Vida do Padre José de Anchieta/III/IV

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Da armada de sua majestade. Profecia do Irmão Francisco de Escalante[editar]

Quando a armada de El-Rei Dom Felipe Segundo, de quer era General Diogo Flores de Valdês quis entrar no Rio de Janeiro, esteve surta fora obra de uma légua. Alvoroçou-se a cidade e se pôs em armas, cuidando ser de inimigos, porque tinham disso aviso; e também os padres no Colégio começavam de pôr em cobro os ornamentos da Igreja; mas o Padre José, que era provincial, disse que não era isso necessário, dando a entender que a armada era de paz e não de inimigos.

E estando olhando para ela disse estas palavras: “Ali nos traz Deus um carpinteiro, muito bom oficial, para ser nosso irmão, e muito bom religioso”. A qual palavra entendemos se cumpriu no Irmão Francisco de Escalante, que hoje está nesta província, coisa que a todos põe em admiração, pois nenhuma conjetura humana a isto podia chegar.

Perigo de quatro naus[editar]

Depois que S. Majestade mandou esta armada ao estreito de Magalhães, enviou a Dom Diogo de Álcega por cabo de outras quatro naus, que traziam mantimentos e socorro. Estas passando o Cabo Frio, se meteram em uma enseada antes de chegarem à barra do Rio de Janeiro, e estiveram mui arriscadas a se perderem ali todas; foi a nova à cidade do perigo que ali correram; o Padre José se pôs logo em oração, na sua câmara.

Daí a pedaço, estando ainda o padre em oração, veio recado que já saíam as naus do perigo; nisto vai o padre Estevão da Grã dar a nova ao Padre José e abrindo a porta o viu alevantado do chão com as mãos postas, e o rosto muito abrasado, e antes que falasse nada, se veio a ele o Padre José com estas palavras: “não é nada, não é nada, já a armada vem à vela, não se perdeu mais que um navio que vinha com ela, e nele se não perdeu pessoa alguma”. O que tudo foi verdade.

Estorava um casamento. Profecias[editar]

Andava no Rio de Janeiro um homem em mau estado e pretendia casar com uma filha de um morador, fingindo ser viúvo; o Padre José fez com a Justiça que o deitasse da terra. Queixava-se o morador que o Padre José, descasava sua filha, a que o padre respondeu: “esse homem é casado, e tem mulher viva, e antes que ele chegue a Angola para onde vai, há lá de chegar sua mulher”. E assim foi que vindo a mulher do Reino em busca do marido ao Brasil, o navio em que vinha arribou a Angola, e chegou lá três dias primeiro que este homem, para se cumprir a palavra do servo de Deus.

O perigo do navio[editar]

Navegou o padre uma vez no navio da Província, do Rio de Janeiro para a Bahia, e saindo de uma ilha das que estão na barra, para dobrar o Cabo Frio, saiu o padre do camarote e disse ao piloto que navegasse para o mar, porque se não fazia assim, não havia de dobrar o Cabo Frio, e se havia de perder. Respondeu o piloto que iam bem navegados, mas tomou o conselho do padre, e com tudo isso ainda se achou junto ao Cabo Frio junto de terra, e prosseguindo a viagem perto de seis léguas, deitaram ferra na Ilha da Âncora, pelo tempo ser contrário.

Estando assim torna o padre a sair do camarote, e manda ao piloto levantar âncora com brevidade; e recusando o piloto e marinheiros pelo tempo estar quieto, o padre lhes deu pressa que o fizessem, dizendo que não haviam de Ter tempo para o fazerem bem.

E assim foi, porque sobreveio tanto vento sul, que para se acudir às velas foi necessário levar a âncora a rastro um pouco, o que com clara razão pareceu a todos os que iam na embarcação, que o não podia o padre saber, senão revelando-lh’o Nosso Senhor, porque não tinha notícia das coisas do mar, e os que a tinham o não entenderam.

O que tudo jurou em seu testemunho Lopo Fernandes, morador no Rio de Janeiro, que vinha no mesmo navio.

Duas limas escondidas[editar]

Estando o Padre José com o Padre Vicente Rodrigues, assentado na escola dos meninos, na casa de São Paulo, mandou a um menino fosse ao quintal e lhe trouxesse meia dúzia de limas doces; foi e trouxe-as.

Nisto chama o padre a outro por nome Domingos, e diz-lhe:

“Ide ao quintal e trazei-me uma limas, que estão em tal buraco, que fulano aí escondeu”.

Trazidas, lhe disse:

“Chamai ao outro menino”.

Veio, e o padre lhe deu as limas dizendo:

“Tomai e não furteis”.

O que vendo, o menino arrebentou em lágrimas, e as não quis comer de vergonha.

Deram muitas graças a Deus o Padre Vicente Rodrigues e os que souberam do caso, vendo que sem se bulir daquele lugar, dera o padre fé do que o menino fizera no quintal. Este caso me referiu o Padre Garcia, que então era o menino Domingos, a quem mandara o padre buscar as limas escondidas no quintal.