Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A muda mudella
Era uma vez um homem que tinha duas filhas; a mais nova era muito linda e a mais velha muito feia, e por isso embirrava com a irmã, que a não podia vêr. A feia intrigava-a com o pae, que se fiava em quanto lhe dizia; um dia armou uma traição á irmã para a perder. Morava por ali um rapaz muito valdevinos, que tentava todas as raparigas, e a irmã feia disse á mais nova que fosse áquella casa, porque ali existia uma familia envergonhada e em grande miseria, a quem ella podia soccorrer, porque tinha bom coração. Assim que a irmã sahiu a soccorrer a tal familia, a irmã mais velha avisou o pae, que lhe foi sahir ao encontro, e ficou suspeitando o que não era. Desesperado com a sua affronta, o pae resolveu mandar matal-a, e deu ordem a um creado que a levasse para a floresta, para acabar com a pobre menina. Mas o creado teve dó d’ella e deixou-a perdida no meio da floresta só com a companhia de uma cadellinha, que ella estimava muito e que nunca a deixava. A menina viveu por algum tempo dentro de uma furna, comendo ervas. Andando um dia o rei á caça viu uma cadellinha, e mandou dar-lhe pão; a cadellinha pegou no pão e fugiu para o ir levar á sua dona. Passado tempo a cadellinha foi apparecer ao rei em outro sitio, tornaram a dar-lhe pão, e fugiu outra vez; o rei mandou acompanhar a cadellinha para vêr para onde ella ia, e qual não foi o espanto ao irem encontrar uma donzella tão formosa e que parecia tão desgraçada. Ora esquecia dizer que a menina tinha promettido que se escapasse da morte e fosse salva d’aquelles trabalhos, estaria sete annos sem fallar. Quando o rei a encontrou e lhe fez perguntas, ella lembrou-se da sua promessa, e não disse uma palavra. O rei levou-a para o palacio, porque gostava muito d’ella, e tanto se apaixonou que queria, désse por onde désse, casar com a menina. A mãe do rei aconselhava-o a que não casasse senão quando ella tornasse a achar a falla.
Ao fim de muito tempo, pouco antes dos sete annos, o rei já sem esperança pediu uma princeza para casamento, e foi com toda a sua côrte buscal-a. A menina mandou então fazer um vestido com uma das mangas muito larga, e no dia em que o rei voltou foi receber os noivos á escadaria. A princeza assim que a viu deu uma grande gargalhada, dizendo:
Olha a muda de mudella,
Que dentro da manga traz uma panella?
A menina respondeu Jogo:
Olha a princeza destemperada,
Que logo que entra mal falla.
E eu ha sete annos que aqui estou
É a primeira falla que dou.
O principe ficou pasmado com o que viu, desfez logo ali o casamento com a princeza, e casou com a menina, como tanto tinha desejado.
(Algarve — Portimão.)
Notas
[editar]18. Muda, mudella. — Ha uma versão de Coimbra, intitulada O senhor das janellas verdes, nos Contos populares portuguezes, n.º XLVIII. Traz o seguinte estribilho poetico:
— Olha a muda, mudona!
Que traje! que dona!
«Olha a condessa, que inveja!
Que eu falle não deseja.
Nos Contos populares de Pomigliano, colligidos por Imbriani, é o conto de Muzella. (Rev. des Deux Mondes, Nov. 1877, p. 142.) Nos Nobiliarios portuguezes a lenda do solar dos Marinhos versa sobre a peripecia de uma mulher que não falla. Vid. n.º 129.