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Ballada do Enforcado/2

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II


VESTIDO com uma roupa cinzenta, velha, muito velha, já no fio, e tendo á cabeça um gorro de jogar cricket, durante seis semanas o Infeliz passeiou no páteo da Prisão, com um andar ligeiro e satisfeito... No emtanto, nunca vi pessoa alguma olhar tão intensamente para a luz do Dia, como elle olhava !

Nunca, nunca vi pessoa alguma contemplar com tão intenso olhar essa pequena Tenda Azul, que os Prisioneiros chamam Céo, e cada nuvem que passava errante, arrastando a flava cabelleira crinisparsa.

Elle não torcia as mãos, como fazem esses Insensatos, que ousam tentar reviver a Esperança, no antro do negro Desespero. Limitava-se a olhar para o Sol, e haurir o ar da manhã.

Não torcia as mãos; não chorava; nem mesmo se lamentava. Apenas bebia o ar, como si nelle encontrasse alguma virtude anodyna. Bebia o Sol, a longos haustos, como si o Sol fosse vinho.

Eu, e os meus Companheiros de Infortunio, que passeiavamos no páteo contiguo, chegavamos a olvidar nossas proprias Miserias, e os crimes de que eramos culpados, para observarmos, com olhares de estupido pasmo, o Homem que ia morrer.

Como era extranho vel-o passeiar, com um andar ligeiro e satisfeito ! vel-o contemplar tão intensamente a luz do Dia ! e, ao mesmo tempo, pensar-se que tinha tamanha divida a pagar!...

*

O carvalho e o olmo são arvores de verdolente e espessa ramagem, que brota pela Primavera... E’ horrivel, porém, ver-se a Arvore da Forca, com as raizes roidas por animaes damninhos !...

Não ha quem não ambicione subir... subir... até occupar posição saliente, alto logar na Sociedade... Para esse fim, convergem todos os esforços humanos... Qual esse, porém, que quererá achar-se no alto de um Cadafalso, e, dahi, contemplar pela derradeira vez o Firmamento?!...

E’ deliciosamente agradavel dansar-se ao som de violinos, flautas e alaúdes, quando o Amor e a Vida nos são propicios... Ah ! mas é horrivel dansar-se no Espaço, pendurado pelo pescoço !...

...Emquanto nos accudiam taes Pensamentos, observavamos o Misero, e faziamos extravagantes supposições. Quem nos diz que o nosso fim não será identico ao delle ? Ninguem sabe até que Inferno de Horrores su’Alma céga póde transviar-se...

*

O Homem que ia morrer deixou finalmente de passeiar em companhia dos outros Miseraveis... Disseram-nos que já se achava no acanhado e lobrego cubiculo, para onde transferem os Condemnados á Morte, antes do Momento Fatal... E eu soube que nunca mais tornaria a vel-o, neste doce Mundo do Senhor !... Nunca... nunca mais!...

... Como dois navios em perigo, que passam na Tormenta,assim, nós nos cruzámos no Mar da Vida... Não fizemos, porém, signal algum ; não trocámos a menor palavra... Nem mesmo nada tinhamos a dizer-nos, porque não nos haviamos encontrado na Noite Santa, e sim num Dia de Vergonha...

Ambos estavamos cercados pelos muros de uma prisão, e ambos eramos dois Desherdados da Sorte... O Mundo repellira-nos de seu seio, e Deus de Sua Sollicitude... O laço que se arma para apanhar o Peccado, colhêra-nos em suas malhas...


Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.