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A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Paraíso/XXIX

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Beatriz esclarece a Dante que os anjos foram criados por Deus no mesmo tempo em que foram criados os céus. Fala-lhe dos anjos fiéis e dos anjos rebeldes, os quais foram precipitados no Inferno. Censura os falsos filósofos e os padres mentirosos que esquecem que o escopo da predicação é persuadir os homens a serem cristãos, e vendem as indulgências para obter bens materiais.

Quando aos dois gentis filhos de Latona,
Um por Áries coberto, outro por Libra,
A um tempo cinge do horizonte a zona,

Quanto espaço o zênite os equilibra,
Té que mude o hemisfério e, desprendido
Deste cinto um e outro se deslibra,

Tanto calou-se Beatriz, luzido
De riso tendo o rosto e olhos fitando
Nesse Ponto que os meus tinha vencido.

— “Teu desejo” — falou-me — “antecipando
Agora não te inquiro: já o hei visto
No centro de todo o ubi e todo o quando.

“Não para ter mais perfeição, pois isto
Fora impossível, mas porque fulgindo
O seu splendor dizer pudesse, — Existo, —

“Na Eternidade, o tempo não medindo
Nem o lugar, criar se há dignado
Amores nove o Eterno Amor se abrindo.

“Antes não tinha na inação ficado:
Nem antes, nem depois era existente,
Quando Deus sobre as águas foi levado.

“Matéria e forma puras, juntamente,
Quais setas de tricorde arco voando
Saíram do ato da Infalível Mente.

“Como, em vidro, em cristal, em âmbar quando
Luz do sol toca, é logo refletida
Do vir ao ser distância não se dando,

“Tal a obra triforme, concluída
De uma só vez, no ser raiou perfeita
Sem star parte por outra antecedida.

“Ordem foi concriada, a que é sujeita
Cada substância; o cimo foi marcado
No mundo a que por ato puro é feita;

“À força pura imo lugar stá dado;
São no meio travados força e ato
Por nó que indissolúvel se há tornado.

“Jerônimo escreveu que longo trato
De séc?los antes de outro mundo feito
Fora dos anjos o império nato.

“A verdade, porém, stá no conceito
De escritores, que influi o Espírito Santo
Verás, pensando, da verdade o efeito.

“Razão em parte o vê também, porquanto
Compreender não pudera que os motores
Inertes fossem por espaço tanto.

“Sabes, pois, onde e quando esses Amores
Criados foram e de qual maneira:
Do teu desejo apago três ardores.

“Em menos tempo do que a soma inteira
De um a vinte se faz, dos anjos parte
Turbou vosso elemento sobranceira.

“Fiel a outra emprega-se dessa arte,
Que vês: assim girando jubilosa,
Deste excelso mister se não disparte.

“O mal causou soberba criminosa
Do que hás visto no abismo do tormento,
Do mundo sob a mole ponderosa.

“Mas estes, com modesto pensamento,
Mostraram-se à Bondade agradecidos,
Que lhes deu tão sublime entendimento.

“Na vista se exaltando, enriquecidos
São de mérito e graça iluminante,
Por querer certo e firme dirigidos.

“Não duvides; e sabe, de ora avante,
Que receber a graça é meritório,
Segundo o afeto mostrar-se constante.

“Já, pois, este celeste consistório,
Se quanto ora te hei dito a mente alcança,
Bem podes contemplar sem adjutório.

“Como em vossas escolas se afiança,
Na terra, que é da angélica natura
O querer, o entender, o ter lembrança,

“Eu devo ainda revelar-te a pura
Verdade, que entre vós se há confundido,
Sendo enleada por tão má leitura.

“Estas substâncias, o prazer obtido
De verem Deus, jamais rosto voltaram
Dos olhos a que nada oculto há sido.

“Seu ver, novos objetos não cortaram;
Não há razão, por que se lhes suponha
Rememorar idéias, que passaram.

“Assim na terra sem dormir se sonha,
Crendo e não crendo proferir verdade:
Neste caso há mais culpa e mais vergonha.

“De opiniões não tendes fixidade
Filosofando, tanto vos transporta
Da ostentação e de o pensar vaidade.

“No céu menos do que isto se suporta —
Ser a Santa Escritura desdenhada
Ou ter inteligência errada e torta.

“Para ser pelo mundo semeada
Quanto sangue custou pouco se atenta,
E quanto a crença humilde a Deus agrada.

“Qual para alardear engenho, inventa;
Quando o Santo Evangelho está calado
Tais invenções o púlpito comenta.

“Qual diz que a lua, tendo atrás voltado,
No ato da Paixão de Cristo, houvera,
Interpondo-se, a luz do Sol velado.

“Qual afirma que o lume se escondera
Por si mesmo; e o eclipse à Índia, à Espanha
Comum como à Judéia, se fizera.

“Em Florença não há cópia tamanha
De Lapi e Bindi quanto só num ano
O púlpito de contos desentranha.

“Desta arte a ovelha, que não sabe o engano,
Do pasto volta túmida de vento,
Desculpa não lhe dá não vendo o dano.

“Não disse Jesus Cristo ao seu convento:
Parti e ao mundo apregoai mentira;
Mas deu-lhes da verdade o fundamento;

“Ele tão alto, em sua voz se ouvira,
Que foi-lhes o Evangelho escudo e lança
Nos prélios, de que a Fé vitriz saíra.

“Ora em sermões o trocadilho, a chança
Estão na voga; o riso provocando
Incha o capuz; por nada mais se cança*.

“Se o vulgo vira o pássaro nefando,
Que em cógula se aninha, não quisera
Indulgências, em que se anda confiando;

“Stultícia tal da terra se apodera,
Que, em prova e testemunho não firmado,
Qualquer a dá-las apto considera.

“De Santo Antônio assim medra o cevado
E outros muitos, que os porcos mais ascosos,
Que pagam com dinheiro não cunhado.

“Mas longa vai a digressão; cuidosos
Os olhos volve à verdadeira estrada;
O tempo é curto, andemos pressurosos.

“É tanto a grei dos anjos avultada,
Que nem por voz, nem por humana mente
Ser pode a conta sua calculada.

“Bem te demonstra a reflexão prudente
Que não diz dos milhares, que revela
A soma Daniel precisamente.

“A luz primeira, que irradia nela,
É por maneiras tantas recebida,
Quantos fulgores são, que a fazem bela.

“E, pois que a percepção logo é seguida
Do amor, do afeto angélico a doçura
Está em graus diversos aquecida.

“Do Poder Eternal vê, pois, a altura
E grandeza, que em espelhos tão brilhantes
A sua imagem multiplica pura,

Permanecendo um sempre como de antes.”