Dicionário de Cultura Básica/Shakespeare

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SHAKESPEARE (dramaturgo inglês: Hamlet) → Teatro

"To be or not to be"

William Shakespeare (1564–1616) viveu entre o fim do Renascimento e o início do período barroco da cultura clássica da Idade Moderna. Infelizmente, sabemos muito pouco sobre a vida do maior dramaturgo de língua inglesa, porque na sua época ainda não existia o culto da biografia e a imprensa estava em seus alvores. As poucas notícias, mais ou menos certas, podem ser assim resumidas: filho de um proprietário rural, William gostava muito de leituras, tendo como autores preferidos Homero, Plutarco, Sêneca, os escritores bíblicos, os renascentistas italianos e os historiadores da sua terra. Começou a vida literária escrevendo poemas, mas logo manifestou sua paixão pelo teatro, exercendo as profissões de ator, escritor de peças e de empresário, tornando-se sócio da Companhia Lord Chamberlain, o mais importante empreendimento teatral da época, e do Globo Theather. No dizer de Otto Maria Carpeaux (História da Literatura Ocidental), ele foi essencialmente um playwright, um dramaturgo profissional, preocupado principalmente em ir ao encontro do gosto do público. A própria passagem das comédias alegres da juventude para as peças trágicas da maturidade deve ser vista como uma evolução menos estilística do que psicológica: à serena euforia renascentista sucede a representação dos conflitos morais e existenciais bem ao gosto do Barroco senequista e jesuítico. A incerteza envolve também a produção dramática de Shakespeare. Os críticos discutem a identidade da autoria de muitas peças a ele atribuídas. Realmente, numa época em que o teatro tinha um valor mais industrial do que literário, era comum a colaboração entre autores, refundindo-se peças já existentes ou adaptando-as a determinados atores, recorrendo-se assim facilmente à pseudonímia ou à anonímia.

A tradição atribuiu a Shakespeare um conjunto de trinta e seis peças, entre tragédias, comédias, dramas históricos e pastorais, sem a rígida distinção dos gêneros da estética clássica, podendo-se encontrar cenas cômicas em tragédias e elementos trágicos nas comédias. Esta liberdade atinge também o plano formal: há peças escritas em versos rimados, outras em versos brancos, outras em prosa, e essas três modalidades podem ser encontradas, misturadas, numa única peça. Outro aspecto que afasta o dramaturgo inglês da estética clássica é a não observância da lei das três unidades (de ação, de tempo e de lugar). Tal liberdade do ponto de vista estético foi devida às peculiares condições sociopolíticas da Inglaterra. A época elisabetana, que vai de 1558 (ano em que Elizabeth I subiu ao trono, sucedendo ao pai Henrique VIII → Elisabete) até 1625 (ano da morte de Jaime I, que sucedeu à rainha, a partir de 1603), se notabilizou por um vigoroso esforço de reformas progressistas, motivadas pela hegemonia marítima conquistada aos espanhóis, após a fragorosa derrota da Invencível Armada (1588). A supremacia nos mares possibilitou a intensificação das atividades comerciais com os povos do continente africano, asiático e americano, estimulando o artesanato e a pequena indústria. Junto com a prosperidade econômica e a pujança política, o regime elisabetano concedeu uma ampla liberdade de expressão, própria da ideologia do Anglicanismo, em franco contraste com a Europa continental, católica e atolada nos preceitos e preconceitos da Contra-Reforma jesuítica (Protestantismo: → Lutero). Entre as peças mais famosas de Shakespeare, lembramos as Comédias O sonho de uma noite de verão; A megera domada; As alegres comadres de Windsor; Muito barulho por coisa nenhuma; Tudo está bem quando bem termina; A tempestade; o Drama histórico Henrique V; as Tragédias Romeu e Julieta; Júlio César; Otelo, o mouro de Veneza; Rei Lear; Macbeth; Hamlet, príncipe da Dinamarca. Desta última peça, considerada o drama barroco da dúvida, da astúcia e da vingança, apresentamos a análise e algumas propostas de interpretação, citando trechos na tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Lopes (Shakespeare, Obra Completa, ed. Nova Aguilar).

O referente extratextual da tragédia Hamlet.

O personagem Hamlet, como todos os outros heróis da épica e da tragédia clássica, não foi inventado pelo autor da peça, mas já existia no cabedal cultural dos povos anglo-saxônicos. A figura de Hamlet é um mito escandinavo, registrado pelo dinamarquês Saxo Grammaticus nas suas Histórias dânicas, escritas no início do século XIII. Mais tarde, o historiador francês Belleforest retomou a lenda de Hamlet em suas Histoires tragiques, obra publicada em 1576. Desta última fonte se utilizou Shakespeare, aproveitando a moda da grande aceitação pública das chamadas "peças de vingança". Só que o personagem Hamlet de Shakespeare não é apenas o executor de uma vingança, mas um ser humano que reflete sobre seus atos e sobre a vida, que hesita antes de agir, analisando as possíveis conseqüências das ações. É esta "indecisão" que o caracteriza e que fascina o espectador. Provavelmente, o Hamlet mítico, o primitivo Hamlet (Ur-Hamlet, conforme o prefixo alemão), era um herói agressivo, um vingador implacável, mais próximo do estilo épico. Shakespeare, ao adaptar para o palco a antiga lenda, conferiu ao personagem o caráter perplexo e problemático, próprio do homem de sua época. Assim, o centro do drama se desloca da vingança pura e simples para o estudo das reações dos fatos no espírito do protagonista.

Enredo e personagens

A peça Hamlet, príncipe da Dinamarca está dividida em cinco atos, cada qual contendo várias cenas. O cenário é bem variado, desrespeitando a norma da estética clássica da unidade de lugar. Há, pelo menos, quatro ambientes diferentes: 1) o castelo de Elsenor, residência real; 2) a casa de Polônio, lorde camarista; 3) a planície junto ao porto; 4) o cemitério. Note-se ainda que no primeiro ambiente desenvolvem-se várias cenas, pois, dentro do castelo de Elsenor, temos tópicos diferentes: terraço, sala do trono, salão, gabinete da rainha, outras salas. Tal diversidade de locais era possível porque, na época elisabetana, o teatro tinha um fundo móvel, em vários níveis, que se prestava às mais diferentes adaptações. A sinopse do enredo é a seguinte: a situação inicial apresenta sentinelas no castelo de Elsenor que avistam, por várias vezes e sempre à meia-noite, um espectro parecido com o velho rei Hamlet, recentemente falecido. Horácio, amigo íntimo do príncipe Hamlet, filho homônimo do defunto rei, encarrega-se de revelar ao amigo a aparição do espectro do pai. O príncipe, que vive triste pela morte do seu glorioso progenitor e revoltado pelo súbito casamento da sua mãe, a rainha Gertrudes, com o tio Cláudio, união considerada incestuosa pela moral da época e indecorosa por não respeitar o tempo de luto, logo se interessa pela aparição do fantasma e, na noite seguinte, vai ao terraço e interroga o espectro. Este lhe revela que é realmente seu pai e que sua morte não fora acidental, mas criminosa: ao descansar depois do almoço, no seu pomar, o irmão Cláudio lhe instilara, nos ouvidos, gotas de um veneno mortífero. Antes do espectro desaparecer, o príncipe jura vingar a morte do pai e começa a fazer-se passar por louco para melhor maquinar a vingança. A doidice de Hamlet é atribuída a um motivo amoroso: Polônio proibira a filha Ofélia de encontrar-se com o namorado Hamlet, pois, devido à disparidade social, o pai temia que o jovem príncipe quisesse apenas se aproveitar da inocência da moça. Hamlet, para ter certeza de que o tio é o assassino, contrata uma companhia teatral para representar uma peça em que manda inserir uma cena parecida com o assassinato do pai. O rei Cláudio cai na cilada e a sua perturbação convence Hamlet e Horácio de que fora realmente ele o matador do rei Hamlet. Durante uma conversa com a mãe, o príncipe percebe que alguém está escondido atrás das cortinas e desfere um golpe mortal: o espião era o lorde camarista Polônio, o pai da namorada Ofélia e do amigo Laertes. A morte de Polônio causa a loucura de Ofélia. O rei Cláudio suspeita que a insanidade de Hamlet é um fingimento e considera a presença deste em Elsenor um perigo para a sua segurança. Resolve, então, livrar-se dele, mandando-o para a Inglaterra, acompanhado por dois emissários, que levam uma carta em que está selada a morte do príncipe. Mas Hamlet substitui a carta por outra em que é decretada a morte dos dois companheiros ao chegarem à Inglaterra. Consegue, então, escapar do navio e voltar a Elsenor, aproveitando um ataque de piratas ao navio dinamarquês. Enquanto isso, Ofélia, enlouquecida, suicida-se por afogamento e o irmão Laertes, voltando da França, jura vingar a morte do pai e da irmã. O rei Cláudio aponta-lhe Hamlet como o culpado e os dois são induzidos a um duelo. O rei coloca veneno na ponta do florete de Laertes e numa taça de vinho. A primeira a morrer envenenada é a rainha que, sem saber, toma o vinho destinado ao filho; em seguida Laertes fere Hamlet com a ponta do florete envenenada e, após uma inadvertida troca de floretes, é a vez de Laertes ser ferido pela arma. Laertes, antes de morrer, revela a Hamlet a traição do rei, que é morto por Hamlet, atingido com o florete envenenado e obrigado a tomar o resto do vinho mortífero. Só resta vivo Horácio, o fiel amigo do príncipe, a quem cabe revelar ao recém-chegado glorioso Fortimbrás, príncipe da Noruega, que era vontade de Hamlet que ele assumisse o trono da Dinamarca. A peça se encerra com as honras fúnebres prestadas ao príncipe Hamlet por Fortimbrás, pelos embaixadores da Inglaterra e pelo povo.

Temas e sentidos da peça

I) Interpretação "épica"

Este drama poderia ser entendido como uma explicação mítica da derrota da Dinamarca por parte da Noruega. É próprio do gênero épico apresentar uma explicação fantasiosa de acontecimentos históricos, com o fim de idealizar os moventes de vitórias e de derrotas fundamentais para a construção ou a queda de uma nação. Assim, por exemplo, na Ilíada, a destruição de Tróia tem por causa o rapto de Helena; na Eneida, a fundação do Império Romano é atribuída à chegada ao Lácio do herói troiano Enéias; nos Nibelungos, a vitória dos bárbaros hunos sobre os civilizados burgúndios apresenta como motivo a rivalidade entre as princesas Cremilda e Brunilda, disputando o amor do belo herói Sigfrido. No Hamlet shakespeariano, a Dinamarca é um país poderoso, que domina as vizinhas nações da Noruega, Polônia e Inglaterra, que lhe são tributárias. Seu rei, Hamlet (pai), é um herói temido pelos estrangeiros e amado pelo seu povo. E, quando surge uma disputa de terras com a Noruega, prefere resolver a disputa em singular tenção com o valoroso norueguês Fortimbrás (pai) para poupar a vida de seus soldados. Ele é o vitorioso: mata em duelo o rei da Noruega e se apossa dos territórios em demanda. Mas, mais tarde, o filho de Fortimbrás vinga a morte do pai e anexa a Dinamarca à Noruega. Para explicar essa reviravolta histórica, o povo dinamarquês inventa a lenda do fratricídio de Cláudio, da relação incestuosa do assassino com a rainha e da vingança do filho de Hamlet. Segundo a versão do mito, retomada por Shakespeare, foi esta guerra intestina, provocada pela cobiça e pela concupiscência ("Há algo de podre no reino da Dinamarca"), a causa da vitória de Fortimbrás, jovem "de braço forte", puro e destemido, movido por um nobre ideal familiar e patriótico. E o próprio Hamlet, antes de morrer, no fim da peça, revela a Horácio que Fortimbrás é a única pessoa digna de governar a Dinamarca, apesar de ser estrangeiro e inimigo.

II) Interpretação "psicanalítica"

O sentimento edipiano de Hamlet estaria evidenciado pelo seu desejo inconsciente em relação à mãe e pelo ciúme instintivo pelo tio Cláudio que desposou Gertrudes após consumar o crime. O próprio Freud aponta para o paralelo entre o personagem Hamlet e o Orestes do ciclo trágico tebano (→ Agamenão). Tal interpretação explicaria o injustificado desprezo de Hamlet em relação a Ofélia, jovem pura e inocente: a náusea sexual teria como causa profunda a conduta indecorosa da mãe do protagonista. Sentindo-se traído pela mãe nas aspirações sexuais do seu subconsciente, Hamlet chega a um estado de misoginia, desprezando a noiva e as outras mulheres. Ofélia, por sua vez, encontra na loucura a sublimação do seu sofrimento pela rejeição amorosa e pela morte do pai. E somente no estado de alucinação consegue revelar o seu id profundamente sensual, recalcado ao nível da consciência pela obediência às regras morais impostas pelo pai. Veja-se o erotismo de seus cantos de louca:

Ofélia (canta): "Antes", diz ela, "de me derrubar",
Tu prometeste comigo casar..."

Hamlet:

"Pela luz do sol, tê-lo-ia feito",
Não tivesses tu, vindo pro meu leito."

III) O tema da vingança

Principalmente ao nível denotativo, é o tema tradicionalmente considerado central deste drama, tanto que Hamlet é comumente definida como a tragédia da vingança, da mesma forma que Otelo é tido como o drama do ciúme. E não sem razão. A vingança é o motivo recorrente que perpassa o drama de ponta a ponta: o espectro do rei aparece para pedir vingança ao filho Hamlet e este se finge louco para melhor executar tal tarefa. E a vingança não é apenas o tema central da macrofábula, mas está presente também em episódios encaixados, que poderíamos considerar como secundários. Assim, além da vingança de Hamlet, existe a vingança de Laertes para punir o assassino de seu pai, e que é também o causador da loucura e do suicídio da irmã. Num primeiro momento, enganado, Laertes tem por alvo Hamlet, mas, quando descobre o verdadeiro culpado da desgraça de sua família, insurge-se contra o rei Cláudio, revelando o plano monstruoso e induzindo Hamlet a efetuar a vingança. Outro vingador é o jovem Fortimbrás, que vem da Noruega para fazer justiça à memória de seu pai e reconquistar as terras perdidas.

IV) O tema da astúcia

Hamlet pode ser considerado também como o drama do choque de inteligências, de seres astutos que preparam ardis com o intuito de um superar o outro através de artimanhas. Todos os personagens importantes da peça, com exceção de Ofélia e Gertrudes (talvez porque na época de Shakespeare ainda existissem preconceitos machistas contra a inteligência das mulheres: haja vista que elas não podiam participar da vida teatral, os papéis femininos sendo desempenhados por atores camuflados), primam pela força da astúcia. Polônio, que exerce o papel de conselheiro do rei Cláudio, para saber sobre a conduta de Laertes na França, envia seu servidor Reinaldo com um detalhado plano de investigação sobre a vida do filho; mas ele é vítima de uma de suas próprias tramóias: é morto ao se esconder atrás das cortinas para escutar e revelar ao rei a conversa entre Hamlet e a rainha Gertrudes. O rei Cláudio planeja um crime perfeito, que somente uma alma do outro mundo poderia desvendar, para livrar-se do irmão, casar com a cunhada e apossar-se do reino da Dinamarca. E quando percebe que o sobrinho Hamlet se constitui um perigo para ele, arma uma série de ciladas com o fim de matá-lo: envia-o para a Inglaterra com uma carta secreta de condenação à morte; culpa Hamlet da morte de Polônio e da loucura de Ofélia; planeja o duelo entre Laertes e o príncipe, envenenando o florete e o vinho. Mas a inteligência mais viva é a do personagem-título. Hamlet, fingindo-se louco, consegue reverter a seu favor situações adversas e planeja vagarosamente a sua vingança. Manda simular a cena do assassinato para ter certeza da culpa do tio; substitui a carta real de sua condenação por outra em que os condenados passam a ser os dois emissários. É notável o fato de que ele sente um prazer enorme nesse jogo de inteligências, desmontando as armadilhas do tio.

V) O tema da dúvida

O personagem Hamlet pode ser visto como o herói da falta de vontade, a quem a excessiva racionalização impede de agir. A peça seria, então, a tragédia dos conflitos da consciência, onde o ser pensante está continuamente a refletir sobre a condição humana. Com efeito, a dúvida e a indecisão perpassam a peça de ponta a ponta, atingindo especialmente o espírito do personagem-título. Hamlet, mesmo depois da aparição do espectro de seu pai e da revelação do assassinato, ainda duvida que o tio Cláudio seja culpado. Quer uma prova real, e arquiteta a cena da reconstrução do crime. A conduta do rei o convence finalmente que ele é o assassino de seu pai. Mesmo assim, hesita, não tem coragem de matar o tio, quando o encontra sozinho na capela, e justifica sua covardia com um argumento religioso:

Hamlet: "Agora que está rezando, poderia cair sobre ele.
E é o que farei agora...
Mas assim irá ele direto para o céu
e seria essa a minha vingança?...
Será melhor refletir.
Um infame assassina meu pai e eu, filho dele,
envio o malfeitor para o céu.
Oh! isto seria premiar e remunerar,
mas nunca vingança."

Mas o trecho mais expressivo do tema da dúvida é o solilóquio de Hamlet, que inicia com o antológico "To be or not to be":

"Ser ou não ser, eis a questão!
Que é mais nobre para o espírito:
sofrer os dardos e setas de um ultrajante fado,
ou tomar armas contra um mar de calamidades
para pôr-lhes fim, resistindo?
Morrer.., dormir; nada mais!
E com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração.
e os mil naturais conflitos que constituem a herança da carne!
Que fim poderia ser mais devotamente desejado?
Morrer.., dormir! Dormir! ...
Talvez sonhar! Sim, eis a dificuldade!
Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar
que sonhos possam sobrevir,
durante o sono da morte,
quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida.
Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa!
Porque, senão, quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo,
a injúria do opressor, a afronta do soberbo,
as angústias do amor desprezado,
a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações
que o paciente mérito recebe do homem indigno,
quando ele próprio pudesse encontrar quietude com um simples estilete?
Quem gostaria de suportar tão duras cargas,
gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa,
se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte,
região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou,
confundindo nossa vontade
e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem,
ao invés de nos atirarmos a outros que desconhecemos?
E é assim que a consciência nos transforma em covardes
e é assim que o primitivo verdor de nossas resoluções
se estiola na pálida sombra do pensamento
e é assim que as empresas de maior alento e importância,
com tais reflexões,
desviam seu curso e deixam de ter o nome de ação."

Está colocado aqui o dilema fundamental do ser humano: aceitar estóica ou evangelicamente o sofrimento, o ultraje e a injustiça ou rebelar-se e tentar enfrentar as adversidades, retrucando com as mesmas armas da violência e da perfídia? Não seria melhor refugiar-se no esquecimento do sono, do sonho, da morte? Mas como encontrar na morte o descanso de todas as opressões, se penas terríveis ameaçam os suicidas no mundo desconhecido do além? Triste condição do ser humano, incapaz de enfrentar os males presentes, e temeroso dos males futuros! Conseqüência dessa situação é a covardia, causada pelo dilema que atormenta o homem da época barroca, balançando-se entre o desejo da libertação carnal e espiritual, herança da Renascença, e as rígidas e hipócritas imposições religiosas e éticas da Contra-Reforma católica. Mas essa dúvida existencial atormentou apenas e só o homem barroco? O questionamento do sentido da vida perante a inelutável expectativa da morte não foi sempre, e não é ainda hoje, o interrogativo crucial das inteligências mais brilhantes do mundo da filosofia, da ciência e da arte? A perene modernidade deste drama de Shakespeare se explica porque seu autor soube colocar artisticamente uma problemática humana que é universal e eterna!

VI) Nível reflexivo

O dramaturgo inglês, de um modo geral, mas especialmente nesta peça, volta e meia, interrompe a representação dos fatos para dar lugar a reflexões e julgamentos de valor, expressando idéias e sentimentos pela boca de várias personagens. Como "ser ou não ser, esta é a questão", com que inicia o famoso monólogo de Hamlet, outras expressões passaram a incorporar o nosso cabedal cultural, sendo até hoje repetidas. Eis uma seleção das frases shakespearianas mais conhecidas, extraídas do drama de Hamlet:

"Fragilidade, teu nome é mulher"

É a reflexão do personagem Hamlet sobre a volubilidade de sua mãe, a rainha Gertrudes que, não passara um mês da morte do marido, já contraíra novas núpcias, casando-se com o cunhado. Ele reflete sobre o fato de que a mãe e o tio poderiam ter feito uma boa economia, utilizando as flores do enterro para a festa do matrimônio.

"A loucura é mais lúcida do que a mais sã razão"

(Polônio, admirando os argumentos sutis de Hamlet, que passava por louco).

"Há mais coisas no céu e na terra,
Horácio, do que pode sonhar tua filosofia"

(Hamlet, ao espanto do amigo perante o prodigioso aparecimento do espectro do pai).

"Há algo de podre no reino da Dinamarca"

(Marcelo, ao ouvir o colóquio do príncipe com o espectro).

"Nada em si é bom ou mau;
tudo depende daquilo que pensamos"

(Hamlet, aos dois personagens secundários, Guildenstern e Rosencrantz).

"A virtude tem que pedir perdão ao vício"

(Diálogo de Hamlet com a rainha Gertrudes, sua mãe).

"Um homem pode pescar com o verme
que se alimentou de um rei
e comer o peixe que se nutriu daquele verme...
Um rei pode circular ao longo das tripas de um mendigo"

(Diálogo de Hamlet com o rei Cláudio, a respeito da morte de Polônio).

"Ó Gertrudes, Gertrudes, quando chegam as desgraças,
não chegam como exploradores isolados,
porém em batalhões"

(O rei à rainha, com relação à loucura de Ofélia, causada pela morte do irmão Horácio).