Anexo:Imprimir/Noturnas
Índice
[editar]- Aviso
- A Minha Mãe
- Névoas
- Vida de flor
- Arquétipo
- O foragido
- Fragmentos
- A mulher
- Sobre um túmulo
- Tristeza
- A enchente
- À estátua eqüestre
Nas horas tardias que a noite desmaia,
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,
Eu vi entre os flocos de névoas imensas
Que em grutas extensas se elevam no ar,
— Um corpo de fada, — serena dormindo,
Tranqüila sorrindo num brando sonhar.
Na forma de neve — puríssima e nua —
Um raio da lua de manso batia,
Assim reclinada no túrbido leito
Seu pálido peito de amores tremia.
Oh! filha das névoas! das veigas viçosas,
Das verdes, — cheirosas roseiras do céu,
Acaso rolaste tão bela dormindo,
E dormes sorrindo, das nuvens no véu?
O orvalho das noites congela-te a fronte,
As orlas do monte se escondem nas brumas,
E queda repousas num mar de neblina,
Qual pérola fina no leito de espumas!
Nas nuas espáduas, dos astros dormentes,
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar?
E as asas
de prata do gênio das noites,
Em tíbios açoites a trança agitar?
Ai! vem que nas nuvens te mata o desejo
De um férvido beijo gozares em vão!...
Os — astros sem alma — se cansam de olhar-te,
Não podem amar-te, nem dizem paixão!
E as auras passavam, — e as névoas tremiam, —
— E os gênios corriam — no espaço a cantar,
Mas ela dormia tão pura e divina
Qual pálida ondina nas águas do mar!
Imagem formosa das nuvens da Ilíria,
— Brilhante Valquíria — das brumas do norte,
Não ouves ao menos do bardo os clamores,
Envolta em vapores, — mais fria que a morte!
Oh! vem! vem, minh'alma! teu rosto gelado,
Teu seio molhado de orvalho brilhante,
Eu quero aquecê-los no peito incendido,
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!...
Assim eu clamava tristonho e pendido,
Ouvindo o gemido da onda na praia,
Na hora em que fogem as névoas sombrias,
— Nas horas tardias que a noite desmaia. —
E as brisas d'aurora ligeiras corriam,
No leito batiam da fada divina;
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!
Santos — 1861.
Porque vergas-me a fronte sobre a terra?
— Diz a flor da colina ao manso vento —
Se apenas das manhãs o doce orvalho
Hei gozado um momento!
Tímida ainda, nas folhagens verdes
Abro a corola à quietação das noites,
Ergo-me bela, me rebaixas triste
Com teus feros açoites!
Oh! deixa-me crescer, lançar perfumes,
Vicejar das estrelas à magia,
Que minha vida pálida se encerra
No espaço de um só dia!
Mas o vento agitava sem piedade
A fronte virgem da cheirosa flor,
Que pouco a pouco se tingia, triste,
De mórbido palor.
Não vês, oh brisa? lacerada, — murcha
Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,
E em breve tempo esfolharei já morta
— Sem chegar ao verão?
Oh tem pena de mim! deixa-me ao menos
Desfrutar um momento de prazer,
Pois que é meu fado despontar n'aurora
E ao crepúsc'lo morrer!...
Brutal amante não lhe ouviu as queixas,
Nem às suas dores atenção prestou,
E a flor mimosa retraindo as pétalas
Na tige se inclinou.
Surgiu n'aurora, não chegou à tarde,
Teve um momento de existência só;
A noite veio, — procurou por ela,
Mas a encontrou no pó.
Ouviste, oh virgem, a legenda triste
Da flor do outeiro e seu funesto fim,
— Irmã das flores, à mulher às vezes —
Também sucede assim.
S. Paulo — 1861.
Ele era belo; na espaçosa fronte
O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio; em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.
Sim, era uma criança, e no entanto
Friez de morte lhe coava n'alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados, nem um raio
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!
Era-lhe a vida uma comédia insípida,
Estúpida e sem graça, — ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio olhando as vagas,
— Vivia por viver.... porque vivia.
Em nada acreditava; há muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d'alma
Como das botas a poeira incômoda.
O Evangelho era um livro de anedotas,
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A Poesia provocava o sono.
Muita donzela suspirou por ele,
Muita beleza lhe dormiu nos braços,
Mas frio como o gênio da descrença,
Após um'hora de gozar maldito,
Saciado as deixou, como o conviva,
A mesa do festim, — farto e cansado. —
Era mais caprichoso, — mais bizarro
Do que um filho de Álbion, mais volúvel
Que um profundo político; uma tarde
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro; pelo Papa!
— É preciso tentar, disse consigo.
Quatro dias depois tinha casado.
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês — um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.
Como tudo na vida, o matrimônio
Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse Adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos
Dirigiu-se ao teatro onde assistiu
Um drama de Feuillet, — quase dormindo. —
Por fim de contas, uma noite bela,
Depois de ter ceado entre dous padres,
Em casa de morena Cidalisa,
Pegou numa pistola e entre as fumaças
De saboroso — Havana — à eternidade
Foi ver si divertia-se um momento.
São Paulo — 1861.
(CANÇÃO)
Minha casa é deserta; na frente
Brotam plantas bravias do chão,
Nas paredes limosas — o cardo —
Ergue a fronte silente ao tufão.
Minha casa é deserta. O que é feito
Desses templos benditos d'outrora,
Quando em torno cresciam roseiras,
Onde as auras brincavam n'aurora?
Hoje a tribo das aves errantes
Dos telhados se acampa no vão,
A lagarta percorre as muralhas,
Canta o grilo pousado ao fogão.
Das janelas no canto, as aranhas
Leves tremem nos fios dourados,
As avencas pululam viçosas
Na umidade dos muros gretados.
Tudo é tredo, meus Deus! o que é feito
Dessas eras de paz que lá vão,
Quando junto do fogo eu ouvia
As legendas sem fim do serão?
No curral esbanjado, entre espinhos,
Já não bala ansioso o cordeiro,
— Nem desperta-se ao toque do sino —
— Nem ao canto do galo ao poleiro. —
Junto à cruz que se eleva na estrada
Seco e triste se embala o chorão,
Não há mais o esfumar das acácias,
Nem do crente a — sentida oração.
Não há mais uma voz nestes ermos,
Um gorjeio das aves no val,
Só a fúria do vento retroa
Alta noite agitando o ervaçal!
Ruge, oh vento gelado do norte,
Torce as plantas que brotam do chão,
Nunca mais eu terei as venturas
Desses tempos de paz que lá vão!
Nunca mais desses dias passados
Uma luz surgirá dentre as brumas!
As montanhas se embuçam nas trevas,
As torrentes se vendam de espumas !
Corre pois vendaval das tormentas,
Hoje é tua esta morna soidão!
Nada tenho, que um céu lutulento
E uma cama de espinhos no chão!
Ruge, voa, que importa! sacode
Em lufadas as crinas da serra,
Alma nua de crença e esperanças
Nada tenho a perder sobre a terra!
Vem, meu pobre e fiel companheiro,
Vamos, vamos depressa, meu cão,
Quero ao longo perder-me das selvas
Onde passa rugindo o tufão!
Cantareira — 1861.
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Por ela me despi dos áureos sonhos
Que a flor da mocidade abrilhantavam;
Por ela reneguei meu Deus e crenças,
Por ela abandonei meus pátrios lares,
E nas fráguas do amor e da saudade
Vi minha vida desfazer-se em fumo!
Como o perfume que transpira à noite
Da margem da lagoa — a flor mimosa —
Vai deleitar o viajor que a névoa
Desorienta da campina extensa,
Vinham amenizar — lembranças dela
A sombria tristeza de minh'alma!
De plaga em plaga como o hebreu maldito
Refugiei-me em vão, buscando d'alma
Expulsar o pesar que me roía!
Mendiguei um alívio ao céu de Itália;
Aos cantos do barqueiro errei à noite
— Nas ondas perfumadas de Sorrento; —
Adormeci na encosta do Vesúvio,
E visitei as lúcidas paragens
Onde Laura e Petrarca suspiraram.
Mas era embalde!... nem o céu brilhante,
Nem o meigo sorriso, — o olhar de fogo
Da bela Italiana, nem os cantos,
Nem os festins ruidosos de Veneza,
Sanar puderam de meu seio a mágoa,
E a dor pungente que ia fundo n'alma!
A loira Grécia dirigi meus passos,
Adormeci à sombra dessas ruínas
Onde envolto em seu manto de descrença
Lorde Byron vagou. Abri meu peito
Às vozes divinais de antigas eras,
E no sopro das brisas que passavam
Ouvi o coro de — milhões de deuses —
Que das balsas floridas levantavam-se
À minha invocação; de Tempe ao vale
Fui aos ecos pedir — os doces cantos —
Que ali ditosa repetira Safo
Nos braços de Faon; e no entanto
Em vão minh'alma se engolfar buscava
No livro do passado, — em vão meus lábios
Murmuravam canções de seus poetas!
O pesar me seguia — mudo, — frio —
Horrível como um plúmbeo pesadelo!
Deixei a Grécia. Às regiões ardentes
Onde nuvens de areia o ar percorrem
— No sólio do zenite — o sol nublando,
Onde lenta caminha a caravana
Abrasada de sede e de cansaço,
— Fugindo o tédio de uma vida eivada,
Como — Harold ou René — lancei-me triste
Cercada a fronte de trevosas nuvens.
Descansei sob as tendas do deserto,
Matei a sede de meu peito em fogo
— Nas águas lamacentas das cisternas,
E após deixando os areais sem termos
Embrenhei-me nas selvas seculares
Lá onde à sombra de soberbos cedros
Dormia a solidão seu sono imenso!
— Mas as canções dos árabes errantes, —
Os urros do simoun, — o murmúrio
Da folhagem da selva, — o mundo todo —
Desse vasto poema do deserto —
Falavam-me de dor e de amarguras,
Negra saudade me acordavam n'alma!
Vaguei nos mares à tormenta exposto,
Vi diante de meus pés — o oceano e a morte, —
E meu frágil baixel arrebatado
— Ora no dorso de espumosas vagas —
Ir doudejando topetar nas nuvens,
— Ora no abismo se afundar gemendo! —
Abrindo as asas negras sobre os mares
Corria o furacão rugindo em fúrias
Como o anjo da morte! No infinito
— A orquestra da tormenta — ribombava
Horrível e sublime! O céu rugia,
As serpentes de fogo se enroscavam
No espaço abraseado, — as ardentias
Referviam no abismo escancarado
Como os lumes que em breve me esperavam
Na tumba imensa de revoltas águas!
E enquanto os mastros a estalar caíam
Ao roçar da tormenta, enquanto os nautas
Prostrados no convés — a Deus clamavam
Ante a agonia — a tempestade — e a morte,
Pedindo às vagas, olvidando tudo,
O nome dela eu murmurava em prantos.
Dos abismos à flor, como Manfredo,
Os gênios invoquei — vertiginoso —
P'ra que lançassem de minh'alma aos ermos
— De mim mesmo, um profundo esquecimento.
Pedi a Deus — um existir de bruto, —
Matéria impura sem pensar nem dores.
Mas nem um gozo iluminou-me a vida,
Nem uma fonte límpida e serena
Rebentou — pelo Sáara — de minh'alma!
Errei nessas paragens encantadas
Onde à sombra de um bosque de palmeiras
Regatos correm de serenas águas:
Ouvi ave sonora se embalando,
A morredoura luz de amenas tardes
Lançar gorjeios de saudade infinda;
céu de azul me iluminava a fronte
Com torrentes de luz, as flores todas
Me incensavam de aromas suavíssimos.
Mas — o riso da flor — o som das brisas —
A criação pejada de perfumes
Contando aos astros em linguagem doce
Suas legendas de amores e sorrisos,
Não podiam sequer matar-me n'alma
O negro viso de uma dor sem termos!
De deserto em deserto se acampando
Os pastores da Arábia a vida passam;
Como eles vagabundo, — eivado o seio,
De dor em dor com vagarosos passos
Atravesso os desertos da existência!
Cansado de lutar sobre esta vida,
Senti um dia esmorecer no crânio
A centelha da crença e da esperança.
Por altas noites, na mansão dos mortos
Quando a terra dormia, mergulhado
Em negro pesadelo, errei sombrio
Os mistérios da campa interrogando.
Haverá outra vida?... Após a morte
Irei eu habitar um novo mundo
Onde não sinta os desprazeres deste?
Eu filho da matéria e escravo dela
Serei em breve reduzido a lodo,
Após haver tragado em brônzea taça
Tanto fel e absinto?.. assim clamava
Colando sobre a terra dos sepulcros
Minha fronte incendida pela febre.
Mas lá de longe, — lá do céu quem sabe,
Vinha urna voz ungida de saudades,
A harmonia da fé lançar-me n'alma,
E a flor das esperanças — moribunda —
Alimentar com tímidas promessas!
Era ela! ela sempre! à noite, — ao dia —
No sono — ou na vigília!... amiga sombra,
Incessante visão da felicidade,
Presente sempre a meus cansados olhos
Na penosa jornada deste mundo!
Anjo de meu amor! — filha de Deus!
Porque me inflinges o cruel suplício
De ver-te sempre, — de abraçar-te nunca!
Ligeiras nebulosas que habitais
Sobre os mares de éter, — róseas nuvens, —
Fúlgida estrela que à manhã nascendo,
Desperta o viandante nas estradas,
Astros gigantes, — espantosos mundos
Que girais no infinito!.... oh em vós todos
Eu parecia vê-la! — ora divina
Num oceano de névoas flutuando,
— Ora adejando na região das luzes, —
Ora no espaço que a razão apenas
Só pode conceber!... em meu caminho
Ela se erguia sempre; nos meus sonhos
Ela passava pensativa, — meiga
Como um gênio de Óssian; nos meus versos
Seu doce nome ressoava sempre!
Debalde procurei riscar da mente
Essa imagem divina, — parecia
Que o destino a ligava à minha vida!
Todas as taças de um viver sem gozo
Traguei descrido. De minh'alma as flores
No lodo mergulhei, e inda tão cedo
Me perdi em profundos desvarios!
Fui no recinto em que circula o vício,
Ao clarão da candeia fumarenta,
Pender à negra mesa — empalecido —
Gastando as noites no fervor do jogo!
Tonto de vinho, — desvairado em febre, —
Elevei minha taça transbordando
Entre blasfemias e obscenos cantos!
E nos gritos da orgia, — e no delírio —
Uma voz sonorosa me acordava
Do longo pesadelo de minh'alma,
— E eu soluçava me lembrando dela!
Coberto de tristeza e de saudades,
Quebrei a ausencia, atravessei os mares,
Vim a vida buscar ante seus olhos.
Após tão longo exílio, ardendo em gozo,
O coração pulsando de alegria,
Aos lares dela dirigi meus passos.
Mas silencio!... um véu negro, impenetrável,
Cubra esse quadro que meus olhos viram;
Durma na sombra de um olvido eterno
Esse mistério fúnebre, banhado
De lágrimas de sangue! E tu, minh'alma,
E tu, pobre infeliz, manchada — fria —
Abafa no teu seio essas lembranças,
Nem um sonho sequer desse passado
Venha turbar teu pesadelo imenso!
Rio Claro — 1861.
(A C.....)
A mulher sem amor é como o inverno,
Como a luz das antélias no deserto,
Como o espinheiro de isoladas fragas,
Como das ondas o caminho incerto.
A mulher sem amor é — Mancenilha —
Das Armas plagas sobre o chão crescida,
Basta-lhe à sombra repousar um'hora,
Que seu veneno nos corrompe a vida.
De eivado seio no profundo abismo,
Paixões repousam num sudário eterno;
Não há canto nem flor, — não há perfumes,
A mulher sem amor como o inverno.
Su'alma é um alaúde desmontado
Onde embalde o cantor procura um hino;
— Flor sem aromas, — sensitiva morta, —
— Batel nas ondas a vagar sem tino.
Mas se um raio do sol tremendo deixa
Do céu nublado a condensada treva,
A mulher amorosa é mais que um anjo,
— É um sopro de Deus que tudo eleva!
Como o árabe ardente e sequioso
Que a tenda deixa pela noite escura,
E vai no seio de orvalhado lírio
Lamber a medo a divinal frescura:
O poeta a venera no silencio,
Bebe o pranto celeste que ela chora,
Ouve-lhe os cantos, — lhe perfuma a vida,....
— A mulher amorosa é como a aurora!
Paulo — 1861.
Torce-te aí na sepultura fria
Onde passa rugindo o furacão,
Seja-te o orvalho das manhãs negado,
Soe em teu leito a voz da maldição!
Teu castigo será gemer debalde
Buscando o sono que o sudário deixa,
Ouvir nas trevas de uma noite horrenda
De errantes larvas a funérea queixa!
Pese-te a terra qual um fardo imenso,
Infecta podridão cubra teus olhos,
Seque o salgueiro que sombreia a lousa
E em seu lugar estendam-se os abrolhos!
Roam-te o Ódio, — a maldição, — o olvido,
E quando as turbas levantar-se um dia,
— Aparências de Deus, — para afundar-se
No seio d'Ele, ardentes de alegria,
Surdo sejas aos ecos da trombeta
Em teu leito de pedra enregelada;
Findem-se os mundos, e a existência tua
Fria se apague na solidão do nada!
S. Paulo — 1861.
Minh'alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
como a rocha isolada
Pelas espumas banhada,
— Dos mares na solidão. —
Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram,
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!
Roem-me atrozes idéias,
A febre me queima as veias,
A vertigem me tortura!...
Oh! por Deus! quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!
Despem-se as matas frondosas,
Caem as flores mimosas
Da morte na palidez:
Tudo, tudo vai passando,
Mas eu pergunto chorando
— Quando virá minha vez?
Vem, oh virgem descorada,
Com a fronte pálida ornada
De cipreste funerário,
Vem! oh quero nos meus braços
Cerrar-te em meigos abraços
Sobre o leito mortuário!
Vem oh morte! a turba imunda,
Em sua miséria profunda,
Te odeia, te calunia,
— Pobre noiva tão formosa
Que nos espera amorosa
No termo da romaria.
Quero morrer, que este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel;
Porque meu seio gastou-se,
Meu talento evaporou-se
Dos martírios ao tropel!
Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me pela amplidão!
Oh! quantas loiras crianças
Coroadas de esperanças
Descem da campa à friez!...
Os vivos vão repousando
Mas eu pergunto chorando:
— Quando virá minha vez? —
Minh'alma é triste, pendida,
Como a palmeira batida
Pela fúria do tufão;
É como a praia que alveja;
Como a planta que viceja
Nos muros de uma prisão!
S. Paulo — 1861.
Era alta noite. Caudaloso e tredo
Entre barrancos espumava o rio,
Densos negrumes pelo céu rolavam,
Rugia o vento no palmar sombrio.
Triste, batido pelas águas torvas
Girava o barco na caudal corrente,
Lutava o remador — e ao lado dele
Uma virgem dizia tristemente:
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
E são jovens, bem jovens! na cabana
Dormiam calmos sem pensar na sorte;
A enchente veio, e no agitar infrene
De um sono meigo os conduziu à morte!
A f'licidade é um sonho nebuloso,...
A vida neste mundo é sempre assim,
Do gozo em meio a veladora eterna
Nos arranca da mesa do festim!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
— Rema, rema, barqueiro; olha — lá em baixo
À luz vermelha do fuzil que passa,
Não ves o vulto de um rochedo escuro
Que a correnteza estrepitando abraça?
— Oh se o vejo, senhora; eu bem o vejo!
Diz o barqueiro com sinistra voz;
Pedi à Virgem que os perigos vela
Que tenha ao menos compaixão de nós!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
Eis dentre as vagas de caligem densa
Vem macilenta se mostrando a lua,
Como à luz dela a natureza é morta,
Como a planície é devastada e nua!
Perto, tão perto se levanta a margem
Onde fagueira a salvação sorri,
E nós rolamos, e rolamos sempre
E não podemos aportar ali !
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
Duro, insofrido o vendaval soergue
Da onda a face em convulsão febril;
— Barqueiro, alento! e chegando em terra,
Hei de cobrir-te de riquezas mil.
Porém no dorso do dragão das águas
Lutava o barco — mas lutava em vão,
E a pobre moça desvairada em prantos
Pedia à Virgem que lhe desse a mão!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
— Ouve, barqueiro, que rugido é esse
Profundo e surdo que lá em baixo soa?
Parece o ronco de um trovão medonho
Que dos abismos pelo seio ecoa! —
Oh!. 'stou perdido ! ... abandonando os remos
Clama o infeliz a delirar de medo,
Oh é a morte que nos chama, horrível,
No fundo escuro de feral rochedo!
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
Ia o batel. Ao sorvedouro imenso
Era impossível se esquivar então,
Dentro sentado — o remador chorava,
E a donzela dizia uma oração.
Já diante deles entre véus de espuma
Treda — a voragem com furor rugia,
E uma coluna de ligeiro fumo
Do centro escuro para o céu subia.
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
Súbito o barco volteou rangendo,
Tremeu em ânsia — se estorceu, recuou, —
Deu a virgem um grito — outro o barqueiro
E o lenho na voragem se afundou!
Tudo findou-se. O vendaval sibila
Correndo infrene na planície nua,
O rio espuma e nas revoltas ondas
Descem dois corpos ao clarão da lua.
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos bóiam sobre as águas frias!
Setembro — 1861.
Ergue-te ousado sobre o chão da praça,
Homem de bronze, — imagem de monarca,
Simulacro fatal!
Pisa inda as turbas humilhadas, como
As duras patas do corcel que montas
O chão do pedestal.
Cansadas nunca de opressores ferros,
Livres de um jugo,— de outro jugo escravas,
As massas enervadas
Do pó resgatam seus tiranos mortos,
E à luz do sol inundam de louvores,
Por terra debruçadas!
Raça de Ilotas, que fizestes pois
Da férvida centelha que no seio
Vos pos a Divindade?
Porque reledes o passado escuro,
Quando deveras derribar os tronos
Cantando a liberdade?
Vota-se à treva o busto dos Andradas,
Some-se a glória de ferventes mártires
Na lama do ervaçal!
Mas fria a estátua pisa a turba, como
As duras patas do corcel de bronze
O chão do pedestal!
Oh terra do Brasil; — diamante vívido
Da coroa soberba de Colombo,
— Bela estrela do sul, —
Porque tão cedo declinais a fronte
E a fímbria do vestido enegreceis
No limo do paul?
Porque tão cedo enregelais o seio
Nessas frias geadas que predizem
A morte das nações,
E os pulsos presos, e a vontade escrava,
Do mártir a memória e a voz dos bardos
Cobris de maldições?
Erguei-vos desse lívido marasmo,
Afrontai o negrume das tormentas,
O horror da tirania!
Se agora em bronze eternizais — senhores, —
Gravai nos bronzes o brasão dos livres,
Saudai um novo dia!
Embora o mundo me proclame louco,
Embora à fronte com furor me gravem
Estigma infernal!
Não posso calmo ver pisar-se as turbas,
Como o corcel de levantada estátua
O chão do pedestal!