Dicionário de Cultura Básica/Graal
GRAAL (A Demanda do Santo Graal: o mito do Rei Artur, ciclo cultural bretão)
O nome "graal" vem do latim gradalis, que era o vaso em que se colocavam os alimentos, de forma "gradual", conforme seu peso. Nas origens do Cristianismo, o termo foi usado para indicar o vaso de que se serviu Jesus na Última Ceia. Nele o discípulo José de Arimatéia teria guardado o sangue de Cristo na cruz, jorrado do costado aberto pela espada de um centurião romano. Após várias peripécias, conforme lendas do ciclo "bretão", este vaso teria chegado a Grã-Bretanha, na corte do lendário rei Artur e de seus Cavaleiros da Távola Redonda, ao redor do séc. V, quando ocorreu a unificação dos povos anglos e saxões e se introduziu o Cristianismo na Inglaterra. Entre as várias histórias fantásticas que se inventaram acerca do rei Artur e dos heróis castos Galaaz, Perceval e Boors, a mais famosa é o romance de cavalaria A Demanda do Santo Graal, que conta as aventuras dos cavaleiros em busca do vaso sagrado, símbolo da graça divina. Talvez o texto mais expressivo desta saga romanesca, onde melhor aparecem os valores ideológicos do Medievalismo, seja o episódio da "Tentação de Galaaz". O herói, durante uma de suas andanças, chega a um castelo onde recebe hospedagem. A filha do dono do castelo, uma "fremosa donzela" de 15 anos, apaixona-se pelo cavaleiro à primeira vista e perdidamente, sem que Galaaz sequer suspeite de ser o objeto do desejo da mocinha. De noite, de camisola, ela penetra no quarto do jovem e se deita na cama junto dele. Mas Galaaz, que tinha feito voto de castidade, não cede ao apelo erótico da moça e esta, sentindo-se rejeitada, se suicida trespassando seu corpo com a espada de Galaaz. Do ponto de vista estrutural, poderíamos notar vários elementos de inverossimilhança neste episódio da Demanda. O herói, na entrada do castelo, é obrigado a deixar sua espada na casa das armas, conforme o costume medieval. Ora, esta espada, logo depois, se encontra no quarto onde o jovem está dormindo e é usada pela moça. Esta e outras contradições se explicam pelo caráter de oralidade das primitivas narrações, havendo vários contadores da mesma história. Mais importante é ressaltar a inverossimilhança psicológica da personagem feminina: tamanha audácia amorosa não é admissível numa jovem de apenas quinze anos. De outro lado, ela sequer teria a força física suficiente para fazer com que a espada lhe furasse o corpo inteiro, do peito as costas. Mas, como se sabe, o principio da verossimilhança é um preceito quase exclusivo da estética clássica (→ Classicismo), não tido em conta pela arte medieval. Fundamental é o fator ideológico, que apresenta o choque entre os dois códigos antitéticos do ser humano: natureza versus cultura. Galaaz encarna o código cultural da Idade Média (→ Medievalismo): a consagração de sua alma e de seu corpo a Deus; a preferência da castidade à satisfação amorosa; a observância da norma da distinção entre as classes sociais que não permite a união de uma jovem nobre e rica com um cavaleiro andante sem família e sem bens econômicos; a proibição do relacionamento sexual fora do casamento; o respeito à vontade do pai da moça, o todo-poderoso e autoritário dono do castelo; a gratidão pela hospedagem recebida; enfim, a honra, a honestidade, a virgindade, o martírio do corpo, que são os principais valores do homem medieval, em vista de atingir o bem supremo, que é a salvação da própria alma. A personagem da donzela, pelo contrário, representa o código oposto: a força do instinto da natureza, que se revolta contra todos os valores ideológicos, em nome da satisfação de seus desejos carnais. O impulso erótico dessa moça de apenas quinze anos e educada no ambiente fechado do castelo é tão violento que a leva a quebrar todas as barreiras sociais, morais e religiosas. E, quando percebe que seus esforços para obrigar Galaaz a fazer dela uma mulher sexualmente satisfeita são inúteis, ela encontra na morte violenta a solução de sua angústia existencial. Se cotejar a caracterização dessa personagem de A demanda do Santo Graal com a configuração da dama angelical, ser idealizado e objeto de um amor apenas platônico, da poesia trovadoresca e da escola do "doce estilo novo" (→ Petrarca), podemos verificar como o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo estão igualmente presentes na estética e na prática de vida medieval. O que impressiona é a irredutibilidade desses dois princípios, que leva à prática da doutrina maniqueísta do dualismo cósmico. O personagem de ficção (que geralmente é um homólogo do ser real) da Idade Média ou é um ser angélico ou um ser diabólico e, portanto, raras vezes se apresenta como um ser "humano" no sentido mais profundo do termo. Porque ser humano é sentir-se feito de carne e de espírito, ter vícios e virtudes, acusar momentos de fraqueza e momentos de heroísmo, enfim nunca ser totalmente anjo ou totalmente demônio, visto que na psicologia humana o id e o superego (→ Freud) sofrem vitórias e derrotas alternadas.
A saga do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda foi fonte de inspiração para muitas obras literárias e cinematográficas, sendo utilizada também por artistas plásticos, pelo teatro, pela dança, pela ópera lírica. A partir dos anos 30, começou a ser publicada uma série de cinco volumes, com o título O Único e Eterno Rei, de autoria de T.H.White. A tradução em língua portuguesa saiu em 2004, com o título A Espada na Pedra. O cinema produziu muitos filmes de aventuras, centrados sobre episódios e personagens do ciclo cultural da Bretanha: o rei Artur, o mago Merlin, a princesa Genebra, o amante Lancelot, a espada mágica Excalibur. O compositor alemão Wagner (→ Nibelungos) tratou do assunto na Ópera lírica Parsifal. A lenda do Santo Graal, recentemente, foi reinterpretada pelo ficcionista norte-americano Dan Brown no seu best seller O Código Da Vinci (→ Leonardo). Nesta obra, instigante e polémica, a palavra "Santo Graal", pela etimologia francesa Sangreal, não significaria um cálice, mas o conjunto dos documentos que revelariam uma suposta relação amorosa entre Jesus Cristo e Maria Madalena. O segredo milenar, tendo referências simbólicas ao sagrado feminino, teria sido guardado sigilosamente pelos Templários no séc. XI e pelo Priorado de Sião, sociedade secreta renascentista, da qual Leonardo da Vinci teria sido membro.