Viagens de Gulliver/Parte I/III

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Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

O autor diverte o imperador, e toda a nobreza de ambos os sexos, de uma forma bastante singular. Descrição das diversões da corte de Lilipute. A liberdade é concedida ao autor mediante determinadas condições.

A minha gentileza e o bom comportamento haviam influenciado o imperador e sua corte, e também o exército e o povo em geral, de maneira que eu comecei a alimentar alguma esperança de conseguir a minha liberdade num espaço curto de tempo. Fiz uso de todos os recursos aos meu alcance para cultivar esta disposição favorável. Pouco a pouco os nativos começavam a ficar relativamente menos apreensivos a algum perigo de minha parte. Às vezes me deitava, e permitia que cinco ou seis deles dançassem sobre minha mão, e finalmente os jovens e as garotas arriscaram brincar de esconde-esconde entre meus cabelos.

Eu havia feito bom progresso em entender e falar o idioma deles. O imperador um dia teve a ideia de me entreter com diversos espetáculos populares, no que eles superavam todos os países que já visitei, tanto pela habilidade quanto pela magnificência. Nunca me diverti tanto como com os dançarinos de corda, que fizeram uma exibição sobre um fino cordão branco, com cerca de sessenta centímetros de comprimento, e a trinta centímetro do chão. Sobre os quais, com a paciência do leitor, tomo a liberdade de estender-me um pouco.

Esta diversão é somente praticada por aquelas pessoas que são candidatas a cargos elevados e aos favorecidos da corte. Eles são treinados nessa arte desde tenra idade, e nem sempre são nobres de nascença, ou de educação liberal. Quando um cargo importante está vago, ou por motivo de falecimento ou por ter caído no desagrado (o que acontece com frequência) do imperador, cinco ou seis desses candidatos, solicitam ao imperador uma apresentação para divertir a Sua Majestade e a corte com uma dança da corda; e aquele que pular mais alto, sem cair, conquista o lugar. Muitas vezes os principais ministros são convidados a demonstrarem suas habilidades, e a convencer o imperador de que não perderam suas qualidades.

Flimnap, o tesoureiro, fez questão de dar uma cambalhota na corda estendida, pelo menos 2,5 cm mais alto do que qualquer outro cavalheiro em todo o império. Por várias vezes o tenho visto dar vários saltos mortais, sobre uma tábua fixada à uma corda que não é mais grossa do que um barbante usado para embrulhar na Inglaterra. O meu amigo Reldresal, secretário principal para assuntos privados, é, na minha opinião, não querendo ser parcial, o segundo depois do tesoureiro, o restante dos grandes oficiais estão em situações semelhantes.

Estas diversões frequentemente são praticadas com acidentes fatais, muitos dos quais são dignos de registro. Eu mesmo vi dois ou três candidatos quebrarem a perna. Mas o perigo é muito maior, quando os próprios ministros são obrigados a demonstrar suas habilidades; porque, ao competirem para superar a si mesmos e a seus colegas, eles fazem tanto esforço que raramente um deles não cai, e algumas vezes dois ou três. Asseguraram-me que, um ou dois anos antes de minha chegada, Flimnap teria infalivelmente quebrado o pescoço, se um dos almofadas do rei, que por acaso estava no chão, não tivesse atenuado o impacto da sua queda.

Há também um outro divertimento, que somente é demonstrado diante do imperador e da imperatriz, e do primeiro ministro, em situações particulares. O imperador coloca em cima da mesa três fios de seda finíssimos de quinze centímetros de comprimento, um é azul, e o outro é vermelho, e o terceiro é verde. Estes fios são propostos como prêmios para aquelas pessoas a quem o imperador quiser distinguir com uma singular demonstração da sua generosidade. A cerimônia acontece na grande sala de recepção da Sua Majestade, onde os candidatos devem passar por um teste de detreza muito diferente do anterior, e de tal ordem que nada de semelhante eu vi em qualquer outro país do novo ou velho mundo.

O imperador segura um bastão em suas mãos, com ambas as extremidades paralelas ao horizonte, enquanto os candidatos avançam, um após o outro, e algumas vezes pulam sobre o bastão, e algumas vezes se arrastam sob ele, para a frente e para traz, diversas vezes, de acordo com a elevação ou abaixamento do bastão. Algumas vezes o imperador segura uma extremidade do bastão, e o seu ministro a outra; outras vezes o ministro o segura sozinho. Aquele que executa a sua exibição com maior habilidade, e resiste saltando e se arrastando mais, é recompensado com a seda de cor azul; a vermelha é oferecida ao próximo, e a verde ao terceiro, as quais são usadas dando duas voltas na metade do corpo; e você pode ver poucas pessoas de importância desta corte que não estão enfeitadas com estas fitas.

Os cavalos do exército, e aqueles dos estábulos reais, que eram levados diante de mim diariamente, não se espantavam mais, mas chegavam a se aproximar dos meus pés sem se assustar. Os cavaleiros fazia-os saltar sobre minhas mãos, quando eu as mantinha no chão, e um dos caçadores do imperador, montado num corcel imenso, pisou o meu pé, com sapato e tudo, o que foi sem dúvida um salto formidável. Um dia eu tive a ideia de divertir o imperador de uma maneira extraordinária. Pedi a ele que mandasse providenciar diversos bastões com sessenta centímetros de altura, e da grossura de uma cana comum, e que fossem trazidos até mim: imediatamente Sua Majestade ordenou ao mestre de suas florestas que tomasse as medidas necessárias; e na manhã seguinte seis madeireiros chegaram com muitas carruagens, cada uma puxada por oito cavalos.

Peguei nove desses bastões, e segurando-os firmemente no chão formando uma figura quadrangular, setenta e seis centímetros quadrados, peguei outros quatro bastões, e os amarrei em paralelo a cada canto, cerca de sessenta centímetros acima do chão; depois amarrei meu lenço aos nove bastões que estavam de pé; e o estendi para todos os lados, até que ficasse tapado como o tampo de um tambor, e os quatro bastões paralelos, subindo cerca de doze centímetros mais alto que o lenço, serviam de bordas em cada lado. Quando terminei meu trabalho, pedi que o imperador permitisse que uma tropa dos seus melhores cavalos que era em número de vinte e quatro, viesse fazer exercícios sobre este plano.

Majestade aprovou a proposta, e eu os levantei, um a um, em minhas mãos, prontamente montados e armados, com os próprios oficiais para treiná-los. Assim que eles entraram em ordem, foram divididos em dois blocos, realizaram simulações de escaramuças, dispararam flechas sem ponta, sacaram suas espadas, fugiam e perseguiam, atacavam e se retiravam, resumindo, descobriram a melhor disciplina militar que eu já havia visto. Os bastões paralelos lhes impediam que eles e seus cavalos caíssem fora do palco; e o imperador ficou tão maravilhado, que ele ordenou que esta diversão fosse repetida durante vários dias, e uma vez ficou feliz em ser levantado e dar voz de comando, e com grande dificuldade convenceu até mesmo a própria imperatriz a me permitir que a segurasse sua cadeira de perto a dois metros do palco, quando ela conseguiu ter uma visão completa de toda exibição.

Foi minha sorte, que nenhuma acidente terrível tenha ocorrido durante essas diversões, somente uma vez um cavalo esquentado, que pertencia a um dos capitães, ao pisar com seu casco, encontrou um buraco que havia no lenço, e sua pata escorregou, derrubando o cavaleiro e caindo; mas eu imediatamente salvei os dois, e cobrindo o buraco com uma mão, e descendo a tropa com a outra, da mesma maneira que eu os havia levantado. O cavalo que havia caído feriu-se na perna esquerda, mas o cavaleiro não se feriu, e eu consertei o meu lenço tão bem quanto pude: todavia, não confiaria mais na sua resistência, em empreendimentos tão perigosos.

Cerca de dois ou três dias antes de me colocarem em liberdade, estava eu divertindo a corte com este feito, eis que chegou um mensageiro informando sua majestade, que alguns dos seus súditos, que estavam cavalgando perto do lugar que me haviam visto pela primeira vez, tinham visto no chão uma grande substância negra, com forma bastante estranha, cujas extremidades eram maiores que a cama da sua majestade, e que se levantava até a metade da altura de um homem. Não era uma criatura viva, como pensaram a princípio, pois se achava na relva sem movimento; e alguns deles caminharam em torno várias vezes, e que, montando um no ombro do outro, tinham chegado até a parte de cima, que era plana e lisa, e batendo nela, descobriram que tinha um buraco internamente, e que eles humildemente pensaram que pudesse ser algum pertence do homem montanha, e se Sua Majestade desejasse, eles estavam dispostos a trazê-la com apenas cinco cavalos.

Eu naturalmente sabia do que estavam falando, e fiquei imensamente feliz em receber essa notícia. Parece que ao chegar à praia pela primeira vez após o naufrágio, eu estava tão confuso, antes de chegar ao lugar onde havia ido dormir, meu chapéu, que eu havia ajustado com um cordão à minha cabeça enquanto remava, e que ficou colado o tempo todo que eu fiquei nadando, se soltou depois que cheguei em terra, o cordão, suponho, foi rompido por algum acidente, o que eu nunca percebi, mas pensei que o meu chapéu tinha se perdido no mar.

Insisti para que Sua Majestade imperial desse ordens para que ele me fosse trazido tão rápido quanto possível, descrevendo a ele o uso e a natureza desse objeto: e no dia seguinte chegaram os carregadores com ele, mas não em bom estado; eles tinham feito dois buracos na aba, a quatro centímetros da extremidade, e adaptado dois ganchos nos buracos; estes ganchos eram amarrados por um longo barbante até os arreios, e assim meu chapéu foi arrastado por mais de meia milha inglesa; mas sendo o solo desse país extremamente suave e plano, foi menos danificado do que eu esperava.

Dois dias depois desta aventura, o imperador, tendo ordenado que parte do seu exército com quartéis dentro e em torno da metrópole, estivesse de prontidão, teve a ideia de se divertir de uma maneira muito singular. Pediu-me que ficasse de pé como um Colosso, com minhas pernas tão distanciadas quanto pudesse. Ele então ordenou que seu general (que era um líder antigo e bastante experiente, e meu grande protetor) que colocasse a tropa em linha de batalha, e os fizesse passar em revista pelo meio das minhas pernas, a infantaria com vinte e quatro na frente, e a cavalaria com dezesseis, com tambores rufando, bandeiras desfraldando, e lanças em riste.

O corpo do exército era constituído por três mil homens de infantaria, e mil cavaleiros. Sua Majestade deu ordens, sob pena de morte, que todo soldado durante a marcha deveriam expressar o maior respeito em relação à minha pessoa, o que, todavia, não conseguiu evitar que oficiais mais jovens virassem para cima seus olhares enquanto passavam debaixo de mim: e para dizer a verdade, minhas ceroulas estavam em tal estado de conservação, que eles aproveitaram para rir de espanto.

Eu tinha enviado tantos memorandos e petições pela minha liberdade, que sua majestade finalmente mencionou o assunto, primeiro no gabinete, e depois ao conselho de estado, onde ninguém se opôs, exceto Skyresh Bolgolam, que tinha o maior prazer, sem qualquer provocação, de ser meu inimigo mortal. Porém isso foi feito com aprovação de todos e em detrimento dele, e confirmado pelo imperador. O ministro era chamado de GALBET, ou almirante do reino, que merecera a confiança do seu amo, por ser uma pessoa com muitas habilidades nos assuntos, mas de índole sombria e ácida. Todavia, ele foi finalmente convencido a aceitar, porém, desde que os artigos e as condições da minha liberdade, e às quais eu deveria jurar, deveriam ser redigidas por ele.

Estes artigos foram trazidos para mim pessoalmente por Skyresh Bolgolam, acompanhado de dois sub-secretários, e por diversas pessoas de distinção. Depois que os artigos foram lidos, me exigiram que eu os cumprisse sob juramento, primeiro na maneira do meu país, e depois, no sistema criado pelas leis deles, que era, mantendo o meu pé direito em cima da minha mão esquerda, e colocando o dedo médio da minha mão direita no topo da minha cabeça, e o meu polegar na ponta da minha orelha direita. Mas como o leitor deve estar curioso para ter alguma ideia do estilo e da maneira de expressão peculiar daquele povo, bem como em conhecer os termos como reconquistei minha liberdade, fiz uma tradução de todo o documento, palavra por palavra, tão claramente quanto possível, que eu ofereço aqui para o público.

Golbasto Momarem Evlame Gurdilo Shefin Mully Ully Gue, o mais poderoso imperador de Lilipute, delícia e terror do universo, cujos domínios se estendem cinco mil blugstrugs (cerca de doze milhas de circunferência) às extremidades do globo; monarca de todos os monarcas, o mais alto filho dos homens; cujos pés pressionam a terra até o centro, e cuja cabeça chega a bater no sol, e a cujo olhar os príncipes da terra tremem seus joelhos, carinhoso, como a primavera, agradável como o verão, produtivo como o outono, assustador como o inverno: sua veneradíssima majestade propõe ao homem montanha, que chegou nos últimos dias aos nossos domínios celestiais, os seguintes artigos, que, por juramento solene, será obrigado a cumprir:--


  • 1º. O homem montanha não partirá de nossos domínios, sem nossa permissão autenticada com o nosso grande selo.
  • 2º. Ele não ousará entrar em nossa metrópole, sem nossa ordem expressa; em cuja época, os habitantes terão um alerta de duas horas para se fecharem dentro de suas casas.
  • 3º. O referido homem montanha limitará seus passeios às nossas rodovias principais, e não se propor a passear, ou se deitar, nos pastos ou nos campos de milho.
  • 4º. A medida que ele estiver passeando pelas citadas rodovias, terá de tomar o máximo cuidado de não pisar nos corpos de alguns de nossos adoráveis súditos, seus cavalos, ou suas carruagens, nem pegar qualquer um dos nossos súditos em suas mãos, sem consentimento do próprio.
  • 5º. Se for necessário que um mensageiro faça qualquer despacho extraordiário, o homem montanha será obrigado a carregá-lo, em seu bolso, o mensageiro e o cavalo numa jornada de seis dias, uma vez a cada lua, e retornar o mencionado mensageiro (caso seja necessário) em segurança à nossa presença imperial.
  • 6º. Ele será nosso aliado contra nossos inimigos na ilha de Blefuscu, e se empenhará o máximo para destruir a esquadra deles, que agora está se preparando para invadir nossa nação.
  • 7º. O mencionado homem montanha, em suas horas de descanso, estará auxiliando e assistindo nossos operários, ajudando-os a levar certas pedras grandes, com fins de concluir os muros do parque principal, e outros de nossos edifícios reais.
  • 8º. Que o referido homem montanha, num período de duas luas, fará uma pesquisa exata da circunferência de nossos domínios, com cálculos baseados em passos ao redor da costa.

Por último, que, depois de ter feito este solene juramento, de modo a respeitar todos os artigos que foram mencionados, o referido homem montanha terá um fornecimento diário de carne e de bebidas suficientes para o sustento de 1724 de nossos súditos, com livre acesso a nossa majestade imperial, e a outras demonstrações de nossa generosidade. Concluído em nosso palácio de Belfaborac, no décimo segundo dia da nonagésima primeira lua do nosso reino.

Jurei e assinei todos aqueles artigos com grande alegria e contentamento, embora alguns deles não tivessem sido tão honoráveis como gostaria que tivessem sido, o que era resultado totalmente da maldade de Skyresh Bolgolam, o alto almirante: finalmente minhas correntes foram soltas imediatamente, e eu estava em plena liberdade. O próprio imperador, pessoalmente, deu-me a honra de estar presente em toda a cerimônia. Fiz meus agradecimentos ajoelhando-me aos pés de sua majestade: mas ele ordenou que me levantasse; e depois de muitas expressões amáveis, as quais, para evitar a censura da vaidade, não irei repetí-las, ele acrescentou, que esperava que eu desse mostras como útil servidor, e que bem merece os favores que ele já me havia conferido, ou poderia fazê-lo no futuro.

O leitor com certeza irá perceber que, no último artigo da reconquista da minha liberdade, o imperador estipulara a concessão de carne e bebida suficiente para o sustento de 1724 liliputianos. Algum tempo depois, perguntando a um amigo na corte, como é que eles chegaram a fixar essa quantidade exata, ele me disse que os matemáticos de sua majestade, tendo tirado a altura do meu corpo com a ajuda de um quadrante, e descobrindo que ele era maior na proporção de doze para um, concluíram pela similaridade de seus corpos, que a minha proporção deveria ser equivalente pelo menos a 1724 deles, e consequentemente iria exigir tanta comida quanto necessário para alimentar esse número de liliputianos. Com isto o leitor pode ter uma ideia da engenhosidade daquele povo, bem como da prudência e da economia exata de uma príncipe tão sábio.

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