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A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/XXX

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No décimo compartimento são punidos outras espécies de falsários. Os falsificadores de moedas, tornados hidrópicos, são constantemente atormentados por furiosa sede; entre eles está mestre Adão de Brescia, o qual narra que, à instigação dos condes Guidi, falsificou o florim de Florença. Os que falaram falsamente são perseguidos por febre ardentíssima. O canto termina com uma altercação entre mestre Adão e o grego Sinon. Virgílio repreende Dante pois este pára, escutando as injúrias que os dois trocam entre si.

Quando Juno, de Semele ciosa,
Contra o sangue tebano se inflamava,
Como o provou por vezes impiedosa,

Tanta insânia Atamante perturbava,
Que a esposa ao ver, ao colo seu trazendo
Os filhos dois, que a ele encaminhava,

Gritou: “Redes tendamos! Já stou vendo
Leoa e leõzinhos da embosacada!”
Disse e, raivoso, os braços estendendo

De um, Learco, travava e de pancada
Rodou-o e o percutiu em penedia.
Ao mar lançou-se a mãe com outro abraçada

Quando a fortuna a cinzas reduzia
A pujança de Tróia, em tudo altiva,
E com seu reino o morto rei jazia,

Hécuba triste, mísera, cativa,
Depois de morta Polixena vira,
Do Polidoro seu em plaga esquiva,

Súbito quando o corpo descobrira
Uivou qual cão, de angústia possuída.
Tanto a pungente dor nalma a ferira!

Mas em Tebas ou Tróia destruída
Homens ou feras nunca revelaram
Raiva, em tantos extremos desmedida,

Como almas duas lívidas, que entraram
Nuas correndo, os dentes amostrando,
Quais cerdos, que à pocilga se esquivaram.

Uma alcançou Capocchio e, lhe cravando
No colo as presas, rábida, arrastava
Sobre o ventre na rocha o miserando.

Mas o de Arezzo, que tremendo estava
“É Gianni Schicchi” — disse — esse raivoso:
De outros a pena o seu furor agrava!”

“Possas livrar-te do outro esp?rito iroso!”
Falei — “Se não te causa assim fadiga,
Diz quem seja, antes de ir-se o furioso”.

“Aquele é” — respondeu — “uma alma antiga;
É Mirra infame, que paixão impia
Instigou ser do pai a sua amiga.

“Para o seu crime consumar fingia
De outra pessoa as formas e o semblante.
Igual ardil usara Schicchi um dia:

“Para em prêmio alcançar égua farfante:
Contrafez Buoso morto e ao testamento
Falso a norma legal deu, que é prestante”.

Aos dois raivosos estivera atento
Até que de ante os olhos se apartaram;
De outros volvi-me ao cru padecimento.

Num do alaúde as formas se notaram
Se as pernas lhe tivessem cerceado
Na parte, em que do tronco se separam.

Da grave hidropisia molestado,
Que tanto o humor vicia e tanto ofende,
Que o rosto estreita e faz o ventre inchado,

A boca ter cerrada em vão pretende,
Qual hético de sede ressequido.
A quem um lábio se alça e o outro pende.

“Ó vós, que ao negro abismo haveis descido
(Não sei por que razão) de pena isentos,
Olhai” — disse — “prestando atento ouvido,

“De mestre Adam miséria e sofrimentos
Tive abastança; agora, ai! desejando
De água uma gota, passo mil tormentos,

“Dos ribeiros, que ao Arno, murmurando
Do Casentino lá na verde encosta
Se vão, por moles álveos inclinando,

“Na mente a imagem sempre tenho posta.
Não em vão: mais me seca e me fustiga
Que o mal, de que esta face é descomposta.

“Quer Justiça, que austera me castiga,
Que o teatro, onde hei crimes cometido,
Mais me acendendo anelos, me persiga.

“Lá demora Romena, onde hei fingido
Em falso cunho a imagem do Batista;
Assim meu corpo o fogo há consumido.

“Se a sombra achasse aqui, se aqui já exista,
De Guido ou de Alexandre ou seu germano!
Fonte-Branda esquecera ante essa vista.

“Mas um já veio, se induzir-me a engano
Os raivosos, que giram, não quiseram.
Que importa? Para andar em vão me afano.

“Se os meus pés transportar-me inda puderam,
De um sec?lo ao cabo, espaço de uma linha,
Já postos a caminho se moveram,

“A fim de o ver na multidão mesquinha
Do val, que milhas onze em torno amplia,
Com largura, que de uma se avizinha.

“Star lhes devo em tão triste companhia:
Florins cunhei, aos três obedecendo,
Nos quais quilates três de liga havia”.

“Quem são” — lhe disse — os dois que ora estou vendo?
Quais no inverno mãos úmidas fumegam,
À destra tua próximos jazendo”.

“Já stavam quando vim: eles se entregam,
Dês que desci, a quietação completa;
E creio, assim a eternidade empregam.

“Uma acusou José, falsária abjeta,
Outro é Sinon, de Tróia o Grego tredo:
Lançam por febre essa fumaça infecta”.

Anojado um do par, que estava quedo,
Por ver em vozes tais afronta e ofensa,
À pança o punho lhe vibrou sem medo:

Soou, qual de zabumba a pele tensa.
O braço Mestre Adam lhe envia à face
E assim lhe dá condi?na recompensa.

“Inda que” — disse — os membros meus enlace
Moléstia, que me tolhe o movimento,
Presteza a destra tem, com que rechace”.

“Foste” — o outro tornava — “mais que lento
Quando forçado ao fogo caminhavas.
Só presto eras no ofício fraudulento”.

“É certo; mas verdade não falavas”
O hidrópico diz — “quando exigiram
Em Tróia essa verdade, que ocultavas”.

“Se os lábios meus perjúrio proferiram,
Tu falsaste moeda: eu fiz um crime,
Aos teus nunca em demônio iguais se viram”.

“Do cavalo a façanha inda te oprime”
— Responde o que a barriga tinha inchada —
Sobre o teu nome infâmia o mundo imprime”.

“Arda em sede tua língua já gretada!”
Grita o Grego — “Hajas de água saniosa
O ventre impando, a vista embaraçada!”

“Escancaras a boca venenosa”
O moedeiro diz — “por mal somente;
Se sede eu tenho e a pança volumosa

“Ardes tu e a cabeça tens fervente.
Por lamberes o espelho de Narciso
A um aceno correras de repente”.

Atento estava aos dois mais do preciso,
Eis Virgílio me fala: — “Oh! toma tento!
Quase que eu contra ti me encolerizo!”

Iroso assim falar neste momento
O Mestre ouvindo, voltei-me corrido:
Ainda sinto rubor em pensamento.

Como quem sonha danos ter sofrido,
Que em sonho espera que sonhando esteja
E anela que o que é já não tenha sido,

A mente, sem dizer, falar deseja.
Desculpas aspirando à falta sua;
Stá desculpada e cuida que o não seja.

“Menos rubor lavara a culpa tua”
Disse o Mestre — “se houvera mor graveza:
Fique-te a mente da tristeza nua.

“E quando queira o acaso que à torpeza
De iguais debates se ofereça ensejo.
De que eu steja ao teu lado faz certeza,

Que é ter querendo ouvi-los, vil desejo”.