSULA – Fábio! tu me insultas!...

FÁBIO – Estamos entendidos: Clarimundo é um inimigo demais, e tu uma aliada de menos; ele, porém, é homem sem dinheiro, baluarte sem pólvora, fortaleza sem soldados, e tu uma alma ingrata que me embaraças a felicidade com os teus casos de consciência. Zombo do inimigo e dispenso a aliada. Agora só preciso de um auxiliar, é Bráulio.

CENA II

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ÚRSULA, que logo se retira, FÁBIO e BRÁULIO


BRÁULIO (A Úrsula.) – O último dos criados de v.ex.! (A Fábio.) Às ordens de v.s.

FÁBIO (Apresentando) – O sr. Bráulio...

ÚRSULA (Saudando com desdém.) – Ah...

FÁBIO – Estava então aí... de perto?...

BRÁULIO – Passava por acaso, quando ouvi pronunciar o meu nome; mas de perto, ou de longe sou como o diabo, acudo logo à primeira evocação.

ÚRSULA (A Fábio.) – Voltemos ao camarote.

FÁBIO (A Bráulio.) – Espere-me aqui um instante (A Úrsula.) Vamos, Úrsula.

ÚRSULA – Posso ir só. Fique. (Vai-se.)

FÁBIO – O senhor escutava-nos... confesse.

BRÁULIO – É claro que ainda que estivesse escutando, não faria a confissão; mas eu não disputo o direito da suspeita: V.S. pode pensar o que quiser.

FÁBIO – Não se ofenda: nós somos bons amigos e a sua chegada foi muito oportuna; ontem à noite naquela desordem em que acabou o jogo, não pude informar-me do que sua sobrinha conseguiu de Adriano, e agora é ainda mais urgente...

BRÁULIO – Amanhã à meia noite Adriano me roubará Dionísia.

FÁBIO (Apertando a mão a Bráulio.) – Ah! ainda bem! com tanto que ele não se arrependa.

BRÁULIO – Ele?... está acorrentado pelo coração; mas outra pessoa... talvez...

FÁBIO – Outra pessoa?... quem então poderia arrepender-se?...

BRÁULIO – Eu, por exemplo. Sejamos francos: v. s. tem tudo a ganhar e eu muito a arriscar. É certo que já recebi seiscentos mil réis, e que outro tanto me está garantido e sem dúvida receberei logo que se realizar a hipótese.

FÁBIO – Foi o que ajustamos, e nem eu fiz questão da quantia...

BRÁULIO – É verdade: tenho, porém, calculado que Dionísia vale mais. Dionísia é a minha sereia.

FÁBIO – E voltará ao seu mar, quando ela o quiser.

BRÁULIO – Sr. Fábio; jogo franco e cartas sobre a mesa: eu vou sofrer na reputação da casa... haverá baixa no barato; além disso, o coração da gente é de carne... hei de por força sentir saudades; e, enfim, quem me assegura que Dionísia não se tomará de paixão pelo novo amante?... em caso de dúvida não arrisco por tão pouco a fazenda.

FÁBIO – Como?... e a sua palavra?...

BRÁULIO – Mais um conto de réis e negócio feito. É evidente que preciso de justas compensações.

FÁBIO – É evidente que na hora suprema o senhor põe-me uma faca aos peitos: isto é escandalosamente imoral!.

BRÁULIO – Convenho: não me diz nada de novo; ambos nós porém rolamos juntos na imoralidade, razão maior para jogo limpo e cartas sobre a mesa.

FÁBIO – É uma extorsão!.

BRÁULIO – Meu senhor, não se comem trutas a bragas enxutas; além disso, eu não o obrigo a dar-me o dinheiro que peço; pelo contrário, estou pronto a restituir a quantia que já recebi e rompemos a negociação.

FÁBIO – Mas a sua palavra?... a sua palavra?...

BRÁULIO – Ora, sr. Fábio! pois um homem que se presta a entrar em negócio desta ordem pode ter escrúpulo de faltar ao ajustado?...

FÁBIO – Que franqueza repugnante!

BRÁULIO – Perdão... neste assunto nenhum de nós injuriaria o outro sem injuriar-se... e note bem: eu quero lucrar sem intenção de fazer mal, e V. S. paga para atingir a fins sinistros...

FÁBIO – Sr. Bráulio!... (Aplausos dentro.)

BRÁULIO – Faz-lhe conta o que propus? é resolver até amanhã.

VOZES (Dentro.) – À cena! à cena!...

FÁBIO – Repito... é uma extorsão... e há de arrepender-se da sua má fé...(Aplausos dentro.)

CENA III

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FÁBIO, BRÁULIO e CINCINATO


BRÁULIO – Que é isto?... Vem o teatro abaixo?... (Aplausos.)

CINCINATO – Não vem abaixo, porque é Provisório, se fosse permanente já tinha caído: o Brasil é o Império das inconseqüências; prova: a permanência do Provisório na Praça da Aclamação.

BRÁULIO – Mas que trunfo é esse?

CINCINATO – Apoteose das pernas postiças de duas dançarinas do Alcazar; é de direito: o can-can saiu extraordinariamente da Rua da Vala para aristocratizar-se no campo, e o respeitável quebra as mãos, aplaudindo os pontapés atirados à lua por dois cometas velocípedes do sexo feminino que vão rir pelos calcanhares de tanto entusiasmo por pernas que não são delas.

BRÁULIO – E o senhor fugiu à apoteose?

CINCINATO – Arrepios de inocência e confusões de pudor... as duas ninfas começavam a acalcanhar-me o coração e tive medo de apaixonar-me pelos seus dedos mindinhos.

BRÁULIO – Medo de se apaixonar pelos dedos?

CINCINATO – Sim; mas o medo não era realmente dos dedos... era das unhas.

BRÁULIO – Pois eu vou pedir mais completa informação da apoteose... até logo.

FÁBIO (Baixo a Bráulio.) – Amanhã à hora aprazada receberá o conto de réis. (Assentimento de Bráulio.)

CINCINATO (Pelo outro lado.) – Cada qual tem os seus segredos... (A Bráulio.) tio Bráulio! lembranças à prima. ( Vão -se Bráulio e Fábio.)

CENA IV

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CINCINATO, CLARIMUNDO e HELENA


CINCINATO – Oh! oh!... sr. Clarimundo!...

CLARIMUNDO (Abrindo os braços.) (Abraço apertado.) Cincinato!...

CINCINATO – Perdão, minha senhora! (Aperta a mão a Helena.) Mas o sr. Clarimundo aqui...

CLARIMUNDO – Meu Cincinato! perpétuo Quebra-louça! sempre o mesmo alegrão!... (Abraça-o outra vez.)

CINCINATO – E sempre quebrando louça, até que a morte me quebre este boião vazio que trago em cima do pescoço e que por costume chamam cabeça, sr. Clarimundo...

CLARIMUNDO – Haverá três horas que cheguei, e apenas desembarcado, corri imediatamente à tua casa.

CINCINATO – E não me achou... é claro! como sou encontrado em toda parte, era preciso que houvesse um ponto de exceção, onde ninguém me encontrasse: escolhi a minha casa para lugar de ausência; é cômodo e econômico por causa dos amigos: mas o senhor volta remoçado... vendendo saúde.

CLARIMUNDO – E, já o sabes, com a bolsa vazia depois de a ter tido abarrotada! não importa... nunca desanimei; torno ao seio da pátria com esperança de ainda ser feliz; poderei sê-lo?... ardia por falar-te... (Dominando-se mal.) sobre... sobre aquele meu negócio... aqui é impossível... eu o vejo... mas... uma palavra só... chego a tempo?...

CINCINATO – Antes tarde que nunca... todavia... a fazenda está muito avariada.

CLARIMUNDO – Cincinato – Há caso de contrabando... obrigações não cumpridas... agravação do comércio ilícito, de que o informei... precisamos conversar amanhã...

HELENA – Sem cerimônia... eu esperarei à janela...

CINCINATO – Oh, não, minha senhora; aqui não posso explicar-me com o sr. Clarimundo; trata-se de negócios comerciais complicados... jogo na praça... baixas de câmbio... contratos secretos... falência eminente... empresa anônima com letra aberta no banco da pouca... quero dizer da nenhuma vergonha... perdão minha senhora...

CLARIMUNDO – Basta... eu devia ter vindo mais cedo... prenderam-me compromissos... mas... amanhã... amanhã... (Outro tom.) este desastrado está sempre a doidejar... é o seu costume... (Aflito.)

HELENA – Nem sempre: colaço de Adriano, tem sido para mim o irmão mais delicado, e o amigo mais respeitoso...

CINCINATO – É que só me apresento a falar-lhe, quando me sinto em horas lúcidas.

CLARIMUNDO – Estarias sempre lúcido, se não fossem as más companhias... oh! as más companhias!... (Outro tom.) quem são os dois figurões que saíram daqui, quando entrávamos?... vi-os no corredor e pareceu-me reconhecê-los.

CINCINATO – A um sem dúvida conhece: é o mais feliz dos capitalistas; porque sem fonte de renda tem inesgotáveis fundos de reserva nos cofres da fraternidade: é Fábio o irmão de dª. Úrsula.

CLARIMUNDO – Fábio!... e o outro?

CINCINATO – O outro lhe é desconhecido: chama-se Bráulio, venerando tio de uma sobrinha de quem não é tio... perdão minha senhora; é o rei do barato; em reino de casa de jogo o barato significa sangria, e o reino é de sanguessugas; porque, além do barato, que é veia aberta, há ali a sobrinha do tio de quem não é sobrinha, e tornando-se prima mesmo de quem não for seu primo... perdão, minha senhora.

HELENA – Como se chama ela?...

CINCINATO – Dionísia (Movimento de Helena.) uma carta de jogo que anda fora do baralho e que às vezes embaralha de modo... não sei como o diga... perdão minha senhora, eu me vejo muito embaralhado para poder explicar... mas ela é na verdade mazela.

HELENA – E formosa, pelo menos bonita?...

CINCINATO – Hoje em dia a beleza tornou-se equívoca... perdão, minha senhora, nem sempre; em regra, porém, misericórdia! pastas de pó de arroz no rosto, no colo, nas espáduas, o diabo em dez tintas enganadoras, e além da caiação e da tinturaria postiços a desnaturar a natureza: a três passos de distância há velhas que arrebatam pelo fulgor da primavera.

CLARIMUNDO – Má língua!

CINCINATO – Acresce que atualmente o belo é o arco-íris combinado com o aleijão: para o aleijão tacões enormes de botinas a empurrar o corpo para diante e anquinhas deformes a puxá-lo para trás; arco-íris em vestido com duas saias, uma azul e outra cor-de-rosa, com apanhados amarelos, enfeites pretos e corpinho cor de agapanto com fitas verdes e rendas brancas, afora os laços monstros e...

HELENA – Mas essa moça... Dionísia...

CINCINATO – Beleza equivoquíssima; em perpétuo toilette de carnaval destemperado: tez pálida... rosada... clara... morena a capricho da variedade, cabelos negros... castanhos... cinzentos... louros conforme os dias da semana; é bela? é ponto controverso entre os dias da semana.

CLARIMUNDO – Já tagarelaste demais, e estás estorvando o meu passeio com Helena; vai almoçar comigo amanhã às nove horas precisas... hotel Provenceaux segundo andar.

CINCINATO – Hotel Provenceaux... segundo andar... sem falta. seremos três a almoçar; porque eu sou dois à mesa dos amigos. Minha senhora... (Aperta a mão de Helena.) Sr. Clarimundo, até amanhã. (Aperta a mão de Clarimundo.)

CLARIMUNDO – Às nove horas... ou antes... ( Vai-se Cincinato.)

CENA V

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CLARIMUNDO e HELENA


CLARIMUNDO – Excelente mancebo! tipo de lealdade e honra; é pena que desame o trabalho e tão estouvado às vezes se mostre.

HELENA – Vive na abastança com o que possui; não tem ambições e o seu estouvamento a ninguém prejudica; comigo, embora colaço de meu marido, leva o respeito a condições de cerimônia, e é um amigo de fidelidade exemplar.

CLARIMUNDO – É, posso dizê-lo; mas... como se acha?...

HELENA – Estou muito melhor... (Passeiam.)

CLARIMUNDO – Vim encontrá-la um pouco abatida... evidentemente padece; quando há três anos fui para o Rio da Prata, deixei-a mais alegre e gozando melhor saúde: não é feliz?...

HELENA – Muito feliz, Adriano... é tão bom para mim!...

CLARIMUNDO – Sabe como estimo seu marido: é um perfeito cavalheiro; mas às vezes entre jovens casados basta a sombra de uma suspeita para anuviar a felicidade.

HELENA (Trêmula.) – Eu confio no amor de meu marido: Adriano me trata com a mais extremosa delicadeza.

CLARIMUNDO – Pareceu-me que se perturbou... eu tenho o direito...

HELENA – Oh! enganou-se, não posso queixar-me de Adriano: sou feliz.

CLARIMUNDO – Seu marido é muito moço e a mocidade é sujeita a imprudentes desvios: mas... eu respondo pelo coração do homem a quem confiei o seu futuro... a sua vida; (comovido.) se o ímpeto de idade... um erro... alguns dias de desvario... não sei... mas se por acaso Adriano mentiu ao seu dever, a virtude da esposa o regeneraria com o perdão.

HELENA – Por que me diz isto?... eu não deixei ainda transpirar leve desconfiança da lealdade de meu marido... amo e sou amada... que mais posso desejar?...

CLARIMUNDO – Mas responde-me a tremer, e está a ponto de chorar: o leviano sou eu... a ocasião é a mais imprópria...

HELENA – É que estou incomodada... sofro...

CLARIMUNDO – Para que então veio ao teatro?

HELENA – Não devia ter vindo... não devia... tem razão; eu, porém, havia prometido vir à melhor das minhas amigas.

CLARIMUNDO – E quem é a melhor das suas amigas. minha filha?...

HELENA – Dª. Úrsula, a senhora viúva, de quem se falou há pouco.

CLARIMUNDO – Ah! conheço-a: podia ser sua mãe; para a melhor das suas amigas é bem desigual em anos: desde quando se relacionou com ela?

HELENA – Há poucos meses. Que pensa de dª. Úrsula?...

CLARIMUNDO – Eu?... nem bem, nem mal: apenas a conheci nas sociedades do meu tempo.

HELENA – Ela tem falado de vossa mercê com elogio e estima...

CLARIMUNDO – Santa criatura!... pensei que nem se lembrasse de mim. E... de Adriano... que diz dª. Úrsula?...

HELENA (Estremecendo.) – De Adriano!... que poderia ela dizer-me de meu marido?...

CLARIMUNDO – Perguntei por perguntar: e Fábio?...o irmão de dª. Úrsula?...

HELENA – Não faço bom juízo dele: tenho-o por fátuo e vaidoso; e, embora Adriano o considere seu amigo, não admito a sua intimidade... apenas o encontro por acaso.

CLARIMUNDO – Penso que procede com acerto, mas nesse proceder quem a inspira?... o instinto da antipatia, o conselho da reflexão, ou... diga a verdade, ou o justo ressentimento da suspeita de uma afronta?...

HELENA – Senhor...

CLARIMUNDO – Muito bem, minha filha: quer voltar ao camarote?...

HELENA – Ainda não; o ar aqui é mais leve, e me reanima: não me acha melhor?... passemos pelo corredor dos camarotes... vamos por este lado...

CLARIMUNDO – O ar ali menos puro... talvez lhe seja nocivo...

HELENA – Não... vamos por ali... quero distrair-me: desejo ver a moça de quem o sr. Cincinato falou-nos, dizem que é bonita.

CLARIMUNDO – Como sabe que ela está no teatro?...

HELENA (Confundida.) – Como sei?... mas... o sr. Cincinato nomeou-nos o tio... não se lembra!...

CLARIMUNDO – O tio podia ter vindo só ao teatro: como sabe que o camarote é na segunda ordem e daquele lado?...

HELENA (Mais perturbada.) – Como sei... ora....era fácil sabê-lo... olhavam... (Quase a chorar) todos olhavam... todos... adivinhei...

CLARIMUNDO – Minha filha!... minha filha!...

HELENA (Chorando e apoiando o rosto no ombro de Clarimundo.) – Perdão!...

CLARIMUNDO – Perdão... ah! sim! perdão! é perdão que eu te peço!... perdão para ele!...

HELENA – Meu bom pai!... sou muito desgraçada!...

CLARIMUNDO – Adriano chega, dissimula a aflição e conta comigo.

CENA VI

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CLARIMUNDO, HELENA e ADRIANO


ADRIANO – Ah! passeiam... (Cuidadoso a Helena.) Que tens, Helena?...

HELENA – Ligeiro incômodo... uma vertigem que passou... dá-me uma cadeira... (Adriano vai buscar a cadeira.) veja o corredor donde ele vem!... (A Clarimundo.)

ADRIANO (A Helena que se senta.) – Estás melhor?... dize... estás melhor?... (Helena encara-o trêmula.) Que tem ela?... (A olhar)

HELENA – Estou boa.

CLARIMUNDO – Foi má idéia trazê-la hoje ao teatro... sua mulher estava sofrendo.

ADRIANO – Ela o quis... exigiu... pela primeira vez resistiu aos meus conselhos... eu não queria...

HELENA – Oh! sem a menor dúvida....... ele não queria que eu viesse hoje ao teatro... não queria... (Rir nervoso.) ele não queria!...

CLARIMUNDO – Helena! (A Adriano.) E prudente levá-la para casa.

ADRIANO – Por certo... (A Helena.) Helena... vamos?... convém que nos retiremos... precisas descansar...

HELENA – Pensas?

CLARIMUNDO – Oh, senhor! mande chegar o carro... (Em tom um pouco severo.) Helena!...

HELENA – Vamos... manda chegar o carro... (Adriano dirige-se para o lado do camarote de Bráulio.) Oh! não! (Em pé.) estou boa... quero ficar...

ADRIANO – É impossível...eu vejo que me escondes talvez padecimento sério... procuras poupar-me... e atormentas-me... sr. Clarimundo, Helena está mais doente do que diz...

CLARIMUNDO – Também o creio; mas é preciso acabar com esta cena que seria ridícula, se não fosse dolorosa... esta sala é de todos... muitos estão passando por aquele corredor... alguns podem entrar aqui, e... seria triste que suspeitassem de uma disputa entre marido e mulher.

ADRIANO – Não há porém disputa...

HELENA – Nem pode haver... nunca... nunca... disputa não... (A Clarimundo com intenção.) disputa... Não! (A Adriano.) Adriano, estou muito melhor, eu te peço; consente que eu me demore... é tão bonita a ópera... Orphée aux enfers... consente...

ADRIANO (A Clarimundo.) – Que hei de fazer?...

CLARIMUNDO – Ficar. Helena se apraz de demorar-se nos infernos... faça-lhe o gosto: ela quer ver, contemplar, admirar, e neliar o diabo... pois bem, é capricho de mulher... dá-lhe o gozo envenenado do diabo, e peça a Deus que também o livre da tentação...

ADRIANO – Chegam dª. Úrsula e Fábio...

CLARIMUNDO – Quando eu falava no diabo!... pois não me lembrava estes.

CENA VII

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CLARIMUNDO, HELENA, ADRIANO, ÚRSULA e FÁBIO


ÚRSULA – Dª. Helena! oh! Sr. Clarimundo! que surpresa feliz!

FÁBIO – Sr. Clarimundo! que fortuna!

CLARIMUNDO – Minha senhora, um velho pajem que volta ao serviço de v. ex.! Sr. Fábio... (Aceitando-lhe a mão.)

ÚRSULA – Abençôo pois duas vezes a minha vinda ao teatro esta noite. (Dá a mão a Clarimundo, que a beija curvando-se.)

ADRIANO (A Helena.) – Como estás, Helena?...

HELENA (A Adriano.) – Boa... perfeitamente boa.

CLARIMUNDO – Além da imensa graça de beijar-lhe segunda vez a mão, terei a honra de ir em breve pedir a v. ex. um favor especial.

ÚRSULA – Um favor? se quiser, eu tomarei o anúncio prévio do pedido por dívida sagrada contraída por mim.

CLARIMUNDO – É o segredo precioso para se ter sempre vinte anos de idade.

ÚRSULA (A Helena.) – Já viu que lisonjeiro?...

CLARIMUNDO – É vaidade de velho que conserva a vista perfeita.

ÚRSULA – Não zombe: ao menos ainda não me envelheceu o coração; pergunte à dª. Helena como a amo.

HELENA – Já lho disse, e também...

CLARIMUNDO – Que V. Ex. tem a memória igualmente jovem... lembra-se muito do passado!... nem se esqueceu de mim...

HELENA – E talvez que isso contribuísse não pouco para a amizade que devo a dª. Úrsula...

CLARIMUNDO – Talvez... sim... (Olhando para Úrsula.)

ÚRSULA – Ah, não! Dª. Helena merece tudo por si... o passado e o senhor... nada tem com a amizade que lhe voto...

ADRIANO – Creio que subiu o pano: vamos?...

FÁBIO (Voltando do fundo.) – Não: o pano já tinha subido e acaba de descer: parece que houve novidade... penso que algumas famílias já se estão retirando. (Movimento.)

CENA VIII

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CLARIMUNDO, HELENA, ADRIANO, ÚRSULA, FÁBIO, CINCINATO; algumas famílias passam, retirando-se pelo corredor, outras entram no salão; senhoras tomam seus mantos, etc.


CINCINATO – Era o caso de se chamar o médico do inferno...

ADRIANO – Que houve?

CINCINATO – Um ataque de cabeça em Orfeu por ciúme de Júpiter... faniquitos de Eurídice em conseqüência... e suspensão do espetáculo até outra noite infernal... mas onde está o médico do inferno? é indispensável recorrer a Plutão e Proserpina que o devem conhecer... Plutão e Proserpina... oh! parece que chegam.

CENA IX

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CLARIMUNDO, HELENA, ADRIANO, ÚRSULA, FÁBIO, CINCINATO, BRÁULIO e DIONÍSIA; movimento de famílias que se retiram e que entram no salão.


BRÁULIO – Que contratempo!... que infelicidade!...

DIONÍSIA – Titio, Eurídice está em perigo de vida?...

CINCINATO – Não se assuste, minha senhora, as Eurídices são imorríveis. (Helena avança um passo e chega-se a Úrsula.)

ADRIANO (A Helena.) – Vamos... vamos... (Helena tem os olhos em Dionísia.) vamos, Helena... (Dionísia olha para Helena.)

HELENA (Trêmula.) – Vamos... (Imóvel e apertando a mão de Úrsula) Dª. Úrsula... vamos... (Imóvel)

CLARIMUNDO (A Helena) – O meu braço, minha filha... (Clarimundo toma o braço de Helena, e leva-a; saem logo Adriano, Úrsula e Fábio.)

DIONÍSIA – Que olhar me deitou aquela moça! (Movimento de repulsão das famílias que se afastam.)


FIM DO SEGUNDO ATO