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Viagens de Gulliver/Parte I/VIII

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zarpei no dia 24 de setembro de 1701, às seis da manhã.
ilustração de Thomas M. Balliet

[O autor, por uma questão de sorte, encontra uma maneira para fugir de Blefuscu, e, depois de algumas dificuldades, retorna são e salvo para o seu país de origem.]

Três dias depois de minha chegada, passeando eu por curiosidade pela costa nordeste da ilha, observei, a cerca de meia légua de distância do mar, algo que parecia um barco virado. Tirei os sapatos e as meias, e caminhando duzentos ou trezentos metros, percebi que o objeto chegava mais perto por força da maré, e então percebi que era realmente um barco, o que supus poderia ter-se soltado de um navio por causa da tempestade.

De modo que retornei imediatamente em direção à cidade, e solicitei à sua majestade que me emprestasse vinte dos navios mais altos que haviam sobrado depois da perda da sua frota, e três mil marujos, sob o comando do seu vice-almirante.

A frota partiu, enquanto eu retornava pelo caminho mais curto pela costa, onde havia descoberto o barco pela primeira vez. Percebi que a maré o havia trazido ainda para mais perto. Os marujos estavam todos usando cordas, as quais eu anteriormente havia trançado com força suficiente. Quando os navios surgiram, tirei a minha roupa, e caminhei até que me vi a cem metros de distância do barco, depois disso fui forçado a nadar até alcançá-lo. Os marujos lançaram uma ponta da corda para mim, a qual prendi a um buraco na parte da frente do barco, e a outra extremidade num navio de guerra; mas achei que o meu trabalho teve pouco resultado, porque, como era mais fundo que a minha altura, eu não conseguia trabalhar. Diante dessa situação fui obrigado a nadar de volta, e empurrar o barco para a frente, tanto quanto me foi possível, com uma das mãos, se bem que a maré me favorecia, e avancei a distância que pude manter minha boca fora da água e sentir o chão.

Descansei dois ou três minutos, e empurrei novamente o barco e fui indo até que o mar ficasse abaixo das minhas axilas, e agora, que a parte mais difícil já tinha terminado, peguei os outros cabos que estavam guardados em um dos navios, e os prendi primeiro ao barco, e depois a nove dos navios que me aguardavam; o vento me era favorável, os marujos fizeram o reboque, e eu empurrei até que chegamos a quarenta metros perto da praia, e esperando até que a maré baixasse, cheguei seco perto do barco, e com a ajuda de dois mil homens, munidos de cordas e máquinas, consegui virá-lo na posição correta, e descobri que ele estava apenas um pouco danificado.

Não vou incomodar o leitor com as dificuldades que passei, me utilizando apenas de alguns remos, que me custaram dez dias para fabricar, para levar o meu barco para o porto real de Blefuscu, onde um imenso acúmulo de pessoas presenciou a minha chegada, maravilhados com a visão de um navio tão gigantesco.

Disse ao imperador “que a minha boa sorte havia colocado aquele barco no meu caminho, para me levar para algum lugar de onde eu poderia retornar para o meu país natal, e pedi ordens à sua majestade que me fornecesse alguns materiais para consertá-lo, bem como sua permissão para partir;” o que, depois de algumas exprobrações, ele teve o prazer de me conceder.

Fiquei apenas dois meses com minha esposa e minha família.
ilustração de Thomas M. Balliet

Eu estava muito surpreso, durante todo esse tempo, por não ter recebido notícias de qualquer tipo relativas a mim por parte do nosso imperador na corte de Blefuscu. Mas posteriormente me foi dado entender, que a sua majestade imperial, sem nunca ter imaginado que tivera ciência de seus planos, acreditava que eu havia partido para Blefuscu com o intuito de cumprir a minha promessa, conforme a permissão por ele concedida, que era bastante conhecida em nossa corte, e retornaria em alguns dias, quando a cerimônia estivesse terminada.

Mas ele estava muito preocupado com a minha ausência, e depois de consultar com o tesoureiro, e o pessoal restante daquela conspiração secreta, uma pessoa da nobreza foi despachada com a cópia dos artigos onde me acusavam. Este enviado tinha instruções para representar ao monarca de Blefuscu, “a grande misericórdia do seu amo, que se contentava em me punir nada menos do que com a perda dos meus olhos; que eu havia fugido da justiça, e que se eu não retornasse num prazo de duas horas, eu seria destituído do meu título de NARDAC, e declarado traidor.”

O enviado depois declarou, “que de maneira a manter a paz e a amizade entre os dois impérios, seu amo confiava que seu irmão de Blefuscu daria ordens para que eu fosse enviado de volta a Lilipute, com mãos e pés amarrados, para ser punido como traidor.”

O imperador de Blefuscu, tendo solicitado três dias para a deliberação, enviou uma resposta bastante cortês e apresentou as suas desculpas. Disse “que para me enviar amarrado, seu irmão sabia que isso era impossível, e que, embora eu o houvesse destituído de sua frota, ele se sentia devedor de muitas obrigações a minha pessoa pelos muitos serviços que eu prestara a ele com relação à manutenção da paz.

Entretanto, que as duas suas majestades poderiam ficar sossegadas, pois eu havia encontrado um enorme navio na costa, capaz de me levar para alto mar, e que ele dera ordens para que fosse reparado, sob minha ajuda e orientação, e esperava ele que dentro de algumas semanas ambos os impérios estivessem livres de um estorvo tão insuportável.

Munido desta resposta, o enviado retornou a Lilipute, e o monarca de Blefuscu me relatou tudo o que havia ocorrido, oferecendo-me ao mesmo tempo (mas sob o mais absoluto segredo) a proteção de sua graça, caso me dispusesse a continuar sob seus serviços, situação essa, todavia, que acreditei ser sincera da parte dele, embora tivesse resolvido nunca mais confiar em príncipes e ministros, onde me fosse possível evitar, e, portanto, ciente de todos os devidos reconhecimentos de suas intenções favoráveis, pedi humildemente que me desculpasse.

Disse-lhe, “que uma vez que a sorte, fosse ela boa ou má, houvesse colocado um barco em meu caminho, eu estava decidido a me aventurar no oceano, antes que se instalasse uma situação de diferenças entre os dois poderosos monarcas.” O imperador não se mostrou contrariado, e percebi, ocasionalmente, que ele ficou muito feliz com a minha decisão, bem como a maior parte de seu ministério.

Estas considerções me fizeram apressar a minha partida antes do pretendido, e a corte, impaciente para que eu me fosse dali, contribuiu prontamente. Quinhentos trabalhadores foram empregados para fabricarem duas velas para o meu barco, seguindo minhas instruções, acolchoando treze vezes o tecido mais forte fabricado por eles. Desdobrei-me na tarefa de fazer cordas e cabos, trançando dez, vinte ou trinta vezes os mais grossos e os mais fortes que possuíam.

Uma grande pedra que encontrei por acaso, depois de muito procurar, pelo litoral, me serviu de âncora. A gordura de trezentas vacas me foram dadas para untar o barco e para outros usos.

Foi um trabalho muito duro o corte de algumas da maiores árvores, para usar como lemos e mastros, onde, todavia, fui muito auxiliado pelos carpinteiros-navais de sua majestade, que me ajudaram a alisá-los, depois que havia terminado o trabalho bruto.

Decorrido cerca de um mês, quando tudo estava preparado, fui até sua majestade para receber suas ordens, e fazer minhas despedidas. O imperador e a família real saíram do palácio; deitei-me de bruços para beijar a sua mão, a qual ele me estendeu com muita graça: e assim fizeram também a rainha e os jovens príncipes consanguíneos. Sua majestade me presenteou com cinquenta bolsas contendo duzentos “spruggs” cada uma, junto com um retrato dele em tamanho natural, o qual eu imediatamente coloquei em uma de minhas luvas, para que não se estragassem.

Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

As cerimônias da minha partida foram inúmeras para incomodar o leitor neste momento. Provi o barco com cem carcassas de boi, e trezentos carneiros, com pães e bebidas em proporções, e tanta carne preparada quanto quatrocentos cozinheiros podiam oferecer.

Levei comigo seis vacas e dois touros vivos, e tantas ovelhas e carneiros, pretendendo levá-los para o meu próprio país, e disseminar a espécie.

E para sua alimentação a bordo, preparei uma considerável quantidade de feno, e de um saco de milho. Eu ficaria feliz em levar uma dúzia de nativos, mas isso era uma coisa que o imperador não me permitiria de modo algum, e, além de uma revista bem feita em meus bolsos, sua majestade me fez dar palavra de honra “que não levaria nenhum dos súditos, mesmo com consentimento e vontade deles.”

Tendo pois preparado tudo quanto pude, zarpei no dia 24 de setembro de 1701, às seis da manhã, e quando me achava a cerca de quatro léguas em direção ao norte, estando o vento na direção sudoeste, às seis da tarde avistei uma pequena ilha, cerca de meia légua a nordeste.

Segui em frente, e lancei âncora na costa da ilha ao abrigo do vento, que parecia ser desabitada. Bebi então um pouco de refresco, e fui descansar. Dormi bem, creio que por volta de seis horas, pois percebi que o dia clareou duas horas depois que havia acordado.

Era uma noite clara. Tomei meu café da manhã antes que o sol aparecesse, e levantando a âncora, o vento era favorável. Segui a mesma direção que empreendera no dia anterior, e fui orientado pela minha bússola de bolso. O meu plano era, se possível, chegar a uma dessas ilhas, a qual eu tinha razões para acreditar que ficava à nordeste da terra de Van Diemen.

Não descobri nada naquele dia, mas no dia seguinte, por volta das três horas da tarde, quando segundo meus cálculos eu estava a vinte e quatro léguas de Blefuscu, avistei um veleiro que se dirigia para o sudoeste; a minha direção correta era para o oeste.

Enviei minhas saudações mas não obtive resposta; verifiquei todavia que o veleiro ganhava distância, pois o vento perdia velocidade. Icei toda vela que eu pude, e meia hora depois ele tinha me avistado, estendeu sua bandeira, e disparou uma bala de canhão. Não é fácil expressar a alegria que senti com a inusitada esperança de ver mais uma vez meu amado país, e os queridos amigos que lá deixei.

O navio afrouxou as velas, e me deparei com ele entre cinco e seis horas da tarde, 26 de setembro; meu coração saltou dentro de mim quando vi as cores da Inglaterra. Coloquei minhas vacas e carneiros nos bolsos do meu casaco, e subi a bordo com minha pequena carga de víveres. Era um navio mercante inglês, retornando do Japão pelos mares do norte e do sul; o capitão, Sr. John Biddel, de Deptford, era um homem educado e excelente marinheiro.

Estávamos agora na latitude de 30 graus ao sul, havia cerca de cinquenta homens no navio, quando encontrei um velho conhecido meu, chamado Peter Williams, que passou uma boa imagem da minha pessoa para o capitão.

Este cavalheiro me tratou com gentileza, e queria saber de onde eu vinha, e para onde me dirigia, o que fiz em poucas palavras, mas ele acreditou que eu estava delirando, e que os perigos que eu havia passado haviam perturbado a minha cabeça, retirei então as vacas e os carneiros do meu bolso, os quais, depois de grande admiração de sua parte, o convenceram claramente verdade que falava.

Mostrei então a ele o ouro que o imperador de Blefuscu me oferecera, bem como o retrato de sua majestade em tamanho natural, e algumas outras raridades daquele país. Dei a ele duas bolsas com duzentos “spruggs” e prometi que, chegando à Inglaterra, lhe presentearia com uma vaca e um ovelha grande prenhe.

Não incomodarei o leitor com detalhes desta viagem, que foi muito favorável em sua maior parte. Chegamos às Dunas em 13 de abril de 1702. Tive apenas um infortúnio: os ratos do navio levaram embora uma de minhas ovelhas; encontrei os ossos dela num buraco, totalmente sem carne.

O resto do meu gado desembarquei em segurança e soltei-os para pastar num campo de boliche em Greenwich, onde a boa qualidade do gramado lhes proporcionou comida farta, embora sempre temesse o contrário: nem poderia eu tê-los preservado em tão longa viagem, se o capitão não tivesse me oferecido alguns dos seus biscoitos, os quais, ralados até ficarem pó, e misturados com água, era a comida constante deles.

O pouco tempo que fiquei na Inglaterra, amealhei recursos consideráveis exibindo os animais para muitas pessoas nobres e também para os outros: e antes de iniciar minha segunda viagem, eu os vendi por seiscentas libras. Desde que retornara pela última vez, achei que os animais haviam crescido consideravelmente, especialmente as ovelhas, as quais espero trarão muitas vantagens para a fabricação de lã, devido à finura de suas tosas.

Fiquei apenas dois meses com minha esposa e minha família, por causa do meu insaciável desejo de ver terras estrangeiras, que não me permitiam que eu permanecesse mais tempo. Deixei mil e quinhentas libras com minha esposa, e a alojei numa bela casa em Redriff.

O resto dos valores levei comigo, parte em dinheiro, parte em produtos, com o intuito de aumentar os meus lucros. Meu tio mais velho John havia me herdado uma propriedade perto de Epping, que rendia cerca de trinta libras por ano; e eu oferecera por aluguel o Touro Negro de Fetter-Lane, que me proporcionava o mesmo rendimento; de modo que não havia risco de deixar a minha família sob os cuidados da paróquia. Meu filho Johnny, que recebeu esse nome por causa do seu tio, estudava na escola de gramática e era ainda uma criança.

Minha filha Betty (que hoje está bem casada e com filhos) ficava tricotando o dia todo. Pedi permissão à minha esposa, ao meu filho e à minha filha, com lágrimas de ambos os lados, e embarquei a bordo do Aventura, um navio mercante de trezentas toneladas, com destino a Surat, comandado pelo capitão John Nicholas de Liverpool. Mas o relato desta minha viagem será contada na Segunda Parte de minhas Viagens.

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