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Tudo o que você sempre quis saber sobre a urna eletrônica brasileira/Capítulo 2

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CASOS DE FRAUDES

Em alguns casos, os problemas começavam antes da apuração. Um exemplo disso era a estratégia do “voto formiguinha”. Funcionava assim: um eleitor recebia a cédula do mesário, entrava na cabine de votação e colocava um papel qualquer na urna de lona. A cédula oficial, ainda em branco, era entregue, fora da seção, a uma pessoa, que assinalava os candidatos desejados e repassava a cédula preenchida a outro eleitor. Este tinha a incumbência de depositar esta cédula na urna, pegar outra em branco e levar novamente ao líder do esquema, e assim por diante. O resultado era a manipulação do pleito.

Havia ainda a tática das “urnas emprenhadas”. Como elas tinham apenas um cadeado e lacres de papel, muitas já chegavam “grávidas” à seção, isto é, recheadas de votos.

Arlindo Chinaglia, deputado federal por sete mandatos e que ocupou a presidência da Câmara entre 2007 e 2009, lembrou das diversas formas de fraudes ocorridas nas eleições com cédulas de papel: “era morto que comparecia para votar, rasuravam o voto do adversário durante a apuração... Em 1994 foi anulado o resultado das eleições para deputado estadual do Rio de Janeiro, tamanho foi o número de fraudes.”

O caso de fraude nas eleições de 1994, no Rio de Janeiro, foi relatado pelo Jornal do Brasil (Ano 1994 - Edição 00223 — 17/11/1994), quando a Justiça anulou 200 cédulas preenchidas com a mesma caligrafia.

A metodologia empregada para a apuração dos votos em papel também era suscetível a fraude. O ex-Ministro do TSE, Carlos Mário da Silva Velloso, foi testemunha de um caso de fraude em Minas Gerais, quando foi juiz federal no estado, entre os anos 1967 e 1977. Em uma cidade de Minas Gerais, foram distribuídas 10 mil cédulas em branco para alguns candidatos. A fraude foi descoberta e todos os envolvidos foram condenados, inclusive o juiz do TRE, por omissão no caso.

Nós tínhamos problemas sérios no Brasil, tanto com o voto em papel, quanto com a sua contabilização. Um exemplo, que ficou conhecido pela sociedade, era o “mapismo”, em que votos brancos e nulos eram atribuídos a determinados candidatos”, contou o Ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-Ministro do TSE, Gilmar Mendes.

Caso Proconsult

O mais grave caso de tentativa de fraude no processo eleitoral se deu no Rio de Janeiro, em 1982, nas eleições para o governo do estado, as primeiras realizadas para o cargo, desde 1965, quando foram proibidas pelo regime militar.

O caso ficou amplamente conhecido como Caso Proconsult, nome da empresa contratada para realizar a apuração dos votos. A fraude foi tão evidente que virou tema de dissertações de mestrado, além de livros como “O caso Proconsult: a história da tentativa de fraude que caiu no esquecimento”, de Mauro Silveira, e “Plim Plim - a Peleja de Brizola Contra a Fraude Eleitoral”, de Paulo Henrique Amorim e Maria Helena Passos.

O objetivo da fraude era impedir a eleição do candidato {{w|Leonel Brizola]], do recém-criado PDT, que disputava o governo do estado do Rio de Janeiro com o favorito Miro Teixeira do PMDB, o candidato do regime militar, Wellington Moreira Franco do PDS, a herdeira do lacerdismo, Sandra Cavalcanti do PTB, e Lysâneas Maciel do PT, que disputava sua primeira eleição majoritária.

Anistiado, após 15 anos de exílio político, Brizola era o azarão da disputa. Durante a campanha, cresceu consideravelmente e ultrapassou o favoritismo de Teixeira.

Nessa época, utilizava-se o sistema de cédulas de papel. A apuração dos votos era realizada nas mesas coletoras, das quais os resultados parciais seguiam para a totalização nas zonas eleitorais.

No Rio de Janeiro, para a totalização geral dos votos, foi contratada a empresa Proconsult, que prometia agilidade e confiabilidade de resultados em tempo recorde, cerca de 5 dias.

A tentativa de fraude ocorreu na etapa final, a totalização geral dos votos, de responsabilidade da Proconsult. Os programas instalados nos computadores da Proconsult subtrairiam uma determinada porcentagem de votos dados a Brizola, transformando-os em votos nulos, ou transfeririam votos em branco para o candidato governista, Moreira Franco.

O esquema foi descoberto através do trabalho da imprensa. A Rádio Jornal do Brasil - Rádio JB realizou a cobertura da apuração de forma paralela ao TRE, utilizando as informações das mesas coletoras de votos. Demais membros da imprensa acompanhavam apenas a apuração do TRE, informando os resultados fornecidos pela Proconsult.

Graças à Rádio JB, pode ser notada a discrepância entre os números da apuração das mesas coletoras e os números anunciados pelo TRE, após a contabilização de votos pela empresa contratada.

Com o anúncio do escândalo da fraude, a apuração foi interrompida e a Proconsult foi dispensada da apuração. O resultado final deu a vitória a Leonel Brizola, com 34% dos votos válidos.

Confira o depoimento de Miro Teixeira, ex-Ministro das Comunicações, no programa Observatório da Imprensa, na TV Brasil, que foi ao ar em 29 de junho de 2004, sobre o caso Proconsult:

O golpe existia e, naquele primeiro dia [de apuração], quando reconheci a vitória do Brizola, não se falava na participação da Proconsult. No primeiro dia, parecia [apenas] uma velha fraude do 'mapismo, ou seja, o [tradicional] procedimento de preencher cédulas em branco e lançar números falsos [nos mapas de votação], prejudicando uns e favorecendo outros.

Quando foi ao ar minha entrevista, me ligou o advogado Wilson Mirza, que dizia falar em nome do Brizola, me cumprimentando pela declaração e perguntando se eu concordaria em passar um telegrama ao Brizola reconhecendo a vitória dele. Com esse telegrama nas mãos, Brizola convocaria uma entrevista com a imprensa estrangeira e denunciaria a tentativa de fraude. Logo em seguida, vem a apuração paralela da Rádio Jornal do Brasil e, só então, graças ao César Maia [atual prefeito do Rio, então militante do PDT de Brizola], descobre-se a manipulação do programa de totalização nos computadores da Proconsult, patrocinada pelo Serviço Nacional de Informações - SNI.

A ordem era a seguinte: o voto era dado em cédulas de papel, a apuração se dava nas mesas coletoras de votos. Já na contagem começou a roubalheira, em especial na Zona Oeste do Rio, onde o Brizola era muito forte. Cédulas em branco eram preenchidas; depois, nos boletins que reuniam as totalizações dessas urnas, havia outra adulteração. E o golpe de misericórdia era dado nos computadores onde se fazia a totalização [geral dos votos]. Essa fraude foi descoberta pelo César Maia, que identificou o tal ’diferencial delta’. Os programas [dos computadores] eram organizados de tal maneira que, para um determinado número de votos contados para Brizola, o sistema abatia automaticamente um determinado porcentual.

Os três fatos associados resultaram na interrupção da apuração. Não tenho como provar, mas tenho como afirmar: [depois de denunciada a fraude], vieram [ao Rio] técnicos em informática do SNI para eliminar [dos computadores da Proconsult] o tal 'diferencial delta'e os seus efeitos.

O que era a Proconsult? Era uma empresa que só existia no papel. Foi criada para se habilitar à apuração das eleições [de 1982] no estado do Rio de Janeiro. Era uma subsidiária da Racimec - empresa, essa, que, no regime militar, ganhou o monopólio das máquinas de jogos da Caixa Econômica Federal. E hoje essa empresa é Gtech, a mesma envolvida no escândalo Waldomiro Diniz. A Racimec, a rigor, já há muitos anos tinha participação societária da Gtech.

O objetivo do SNI não era apenas a eleição de governador, mas sim [a tentativa de garantir] a influência no Colégio Eleitoral que se reuniria para as eleições [presidenciais] indiretas de 1985. Por isso foram em cima do Pedro Simon, no Rio Grande do Sul, do Marcos Freire, em Pernambuco, e do Brizola, no Rio. O nome do jogo era Colégio Eleitoral, isto é, dar ao PDS [o partido governista de então] um conforto para assegurar a sucessão do general [João Baptista] Figueiredo, da melhor maneira que essa comunidade de informação pretendesse.

Se você analisar os números [das eleições proporcionais] da época, verá votações que jamais se repetiram e candidatos eleitos que depois desapareceram no mapa. São provas circunstanciais de que houve consequências nas eleições para deputados e vereadores.

Tem uma parte que foi o Brizola quem me contou: ele me disse que foi procurado por um dos mentores da fraude, um dos analistas de sistemas que fizeram o ’diferencial delta’. Isso se deu no auge do reconhecimento da vitória, mas a repercussão não estava formalizada e não se falava ainda em Proconsult. Essa pessoa procurou o Brizola e ofereceu o mapa da fraude em troca da presidência da Companhia do Metrô ou do Banco do Estado do Rio de Janeiro. Em contrapartida, dava a garantia de que a fraude não seria consumada. E o Brizola fingiu concordar. O César Maia foi com tudo para cima da Proconsult [escudado nos números da apuração paralela da Rádio JB], a partir da informação que lhe foi dada pelo Brizola.

Esses são os crimes, os autores, as vítimas e os motivos.

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