Anais da Ilha Terceira/I/XX

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Ano de 1570[editar]

Em 17 de Janeiro foi à Câmara de São Sebastião o corregedor Gaspar Pereira de Lagos, e ordenou que em todos os anos, no dia em que a igreja celebrasse a festa do santo mártir orago daquela vila, fossem os vereadores assistir a ela e à procissão, levando o estandarte o juiz mais velho[1]. Que o mesmo estandarte seria de seda carmesim, tendo de uma parte as quinas reais, e da outra uma coroa e as setas do mártir S. Sebastião (Documento I*).

Havia El-Rei D. Sebastião em Março de 1569 mandado fundar o colégio da Companhia de Jesus na ilha da Madeira e em Angra; mas por causa da peste que então grassava em Lisboa, não partiram os padres senão em Março deste ano de 1570, onze para o Funchal, e outros tantos para Angra, em sete naus de guerra comandadas pelo general D. Francisco Mascarenhas, que vinha esperar as naus da Índia; e porque já as encontraram comboiadas de caravelas, arribaram os padres na armada, e a 2 de Maio tornaram a sair, desembarcando nesta ilha no 1.º de Julho do dito ano. Da maneira aparatosa com que foram recebidos em Angra estes religiosos, cujo reitor foi o padre Luiz de Vasconcelos, trata e Padre Cordeiro no Livro 6, capítulo 12, onde remetemos o curioso leitor.

Concedeu El-Rei a estes padres: — o privilégio exclusivo de ensinarem Latim (alvará de 19 de Fevereiro), como se fazia na cidade de Moura, e Coimbra, visto como, com as lições - diz o mesmo alvará dos padres da Companhia — se fazia mais fruto assim no espiritual, como no temporal, e com pena de 60 cruzados e dois anos de degredo; — que pudessem embarcar todo o género de cereais livremente (alvará de 10 de Janeiro de 1575); — e que pudessem prender na cadeia pública da cidade os estudantes delinquentes, e não seriam soltos sem ordem do reitor (alvará de 25 de Outubro de 1577).

A sua maneira de viver e comportamento no século, as suas pregações e confissões, e outros meios adoptados por estudo particular desta Sociedade, lhes granjearam muitos bens, e o conceito de primeiros nesta ilha, e por isso se lhes incumbiram os negócios de maior transcendência, e os da Inquisição, que também lhes foram confiados até à sua extinção.

Em 20 de Agosto faleceu o Bispo desta diocese D. Nuno Álvares Pereira, e se teve por vaticínio (diz o Padre Maldonado) o que ele disse quando os Jesuítas desembarcaram: — Agora me vem todo o meu descanso! — pois que logo depois faleceu.

Em 5 de Setembro passou-se provisão ao desembargador Fernão de Pina Marecos, para que na qualidade de corregedor viesse às ilhas dos Açores, e que não fosse obrigado a apresentar as provisões. Trouxe poderes especiais para devassar, e de sua grande representação e nobreza trata o Padre Cordeiro no citado Livro 6, capítulo 14.

Procedeu maravilhosamente no desempenho das funções de seu importante cargo, como tenho achado em várias partes, onde proveu conhecendo por apelação e agravo. Nas Câmaras determinou posturas e regimentos de polícia[2], e no eclesiástico influiu assaz para a reforma dos costumes, dando princípio a certos estabelecimentos de caridade e piedade, que mais a ele do que a outrem devem a sua origem.

Também pretendeu coarctar a demasiada jurisdição dos donatários e seus ouvidores, e deste acto louvável se acham suficientes provas na sentença proferida contra Simão Fernandes Quadrado, ouvidor do capitão na ilha de S. Jorge, por fazer autos de correição como se fosse corregedor, fazendo as eleições dos oficiais da Câmara e almotacés e obrigando a posturas, tirando devassas, avocando feitos, &c. &c.; mas esta sentença, com quanto pareça bem lançada, foi revogada na Relação a 10 de Maio de 1572 (Livro do Registo da Câmara de Angra, fl. 204) em favor do ouvidor dito Simão Fernandes, que representava o donatário Manuel Corte Real. Infelizmente este recto e sábio magistrado, vergado ao peso dos anos e dos serviços que por tanto tempo havia prestado aos Reis de Portugal, em todas as incumbências de que foi encarregado[3], foi assassinado à traição, por sequazes do Prior do Crato, cujo partido não abraçava.

Em 18 de Novembro deste ano lançou-se a primeira pedra na Igreja da Sé nova, em presença do dito corregedor Fernão de Pina Marecos, com assistência do senado, pela forma que melhor se depreende do documento (Documento J*). Acabou-se esta famosa obra em 1618, tendo-se nela gasto 46:448$763 réis; porém dos seus inspectores não houve boa fama, pelo desperdício que se lhe notou na distribuição dos muitos fundos a ela aplicados.

Houve neste ano mui pouco trigo, e se liquidou na Câmara de S. Sebastião a 10 cruzados o moio.

Dividiu-se a sargentaria-mor de Angra e vila de S. Sebastião da mesma da vila da Praia, ficando na primeira Sebastião Rodrigues Sengo, com ordenado de 50$000 réis (provisão de 28 de Julho de 1570); e na segunda Manuel Quinteiros, com ordenado de 30$000 réis (veja-se o ano de 1562).

Foi nomeado capitão-mor o corregedor Gaspar Pereira, com os mesmos poderes de seu antecessor Gaspar Ferraz, a qual carta não trouxe logo — diz a provisão — pela pressa com que veio.

Sempre os ofícios de escrivão do judicial e notas, almotaçaria, órfãos e Câmara, foram nas ilhas Terceiras servidos pelos nobres das vilas e cidades, escolhidos por um rigoroso concurso, e com fiança abonada; e de ordinário eram proprietários por mercê que passava de pais a filhos; mas não se julgava por incompatível o servirem os cargos municipais, e este costume prevaleceu até ao ano de 1570, em que a Câmara da Praia representou e obteve o alvará (documento K*) para que os tabeliães e escrivães não gozassem nela ser eleitos e servir os quatro ofícios de juiz, vereador, procurador e almotacé. Com este medida, cessaram muitos inconvenientes, que se experimentavam no expediente da justiça, nesta e mais vilas e cidades das ilhas dos Açores.

Ano de 1571[editar]

Havendo notícia em Portugal que se armava na Arrochela uma grossa armada de Luteranos, ordenou El-Rei que, suposto ainda não chegasse o tempo em que por lei geral obrigava os povos a tomarem armas, se prevenissem e exercitassem para a defesa, obrigando ao donatário da Praia, Antão Martins da Câmara, que viesse para a sua capitania, como se manifesta da carta que lhe escreveu (Documento L*); e sobre o mesmo assunto escreveu ao provedor das fortificações, autorizando-o a cortar e derribar algumas casas e quintais na dita vila, que se haviam de pagar a seus donos de dinheiro da finta mandada estabelecer (Documento M *).

A 9 de Maio foi provido no cargo de corregedor o desembargador Diogo Álvares Cardoso, em lugar de Gaspar Pereira, que também servia de provedor dos resíduos. Nesta provisão agradeceu El-Rei a João de Bettencourt, Manuel de Barcelos, João Lopes Fagundes, e Estêvão Cerveira Borges, principais da terra, o servirem sem prémio algum de capitães da ordenança; e advertia que o corregedor se não demorasse na ilha de S. Miguel, quando lá fosse de correição, mais de três meses (Documento N*). Trouxe este corregedor alçada, em 15 capítulos, e regimento sobre as assinaturas. Quanto a Gaspar Pereira servir de corregedor, foi somente até 19 de Junho, em que se passou carta a João da Silva do Canto.

Ainda a 2 de Junho servia de corregedor o dito Gaspar Pereira de Lagos, porquanto veio à Câmara de S. Sebastião com o corregedor Fernão de Pina Marecos, e estando presentes os vereadores e muitas pessoas da governança, resolveram edificar um hospital[4], não só para os pobres da vila e termo, senão para os necessitados que ao porto da mesma vila chegavam (Documento O*). Parece que neste mesmo ano estabeleceu o fidalgo João da Silva do Canto a Casa da Misericórdia do lugar de Vila Nova, por instâncias de mencionado corregedor Marecos.

Foi este ano de tanta esterilidade nesta ilha, que estiveram muitos de seus habitantes para desampará-la; e por isto se fez auto público na Câmara de S. Sebastião, para se embargar a quarta parte dos trigos, como era costume de mais de 50 anos.

Sem embargo de que eram tão notórios os perigos nas viagens do Brasil, o zelo dos Jesuítas não esmorecia. O padre Dias chegou aos Açores neste ano onde achou o almirante da frota D. Luiz de Vasconcelos, que partira no ano antecedente. Saindo então daqui a 6 de Setembro, depois de haver navegado 7 ou 8 dias, deram sobre ele cinco embarcações de alto bordo, capitaneadas por Jean Capdeville[5], homem atrevido, que por muito tempo fora companheiro de Jacques Sores e consequentemente grande inimigo dos cristãos.

E depois de ter feito muitas presas, pilhado a Gomeira nas Canárias, encontrou a frota de D. Luiz de Vasconcelos. O partido era desigual, mas o combate foi longo e bem ferido. Enojado o corsário de tanta resistência, deu três descargas sucessivas, e à quarta entrou a embarcação de D. Luiz que morreu pelejando valorosamente, e seu corpo foi lançado ao mar.

Toda a equipagem, e os Jesuítas que havia nesta embarcação, foram cruelmente mortos. O corsário Jean Capdeville voltou à França, sua pátria, e foi continuando na sua terrível pirataria (Mr. de la Clède, Tomo 9.º[6]). Estas desditas não eram bastantes para o Rei de Portugal esmorecer nas suas empresas e conquistas, porém advertiam-lhe o cuidado de fortificar as ilhas dos Açores, como temos dito.

No mesmo ano refere Duarte de Barbosa na sua Memória de Portugal, tomo 3.º (veja-se a Memória de Bernardino José de Sena Freitas), que ausentando-se da ilha de S. Miguel para Lisboa Francisco de Mariz, provedor da real fazenda e administrador da fábrica de pedra hume, fora assassinado cruelmente com toda a sua numerosa família, por uns franceses, depois de roubarem o navio. El-Rei, escandalizado destes insultos e barbaridades, escreveu ao seu embaixador João Gomes da Silva, para que pedisse providências sobre este objecto a El-Rei de França, enquanto não saísse a nossa armada em perseguição de tais piratas.

Suscitando-se sempre em Angra muitas desavenças por se não escolherem pessoas das mais nobres e aptas para os cargos municipais, ordenou El-Rei servissem neste ano de juízes Manuel Pacheco de Lima, e Gonçalo Vaz de Sousa; e de vereadores Manuel de Barcelos Machado, Artur de Azevedo de Andrade, e Estêvão Ferreira de Melo; procurador Pedro Vaz Raposo; e tesoureiro António Fernandes.

Ano de 1572[editar]

Veio Duarte Borges, com a mesma alçada de Fernão Cabral, entender na fazenda de El-Rei e provimento das armadas (alvará de 24 de Abril), com ordenado de 200$000 réis, pagos a metade em Angra, e outro tanto da ilha de S. Miguel; e trouxe ordem para de ali em diante se não encovarem os trigos, antes se recolherem em granéis.

Também El-Rei escreveu a João da Silva do Canto em 21 de Julho, para ajudar ao corregedor Diogo Álvares Cardoso[7] no modo de se fazerem algumas estâncias no porto da cidade, e duas fortalezas, uma no Porto de Pipas e outra no Fanal; e bem assim reparar o castelo da cidade, o que igualmente participou por carta à Câmara (Documento P*), pela qual se vê que já pessoas de experiência informavam a El-Rei da necessidade de fazer a fortaleza no Monte Brasil, o que se não fez, a pedido da Câmara.

No entretanto que Sua Alteza havia tomado tanto a peito as obras da fortificação, mandava fazer à custa da sua fazenda[8] os arcos da capela-mor da Sé e portadas travessas, conforme a traça que vinha assinada por Francisco Carvalho, provedor das obras (Documento Q *).

Obtiveram os eclesiásticos se lhes pagassem suas ordinárias, metade a trigo, metade a dinheiro, à razão de 3$300 réis o moio por alvará de 4 de Setembro (Documento R*), o qual foi confirmado por El-Rei D. Filipe a 27 de Fevereiro de 1608; mas porque ao referido alvará de 1572 se opuseram algumas dúvidas, proveu-se definitivamente no ano imediato de 1573.

Veio neste ano para a diocese o Bispo D. Gaspar de Faria, natural da vila de Barcelos, doutor em cânones, vigário geral do Arcebispado Olisiponense. Concedeu-lhe El-Rei 300$000 réis para esmolas, a saber 60$000 réis para o hospital de Angra, além de 20$000 rés que já tinha, com obrigação de nele se admitirem os forasteiros, e os que viessem enfermos nas suas armadas da conquista. Mandou outrossim dar 40$000 réis ao hospital de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, e 100$000 réis para esmolas na mesma ilha. Mandou igualmente que 80$000 réis se entregassem na ilha Terceira à pessoa que o Bispo escolhesse para seu esmoler, da qual quantia se continuou a fazer a despesa necessária com os 12 pobres da Quinta-Feira Santa.

Foram neste ano criadas pelo Bispo D. Gaspar de Faria as vigararias de S. Pedro e de S. Bento, e nesta última foi seu primeiro pároco Manuel Fernandes Pepino. Em ambas estas paroquiais existem os primeiros assentos da vida civil ainda que em estado de deterioração. Servia de deão e provisor o licenciado Francisco Sanches.

Tinha o escrivão da Câmara de Angra 30$000 de escrever nos livros respectivos as fortificações, e neste ano se lhe acrescentaram mais 4$000 réis pelo trabalho de escrever nos livros da imposição. Determinou-se que tivesse de ordenado 10$000 réis e o pano da mesa; o que tudo, suposto ser objecto de questões, lhe foi julgado pelo corregedor. Por este mesmo tempo se estabeleceram 6$000 réis de ordenado ao escrivão da Câmara de S. Sebastião, e 4$000 réis para o pano da mesa.

Obteve o donatário Manuel Corte Real o poder de nomear ouvidores, posto que não fossem examinados pelos desembargadores do paço segundo as informações dos corregedores Manuel da Fonseca e Fernão de Pina, que andavam de correição nas ilhas (alvará de 23 de Agosto de 1572).

Ano de 1573[editar]

Em 4 de Abril escreveu El-Rei no corregedor Diogo Álvares Cardoso, decidindo a proposta que este lhe fizera sobre promover a juiz dos órfãos o vereador mais velho, nos lugares onde os juízes fossem muito ocupados; determinando que para ocorrer aos inconvenientes de vir a eleição de Lisboa para Angra todos os anos, o que era susceptível de delongas, ele a fizesse de 3 anos na forma da Ordenação, e feita que fosse, tirasse os pelouros dos oficiais que haviam de servir o primeiro ano, e os que saíssem, entrassem logo a servir. — Que se fizesse escrivão da Câmara sempre pessoa de boa qualidade, vida e costumes, e que tivesse bens com que pagasse os danos causados. — Que o ministro da correição tivesse 4 homens que o acompanhassem nas causas da justiça, armados de alabardas, e ordenado de 900 réis por mês.

Não lhe deferiu El-Rei porém quanto ao acrescentamento da alçada no crime; aprovando-lhe contudo o bem que se houvera na organização da companhia dos nobres, a que procedera.

Alguma dúvida se ofereceu ao pagamento do clero, como se determinara no ano de 1572, porque El-Rei, tendo ouvido o Bispo D. Nuno Álvares Pereira, o provedor João da Silva do Canto o Afonso Sanches, procurador de seus feitos, determinou em 22 de Dezembro deste ano fossem pagos os eclesiásticos na forma que se manifesta pelo Documento S* e na ilha de S. Miguel mandou fazer uma diligência, para saber a melhor forma de se comporem as ordinárias do clero; para se executar esta ordem já em 1569 se havia expedido alvará a 11 de Junho, para que os ministros eclesiásticos fossem pagos com a maior pontualidade; e que os Bispos nos domínios ultramarinos fossem os executores, procedendo com censuras contra os feitores e almoxarifes refractários, cuja carta confirmou El-Rei D. Filipe em 1602.

Por haver estado fundeada na baía do Porto Novo, abaixo da vila de S. Sebastião, uma armada de 50 navios de guerra, que andavam ao corso, procedeu-se a vistoria, e se tratou de edificar imediatamente a fortaleza de S. Sebastião; assim como no Porto Judeu a de Santo António; e foram estas as primeiras fortalezas que houveram em toda a costa (Livro dos Acórdãos da dita Câmara).

Depois de tantos serviços prestados à coroa de Portugal pelo nobre cavaleiro Francisco do Canto, como temos mostrado, voltou à sua pátria, na qual ainda serviu com grande proveito do estado (veja-se o ano de 1566); e casou primeira vez com D. Luzia da Câmara, filha de Pedro Álvares da Fonseca e de Andreza Mendes de Vasconcelos; e segunda vez com Francisca de Betancor, natural da Madeira, e das quais teve nobre descendência; e falecendo com testamento, foi sepultado na Sé de S. Salvador (veja-se o Padre Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 19, §198). Deste Francisco do Canto nasceu primeiro filho Pedro Anes do Canto, que casou com D. Apolónia Teixeira (citado Padre Cordeiro, §199 e §201).

Ano de 1574[editar]

Não obstante dar-se provisão aos corregedores Gaspar Pereira e Diogo Álvares Cardoso para serviram de provedores dos resíduos, acho nos livros da Câmara de S. Sebastião que ainda neste ano servia o dito cargo Cristóvão de Mariz.

A mesma Câmara sustentava demanda contra António Francisco Barreto, loco-tenente do capitão Manuel Corte-Real, por se querer apossar do ilhéu do Porto Judeu, e finalmente se decidiu a favor da Câmara. Então o dito Corte Real, ou um seu descendente, como é tradição, o houve por mercê que lhe fez El-Rei.

Continuava-se nesta vila a cultura do pastel, e se vendia a 500 réis o quintal, proibindo-se, em acórdão de 6 de Outubro, o vender-se a menos preço, não obstante a intriga dos comerciantes[9].

Ano de 1575[editar]

Obtiveram os Jesuítas, em 10 de Janeiro deste ano, privilégio para livremente embarcarem todo o seu pão, aumentando-se desta forma os privilégios exclusivos que já lhes foram concedidos no ano de 1570.

A 20 de Março, e por instâncias de El-Rei, se ordenou que o desembargador Marcos Teixeira passasse às ilhas dos Açores a visitá-las por parte do Santo Ofício; — que a ele e seus oficiais se desse aposentadoria, e as melhores casas que nos lugares houvessem, mantimentos, bestas e barcos, o que tudo se pagaria pelo estado da terra; que além das coisas do Santa Ofício, conheceria e procederia a devassa sobre o pecado nefando, em virtude de um breve do Santo Padre, concedido a pedido de El-Rei (1.º Livro do Registo da Câmara de Angra, a fl. 200).

Representou a Câmara de Angra a El-Rei a grande esterilidade dos frutos das terras em todas as lhas dos Açores, pedindo que o trigo da fazenda ficasse nelas e se vendesse ao povo, o que efectivamente obteve; mas não conseguiu o espaçar o pagamento das dívidas para o ano próximo futuro, ordenando todavia El-Rei ao corregedor o informasse de tudo particularmente, e da necessidade de cada uma das ilhas por carta régia de 2 de Abril de 1575, a fl. 201, verso, do 1.º Livro do Registo (Documento T*).

Reformaram-se neste ano as antigas posturas do concelho de S. Sebastião, como já se fizera no ano de 1560. As coimas contra os animais que prejudicavam os campos cultivados, a taxa dos oficiais mecânicos e dos homens jornaleiros, o preço dos géneros de consumo que não eram da primeira necessidade fizeram o objecto destas posturas. Acham-se no auto 90 assinaturas, pelas quais se mostra não ser insignificante a povoação desta vila por aqueles anos[10], e inculca habitarem ali muitos proprietários, que pelo andar dos tempos a desampararam, passando às delícias que lhes oferecia Angra.

Também esta Câmara sustentava em Lisboa um procurador, que foi Pedro Gaspar Rico, defendendo o pleito que lhe pusera Francisco de Figueiroa de Azevedo, a fim de excluir o povo daquela jurisdição de entrar pelo cerrado do Biscoito[11] a extrair lenhas dos matos e servir-se para a Caldeira; pleito este em que a Câmara ficou vitoriosa.

Parece que os antigos desprezavam os socorros da medicina, abraçando cordialmente o viver segundo a natureza, como o recomenda Rousseau[12]. Assim parece o praticavam os praienses, pois que mais tarde, e só no ano de 1575, cuidaram de prover neste ramo, como se evidência do capítulo da carta régia, que sobre esta objecto foi enviada ao capitão, nos termos seguintes: — E o mais que me escrevestes a pedir sobre o ordenado do Físico que tomastes para residir nessa Vila da Praia, Eu hei por bem que ele haja os 12$000 réis que dizeis que com ele vos concertastes que houvesse em cada um ano para seu ordenado, por tempo de quatro anos, os quais lhe serão pagos a metade à custa das rendas do concelho, e a outra metade à custa das rendas das imposições, e pelo traslado deste capítulo, com conhecimentos do dito Físico, certidão vossa de como residiu na dita vila, mando que seja levado em conta ao recebedor, e recebedores, que lhe o dito ordenado pagarem. — Antão da Rocha o fez em Lisboa, a 8 de Junho de 1575 anos, e eu Álvaro Pires o fiz escrever. — Rei. — Para o capitão da Praia da Ilha Terceira.

Todavia acho que este emprego foi continuado em diferentes sujeitos, e alguns sem obrigação do residirem na Praia, como foi o doutor Jorge Carlos (não havia outro na ilha), a quem a Câmara em 12 de Janeiro de 1602 ajustou por 12$000 réis, ou três moios de trigo, pagos das imposições ou dois por cento, na forma antiga, com a condição de curar por informação, e visitar os doentes da vila de três em três semanas (alvará de 7 de Maio de 1603, fl. 93). Esta providência era impraticável, e só prova a necessidade que havia de facultativos, e por isso, em 13 de Abril de 1617, ajustou a Câmara pelo referido ordenado ao médico Simão Rodrigues Pestana, com obrigação de residir na Praia com mulher e filhos.

Ano de 1576[editar]

Continuava a esterilidade dos campos, e se vendeu o trigo a sete e a oito vinténs o alqueire (Livro do Registo da Câmara da Praia, fl. 62, verso) e por isso deu El-Rei uma provisão, declarando a taxa e preço do trigo que se havia de vender ao povo, a saber, até dia de Nossa Senhora de Setembro se venderia a 100 réis o alqueire, e o de cevada a 40 réis, com pena de degredo para fora do lugar, vila ou cidade, por espaço de um ano, e pagar da cadeia 20 cruzados, por assim o representar o corregedor e algumas Câmaras. E porque a Câmara de Angra expôs a mesma necessidade para o ano de 1578, se mandou continuar a mesma taxa por provisão de 6 de Julho de 1576, fl. 213, verso, do 1.º Livro (Documento U*).

E também, porque algumas vezes as Câmaras abusavam no embargo da quarta parte dos cereais que haviam de ficar na terra para se vender ao povo, determinando os pagamentos a longos prazos, expediu-se outra provisão, a 17 de Julho deste mesmo ano, para que tais géneros se não pudessem tirar a pessoa alguma sem logo lhe serem pagos.

Lavrou-se acto solene (fl. 213, verso, do Livro do Registo) pelo qual a Câmara de Angra, presente o corregedor, procedeu ao encanamento de água no cerrado das Fontes, que está no Posto Santo. Baltasar Gonçalves de Antona, um dos vereadores, foi abrindo um rego com um arado até ao caminho, por onde devia sair a corrente de água, formalidade esta com que a Câmara tomou posse da referida água.

Suposto ignorar-se em que ano se deu princípio à fortaleza do Porto de Pipas, é certo que se passou alvará da alcaidaria-mor dela a Manuel Corte Real, a 25 de Outubro deste ano em que vamos de 1576 (Documento V*).

Em 19 de Março, faleceu o Bispo D. Gaspar de Faria, ab intestato e repentinamente na Sé, onde foi sepultado. Habitou este Bispo uma grande parte do tempo na Agualva, onde tinha um pomar de frutas de espinho e de outras qualidades[13]; e ali deixou enterrada a sua riqueza, constante de uma grande baixela de prata e algum dinheiro, que depois, e não há muitos anos, se achou, como é tradição constante.

Em dia de Pentecostes do ano de 1573 fez pontifical na igreja paroquial de Vila Nova, estando presentes o vigário Bartolomeu Manuel, e os fidalgos João da Silva do Canto, Manuel Borges da Costa, Rui Gil Teixeira e outros, e declarando-se o dito Bispo inspirado por Deus, conseguiu terminar o casamento entre Beatriz Diniz, filha do nobre Gonçalo Vaz Diniz, e Braz Lourenço do Rego, sobre que haviam grandes desavenças e renhidos pleitos; e de tudo se exarou escritura pública nas notas do tabelião Fernão Fernandes Salgado. Eis aqui um exemplo bem digno de ser imitado pelos sucessores de tão virtuoso prelado!

Parece que neste mesmo ano andou de visita em todas as ilhas, porque em 8 de Setembro, dia da Natividade de Nossa Senhora, fez pontifical na igreja Matriz de Ponta Delgada.

A este Bispo seguiu-se D. Pedro de Castilho, que foi o 7.º Bispo de Angra, e supõe-se viera para o Bispado no ano de 1578. Foi eleito por El-Rei D. Sebastião, e confirmado pelo Papa Gregório XIII. Era licenciado em cânones, e deputado da Inquisição de Coimbra. Em sua companhia vem o mui respeitável Padre Frei Jorge, da Ordem de Santo Agostinho, religioso perfeitíssimo (diz o Padre Maldonado) em letras e virtudes; e como tal lhe confiou o Bispo o governo de sua casa, onde não admitia pessoa que não fosse do serviço dela; com o que se pôs um corte às ambições dos que pretendiam inculcar-se seus validos. No tempo deste Bispo suscitaram-se graves conflitos de jurisdição entre ele e o corregedor.

Neste ano de 1576 representou a Câmara de S. Sebastião a El-Rei o grande vexame das aposentadorias dos corregedores e seus oficiais, e se proveu, pela carta régia de 7 Julho, que as camas lhes fossem pagas à razão de 150 réis por mês, e as levassem de fora (Documento W*); e se não contassem as dos escudeiros e homens de pé.

Não cessava o donatário da Praia, Antão Martins Homem de perseguir os moradores daquela capitania, quando por direito deveria ser deles um protector; e não podendo obstar a que se fizessem moendas nos seis meses de Verão, como já fora julgado contra seu avô no ano de 1517, agora exigia que se regulassem as maquias a 14 por alqueire, ainda que na cidade eram a 16. Opôs-se a Câmara, e fez postura nova em que revogou a posse em que o dito capitão estava de ter na Agualva e Quatro Ribeiras, há mais de 100 anos, os tais moinhos, maquiando-se neles à razão de 14 maquias por alqueire; o que lhe foi confirmado por sentença da Relação, com o fundamento de que as medidas deviam ser em toda a parte iguais (Livro do Registo, fl. 43).

Contra o mesmo capitão procedeu neste ano de 1576 a sentença de que falámos na Segunda Época, Capítulo V, a respeito de ser obrigado a fazer e reparar à sua custa a cadeia da vila da Praia, ficando inútil a finta de 300 cruzados que se haviam lançado ao povo da mesma capitania, para se fazer a dita cadeia.

Continuava grande falta de pão, e a maior que por aqueles anos se havia experimentado; e porque a Câmara, em acórdão de 20 de Dezembro, havia posto taxa em todos os géneros e no pescado, disto agravaram os pescadores da Praia; e juntando muitas sentenças passadas em julgado, pelas quais nas ilhas não podiam os almotacés taxar o peixe, foram absolvidos por sentença da Relação em 21 de Março de 1577.

Pelos alegados insertos na dita sentença, fl. 60, se conhece perfeitamente serem aqueles anos de completa calamidade, pelo excessivo preço a que haviam chegado todos os mantimentos, e ser o porto da Praia ao norte, mui difícil de se vararem nele os barcos, com o que a classe marítima era a mais infeliz da sociedade, como ainda hoje o é, naquela piscosa Sesimbra. Eis aqui a sentença que no caso houve: — Acordei, &c, que os suplicantes são agravados pelos oficiais da Câmara em lhes querer pôr taxa nos pescados que matam no mar, e o vendem no porto: E corrigindo em seu agravo, visto o comum estilo do Reino, e sentenças juntas, mando que os oficiais lhe não ponham taxa a seus pescados, mas lhos deixem vender livremente pelos preços que quiserem, e condeno os oficiais da Câmara nas custas dos autos. — Em Lisboa, a 21 de Março de 1577 anos.

Ano de 1577[editar]

Continuavam em Portugal no princípio deste ano os preparativos para a empresa de África; porém no melhor tempo faltou o dinheiro, porque, segundo parece, chegavam as rendas da terra firme a um milhão em tributos e pensões; outro milhão se tirava das novas terras de S. Tomé, Mina, Brasil, &c.

Mandou El-Rei repetir os exercícios das milícias, assistindo muitas vezes a eles, e não sem perigo; e porque não havia pessoa assaz prática que ensinasse os manejos militares, supria esta falta[14] um curioso chamado João da Gama, com hábito de eremita, resultando desta instrução que muito se trabalhava e pouco se sabia. Nomeou a D. Miguel de Noronha, Diogo Lopes de Sequeira, Francisco de Távora e Vasco da Silveira, que parece não tinham muita experiência da guerra, para que em Portugal fizessem uma leva de e doze mil infantes, e sem dúvida para isto concorreriam as ilhas dos Açores com o seu contingente, que estava em uso serem mil homens[15].

Neste mesmo ano de 1577 pediu a Câmara de Angra, e obteve, os privilégios dos cidadãos do Porto, para as pessoas que andassem na governança dela, alegando que El-Rei D. João III a havia criado cidade por sua avultada população, e já pelos muitos serviços que sempre fizera, e de contínuo fazia, no provimento das naus da Índia, e defensão dos navios de Cabo Verde, S. Tomé, Brasil, &c, saindo com suas caravelas a pelejar com os corsários em alto mar, e quando infestavam os portos e enseadas destas ilhas; de forma que eles se consideravam em contínua fronteira com tais inimigos.

A este fim enviou a Câmara à cidade do Porto o fidalgo comendador da Ordem de Santiago, Bartolomeu Fernandes Leite, a apresentar a carta patente de El-Rei à Câmara da referida cidade, o que efectivamente fez, mandando-se aí passar a carta de privilégios em pública forma pelo tabelião Manuel Cerveira[16], na qual carta se declarava que todos os cidadãos que ora e ao diante fossem, houvessem estes privilégios: — que não fossem metidos a tormentos por quaisquer malefícios ou crimes, salvo naqueles em que o devessem ser e eram os fidalgos do reino e senhorios; — que não pudessem ser presos por nenhuns crimes senão sobre suas menagens, assim como eram e deviam ser os ditos fidalgos; — que pudessem tomar todas e quantas armas lhes aprouvessem, de noite e de dia, assim ofensivas como defensivas; — e que outrossim gozassem todos os privilégios concedidos à cidade de Lisboa, salvo que não pudessem andar em bestas muares[17]; — que seus caseiros, amos, mordomos e lavradores, e pessoas que com eles tivessem, não fossem constrangidos a servir em guerras, nem em outras idas por mar ou por terra; — que não pousassem com eles, nem lhes tomassem suas casas de moradia, adegas, nem cavalariças, nem suas bestas de sela ou de albarda; — e lhes catassem e guardassem em suas casas e fora delas, todas as liberdades que antigamente haviam os infanções e ricos homens; — e que tudo lhes fosse guardado com pena de seis mil soldos para El-Rei. A qual carta dizia ser feita em Évora em o 1.º de Junho de 1490, e confirmada por El-Rei D. Manuel a 27 de Janeiro de 1515 (Documento X*).

Continham-se estes privilégios em uma sentença de agravo, que obtiveram os vereadores da Câmara de Lisboa contra o governador da Casa do Cível, D. Gonçalo, e em resultado ordenou o Desembargo do Paço que Amador de Alpoim, como homem mais antigo que andava na governança da cidade, por instrumentos de fé informasse de que qualidade e merecimentos foram os infanções que antigamente possuíam a terra de Santa Maria, segundo o que se colhesse pelos mandados passados ao fim de serem examinados os arquivos da Torre do Tombo, os de Santa Cruz de Coimbra, dos frades de Alcobaça e outros: e pelas certidões que pelo dito Alpoim foram apresentadas, se provou evidentemente que os infanções, que soíam possuir a terra de Santa Maria, e besteiros, eram netos de Reis, filhos dos Infantes mores, depois seus principais herdeiros; que a estes somente pertencia o tal nome, que a outras pessoas não. — E assim definitivamente se julgou. E que Pero Cardoso se livrasse por seu direito, visto como não era cidadão, nem saíra por pelouro para servir o ofício de juiz do crime; — que assim se cumprisse e guardasse, e al se não fizesse; — que Duarte Peixoto a fizera, ano de 1486.

Tais eram os privilégios dos cidadãos do Porto, que se guardavam às pessoas da governança da cidade de Angra e de outras cidades e vilas dos Açores, e que na verdade foram um perene manancial de partidos e desordens eleitorais; e por isso me pareceu a propósito deles dar uma ideia, assim como se acham no 3.º Livro do Tombo da Câmara de Angra, a fl. 6.

Escreveu El-Rei ao corregedor agradecendo-lhe a boa conta que lhe dera da comissão das fortificações, ordenando que as obras da fortaleza da cidade e castelo do Porto de Pipas fossem por diante até o ano que embora vinha, era que se acabassem. E que, visto dizer-lhe e provedor se não puderam arrecadar os cinco mil cruzados, resto dos quinze mil que ao povo da ilha foram lançados para esta e outras fortificações, representando-lhe a esterilidade daquele ano, ficasse a cobrança dele para o ano próximo futuro[18].

Havendo na Praia falecido o capitão Álvaro Martins Homem, passou o corregedor Diogo Álvares Cardoso no dia imediato[19], que foi 11 de Julho, a tomar posse da capitania[20] em nome de Sua Alteza. Servia ali de ouvidor Gomes Pamplona do Miranda, que também era capitão-mor.

Houve no dia 27 de Julho em Câmara um auto com o povo, e se assentou cerrar os portos, porque era grande a esterilidade dos campos, em razão de um grande temporal que levara os frutos e comedias geralmente. E porque o corregedor se intrometeu neste negócio, embaraçando a execução do acórdão, no dia 27 de Agosto, em auto público, interpôs dele a Câmara um recurso de agravo, sendo juízes Manuel de Ornelas de Sousa e Gil Fernandes Teixeira.

Colige-se do acórdão, datado de 6 de Janeiro[21], que se andava reformando o grande templo da Matriz de Santa Cruz, e foi então que El-Rei enviou as excelentes portadas de mármore, que se atribuem a oferta de El-Rei D. Manuel (veja-se o ano de 1568).

Tão notável foi a esterilidade dos frutos da terra nestes anos que a requerimento da Câmara de Angra mandou El-Rei continuar a taxa de 100 reis por alqueire de trigo, e 40 reis por alqueire de cevada (provisão de 6 de Julho, a fl. 212 do 1.º Livro do Registo da Câmara de Angra); e por outra ordenou que às pessoas que tivessem fazenda e rendas se lhes pudessem tirar, sendo logo pagas, o que se entendia para este ano de 1577 e 1578.

Obtiveram os Jesuítas provisão, no 1.º de Outubro, para que o meirinho ou alcaide da cidade pudesse entrar no seu colégio prender e levar à cadeia os estudantes que o reitor lhe apontasse, e não fossem soltos sem sua ordem; que tais presos não corressem folha, nem fossem retidos na prisão, nem embargados por outra alguma causa (Livro 2.º do Registo da Câmara de Angra, a fl. 340).

Em 30 de Novembro deste ano de 1577 faleceu João da Silva do Canto, de quem temos falado como capitão-mor das armadas, e general do mar nestas ilhas, provedor das armadas reais, e da fazenda, capitão-mor de Angra, e do conselho de El-Rei. Fez testamento em 12 de Julho de 1575 na sua quinta de S. João Baptista da Vila Nova, e o reformou pelo codicilo feito em Angra em 4 de Setembro de 1577. Determinou ser enterrado na capela-mor da Sé nova[22]. No morgadio de seu pai Pedro Anes do Canto sucedeu a matrona D. Violante da Silva do Canto, única filha legítima que lhe ficou de sua mulher D. Isabel Correia (veja-se o Padre Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 19). E porque de Simoa Francisca, que morreu solteira, houvera o dito João da Silva do Canto uma filha chamada D. Maria da Silva, a quem muito amava, a esta legitimou por El-Rei, e dotou a terça de seus bens livres e vinculados em morgado, e a casou com Manuel Borges da Costa, fidalgo filhado, e comendador da Ordem de Cristo, de quem hoje é representante João Borges do Canto.

Consta do respectivo livro da finta que aos moradores da Praia se lançou[23] para as obras da fortificação da costa no ano de 1567, ser avaliada a fazenda de João da Silva do Canto naquela capitania em 5 contos de reis, e deve advertir-se que o trigo andava neste tempo a 3$300 réis o moio.

O mosteiro de Nossa Senhora da Esperança deve a sua origem ao zelo incansável de Isabel de Jesus, religiosa do convento da ilha do Faial, que vindo à Terceira curar-se ele certa enfermidade, o fundou, não obstante as grandes oposições que por muito tempo lhe fizeram Braz Pires do Canto, padroeiro do convento de S. Gonçalo, e o Bispo D. Frei Jorge de Santiago; chegando a tanto (refere o Padre Maldonado) que ela e suas companheiras amassavam o barro e faziam as paredes, porque nenhum oficial de pedreiro achavam que quisesse trabalhar na obra com medo das censuras eclesiásticas[24]. E tal foi a opressão que à abadessa e mais religiosas fez a governança da cidade, impedindo-lhe a água para seus usos, que a Rainha D. Catarina, no ano de 1562, mandou ao corregedor Fernão Lopes, fizesse ver à Câmara quanto convinha dar-se às ditas religiosas uma palha de água limpa; por lhe constar os grandes sofrimentos que tinham por esta falta, sendo aliás pessoas de muitas virtudes e vida exemplar.

Ano de 1578[editar]

Tomou posse de provedor da fazenda Garcia Lobo, por alvará de 23 de Maio, e se lhe mandaram pagar 200$000 réis de seu ordenado, a quartéis[25].

Supõe-se que neste ano veio para esta ilha o Bispo D. Pedro de Castilho, com quem o corregedor Ciprião do Figueiredo começou a ter rijas preferências em matéria de jurisdição, como em seu lugar dissemos.

Em 15 de Maio deste ano de 1578 foi provido corregedor da comarca de todas as ilhas, por tempo de 3 anos[26], Ciprião do Figueiredo de Lemos e Vasconcelos, a quem se deu o regimento de alçada que tiveram seus antecessores Gaspar Ferraz e Diogo Álvares Cardoso. Constava este regimento de 16 capítulos, e num deles se lê a tremenda execução decretada nos termos seguintes: — E em peões de soldadas que andarem à soldada, e outras pessoas que ganharem dinheiro por sua braçagem, tereis poder e alçada para os mandar açoutar e cortar as orelhas, e degradar até sete anos para os lugares de além; e sendo os tais casos de furtos, os podereis degradar para as galés pela metade do dito tempo (Livro 1.º do Registo da Câmara de Angra, fl. 254).

Também se lhe concedeu privilégio para que pudesse residir em Angra mais de 60 dias, que, segundo a Ordenação, só eram permitidos aos corregedores nos lugares grandes das ilhas: e isto se lhe concedeu em atenção à grave importância dos negócios na dita cidade, pela frequência das armadas que ao porto dela vinham, como a um dos melhores do Reino (Documento Y). Por este documento se pode avaliar o grande comércio e riqueza da ilha Terceira naqueles tempos, como escala geral das frotas e armadas da Índia, Mina, Guiné e Brasil, e ainda de outras muitas partes.

Continuava a esterilidade das campos, e a requerimento das Câmaras se mandou vender 400 moios de trigo a 110 réis o alqueire, trigo que era da fazenda de El-Rei, segundo a taxa que do ano antecedente estava posta, porque os 10 réis excedentes a ela eram quebras de granel (provisão a 21 de Maio, fl. 265).

Suposto haver o corregedor Ciprião de Figueiredo trazido provisão a 17 de Maio para servir de provedor dos resíduos, tomou posse deste cargo Fernão Vaz Rodovalho, sucedendo a seu irmão Diogo Vaz Rodovalho, do que se colhe que estes empregos eram separados, e nesta família continuaram.

Obtiveram os procuradores dos misteres de Angra guardar-se-lhes o regimento que El-Rei D. Manuel dera aos da cidade e vilas da ilha da Madeira, Ponta Delgada e vila da Praia, em atenção aos serviços que faziam; concedendo-lhes os ditos privilégios com a condição de que, nas eleições onde não entrassem todos os da governança, os quatro misteres tivessem um só voto, e quando esses entrassem, cada um tivesse o seu voto. E que as varas que levassem nas procissões, estivessem na repartição da carne no açougue, tivessem um açor por armas que são as da cidade. E que os misteres eleitos pelos 24, ainda que merecessem pena de justiça pública, que se lhes não desse senão como se fossem escudeiros; porquanto ao que tocar a dita pena pública, a saber, açoutes, baraço e pregão, e outra que seja desta qualidade, que se dá aos mecânicos, que se não entenda neles (veja-se o Documento Z* do Livro do Registo, fl. 268).

Passou todavia El-Rei D. Sebastião à conquista de África, onde se perdeu no dia 4 de Agosto. Sua mocidade, o género de morte que teve, e a falta de sucessores ao Reino, tudo constituiu os Portugueses na última infelicidade e desesperação.

Depois que o Cardeal Infante teve a certeza do desbarate e morte de El-Rei seu sobrinho, ordenou logo fazer em Lisboa as cerimónias fúnebres, como efectivamente se fizeram no dia 27 de Agosto, com as solenidades do costume, que se praticavam desde a morte de El-Rei D. Manuel, quebrando os escudos e arrastando as bandeiras pelo chão[27]. Acabadas as exéquias, logo no dia imediato, 28 de Agosto, foi o mesmo Cardeal Infante aclamado Rei. A notícia daquela grande perda, e da aclamação do novo Rei, foi participada à ilha Terceira no dia 5 de Novembro seguinte, pois é nesta data que achámos se escreveu à Câmara de Angra a carta (Documento A **) na qual se conclui recomendando a defensão da ilha.

Aquela infausta notícia acresceu outra grandemente aterradora, qual foi constar por uma carta enviada ao corregedor, que Inglaterra e França preparavam muitos navios com intento de assaltar as ilhas e outros senhorios de Portugal (Documento B **).

Mas parece que estas participações chegaram depois de muito tempo, porque achámos que o corregedor Ciprião de Figueiredo, no dia 23 de Maio deste ano, é que apresentou a referida carta à Câmara da Praia, prevenindo-a e recomendando-lhe todo o cuidado na milícia de pé e de cavalo. Iguais participações receberam o capitão-mor Gomes Pamplona de Miranda, e o sargento-mor Manuel Quinteiros, os quais já de antes haviam dado nova forma às ordenanças, extinguindo o privilégio dos nobres que seguiam a bandeira do capitão (auto feito em Câmara da Praia, a 26 de Abril).

Continuava a esterilidade dos campos, e por isso as Câmaras cerraram os portos com graves penas, e até determinaram que se não extraíssem os cereais para fora dos concelhos. Em um acórdão feito com assistência do povo na Câmara de S. Sebastião, a 26 de Julho, para se tirar a quarta parte dos trigos, alega-se que é tal a esterilidade e falta de pão, que se não hão-de poder semear os campos, e se receia que os povos desamparem a terra.

Ano de 1579[editar]

Em 11 de Março deste ano, tirando o corregedor Ciprião de Figueiredo residência a António Francisco Barreto, ouvidor do capitão donatário, o culpou de ter na vila de S. Sebastião, pois lhe não pertencia, procedido a devassa pelo roubo que se fizera no saco dos pelouros dos oficiais que haviam de servir naquela vila[28]; porém, em razão de ter de sair para as Ilhas de Baixo a coisas de grande importância ao serviço real, determinou que o mesmo ouvidor continuasse a servir, porque não havia pessoa mais conveniente nas actuais circunstâncias em que o Bispo queria usurpar a jurisdição real. Por esta providência, apesar da culpa em que se achava o dito ouvidor, se pode calcular a gravidade dos pleitos, que entre estas duas autoridades havia.

Ainda não existia na ilha Terceira a guerra estranha, quando já de mui longe começara a guerra civil, no maior fogo dos conflitos de jurisdição, entre as principais autoridades, dando por esta forma um manifesto indício das maiores infelicidades, em que cedo se haviam de envolver os seus autores por divergência de partidos políticos. Não cessava o Bispo desta diocese, D. Pedro de Castilho, de invadir e devassar a jurisdição do corregedor Ciprião do Figueiredo de Lemos Vasconcelos, principalmente desde o ano de 1579; e a imprudência de suas empresas acha-se comprovada nas sentenças[29] do desembargo, que contra ele foram proferidas neste ano, e de tudo passamos a dar uma abreviada notícia.

Achavam-se presos no aljube Simão Afonso, Manuel Gonçalves Machado e Diogo Afonso, leigos e moradores em Angra e na Praia, processados a mandado do Bispo pelo escrivão da Câmara eclesiástica Melchior Estaço, e António Luiz Fagundes, escrivão do auditório, e deles haviam feito 5 autos, por adultérios e outros casos mixti fori; porque recusaram fazer estatutos de certas confrarias que o Bispo aprovasse; bem como por não quererem entregar aos priostes as esmolas das missas nos tempos das eiras; e finalmente porque recusaram tirar a finta ordenada pelo mesmo Bispo, para a obra que ele mandara fazer na igreja da Conceição, determinando ao vigário dela escolhesse três homens que andassem nesta diligência. E sobre estes casos o corregedor, por uma carta missiva[30], dizia ao Bispo que não devia estranhar-lhe o defender a jurisdição real, nem permitir que ela fosse devassada, pois que os réus não haviam sido admoestados conforme a lei regulada pelo Concílio Tridentino, capítulo 8.º, sessão 24; — que ele Bispo queria fazer o mesmo que os provedores dos resíduos no conhecimento das contas das missas e legados, porque assim o mandara fazer nas Ilhas de Baixo pelos seus ouvidores, que por outro nome se chamavam arciprestes, sem que até ali houvesse lei nem decreto que tal regulasse; nem dos testamentos que passavam de ano e dia lhe competia o conhecimento, e nisto ia contra a jurisdição de El-Rei, e assim o fora a respeito da mencionada finta.

A tudo isto respondeu o Bispo com muitos protestos de veneração e respeito, louvando ao corregedor pelo grande zelo que mostrava em sustentar a jurisdição real.

Alegando-se finalmente, de parte a parte, muitas razões, com que ambas estas autoridades pretendiam sustentar suas liberdades, foram os autos enviados pelo Bispo ao Desembargo do Paço onde se decidiu que ele não podia proceder a prisão contra os culpados senão ordinariamente, e em virtude de sentenças condenatórias (Documento C**). E com este julgado se pôs termo a esta grande desavença.

Outro motivo de discórdia entre o Bispo e o corregedor, foi o querer aquele obrigar os ministros e oficiais de justiça a lhe descobrirem os segredos e autos que lhe eram mandados fazer em razão de seus ofícios, sendo eles pessoas leigas e da jurisdição de El-Rei; impondo-lhe para isso penas de dinheiro, e procedendo com censuras, excomunhões e aljube, perturbando a jurisdição secular; do que o corregedor tirou em seu nome, e em nome de seus oficiais, instrumento de agravo, pelo tabelião Sebastião Rodrigues, em 29 de Março de 1579.

Porém o mais notável e escandaloso procedimento do Bispo, foi o que praticou com Francisco Lagarto Lobo, tabelião na vila da Praia, a quem por vezes mandou ir à cidade ante ele, com pena de 20 cruzados, de excomunhão e de aljube, e outras ameaças, com o fim de que lhe descobrisse o segredo dos autos, que com o juiz ordinário João Cardoso Machado tinha feito, compelindo ao dito tabelião com muitos medos para que assinasse os autos, que ele mandava fazer pelo seu escrivão Melchior Estaço; e ao mesmo juiz mandava ir à cidade, distante três léguas, em dias de muita chuva e tormenta, sendo ele pessoa de muita qualidade, e homem de 60 anos, para que lhe descobrisse o que mandara escrever pelo mencionado tabelião: e porque recusou fazê-lo, e apelou do Bispo, ele no domingo imediato, à estação da missa, na vila da Praia, o fez publicar excomungado, e na quarta-feira seguinte o mandou pôr de participante por um sacerdote na cidade, indo este à porta do corregedor, com testemunhas, ler-lhe em voz alta a carta que levava, para que não desse ajuda e favor ao dito João Cardoso, e o mesmo fez publicar pelas ruas da cidade e Praia, nomeando o corregedor em alto e bom som; do que toda a cidade e ilha muito se escandalizou de tanto devassar a jurisdição real; e por lhe tirar o remédio da justiça, mandou na mesma carta que os procuradores e escrivães do dito juiz lhe não dessem favor algum, até que ele descobrisse tais segredos.

O mesmo fez no tabelião Gaspar Coelho, para que lhe descobrisse outro segredo; outro tanto a Luiz Mourato, escrivão da correição de forma que andavam todos, juízes e justiças e escrivães, atemorizados e espantados, e não podiam servir seus ofícios. O que vendo as Câmaras, foram ao Bispo pedindo-lhe que não tomasse a jurisdição real; mas ele não quis deixar de a tomar e devassar.

Neste estado de coisas não teve o corregedor outro remédio senão fazer intimar[31] o Bispo, pedindo-lhe a sua resposta, se a quisesse dar, para o juízo dos feitos da coroa, onde se daria provisão no caso, e seriam os ministros e oficiais de justiça conservados em suas liberdades. Foi então a casa do Bispo o tabelião referido, Sebastião Rodrigues[32], dar-lhe vista do agravo; porém ele insistiu[33] que tinha seu ouvidor e oficiais, que a eles se fizesse a intimação, porque já o corregedor se devia enfadar de tantos requerimentos e papeladas, e ele Bispo não dava licença que isto lhe fosse entregue na sua mão.

Então o corregedor, ajuntando a fé daquele tabelião e de seu colega Lourenço de Morais, com vários autos apensos de pessoas leigas, a quem o Bispo fizera violências, os autos da prisão de Margarida Álvares, procedimentos e excomunhões sobre ela feitas (corria também este pleito, de que falaremos), tudo remeteu ao juízo da coroa, no qual ajuntando-se procuração e documentos por uma e outra parte, houve a seguinte resolução: — Acordei &c. — Vistos os autos que o suplicante tirou de vós Bispo de Angra, pelos quais se mostra que, sendo ele leigo e da minha jurisdição, vós Bispo o queríeis obrigar e aos oficiais de ante ele, vos mostrassem os autos que por meu mandado fizeram com a abadessa e freiras do mosteiro de Jesus, e vos descubram o segredo deles, pondo-lhes penas de dinheiro, e procedendo contra eles com censuras e excomunhões, perturbando nisso a jurisdição secular: o que tudo visto e o mais dos autos, mandei que se passasse carta, por que vos rogo e encomendo, não queirais compelir ao dito corregedor suplicante e mais oficiais, para que vos mostrem os autos e segredos de justiça, e levanteis vossos procedimentos e censuras, e não o querendo vós Bispo fazer, o que de vós se não espera, mando às justiças seculares não obedeçam a vós dito Bispo nesta parte, nem cumpram vossas censuras e excomunhões: a 6 de Agosto de oitenta.

Se mui graves eram estes conflitos de jurisdição entre o Bispo e o corregedor, muito mais funestas e agravantes foram as desavenças que entre eles houveram por causa da prisão de uma Margarida Álvares, mulher leiga e solteira, a qual livrando-se das culpas de uma devassa de alcouce, alcoviteiras, amancebadas, feiticeiras e outros casos, que por provisão especial tirou o corregedor Diogo Álvares Cardoso, porque ela quebrara as residências da carta de seguro, a mandou o corregedor dito Figueiredo prender, e depois de presa a quiseram tirar das mãos da justiça os oficiais do Bispo; e não obstante haver o vigário geral e o mesmo corregedor assentado que o caso daquela prisão estava previsto no juízo secular dele corregedor, e que acabada de livrar-se das culpas que tivesse, ficaria embargada a ré na prisão para se livrar de novas culpas no juízo eclesiástico, o Bispo condenou ao corregedor em mil cruzados para a Santa Sé Apostólica, e o houve por excomungado, e aos seus oficiais Francisco da Mota, Braz Nogueira e Álvaro Pires, condenando a cada um em 200 cruzados; e requerendo-lhe por muitas vezes lhes mandasse levantar a excomunhão, que fizera publicar nos púlpitos das igrejas da cidade e mosteiros de freiras, jamais o quis fazer ainda que lhe puseram diante o estado da terra e do Reino, e peso das coisas necessárias ao bem comum da terra, e as mais do serviço real que lhe estavam encarregadas, e suspensas pelas ditas excomunhões, e corria muito risco o bem comum e administração da justiça.

E porque este notável feito encerra circunstâncias muito particulares, que assaz depõe da sua gravidade, e deles resultaram grandes danos, ausentando-se desta ilha o Bispo com o temor de ser preso e processado, como se mandou fazer aos seus oficiais; julguei a propósito copiar a própria sentença da qual melhor se poderá colher quanto sumariamente fica dito (veja-se o Documento D**).

Deu-se neste ano de 1579 em Angra princípio à fundação do convento da Graça. Digamos o que a este respeito havemos alcançado. Conforme o Padre Cordeiro no Livro 6.º, capítulo 13, referindo-se ao Dr. Frutuoso, pelos anos de 1570 veio de Portugal à ilha Terceira um mancebo chamado António Varejão, natural de Freixo de Espada à Cinta[34], que por ser de bom engenho se voltou a estudar em Salamanca; e metendo-se religioso em um mosteiro de Santo Agostinho na Província de Castela, acabando os estudos voltou à Terceira, onde pregou muito bem e com muito fruto. Passando às Índias de Castela, assim de suas missas e pregações, como de restituições a ele entregues, para delas fazer aplicação a obras pias, ajuntou muita riqueza, e com ela terceira vez voltou a esta ilha. Então, conseguiu breve pontifício para se desanexar da província a que pertencia e incorporar-se na de Portugal. Em consequência do que comprou várias rendas a trigo[35] e a dinheiro, e começou um hospital no lugar que até ao nosso tempo foi mosteiro das freiras da Conceição, e hoje (notável coincidência) serve de hospital da cidade. Estando porém a casa feita, mudou Frei António Varejão de intento, e doando parte dos moios à Misericórdia de Angra, da outra e do sítio fez doação ao seu provincial, para fundar o convento dos Gracianos. No ano de 1579 foram mandados à Terceira três religiosos: Frei Pedro da Graça, pregador; Frei Domingos, corista; e o leigo Frei Pedro da Ressurreição. E no ano de 1584 se fundou o convento e igreja, sendo o primeiro prior Frei Pedro, natural da ilha de S. Miguel, neto do Dr. Francisco Toscano.

Fez grandes serviços o dito Mestre Frei António Varejão na entrada do exército espanhol, como em seu lugar veremos. O Padre Maldonado conta dele, que sendo mancebo de pouca idade, e já com sinais de seu grande talento e virtudes eminentes, em que ao depois floresceu, caíra da rocha do Peneireiro[36], que é a mais alta e medonha da ilha; e que não obstante, ficara o mancebo são e salvo; havendo-se entendido piamente que o braço de Deus o protegera e reservara para coisas mui grandes, em que tanto se desenvolveu e perseverou; porque além de missionar na Índia por espaço de 12 anos, com grande proveito das almas que reduziu à fé de Cristo, ainda veio para a Terceira fundar um hospital, que amplamente doou, e um convento, donde saíram varões mui ilustrados em ciência e virtudes em tanto que, conforme o citado Padre Cordeiro, indo a este convento da Graça o pio povo de Angra, dizia: — Vamos a Roma.

Na vila da Praia procedia-se à fortificação da baía, e no dia 23 de Maio mandou o corregedor à Câmara melhorasse o baluarte que estava junto do mosteiro da Luz, defronte de cujo sítio está hoje a casa de alfândega; e o mesmo corregedor obrigava os vereadores para que ultimassem a factura da cadeia nova[37], segundo a determinação do corregedor Fernão de Pina Marecos[38]; porém deste capítulo em correição agravou a Câmara, com o fundamento de pertencer esta obra ao donatário daquela capitania, e assim o obteve no recurso. Em outra ocasião julgou-se a favor do capitão de Angra, que os donatários e senhores das terras só eram obrigados à factura das cadeias e paços do concelho, até chegarem as paredes aos sobrados, e que dali para cima pertencia a obra aos concelhos.

Ano de 1580[editar]

Para darmos princípio à narração dos acontecimentos, que tiveram lugar nesta ilha pela introdução do governo espanhol, julgamos conveniente dar ao leitor uma ideia do estado das coisas em Portugal e seus domínios, durante os últimos tempos do Cardeal Rei; o que faremos o mais abreviado possível.

A maior parte do tempo que decorreu no governo do Cardeal Rei D. Henrique, depois da morte de seu sobrinho D. Sebastião, foi levada em desgosto, não só pela inadvertida exclusão que ele fez de seus ministros, senão ainda pelo enfado que teve em responder à proposta dos três estados do Reino, a fim de que ele nomeasse sucessor à coroa, visto a sua incapacidade e negação para casar.

Já neste tempo El-Rei Filipe de Castela, concluídas em S. Jorge de Madrid pomposas exéquias pelo defunto Rei D. Sebastião, havia passado a Marrocos, confirmado os tratados com El-Rei de Fez, e por esta forma estabelecido um império inconcusso, pois que, considerando-se com direito à coroa de Portugal, a fazia disputar, ainda em preferência ao mesmo Cardeal Rei; e por consequência não perdia ocasião de lhe declarar o seu intento pelo conde de Ossuna, por D. Cristóvão de Moura e pelo licenciado Gardiola, validos de sua corte.

Não faziam menos da sua parte os mais pretendentes da coroa, a saber: o Duque de Bragança; o Duque de Sabóia; o Príncipe de Parma; e D. António, Prior do Crato, que, sem embargo de ser filho ilegítimo do Infante D. Luiz, contava um grande partido com o favor e protecção da Rainha de França.

Por esta forma baldadas eram as tentativas do referido conde de Ossuna, para inculcar e persuadir o direito de El-Rei seu amo; razão por que ele se apercebeu de entrar em Portugal com mão armada; e D. António, discorrendo pelo reino, solicitava engrossar o seu partido, averbando de suspeito a El-Rei seu tio D. Henrique, e requerendo ao Papa avocasse o breve da legitimação. Mas estes recursos de D. António, que não deixaram de agradar ao Santo Padre de Roma, não fizeram mais do que ferir de ressentimento a El-Rei, que por sentença final o excluiu da sucessão[39], privando-o, além disto, de suas jurisdições, preeminências e mercês que tinha da coroa, e a todos os que o seguissem, ordenando-lhe terminantemente que saísse do Reino; e ainda passou ordem a D. Duarte de Castelo Branco que o prendesse.

No entretanto o mesmo Rei, acometido de um acidente ocasionado pelos trabalhos do espírito, deu indícios de morte próxima; e os seus ministros correram à igreja principal a extrair da arca os nomes dos cinco governadores[40], como El-Rei havia providenciado para regerem em sua falta.

Com este movimento preparatório não faltaram cartas anónimas, pasquins, e outros entretenimentos do povo, exaltando a força dos partidos, e fazendo disputar o negócio em todo o Reino e seus domínios. Ultimamente, convocadas as cortes em Almeirim, e havendo o velho Rei hesitado entre a Duquesa de Bragança, D. Catarina, e El-Rei de Espanha, ia já inclinando-se a este, sem deixar às cortes lugar para decidirem; porém, no meio desta confusão, a sua saúde piorou, e a Duquesa se lhe apresentava instando-o para que a declarasse sucessora imediata à coroa, e isto com tais modos, e falando-lhe em termos tão decisivos, que o bom velho, opresso pelas instâncias dela, pela força da doença e pelo peso dos anos, acabou a vida em 31 de Janeiro deste ano de 1580.

O Duque de Alva estava disposto a entrar com um exército em Portugal, mas os governadores do Reino, por louvável espírito de independência e honra nacional, mandaram que os religiosos e párocos, nos púlpitos o confessionários, animassem o povo à defesa; desta maneira tomou o estado eclesiástico uma parte activa na nobre resolução dos portugueses que se votaram a repelir o domínio estranho, assim no Reino como nos seus domínios, principalmente nesta ilha Terceira, onde tiveram lugar notáveis feitos, tão funestos aos soldados do usurpador, como gloriosos para os habitadores da mesma ilha.

FIM DA TERCEIRA ÉPOCA

Notas[editar]

  1. O cargo de alferes mor da bandeira das vilas e cidades era naqueles tempos confiado às pessoas principais da república, como atestam muitos documentos; e na falta de tais pessoas era o juiz mais velho obrigado a levar o estandarte, por lhe competirem os selos da chancelaria. O primeiro que alcancei, e julgo que único nesta vila, foi o nobre Henrique Fernandes Fróis, a quem se assinou ordenado pelos bens de concelho. Em Angra acho ser neste cargo no ano de 1567 o fidalgo Valeio Matela, com provisão régia em 6 de Marco: e por sua morte sucedeu e filho António Matela, a pedido de D. Duarte, tio de El-Rei, como se vê da provisão de 11 de Maio de 1573, e com ordenado de 12$000 réis anuais, e os emolumentos da chancelaria no juízo ordinário; porém há muitos anos que este cargo cessou de ser ocupado pelos nobres, e julgo que sem razão suficiente, depois de muitos debates a todos os concelhos desta ilha.
  2. A seu mandado fez a Câmara de S. Sebastião uma postura para que todos os lavradores que cultivassem 30 alqueires de terra, semeassem uma quarta de terra de favas, com pena de 4$000 réis.
  3. Na contenda da sucessão de Portugal — diz o Padre Cordeiro — com Castela foi procurador de ambas as coroas, vereador perpétuo, e conservador da moeda, e chanceler, e provedor mor da saúde no tempo da peste, e, sem morrer dela, foi morto à traição por um mancebo em Lisboa, por não seguir o partido do senhor D. António. Foi casado com Mór de Faria, filha de Sebastião Lopes Guedes, Senhor de Arzila em África.
  4. Por algumas disposições testamentárias, pelos anos de 1536, acho haver nesta vila casa de Misericórdia; ainda mais tarde obteve os privilégios, como em seu lugar diremos.
  5. [Nota do editor: Corsário huguenote que operava a partir de La Rochelle contra as frotas dos Reinos católicos. Celebrizou-se pelo saque da ilha de La Gomera, nas Canárias, e pelo assassínio de um grupo de Jesuítas portuguesas que seguiam a caminho do Brasil.
  6. [Nota do editor:Nicolas de La Clède, Historia geral de Portugal por Mr. de la Clede; Traduzida em vulgar, e illustrada com muitas notas historicas, geograficas, e criticas; e com algumas dissertações singulares, 16 volumes, Typografia Rollandiana, Lisboa, 1782-1797.
  7. Este corregedor, assim como os seus antecessores, servia de presidente nas obras da fortificação.
  8. Desta ordem se conhece que El-Rei só era obrigado a fazer as capelas-mores e não os corpos das igrejas.
  9. Tem-se achado grossas pedras de mó, que serviam aos engenhos de moer esta planta, principalmente no Arrabalde da referida vila, onde se estabeleceram os primeiros povoadores.
  10. Não acho fundamento para acreditar a afirmação do Doutor Frutuoso, de que por estes anos tivesse esta vila 500 vizinhos, pois actualmente há em todo o concelho, composto de três freguesias, perto de 700 vizinhos.
  11. Este prédio é possuído por José Maria do Amaral, e por ele passa a corrente de água que vai ter à vila de S. Sebastião.
  12. Vit selon la nature; soyer patient, et chasse les médecins: tu n’éviteras pas la mort, mais tu ne la sentiras que une fois, tandis qu’ils la portent chaque jour dans ton imagination troublé, et que leur art mensonger, au lieu de prolonger tes jours, t’en ôte la jouissance. Je demanderai toujours quel vrai bien cet art a fait aux homes.
  13. Na Agualva, subúrbio da freguesia de Vila Nova, habitaram ricos proprietários, como foram Heitor Álvares Homem, Vasco de Borba, Fernão Coelho, João Correia e outros muitos, pelos anos de 1516, como sobejamente atestam os volumosos inventários no cartório dos órfãos da Praia. A 16 de Dezembro do ano de 1520, o dito João Correia, o Velho, e sua mulher Catarina Simoa, fizeram testamento, aprovado na vila de S. Sebastião pelo tabelião Pedro de Almada, e nele, entre muitas coisas curiosas, dizem haver dado a seu filho Pedro Correia, em dote de casamento, 15 quintais de pastel; e que pagaram de dízimo dez quintais de mesma planta, com o que se confirma o que temos dito a respeito da sua antiguidade nesta ilha (veja-se a Primeira Época, Capítulo V, a nota 9). No ano de 1524 seu filho Frei Filipe Correia, vigário e ouvidor na Praia, deu inventário da fazenda dos finados seus pais, e requereu ao juiz das partilhas, que na casa e pomar viesse a cada um dos herdeiros três árvores de espinho, que eram laranjeiras e limoeiros; do que se manifesta estar a cultura destas excelentes plantas em princípio, e o grau de estima que delas se fazia.
  14. António de Herrera, Chrónica General del Mundo, Livro 7, capítulo 1.º.
  15. Não acho memória deste recrutamento, porém consta de alguns apontados genealógicos que a esta guerra foram muitas pessoas destas ilhas.
  16. Porque o escrivão da Câmara não tinha público e raso sinal.
  17. Foi derrogado este artigo por alvará de 7 de Janeiro de 1511.
  18. Alvará de 20 de Maio de 1577 (3.º Livro do Registo, a fl. 147).
  19. Ontem, diz o auto escrito em Câmara; porém o capitão referido faleceu a 9 de Julho, como se lê no respectivo assento do seu óbito, o qual está no arquivo da Matriz.
  20. Livro dos Acórdãos da Câmara da Praia, a fl. 27.
  21. Ajustou-se com o pedreiro Bastião Fernandes a factura da escadaria para a Rua da Misericórdia.
  22. A sua biografia, escrita pelo Padre Maldonado, é um completo elogio de um herói, pelo muito que João da Silva do Canto engrandeceu o estado eclesiástico, e procurou os melhoramentos da sua pátria. Faleceu em idade de 69 anos, 8 meses e 21 dias.
  23. Foi avaliada a fazenda de El-Rei na mesma capitania em 25:170$000 réis (dito Livro, fl. 11), e por isso se lhe tiraram 251$000 réis. Foi também avaliada a fazenda de capitão em 10:130$000 réis, e fintada em 113$000 réis; a fazenda de Pedro Anes do Canto em 4:500$000 réis; a de João Homem de Guadalupe em 6:000$000 réis; a de Heitor Homem da Costa em 4000$000 réis; a de D. Beatriz, mulher de Pedra Homem, em 1:000$000 réis; em essa quantia foram avaliadas as fazendas de Manuel de Badilho, de Catarina de Ornelas, de Maria Dias Vieira, viúva de Sebastião Martins do Canto; e todas as mais pessoas desta capitania não tinham fundos excedentes aos 900$000 réis.
  24. O Padre Cordeiro queixa-se da incúria dos antigos, em não transmitirem a notícia da fundação deste mosteiro; porém vemos que no mencionado ano de 1562 já este mosteiro existia. Era da regular observância de Santa Clara, mas da obediência seráfica. Houve sempre nele grande número de religiosas exemplares em virtude. Hoje, em virtude do decreto de supressão dos conventos, se acham nos dormitórios e igreja do referido mosteiro, edificadas excelentes casas, e existe na respectiva cerca a linda Praça Duque de Bragança.
  25. Consta pela livros de alfândega desta cidade, serem nove os provedores da fazenda até à entrada do governo espanhol, a saber: o licenciado Francisco Toscano, que serviu no ano de 1536; Gaspar de Freitas da Maia, pelos anos de 1540; o doutor Afonso Figueira, provedor, e sindicante primeiro, no ano de 1558; Fernando de Mesquita, que veio no ano de 1551, Fernão Cabral, no ano de 1565; João da Silva do Canto, provido em 1567; Duarte Borges, em 1571; Sebastião Coelho, provido em 11 de Junho de 1574; e Garcia Lobo, de quem tratámos, provido no ano de 1579.
  26. O primeiro corregedor trienal, que acho houvera nesta comarca, foi Diogo Álvares Cardoso, provido por El-Rei D. Sebastião em 9 de Maio de 1571, como consta da respectiva provisão, a fl. 146, verso do Livro de Tombo da Câmara de Angra. Até ali não tiveram os corregedores tempo atermado para servirem, e todos eles fizeram correição nas ilhas de S. Miguel e Santa Maria depois da provisão, que, como dissemos no ano de 1543, se deu a Gaspar Touro, na pessoa do quem parece se tornou a unir a correição de todas as ilhas dos Açores. Contudo o Mestre Frei Diogo das Chagas, referindo-se ao Livro do Registo da Câmara da Ribeira Grande (fl. 158), remonta a reunião destas correcções ao ano de 1554, no qual diz que El-Rei D. João III mandara houvesse nas ilhas um só corregedor, como lhe representara Manuel da Câmara.
  27. Crónica de Cardeal Rei, por Miguel de Moura, capítulo XVII.
  28. Acha-se o auto a fl. 317 do 1.º Livro do Registo da Câmara de Angra. Na Câmara de S. Sebastião falta o Livro dos Acórdãos desde o ano de 1579 até 1584; talvez desapareceria com o saco dos pelouros.
  29. As sentenças sobre a jurisdição do Bispo, acham-se registadas no Livro do Tombo da Câmara da Praia, desde fl. 49 até fl. 60.
  30. Esta carta é datada de 16 de Dezembro de 1579.
  31. Foi a intimação feita em 22 de Março de 1580.
  32. Este tabelião servia em Angra, e já neste tempo era falecido outro do mesmo nome, que sempre exerceu um tal ofício na vila de S. Sebastião.
  33. Trouxe a resposta seu irmão, o Padre Frei Jorge, seu director.
  34. Por um extracto das escrituras de renunciação de bens que fez este padre até ao ano de 1597, que me confiou o ex-prior Frei Luiz Mascarenhas, se conhece a veracidade com que estes autores escreveram nesta matéria.
  35. Consta da escritura última de renunciação no referido ano de 1597, que ele possuía o convento que havia fundado, no valor de 3 mil cruzados — 17 moios de trigo a retro, no valor de 1800 cruzados — foros a retro, no valor de 250 cruzados — foros fixos 520 cruzados — o seu enxoval em 200 cruzados — um escravo em 200 cruzados — e em dinheiro para obras do convento 300 cruzados. Impôs de legado nestes bens uma capela de missas do Santíssimo Sacramento e uma missa de Nossa Senhora aos sábados, três ofícios cantados com suas vésperas e missa em certos dias do ano.
  36. O Padre Maldonado atribui esta queda à influência do demónio, invejoso das boas qualidades do dito religioso.
  37. Livro dos Acórdãos, fl. 126.
  38. A antiga cadeia era na parte que fica sobre as barrocas, e menos conveniente por ficar mui perto do mar, e voltada ao norte.
  39. Lê-se esta sentença de El-Rei D. Henrique, escrita por seu secretário Miguel de Moura, no capítulo 49.º da Crónica do Cardeal Rei.
  40. Foram nomeados para governadores do Reino durante o interregno, D. Jorge de Almeida, Arcebispo de Lisboa, D. Francisco de Sada, primeiro gentil-homem da câmara, D. João Teles, D. João Mascarenhas, e D. Diogo Lopes de Sousa, presidente da Relação de Lisboa.