A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/VII
Pluto, que está de guarda à entrada do quarto círculo, tenta amedrontar a Dante com palavras irosas. Mas Virgílio o faz calar-se, e conduz o discípulo a ver a pena dos pródigos e dos avarentos, que são condenados a rolar com os peitos grandes pesos e trocarem-se injúrias. Os Poetas discorrem sobre a Fortuna, e, depois, descem ao quinto círculo e vão margeando o Estiges, onde estão mergulhados os irascíveis e os acidiosos.
Pape Satan, pape Satan, aleppe:[1]
Pluto com rouca voz, ao ver-nos brada.
Para que eu do conforto não discrepe,
Virgílio, em tudo sábio: — “Da aterrada
Mente” — me diz — “se desvaneça o susto!
Poder Pluto não tem, que tolha a entrada”.
E, se volvendo ao vulto, de ira adusto,
Lhe grita: — “Cal’-te, ó lobo abominoso!
Em ti consome esse furor injusto!
“Se ao abismo descemos tenebroso,
A lei se cumpre do alto, onde, em castigo,
Suplantara Miguel bando orgulhoso”. —
Como o mastro, abatendo, traz consigo
Velas, que o vento de feição tendia,
Baqueou-se por terra o monstro imigo.
E, pois que o quarto círculo se abria,
Mais penetramos pela estância horrenda,
A que todo seu mal o mundo envia.
Ah! justiça de Deus! Que lei tremenda,
Dores, penas, quais vi, tanto amontoa?
Por que da culpa nos obceca a venda?
Como em Caribde a vaga que ressoa
Embate noutra, e quebram-se espumantes:
Assim turba com turba se abalroa.
Almas em cópia, nunca vista de antes,
Fardos de um lado e de outro, em grita ingente,
Rolavam com seus peitos ofegantes.
Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
“Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”[2]
Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
Por injúria o estribilho apregoando.
Nos semicírc’lo novamente rosto
Faziam, té o embate reiterarem.
Eu, me sentindo à compaixão disposto,
— “Quem são? Que razão há para aqui estarem?”
Ao Mestre disse — “À esquerda os colocados
Clérigos são para tonsura usarem?”
— “Da mente sendo vesgos, transviados”
— Tornou — “andaram na primeira vida,
Sempre os bens aplicando desregrados.
“Quem seus clamores ouve não duvida:
Levantam grita aos termos dois chegados,
Onde oposta os separa a culpa havida:
“Os que então de cabelos despojados
Clérigos, papas, cardeais hão sido,
Pela nímia avareza subjugados”. —
— “Entre eles” — respondi — “Mestre querido,
Muitos serão, por certo, que eu conheça,
Imundos desse mal aborrecido”. —
— “Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da sua ignóbil vida a oscuridade
Vestígio não deixou, que ora apareça:
“Eles se hão de embater na eternidade:
Ressurgindo, uns terão as mãos fechadas,
Os outros de cabelos pouquidade.
“Por dar mal, por mal ter, viram cerradas
Do céu as portas; penam nesta lida,
Com mágoas, que não podem ser contadas.
“Vês quanto é de vaidade iludida
A ambição, em que os homens a porfiam,
Da Fortuna anelando os bens na vida.
“Todo o ouro, que as entranhas conteriam
Da terra, não pudera dar repouso
A um dos que em fadiga se cruciam”. —
— “Quem é Mestre” — falei — “o portentoso
Ser, que chamas Fortuna, que à vontade
Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —
Responde o Vate: — “Ó cega humanidade,
Quanta ignorância a mente vos ofende.
Do meu pensar direi toda a verdade.
“Quem pelo seu saber tudo transcende,
Os céus criando, guias elegeu-lhes;
E toda parte a toda parte esplende,
“Pela luz que igualmente concedeu-lhes.
Assim fez aos mundanos esplendores,
Geral ministra e diretora deu-lhes,
“Que em tempo os bens mudasse enganadores[3]
De nação a nação, de raça a raça
Contra esforços de humanos sabedores.
“A pujança de um povo é grande ou escassa
Segundo o seu querer, que, se escondendo
Qual serpe em erva triunfante passa.
“Contra ela o saber vosso não valendo,
No seu reino ela tem poder e mando,
Como os outros o seu, estão regendo.
“Mudanças incessante efetuando,
Se apressa por fatal necessidade,
E assim tantas no mundo vai formando.
“Tal é Fortuna, a quem por má vontade
Insulta o que louvá-la deveria,
Censurando-a com dura iniqüidade.
“Mas, feliz, não escuta a vozeria,
E entre iguais criaturas primitivas,
Volvendo a esfera, em paz goza alegria.
“Desçamos ora a dores mais esquivas;
Estrelas baixam, que ao partir surgiram;
Demoras são defesas, são nocivas”. —
Os nossos passos através seguiram
Do círculo até fonte, que, fervendo,
As águas brota, que torrente abriram,
A cor mais negra do que persa tendo.
Ao longo do seu curso nós baixamos,
Por caminho diverso nos movendo.
Lagoa, dita Stígia, deparamos,
Junto à encosta maligna produzida
Pelo triste ribeiro, que notamos.
Eu, que tinha a atenção toda embebida,
Vi sombras, nesse pântano, lodosas,
Desnudas, de face enfurecida.
Não só co’as mãos batiam-se raivosas;
Peitos, cabeças, pés armas lhes sendo,
Com dentes laceravam-se espantosas.
— “As almas, filho meu, que ora estás vendo
São dos que” — disse o mestre — “venceu ira.
Como certo também fica sabendo
“Que sob as águas multidão suspira,
E em borbulhões as águas entumece
Por toda essa extensão, que vista gira”. —
— “Nos doces ares, a que o sol aquece”
— No ceno imersas dizem — “tristes fomos:
Dentro em nós fumo túrbido recresce.
“Ora no lodo inda mais triste somos”. —
Com voz cortada assim gargarejavam,
De palavras somente havendo assomos.
“Os passos, em grande arco, nos levavam.
Do paul sobre a borda seca; o bando,
Tendo à vista, que assim lodo tragavam,
E junto de uma torre alfim chegando.
Notas
[editar]- ↑ Pape Satan etc., verso obscuro. Muitos comentadores o entendem: “Como Satã, como Satã, príncipe do Inferno”... um mortal ousa penetrar aqui?” [N. T.]
- ↑ Por que etc. “por que seguras tanto?” é a interrogação dos pródigos; “por que jogas fora?” é a interrogação dos avaros. [N. T.]
- ↑ Geral ministra, a Fortuna. [N. T.]