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Uma Lágrima de Mulher/II/X

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O pequenos continuavam aterrados sem se animarem a proferir palavra, até que o mais velho deles, Beppo, aproximando-se de Miguel, abraçou-o pela cintura, dizendo em voz baixa e tímida:

— Por que está chorando, meu mestre?

Para as crianças, corações lógicos, onde não medrou ainda desconfiança, nem experiência - chorar é sinônimo de - sofrer. O menino imediato a Beppo imitou o irmão; ente foi imitado pelo menor e finalmente pelo pequenino, que se contentou em dizer, terna e familiarmente:

— Não chores!...

Puxado pelo fio de ouro destas palavras, Miguel voltou a si e sentou-se comovido num pedaço de parede, cobrindo de beijos a cabecinha loura de Jeovanito.

A gente, não sabemos por que, depois de muito chorar e lastimar-se, sente apetite de beijar e abraçar alguém; queremos crer é na adversidade que se fortalecem mais os corações, e se corroboram os afetos - ligam-se tão bem as lágrimas e o amor e formam tão imperecível betume, que vencem resistir às borrascas destruidoras da vida e aos gelos mortíferos da ausência e da idade. De tal sorte, que Miguel daquele momento sentiu-se amar ainda mais os discípulos; e, como o amor é sempre uma luz, a claridade chegou-lhe ao gesto volatilizada num sorriso de alegria. As quatro crianças entravam-lhe com alvoroço pelo coração, como um bando de passarinhos alegres num templo abandonado e sombrio.

— Meu mestre! disse Beppo, passando o braço pelo ombro do artista - porque razão você desde que chegou a este montão de pedras está triste e chorando?

Francino, o imediato àquele, atalhou, sem dar a Miguel tempo de responder:

— Ora essa! É porque aqui morreu alguém!

À palavra - morreu - Jeovanito voltou-se rapidamente e disse, arregalando muito os olhos, belos, como são sempre os olhos de uma criança:

— Morreu? de que foi que ele morreu?...

— Não sei... disse muito naturalmente Angelino, metendo as mãozinhas gordas nas algibeiras dos calções, com certo ar de autoridade.

Nisto, Jeovanito, que se tinha afastado um pouco dos irmãos, voltou-se aterrado, e apontando para o sul com o seu dedinho cor-de-rosa, exclamava, contente por chamar a atenção de todos:

— Olha! olha! um velho! E batia palmas alegremente assustado.

Efetivamente, um velho alto e curvado, que subia a encosta, debuxava-se de negro na derradeira claridade do horizonte.

Aquela aparição produziu um mau efeito no ânimo dos pequenos. O crepúsculo dava-lhe o jeito fantástico de uma sombra, que saía aos poucos do mar e cujos contornos se iam desvanecendo no azul amortecido do céu.

Silenciosamente, caminhava o vulto para eles e, à proporção que o fazia, os meninos conchegavam-se mais a Miguel.

— É o misterioso habitante da choupana, calculou o professor, e não se enganara.

Este homem, digamo-lo de passagem, era um antigo pescador, conhecido em Lipari pelo cognome de - Sombra da Noite. Tinham-no por milagreiro e na ilha atribuíam-lhe toda a casta de feitiçarias e malefícios, que sóe imaginar a ignorância do povo. Em bom tempo fora companheiro de trabalho e amigo de Maffei, a quem, por amizade e talvez mais acertadamente por interesse, arranjara os meios de transportar-se em segredo para Nápoles, na mesma noite do incêndio da casinha branca. Esta boa ação rendeu-lhe em recompensa o direito de ocupar enquanto vivesse o terreno de Maffei em Lipari e tirar dele, como das oliveiras, o partido que bem lhe aprouvesse.

Rosalina, se bem que por esse tempo tomasse Miguel por morto, levava o coração ainda morno do amor de seu companheiro de infância; como uma parede que durante o dia recebesse o sol forte e abrasador, e à noite, apesar da ausência daquele, conserva uma certa dose de calor, que pouco a pouco vai morrendo, assim se esqueceu, ela de que podia arriscar o pai e para logo encarregou Sombra da Noite de se instruir sobre o resultado de um cadáver que necessariamente havia de ter aparecido na costa pelo dia seguinte à sua viagem.

Sombra da Noite não se deslembrou da incumbência, porém o cadáver não apareceu. No fim de um ano de pesquisas, foi a Nápoles e tagarelou um pouco com a mãe Ângela; de volta à ilha o pescador, ligando o sentido das palavras desta com o da recomendação de Rosalina, concluiu por descobrir que se tratava do cadáver de Miguel, a quem conhecera vagamente.

— Disto me pode vir algum resultado vantajoso, dizia ele consigo e procurava um meio de falar a Miguel; a ocasião porém não se oferecia. Vendo-o agora, Sombra da Noite sentiu um estremecimento e tratou de aproveitar o lance. — Nada de precipitações, com os diabos! E parece que bispo enfim o meu cadáver.

Pensando assim, Sombra da Noite aproximava-se silenciosamente do grupo, que o observava também em silêncio. Chegou às ruínas, trepou-se com agilidade de moços pelos barrancos e, equilibrando-se, alcançou finalmente a extremidade oposta, onde estava Miguel, a fitá-lo com suma curiosidade.

Sombra da Noite abeirou-se dele e cortejou-o, descobrindo-se humildemente.

Era o tipo perfeito de lazarone - macilento e esfarrapado, sujo e feio, falando um dialeto extravagante; grande chapéu de abas largas sobre a nuca e cachimbo queimado no canto da boca.

Os pequenos estavam horrorizados.

— Boa noite, disse Miguel.

— deus Nosso Senhor lhes dê a mesma, meu senhor e meus ricos meninos, respondeu Sombra da Noite, mastigando compassadamente estas palavras e estendendo a mão para acariciar a menor das crianças.

Jeovanito fugiu com a cabeça, olhando de esguelha e procurou refugiar-se nas pernas do mestre.

— Então? disse este. Fala, Jeovanito! não vês que te fazem festa?...

Boa noite, meu velho, disse Jeovanito mais tranqüilo.

— Este é seu filhinho? perguntou o pescador, passando a mão grosseira pela cabeça loura do pequenito.

— Não senhor. São todos meus discípulos.

— Ah! estão de passeio?

— É verdade, disse Miguel, e levantou-se, segurando as mãos das duas crianças menores. — Íamos já, quando o senhor chegou.

— É pena, com os diabos! disse Sombra da Noite, porque eu desejava falar-lhe sobre alguém que morou neste lugar.

Miguel sentiu-se fulminado - era a primeira vez, desde que se separara de Rosalina, que alguém lhe falava nela, e voltando rapidamente para o pescador:

— De Rosalina?! Oh! diga, diga depressa! Como estão eles? São felizes? Ricos?

— Riquíssimos e muito felizes, digo-lhe mais - em breve serão nobres!...

— Nobres?!...

— Pois então!? A excelentíssima senhora dona Rosalina vai casar-se com um fidalgo de muito boa linhagem e de muito bom dinheiro!

— O senhor está gracejando! Não pode ser! Disse Miguel fingindo tranqüilidade.

— Gracejando? berrou o homem. Pela Madona o juro eu! e beijou a palma da mão.

Miguel sentia-se horrivelmente oprimido - tinha vontade de continuar o interrogatório, mas ao mesmo tempo temia ouvir alguma verdade inédita que o esmagasse de todo; temia uma explosão de dor; atacara-lhe logo uma sensação nervosa e frenética; latejavam-lhe as frontes, como contundidas por este dilema de ferro - calar-se, nada ouvir sobre Rosalina e sofrer - ou ouvir muito, saber tudo e sofrer mais. O coração saltava-lhe dentro como uma rã no charco; acometiam-lhe desejos extravagantes e inexplicáveis. Sentia-se com o apetite de ser um homem mau, desregado e inútil; tinha como um prazer de ouvir dizer mal de Roslina e ao mesmo tempo ardia por esbofetear aquela sombra impertinente que tinha defronte de si, o pescador; porém, aquele homem era o primeiro que, no seu exílio, lhe falara sobre Rosalina; então, tinha vontade de abraçá-lo.

Estava triste, mas estava alegre; desejava cantar, mas soluçando; desejava abraçar Sombra da Noite, mas estrangulando-o.

Temos, às vezes, dessa contradições no nosso espírito, que, expostas assim, parecem disparatadas e absurdas.

Qualquer resolução todavia atravessou como um relâmpago o cérebro do artista - cruzou os braços e fitou Sombra da Noite.

— Tem certeza do que está dizendo?

— Tenho, respondeu com firmeza o pescador, tanto quanto tenho de saber que falo com senhor Miguel Rizio.

Miguel tornou a estremecer; agora, porém, era a idéia da raiva de Maffei que lhe surgia negra e ameaçadora. Seria isto uma cilada? Estaria aquele homem pago por ele? Miguel desconfiava, mas ardia de curiosidade; finalmente, descendo de seus espasmos, disse descansadamente e afetando o mais frio desinteresse:

— Com que, o senhor conhece-me?...

— Perfeitamente, cavalheiro, e até desejo falar-lhe.

— A respeito de Rosalina?

— Sim, senhor, a respeito de dona Rosalina.

— Então fale! disse Miguel já não podendo se conter. Fale que..

— Agora, é impossível.

— Então, quando?

— Quando estivermos a sós. Eu moro naquela choupana. E Sombra da Noite indicou a casinha que quase não se divisava. — O senhor pode procurar-me ai. Quer vir amanhã?

Miguel não respondeu. Tinha a cabeça baixa e o queixo descansado na mão direita.

Depois de um quarto de hora, sombra da Noite quebrou o silêncio.

— Então vem?

Miguel ergueu resolutamente a cabeça.

— Venho!

— Amanhã?

— Não! Hoje?

— Pois até a meia-noite, disse o pescador, dando-lhe as costas e descendo as pedras. Daí a pouco tinha desaparecido nas trevas.

Miguel continuou a olhá-lo por algum tempo; depois sacudiu os ombros e tornou a tomar a mão dos pequenos.

Meia hora depois, caminhavam pela estrada. Na lama nervosa do artista, após tão longa noite, raiara afinal um clarão triste, de desesperança e despeito, mas era uma luz, enfim.

E como a mariposa que festeja a própria luz que a há de queimar, começou a alvoroçar-se, cantarolando nervosamente.

As crianças, tomando aquele cantar por expansão de alegria, abriram também a imitá-lo, até chegar a uma cocheira, onde tomaram um carro que os levou alegremente à casa.