Traços de um roteiro
Não sabemos se, neste confuso turbilhão da imprensa, se poderia estrear um jornal de vontade e aspirações assentadas, sem dizer a que vem, que idéias traz, ou se seria possível dizê-lo, sem resvalar, mais ou menos em cheio, no uso dos programas. Estes representam, especialmente em assuntos políticos, a mais desacreditada tradição, que se conhece, e, portanto, a menos propícia à esperança dos que pretenderem agoirar bem um cometimento sincero. A época, que atravessamos, é sobre todas fértil, a este respeito, em desenganos. Dantes a esfera desses compromissos era mais modesta; porque a ação dos homens, que ocupavam, ou disputavam o poder, confinava, de todos os lados, com as raias traçadas por uma forma de governo que sua constituição fadava à perpetuidade, e dentro na qual giravam as ambições, os projetos e as expectativas.
Em 15 de novembro caíram as barreiras, que limitavam esse horizonte. Todos os sonhos e todas as pretensões tinham ante os olhos o espaço indefinido, por onde mergulhar a vista. Os programas rebentaram em frondescência agigantada e basta, como florestas encantadas, de imensas perspectivas, povoadas de grandes pensamentos, de resoluções heróicas. Tanto maior a ruinaria moral, deixada nos espíritos pelo cair sucessivo e fragoroso de tantas ilusões. A república não era um programa, o mais ridente, o mais bem auspiciado, o mais inevitável dos programas? E quem ousará dizer que a realidade se pareça com a promessa? Não era um programa completo, logicamente entretecido, solidamente estruturado, essa Constituição de 1891, programa de governo à imagem do melhor dos modelos? Mas quem o reconhecerá hoje nesta miscelânea de opressão pretoriana e veleidades parlamentares, cujos violentos reativos dissolvem rapidamente as novas instituições, como um organismo amplamente imergido em banho de ácido azótico? Não foi um programa o 23 de novembro: a restauração da legalidade? Quando é, porém, que já se praticou, entre nós, a subversão das leis como depois dele? Que tem desdobrado ele sobre o país, senão a mortalha do caos? A defesa do tesouro era um programa de austeridade financeira. Não era? Sob o seu domínio, todavia, a gravitação para o déficit adquiriu a celeridade vertiginosa dos corpos que se precipitam no espaço. Programa era, no panegírico dos interessados e na apreciação dos ingênuos, a reforma forçada dos treze generais: um programa de governo civil e disciplinador, o programa do militarismo convertido à subordinação militar, incoerente, mas ríspido programa de um ditador revoltado contra a caudilhagem. E que resultou, para a nação, desse programa, senão a decadência crescente do princípio de autoridade, a desorganização dia a dia maior da força armada, as condescendências cada vez mais graves com os apetites que a anarquia desencadeia?
Quando na história de projetos vigorosos como esses, uns apoiados na base incomparável das simpatias populares, outros na força de poderosas situações bafejadas pela fortuna, tudo é desmentiremse, estragarem-se, anularem-se desastrosamente, pode-se calcular o constrangimento do jornalista, inspirado unicamente pela vocação de sua consciência na tentativa que empreende, se pudesse sentir-se sob o receio de ver envolvido na desconfiança geral contra os cartazes políticos o instrumento solene de sua consagração à causa, por que se expõe. Felizmente, porém, os anais do jornalismo brasileiro, no seu período mais memorável talvez desde os tempos de Evaristo da Veiga, guardam indeléveis documentos da firmeza de nossa aliança com os interesses da nação, da tenacidade do nosso fervor na religião das idéias que abraçamos. A bandeira, que, a 7 de março de 1889, hasteamos no Diário de Notícias, sob o grito de “federação ou república”, não se arriou mais senão em 15 de novembro. A resistência imperial a uma das alternativas do dilema levara a efeito simultaneamente as duas.
Por mínima que fosse a nossa contribuição pessoal para esse resultado, ela associara-nos congenitamente a ele. A nova constituição, gerada com o concurso do nosso coração e da nossa responsabilidade, tinha alguma coisa de carne da nossa carne e osso dos nossos ossos. Bem se avalia, pois, que as violências contra ela perpetradas nos doessem quase como golpes vibrados ao nosso próprio seio. Na opinião dos prudentes, porém, essas agressões eram da natureza daquelas que se assanham, e destemperam até com a legítima defesa dos agredidos. Como os protetores naturais das oprimidas, em presença de certos escândalos domésticos nos casais flagelados pelas incompatibilidades de temperamentos, devíamos contemporizar com as brutalidades da tirania inevitável, para não provocar as catástrofes extremas.
Não tendo a honra de pertencer à família histórica dos chamados “republicanos dos tempos da propaganda”, presumíamos que a tribo dos levitas, ainda agora justamente zelosos de seu privilégio histórico, soubesse guardar melhor do que nós a arca e o santuário da lei. Com assombro, porém, tivemos de ver que o sacerdócio preposto à custódia da tradição sagrada perdera o espírito de sua missão, e cobria com o crédito de sua autoridade as violações mais criminosas do grande mandamento. Nessas ocasiões, quando a indignação sobrepujava a prudência, vencemos o recato da nossa conversão, para levantar a voz, às vezes quase solitária, em nome da verdade profanada. Mas força era recolhermonos de novo, evitando a atitude combatente; porque há épocas de sujeição servil, em que até a reivindicação da justiça sob a inocência das garantias legais se indigita à severidade dos poderes repressores como um dos explosivos do gênero da dinamite. Se, porém, nos abstínhamos de freqüentar a imprensa e a tribuna, limitando-nos, na representação nacional, ao trabalho obscuro das comissões, nossa reserva era invertida contra nós, como um caso de indiferença e egoísmo, por aqueles mesmos que deviam enxergar e louvar naquele silêncio a mais moderada forma da nossa reprovação.
Chegamos, porém, a um momento tal de desorganização no mecanismo do Governo, de babel nas noções de administração, de desalento nos espíritos e, graças a tudo isso, de furor nas dissensões, nos agravos e nas cobiças, que os homens convencidos já não podem emudecer, sem prevaricar. É necessário que as facções se sufoquem, e que as boas vontades se congreguem, para obrigar o erro e as paixões, que nos desonram, escravizando-nos, a capitular sob a pressão moral da lógica, da decência e do patriotismo. Debaixo das pomposas inscrições da chapa republicana, o país não é mais do que uma vasta sepultura, onde os fantasmas do antigo regímen se digladiam com as armas dos seus vícios. Temos o império, mutato nomine com quase todos os seus defeitos, e sem a sua unidade.
A situação, a nosso ver, é ainda remediável. Mas não o será dentro em pouco se a deixarmos derivar à toa da corrente. E o meio de acudir-lhe não pode estar nessa arte de ter juízo, que consiste em reservar aos que nos governam o direito de não tê-lo e aos governados a obrigação de não murmurar contra os que o não têm.
Mercê desses abusos, desses atentados inconscientes da incompetência, que juncam hoje o campo das instituições planejadas no pacto federal, chegamos à maior das desgraças para o sistema adotado a 24 de fevereiro: a de vê-lo confundido com a deturpação, que o substitui, usurpando-lhe a linguagem, mas banindo-lhe a realidade. A poder de ver-se o regímen presidencial nominalmente identificado à ditadura militar, a aversão acerbamente ressentida contra esta principia a refletir sobre aque-le. O vulgo em geral não discrimina as instituições dos indivíduos, que as encarnam, ou dos sofismas, que as desnaturam. Mas tais proporções tomou o mal entre nós que das inteligências inferiores e incultas o equívoco vulgar vai ascendendo às mais eminentes. Destarte o regímen americano, antítese essencial do que entre nós se pratica, acabará por incorrer na condenação que devia fulminar os seus falsificadores. Estes então, por amarga ironia do destino, assumem o patronado oficial do presidencialismo republicano, que os seus atos desacreditam, contra as aspirações parlamentares, de que a sua política se nutre.
Nada, portanto, mais favorável às conveniências da impostura constitucional, que explora assim, ao mesmo tempo, o presidencialismo e o parlamentarismo, do que ligar a um antagonismo atual entre essas duas correntes, que ainda não existem no país senão em apreciações abstratas, a diferenciação prática entre os partidos em esboço. A oligarquia militar é tão incompatível com o parlamentarismo como com o presidencialismo, e teria arruinado a república ainda mais depressa sob a forma parlamentar francesa do que sob a forma presidencial anglo-saxônia. A prova, temo-la aí diante dos olhos: esse belo chapéu-de-sol chinês que abriga gentilmente a ditadura, as evoluções de gabinete, de tribuna e de escrutínio, que a sustentam, tudo isso é lidimamente parlamentar. De modo que, podemos dizê-lo sem receio de contestação plausível, é apoiado na sobrevivência dos hábitos parlamentares, revivescentes como o escalracho e a tiririca entre as plantações úteis, que o marechalato esteriliza, corrompe e malquista o regímen presidencial.
O papel dos republicanos e dos patriotas não é, pois, andarem agora à cata de outro sistema de governo, de outra expressão formal da democracia, mas reclamarem o governo, que a Constituição nos deu, e em cuja posse não entramos ainda. Nosso dever é pugnar pela Constituição, para restabelecê-la, restabelecer a Constituição, para conservá-la. A essa conservação duas dificuldades se opõem: a adulteração do governo do povo pela onipotência militar, a absorção da política nacional pelo monopólio jacobino. A ditadura atual, desde seus primeiros atos, desde suas primeiras palavras, tomou esse grupo violento como o transunto do país, entregou-se a ele, encerrou-se no seu círculo estreito e agitado. Espectadora irritada e atônita das cenas dessa autocracia militar, cuja guarda política se compõe de um corpo de demagogos, a nação concentra-se cada vez mais nos seus instintos conservadores, ansiosa por experimentar, na união e na paz, a realidade dessa constituição, cujos bordos lhe untaram de fel e de sangue, mas cujo princípio vivificante ainda não lhe foi dado saborear. Aí estão esses elementos de tranqüilidade e regeneração: a inteligência, a capacidade, o trabalho, a riqueza. Eles aguardam que o espírito divino sopre sobre a sua confusão palavras de serenidade e conforto, de liberdade e harmonia. Se um pouco desse hálito puder passar-nos pela boca, não temos outra ambição: concorrer para a agregação desses princípios esparsos, mas poderosos, irresistíveis, no único partido nacional possível atualmente, contra o despotismo e contra a desordem, o partido constitucional, o partido conservador republicano.
Na campanha jornalística de 1889 nossa posição era diversa. Defrontavam-se então e mediam-se um ao outro dois sistemas de governo possíveis: a monarquia, de duração limitada, no parecer até de monarquistas, à existência do imperador, e a república, provável, iminente, entrevista. Nosso papel então era mostrar ao regímen declinante que seus dias estavam contados, convencê-lo da necessidade de uma higiene tonificante para a última fase de sua vida, e, se ele reagisse contra essa necessidade, promover resolutamente a demolição da sua decrepidez. Agora só a república é praticável, e não há escolha, senão entre a república degenerada pela ditadura, ou a república regenerada pela constituição.
O Jornal do Brasil é constitucional a todo transe: eis, numa palavra, o nosso roteiro político. Não pode, portanto, ser um derrocador. O alvião e o martelo, deixamo-los para sempre no museu histórico da outra tenda. Da nossa orientação de hoje em diante é penhor a nossa orientação até hoje, desde que a revolução de 1889 encontrou a sua fórmula na Constituição de 1891: batendo-nos pela lei contra o Governo, ou contra a multidão; verberar o arbítrio, venha de cima, ou de baixo, dos nossos afeiçoados, ou dos nossos inimigos, animar todas as reivindicações constitucionais, lutar contra todas as reações. Nossa meta é a república. E a república, ao nosso ver, não é o bastão do marechal com um barrete frígio no topo e um agitador de sentinela ao lado com a fraternidade escrita no cano do fuzil; não é a convenção de um nome, servida alternativamente por camarilhas condescendentes, ou revoltadas; não é nem o compadrio de nossos amigos, nem a hostilidade aos nossos adversários. É a defesa da autoridade e a sua fiscalização à luz dos princípios constitucionais. É o direito de ter todas as opiniões e a obrigação de respeitar todas as consciências. É o governo do povo pelo povo, subordinado às garantias da liberdade, com que a constituição e o direito público universal limitam a própria soberania popular. Eis a república, para cuja evolução queremos cooperar, e de cuja consolidação nos oporemos com todas as forças aos perturbadores. Perturbar a república, porém, (fiquem definidos os termos) não é censurar os que a aluem: é, pelo contrário, militar com os que a defendem, pugnando com a lei contra os que a degradam.
Este jornal, pois, não é uma oficina de agitação e ameaça, de subversão e guerra: é um instrumento de doutrina e organização, de estudo e resistência, de transação política e intransigência legal. Intransigência legal; porque contra a lei toda transação é cumplicidade. Transação política; porque a política é a ciência das transações inteligentes e honestas, sob a cláusula do respeito aos cânones constitucionais. Os especuladores e os cínicos transigem sempre. Os sistemáticos e os loucos não transigem nunca. Os homens de estado transigem, onde é lícito, oportunamente.
Não somos, portanto, profissionalmente oposicionistas, nem governistas. Somos legalistas acima de tudo e a despeito de tudo. O Governo, ou a oposição, não têm para nós senão a cor da lei, que envolver o procedimento de um, ou as pretensões da outra. Fora do terreno jurídico nossa inspiração procurará beber sempre na ciência, nos exemplos liberais, no respeito às boas praxes antigas, na simpatia pelas inovações benfazejas, conciliando, quanto possível, o gênio da tradição inteligente com a prática do progresso cauteloso. Poderemos acrescentar que o anonimato do insulto, da calúnia e da insinuação irresponsável não terão lugar nestas colunas.
Numa quadra em que a política absorve quase exclusivamente a vida nacional, parece natural que ela dominasse o nosso programa, e preponderasse na indicação do nosso rumo. Não quer isso, entretanto, dizer que esquecêssemos os outros lados do espírito. A política é apenas uma de suas faces. As outras terão largamente, nesta folha, o espaço, a honra e o culto, que se lhes deve. Penetrar por todas essas relações da vida intelectual, no coração de nossos compatriotas é o nosso sonho. Oxalá que um pouco de realidade caia sobre ele, e o fecunde.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.