Saltar para o conteúdo

Dicionário de Cultura Básica/Justiça

Wikisource, a biblioteca livre

JUSTIÇA (A Diké grega e a Iustitia latina: a vingança civilizada)

"A injustiça em qualquer lugar
é uma ameaça à justiça em todo lugar".
(Martin Luther King)

Para os gregos, Diké era a deusa dos julgamentos, filha de Júpiter (o "Poder") e de Themis (a "Prudência"), irmã da "Verdade", divindade alegórica, representada como uma mulher nua, de porte majestoso. O mito da Justiça foi inventado para explicar o arquétipo da "vingança", o sentimento subconsciente da reparação de um dano feito ao indivíduo ou à sociedade. A justiça não deixa de ser uma "vingança civilizada", diferente da vingança selvagem, que se dá quando o acerto de contas é feito diretamente pelas mãos do ofendido, sem recurso aos tribunais. O mito, a história e a arte estão repletos de "vinganças selvagens": Medéia vinga-se da traição do marido Jasão matando os dois filhos; o protagonista da peça Otelo, de Shakespeare, sacrifica sua esposa Desdêmona, suspeita de adultério; Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci, após a queda do Fascismo, foram mortos e pendurados numa praça de Milão. Já o Presidente da antiga Iugoslávia, o carrasco Slobodan Milosevic, sofreu uma "vingança civilizada", sendo julgado e condenado pelo Tribunal Internacional de Haia. A vingança, legal ou particular, não deixa de ser um sentimento prazeroso, pois, como a moderna ciência explica, ela ativa o núcleo caudado do cérebro, responsável por uma satisfação igual à da recompensa.

Ao longo dos tempos, a Justiça recebeu várias configurações por escultores e pintores, que tentaram dar uma forma plástica a sua ideologia. A estatuária grega representa a Justiça como uma mulher majestosa, sempre em pé, segurando na mão esquerda uma balança e na direita uma espada. De olhos bem abertos, observa o equilíbrio entre os dois pratos, pois é lá que se encontra o justo (ison>isonomia); a espada, além de indicar a força, simboliza também o cortar justo no meio as razões apresentadas pelos dois lados. Já os romanos representavam a deusa Justitia com os olhos vendados, significando a imparcialidade nos julgamentos. Sem a espada, ela segura a balança com as duas mãos, como sinal de firmeza. A força está na palavra: jurisdição significa jus dicere ("dizer o direito") e lex ("a lei") tem como étimo o verbo legere ("ler" em voz alta, para ser ouvido por todos). Na visão medieval, uma pintura do séc. XIII retrata a Justiça ao lado da Prudência conversando nas nuvens, indicando claramente que a Justiça verdadeira só existe lá no Céu. Na entrada da Suprema Corte da capital norte-americana, a Justiça é representada por uma estátua colossal, majestosa, colocada no alto da escadaria. A figura feminina está sentada, vestida solenemente, segurando na mão direita a Constituição de 1787. Em Brasília, na frente do Supremo Tribunal Federal, pode-se contemplar a escultura de Alfredo Ceschiatti: o Poder Judiciário é representado por uma mulher pequena, isolada, sem a balança, com a espada descansando sobre suas pernas, de olhos vendados, talvez para não enxergar as mazelas dos Três Poderes. Na cultura ocidental, foi Montesquieu, o precursor da Revolução Francesa, que codificou o direito natural das coisas na sua obra Do Espírito das Leis (1748), desenvolvendo a teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que está na base da maioria dos atuais governos constitucionais. Cada qual no seu lugar, fazendo o que lhe compete, sem invadir o espaço alheio e ganhando com base no seu mérito. Essa justiça natural está descrita de uma forma bem simples na peça O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht:

"Vocês que conhecem a história do círculo de giz,
lembrem-se da opinião dos antigos.
As coisas devem ser entregues a quem melhor as serve.
Eu quero dizer, as crianças às pessoas mais maternais
para crescer e florescer; as carruagens aos bons condutores
para que a viagem seja boa; e o vale aos que vão irrigá-lo
para que a colheita seja abundante.
"

A Justiça não pode ser substituída pela caridade. Qualquer coisa, antes de ser boa, tem que ser justa pois, como dizia Martin Luther King, "a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar". Mas será que, na realidade, existe justiça ou, se existir, ela é igual para todos? Não é mais um mito cultivado por agrupamentos civilizados? A verdade é que seu rigor só é aplicado aos pobres e aos indefesos. Os grandes criminosos, especialmente os que assaltam o erário público, os sanguessugas da sociedade, dificilmente pagam pelos seus delitos. Tendo o poder econômico, eles contratam os melhores advogados que, aproveitando das brechas que se encontram nas leis e da morosidade da máquina burocrática da justiça, procrastinam a condenação ad infinitum, até a prescrição do crime. Sem dizer que, além do emaranhado absurdo do sistema judiciário e da incompetência de seus membros, existe corrupção na própria Justiça. Como diziam os antigos romanos: atque custodem quis custodiat? ("e quem toma conta do guarda?"); ou, na expressão do escritor contemporâneo Norberto Bobbio: "quem controla os controladores?". Machado de Assis é mais explícito: "é claro que a justiça, sendo cega, não vê se é vista, e então não cora". Mas que vai se fazer: como os outros humanos, também os juizes estão sujeitos às limitações da nossa espécie. Da Justiça podemos dizer o mesmo que se costuma falar sobre a Democracia: "ruim com ela, pior sem ela"!