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Ballada do Enforcado/1

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I


ELLE não trajava mais o seu bello uniforme vermelho, porque o sangue e o vinho tambem são vermelhos... E sangue e vinho lhe tingiam as mãos, quando o encontraram junto da Morta, a pobre Mulher morta, sua Amante, que elle assassinára no proprio leito.

Vestido com uma roupa cinzenta, velha, muito velha, já no fio, e tendo á cabeça um gorro de jogar cricket, caminhava entre outros Detentos. O seu andar parecia ligeiro e satisfeito. No emtanto, nunca vi pessoa alguma olhar tão intensamente para a luz do Dia, como elle olhava.

Nunca, nunca vi pessoa alguma contemplar com tão intenso olhar essa pequena Tenda Azul, que os Prisioneiros chamam Céo, e cada nuvem que além vogava, semelhante a uma formosa barquinha de velas de prata desfraldadas.

Eu o via, do páteo contiguo, onde me achava com outros Desventurados. Estava a imaginar que crime teria commettido esse Infeliz, quando uma voz, por traz de mim, murmurou baixinho: “Aquelle vai ser enforcado!

Que horror, Santo Deus !... As paredes da prisão estremeceram de subito, a meus olhos, e o Firmamento tornou-se qual igneo capacete de aço... E, comquanto minh’Alma estivesse immersa em profundo Pezar, tal foi a minha Angustia, que, naquelle instante, ella nada sentiu.

Comprehendi, então, que negro Pensamento incessantemente o perseguia, fazendo-o apressar o passo, e porque era que elle contemplava com olhar tão intenso a fastidiosa claridade do Dia : o Desgraçado assassinára a Mulher amada, e, por isso, devia de morrer tambem !

*

No emtanto, todo o mundo mata o que ama... Alguns (Que ninguem deixe de sabel-o !...) o fazem com um olhar de odio ; outros, por meio de palavras carinhosas ; o covarde, com beijos ; o homem corajoso, empunhando uma arma !...

Uns, matam o Amor, quando são moços ; outros, depois de velhos ; varios o estrangulam com as mãos do Desejo ; muitos, com as do Ouro. Os melhores servem-se de um punhal, pois os Mortos esfriam depressa.

Ha quem ame muito, e ha quem ame pouco. Este vende o Amor ; est’outro o compra. Aquelle, ao praticar o Mal, derrama copioso pranto; aquell’outro fal-o, sem soltar siquer um suspiro de compaixão... E todo o mundo mata o que ama, sem que, todavia, ninguem tenha de morrer por isso !...

Quem assim procede, não morre de morte infamante, em dia de negra Desventura ; não tem o nó corredío em volta do pescoço ; não põe ao rosto ũ’a mascara; nem sente, atravéz do tablado do Patibulo, os pés precipitarem-se no vácuo.

Não permanece no meio de homens silenciosos, que o vigiam noite e dia ; que o vigiam, quando tem vontade de chorar, ou quando tenta rezar ; que incessantemente o vigiam, receiosos que pretenda roubar ao Cadafalso a sua Prêza.

Não desperta, pela madrugada, com o rumor que fazem, ao entrar no seu cubiculo, homens de sinistra catadura : o Capellão, de branco, todo tremulo ; o Sheriffe, austero e cheio de compuncção; e o Governador do Presidio, de preto e ceremonioso, lívido, com cara de condemnado.

Não se levanta da cama, com tal rapidez que faz pena, para tornar a vestir o uniforme dos Galés, emquanto o medico do Estabelecimento, sem deixar de fital-o attentamente, toma nota de cada um dos seus gestos e contracções nervosas, olhando de vez em vez para o relogio, cujos fracos tic-tacs soam como surdas pancadas de um martello horrivel...

Não soffre a angustiosissima sêde, que sécca a garganta do Condemnado, ao approximar-se a hora em que o Carrasco, calçado de grossas luvas de couro, virá maniatal-o com tres corrêas finas e compridas, afim de que jamais sinta sêde !...

Não inclina a cabeça, para ouvir a Litanía do Officio dos Mortos. E, emquanto o Terror de su’Alma lhe assegura que não está morto, não cruza com o seu proprio esquife, ao entrar no horroroso local do Supplicio...

Não lança o ultimo olhar para o Céo, que apenas percebe atravez de pequenina claraboia ; não implora a Deus, com labios de argila, para que sua Agonia passe ; e não sente na face gélida o beijo de Caiphaz...

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.