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Dicionário de Cultura Básica/Eneida

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ENEIDA (poema épico romano) → Virgílio

Estou reconhecendo, dentro de mim,
os sinais da antiga chama
(A rainha de Cartago, Dido, viúva, ao apaixonar-se pelo herói Enéias)

Para um melhor conhecimento do autor da obra mais importante da Literatura Latina, consultem-se também os verbetes Virgílio e Roma. A fábula da epopéia latina, intitulada Eneida, ocupa doze livros ou cantos, podendo ser dividida em duas partes: a primeira, que contém os primeiros seis livros, imita o assunto da Odisséia, enquanto "epopéia do mar", pois narra a viagem marítima de Enéias, de Tróia até o Lácio, região de Roma; a segunda, composta dos últimos seis livros, imita a Ilíada, sendo a "epopéia da guerra", pois descreve as lutas pela fundação do reino latino. Como a Odisséia, também a Eneida começa in medias res, no meio da história: Enéias, fugindo de Tróia destruída, já se encontra perto de Cartago, quando inicia a trama. Mais tarde, atendendo ao pedido da rainha Dido, ele conta as peripécias da viagem de Tróia até lá. Mas esta inversão temporal não dificulta o entendimento da história, pois o início da fábula é narrado logo no começo do segundo livro e, a partir daí, o relato segue a ordem cronológica dos acontecimentos. Os primeiros versos da Eneida contêm o "Exórdio", constituído pela "Proposição" (antecipação sintética da matéria que será narrada) e pela "Invocação" à musa, seguida pelo inicio da "Narração":

Eu canto as armas e o herói que, primeiro, proscrito pelos fados,
veio da costa de Tróia para a Itália e as praias de Lavínio.
Ele muito sofreu em terra e no mar, por vontade dos deuses celestiais,
por causa do rancor da cruel Juno...

O narrador do poema se apresenta em primeira pessoa, pedindo à deusa da poesia épica que lhe lembre os fatos míticos e lendários que envolvem a figura do herói troiano. Diferentemente dos dois poemas homéricos, cujo narrador é apresentado como sendo a própria musa, o poeta funcionando apenas como intermediário entre a divindade, possuidora do saber, e a humanidade, destinatária deste saber, quem conta a fábula da Eneida se apresenta a nós como um ser humano, que pede a ajuda divina para poder lembrar, narrar e compreender os altos desígnios do Destino e a grandeza do sofrimento humano. A este respeito, a interrogação posta no fim da invocação, "pode existir tanta ira nas almas divinas?", é um sintoma da perplexidade que se apossa do espírito do poeta, no ato de cantar a aventura de Enéias. Mas, excluindo o exórdio e mais algumas passagens ao longo do poema, em que o narrador se manifesta pelo uso dos pronomes de primeira pessoa, pelo presente da enunciação ou por algumas formas modais que implicam julgamentos de valor, o grosso da narração da Eneida se dá na terceira pessoa, o narrador se apresentando com uma visão objetiva, dotado de onisciência e de onipresença, características do enunciador épico. A mudança de foco narrativo é necessária para distinguirmos o ponto de vista limitado do narrador de primeira pessoa, que transfere para a narrativa seus sentimentos e seus critérios de valor, da perspectiva panorâmica do narrador de terceira pessoa, que personifica a voz do mito, da lenda e da história. Cabe lembrar que Virgílio, como Homero, não é o inventor do material épico, mas apenas o elaborador artístico dos fatos históricos e mitológicos preexistentes a ele e que constituíam o patrimônio cultural da coletividade. A fábula do poema de Virgílio está dividida em 12 livros, cujos assuntos, por motivo de espaço, sintetizamos nos seguintes sintagma-títulos: I) Chegada de Enéias a Cartago e história de Dido; 2) Narraçao da destruiçao de Tróia; 3) As viagens de Enéias; 4) Amor e morte de Dido; 5) Viagem rumo à Itália: estadia na Sicília; 6) No reino dos mortos ; 7) No Lácio, terra prometida; 8) Preparativos de guerra; 9) Vitória parcial dos Rútulos; 10) Enéias volta com aliados; 11) Trégua para a sepultura; 12) Vitória final de Enélas.

A Eneida é uma epopéia "reflexa", quer porque imita poemas épicos anteriores, quer porque o material mítico e lendário é utilizado não ingenuamente, mas com um intuito peculiar e, às vezes, com espírito crítico. Veja-se, por exemplo, o verso do exórdio "Pode, por acaso, existir tanta ira nas almas divinas?", profunda reflexão do poeta sobre a crença na concepção de uma divindade maldosa e vingativa! O imortal poema tem um sentido patriótico, pois se trata de uma obra engajada no programa de Augusto de restaurar os costumes. Os antigos mitos gregos e itálicos são revestidos de razões ideológicas para que o vasto Império Romano da época de Otávio seja interpretado como conseqüência da vontade divina. A lenda grega de Enéias, filho de Vênus e genro de Príamo, é misturada com a fábula itálica de Dárdano, príncipe etrusco que teria emigrado para Tróia. A conexão entre a Itália e a Tróade, imaginada pelo acoplamento das duas lendas, permite a Virgílio fazer remontar as origens de Roma, não a um punhado de bandidos aventureiros (conforme as lendas de Rômulo e Remo e do Rapto das Sabinas → Roma), mas à antiga e rica civilização troiana. Caio Júlio César Otávio Augusto, conseqüentemente, é apresentado como direto descendente de Júlio, filho de Enéias. Quanto à imitação dos poemas épicos anteriores, especialmente dos dois atribuídos a Homero, é relativamente fácil salientar os pontos de convergência entre a poesia épica grega e a latina. Realmente, vários tópicos, temas e motivos (o valor militar dos heróis, as viagens aventurosas em frágeis embarcações, a descida ao inferno para o conhecimento do passado e do futuro, o sentimento da amizade, a paixão amorosa, a confecção das armas por Vulcano, as intervenções dos deuses nos acontecimentos humanos, a força do Destino (→ Fado) que impõe ao protagonista uma missão predeterminada, e outros assuntos, além das imitações de estilo), são tirados do contexto da Ilíada e da Odisséia e adaptados para a composição da Eneida. Mas o conceito de imitação, que para nós tem um sentido depreciativo, pois implica ausência de originalidade, na época de Virgílio indicava capacidade artística. Efetivamente, é na época de Augusto que toma corpo o espírito do Classicismo, entendido como consciente fidelidade aos modelos da literatura grega, considerados como protótipos de perfeição artística e humana. A concepção de Aristóteles de a arte ser mimese da natureza física ou espiritual é acrescida, por Horácio, Virgilio e outros poetas da época áurea da literatura latina, com o conceito de a arte ser imitação dos que, imitando a natureza, tinham criado formas e objetos artísticos de inigualável perfeição. Mas, se Virgílio se aproveita de um gênero literário e de um material épico preexistentes, o espírito que lhes dá forma é bastante diferente, espelhando outra realidade histórica. O sentimento do pathos virgiliano é absolutamente ausente em Homero. O drama íntimo do protagonista Enéias reside no contraste entre sua personalidade dócil e triste e o destino que o impele a lutar. Mais do que a exaltação dos heróis de guerras, encontramos na Eneida o canto da dor do ser humano em face da crueldade do destino, que ceifa a vida de jovens criaturas inocentes. Vejam-se, por exemplo, as passagens relativas ao triste fim da rainha Dido, dos amigos Euríalo e Niso, do jovem Palante, do piloto Polinuro, da amazona Camila. A descrição destes episódios menores salienta a grande sensibilidade humana e poética de Virgilio e comove, até hoje, seu leitor. Com o poeta mantuano, notamos a passagem da narrativa mitológica e heróica para a narrativa propriamente "humana". O protagonista da Eneida é qualificado recorrentemente como pius. Este adjetivo, além de indicar a resignação à vontade divina e a observância dos rituais litúrgicos, exprime o caráter de Enéias, apresentado como homem justo e honesto, que sente piedade pelo sofrimento do ser humano, vítima do ódio, das guerras e do desamor. Caberia à crítica psicológica dizer quanto de Virgílio existe em Enéias!