Dicionário de Cultura Básica/Ilíada
ILÍADA (poema épico sobre a guerra de Tróia) → Homero
A Ilíada (de Ílion, nome primitivo de Tróia) é formada pela rapsódia (o étimo grego significa "costura") dos cantos acerca da primeira famosa luta entre as nações do mundo ocidental, a "Guerra de Tróia". Traduzimos o começo do poema:
"Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu,
cólera funesta, que causou inumeráveis dores aos aqueus
e precipitou no Hades almas de heróis sem conta,
jogando seus corpos como pasto para cães e pássaros carniceiros:
cumpria-se a vontade de Zeus, desde a contenda que separou o Atrida,
rei de guerreiros, e o divino Aquiles".
Este trecho inicial do canto primeiro enseja perceber bem a distinção entre o plano da enunciação, isto é, o aparelho formal que evidencia a presença do narrador do canto épico, e o plano do enunciado, constituído pelos fatos narrados e pelas personagens que vivem a história ficcional. O presente "canta" acusa o tempo do discurso, o ato da locução, da narração, a época em que viveu Homero, o provável autor do poema (século VIII a.C.); o passado "precipitou", "tornou" etc., se refere à época em que os fatos narrados aconteceram (Guerra de Tróia: século XII a.C.). Há, portanto, um distanciamento de mais de quatro séculos entre o tempo do "discurso" e o tempo da "história". É preciso notar, todavia que, enquanto o tempo do enunciado permanece imóvel, fixado para sempre num passado remoto, que só pode tornar-se presente pela ação da memória que recorda os episódios acontecidos, o tempo da enunciação se renova continuamente, a cada leitura do poema, porque muda o destinatário a quem o narrador se dirige. Este narrador, diferentemente do autor do poema, não é um ser real (Homero ou outro rapsodo), mas uma personagem de ficção que, no poema, assume o papel de narrador da fábula. O autor da Ilíada, para não cair na inverossimilhança, coloca como narrador dos fatos épicos a própria divindade ("canta, ó deusa"), porque, de outra forma, deveria atribuir a um ser humano as prerrogativas da onipresença e da onividência, necessárias para o conhecimento de fatos que se passaram em lugares diferentes, inclusive na morada dos deuses, o Olimpo, e de sentimentos e pensamentos dos seres divinos e humanos que participaram dos eventos. Este fingimento é indispensável para que o canto épico tome um semblante de realidade. É a ficção que quer ser vista como não-ficção.
Quanto ao plano do enunciado ou da história, o exórdio, transcrito acima, é composto pela "Invocação" à divindade protetora dos poetas e pela "Proposição", a proposta que, sinteticamente, antecipa o assunto do poema épico: "a cólera de Aquiles". Como se vê, apesar do título, A Ilíada, em seus vinte e quatro cantos, em versos hexâmetros, não narra toda a história da Guerra de Tróia, mas apenas alguns episódios que se deram no nono ano do assédio grego. As lendas sobre a antiga cidade, construída pelo rei Ilo, eram muitas e variadas, fazendo parte do chamado "ciclo troiano", sendo um patrimônio cultural de conhecimento popular. Por isso, Homero não sentiu a necessidade de cantar nem o início nem o fim da Guerra de Tróia, limitando-se apenas a fazer referências e alusões a fatos já conhecidos pela coletividade grega. Seu intuito é focalizar o herói Aquiles (o título preciso da obra deveria ser "Aquileida", denominação que condensaria melhor a substância poemática), especialmente em suas ações e paixões relacionadas com a participação na Guerra de Tróia, anteriormente à tomada e à destruição da cidade pela confederação grega. Simplificando ao máximo, reduzimos o arcabouço fabular da Ilíada aos seguintes núcleos de narratividade, centrados em três "iras":
1) A ira do deus Apolo contra os gregos
Os aqueus, durante os longos anos de permanência de seus navios nas proximidades de Tróia, para se proverem de comida, de mulheres e de outros bens, costumavam saquear pequenas cidades ao longo da costa asiática. Na divisão do butim duma destas incursões, Agamenão, chefe da confederação dos príncipes aqueus, fica com a jovem Criseida, enquanto cabe a Aquiles, o principal herói grego, a posse da linda Briseida. Mas Criseida é filha de Crises, sacerdote de Apolo, que se aproxima dos navios gregos e oferece um bom resgate em troca da libertação de sua filha. Agamenão, além de não devolver a jovem, ofende e ameaça o velho sacerdote de Apolo. Crises, então, suplica ao deus para que vingue sua desonra e suas lágrimas. Apolo acolhe a prece de seu fiel servidor e lança contra os navios gregos flechas mortais que dizimam homens e animais. O adivinho Calcas revela que a peste, provocada pelas setas de Apolo, está relacionada com a ofensa sofrida pelo sacerdote. Para aplacar a ira do deus, os gregos devolvem a jovem ao pai.
2) A ira de Aquiles contra Agamenão
O prepotente chefe grego, obrigado a restituir sua escrava, exige dos confederados uma recompensa equivalente. E porque é Aquiles que se opõe à exigência de Agamenão, este lhe toma a escrava Briseida. O herói é consolado por sua mãe, a deusa Tétis, que consegue de Zeus (→ Júpiter) a promessa de que os gregos não triunfariam sobre os troianos até que a injustiça feita a Aquiles fosse reparada. Enquanto Aquiles, ofendido, renuncia a lutar, os gregos recomeçam as ações bélicas perto dos muros de Tróia. Num duelo particular entre os dois maridos de Helena, a intervenção de Vênus salva o troiano Páris, que está para ser morto pelo grego Menelau. O herói grego Diomedes, ajudado por Juno e Minerva, dá mostras de grande valor, matando vários troianos e ferindo não só o herói Enéias, mas também Vênus e Ares, divindades protetoras dos troianos. Mas estes, chefiados por Heitor, filho do rei Príamo, conseguem grande vantagem sobre os aqueus que, apesar do grande valor de Ajax, Diomedes, Agamenão, Ulisses e Menelau, são obrigados a construir um muro e um fosso para protegerem seus acampamentos e seus navios. Os gregos, privados da ajuda divina de Juno e de Minerva, proibidas por Júpiter de intervirem na guerra, enviam Ulisses à tenda de Aquiles para suplicar-lhe que volte à luta, pois Agamenão está disposto a devolver-lhe a escrava Briseida, junto com outros donativos. Mas o herói persiste no seu propósito de abster-se da guerra, ameaçando inclusive de abandonar o assédio de Tróia e retornar para sua pátria. Os troianos pressionam cada vez mais o exército grego, obtêm várias vitórias e conseguem romper parte do muro dos acampamentos gregos. Agamenão chega a propor o abandono do assédio de Tróia. Mas Posêidon (→ Netuno)]], o deus do mar, infunde coragem no chefe grego e Hera, conseguindo adormecer Zeus, volta a ajudar os gregos: os troianos são rechaçados e Heitor é ferido. Mas Jupiter, acordando, ordena a Hera e a Posêidon retirarem-se da guerra, e os troianos tornam a vencer, conseguindo até incendiar um navio grego.
3) A ira de Aquiles contra Heitor
Pátroclo, amigo de Aquiles, consegue permissão para lutar e chefiar o exército dos mirmidões. Aquiles empresta-lhe as armas, mas adverte o amigo para não guerrear longe do acampamento grego. Pátroclo, levado pelo entusiasmo, transgride a interdição, avança até os muros de Tróia e ataca o próprio Heitor. O herói troiano mata o amigo de Aquiles e se apossa de suas armas. Menelau, ajudado por Ajax, consegue recuperar o corpo de Pátroclo e o leva ao acampamento de Aquiles. O herói grego se desespera e jura vingança. Com seus gritos monstruosos afugenta os troianos, enquanto a mãe Tétis vai pedir a Hefestos (→ Vulcano), o deus do fogo, a confecção de novas armas. Recebidas as armas, Aquiles convoca todos os chefes gregos para a batalha. Agamenão reconhece seu erro, restitui-lhe Briseida e oferece-lhe outros presentes. Apesar da profecia do cavalo Xanto, que prediz próxima a morte do herói, Aquiles se lança à luta, exterminando todos os troianos que lhe aparecem na frente: mata Polidoro, irmão de Heitor; este é salvo por Apolo e Enéias por Posêidon. Aquiles persegue Heitor, que foge ao redor dos muros de Tróia. Após a terceira volta, Heitor é alcançado, morto e despojado de suas vestimentas bélicas. Os pais, Príamo e Hécuba, e a esposa, Andrômaca, choram a morte do herói. Voltando ao acampamento grego, Aquiles presta as honras fúnebres ao amigo Pátroclo. Os mirmidões organizam jogos e esportes. Todos os dias, Aquiles arrasta o corpo de Heitor em torno do túmulo de Pátroclo. Príamo chega até o acampamento grego para suplicar a Aquiles que lhe devolva o cadáver do filho. O herói se comove perante as lágrimas do velho pai e lhe restitui o filho morto. Regressando a Tróia, são realizados os funerais de Heitor.
Características das personagens
A Ilíada é a exaltação do heroísmo guerreiro. É a representação mítico-artística da luta dos gregos primitivos em seu desejo de conquistar novas cidades e ampliar seus domínios. Mas, paralelamente à expressão desta atividade coletiva, o poema ressalta os valores individuais, caracterizando marcadamente personagens que se tornaram protótipos humanos. A Guerra de Tróia é apenas um pretexto para que o poeta possa articular, relacionar entre si e fixar para sempre a galeria de heróis que a tradição cultural foi criando aos poucos. A Ilíada, mais do que a expressão de um ideal de vida, é a descrição de uma gama variegada de tipos, cada qual representando um aspecto ou uma aspiração da vida humana. Compreender o poema significa, portanto, entender a caracterização de seus personagens principais, que se tornaram "arquétipos" na cultura ocidental:
Aquiles, o protagonista do poema, é apresentado pelo mito grego como semideus, filho do rei Peleu e da deusa Tétis. Segundo o poeta romano Estácio, que na sua obra Aquileida procura coletar todas as lendas sobre o herói, foi imerso, ao nascer, no rio infernal Estige, cujas águas sagradas o tornaram invulnerável, a não ser no calcanhar pelo qual foi segurado. Educado pelo centauro Quirão, filho de Saturno (→ Cronos) e mestre de príncipes e heróis, Aquiles cultivou todas as artes. Mas o povo da Grécia Antiga o considerou seu herói nacional especialmente pela sua portentosa força física (fora alimentado com entranhas de leões!) e pela extrema perícia na arte da guerra. Na Ilíada, além de seu valor bélico, é exaltado seu sentimento de "honra", pelo qual pode ser considerado o primeiro "cavaleiro" do mundo ocidental. Não se curvando à prepotência do chefe Agamenão, só volta à luta contra os troianos para vingar a morte do amigo Pátroclo. E seu sentimento de ira contra Heitor é superado apenas pela piedade perante as lágrimas do velho pai do herói troiano. Mesmo conhecendo a vontade do Destino, que prescrevera que sua morte se seguiria à de Heitor, ele não hesita em honrar a morte do amigo Pátroclo, matando quem lhe tirara a vida. Enfim, Aquiles representa a encarnação artística do homem na idade juvenil que se deixa dominar ora pela violência das paixões (agressividade, ira, ódio), ora pela delicadeza dos sentimentos (amizade, piedade, religiosidade).
Agamenão, rei de Micenas e chefe da expedição grega contra Tróia, no poema representa o "autoritarismo", sendo o correspondente humano do deus Júpiter. Como todo chefe autoritário, ele é prepotente, tolo, vaidoso e, essencialmente, fraco. Amedronta-se perante o mínimo sucesso do exército troiano e está sempre pronto a ordenar o fim do assédio e a volta dos príncipes gregos para suas cidades. A sorte de Agamenão é que está bem assessorado: Nestor e Ulisses são seus inteligentes conselheiros que, nos momentos de crise, lhe indicam a resolução certa a ser tomada. Ele tem apenas a jactância de chefe, pois intimamente é egoísta, covarde e incapaz de incentivar seus liderados ao cumprimento da missão militar.
Menelau, rei de Esparta e irmão de Agamenão, constitui a razão do assédio contra Tróia, pois o motivo da guerra dos gregos, no poema homérico, é a reconquista de sua esposa Helena. Devido à extrema importância da figura de Menelau na economia mítico-ideológica da Ilíada, a preservação da vida deste herói é uma preocupação constante dos príncipes gregos, especialmente de Agamenão. E por isso que, apesar de seu grande valor militar, é-lhe proibido lutar contra Heitor e nas batalhas goza sempre da proteção de outros gregos, mormente dos heróis Ajax e Diomedes. Caracterizado como homem prudente, consciente de sua missão, Menelau configura a luta pela preservação dos valores ideológicos da união conjugal e do respeito pelos bens alheios.
Helena é o pivô da Guerra de Tróia. Filha de Júpiter e da mortal Leda, sua beleza divina exerceu um fascínio irresistível sobre os homens. Ainda menina, foi raptada por Teseu (→ Ariadne) Salva pelos irmãos Dióscuros, na idade do casamento, teve inúmeros pretendentes. Casada com Menelau e raptada por Páris, provocou a guerra contra Tróia, que causou desgraças e mortes a gregos e troianos. Homero, porém, não culpa Helena, mas o Destino (→ Fado). Os que mais sofrem com o assédio, o rei Príamo e seu filho Heitor, são também os maiores defensores da jovem grega, eximindo-a de qualquer responsabilidade. Com efeito, ela não tem culpa de ter sido seduzida pela beleza de Páris, visto que era vontade da deusa Vênus que tal coisa acontecesse. Como já observara o sofista Górgias, em seu Elogio a Helena, a ratio é impotente diante do pathos: a força instintiva dos sentidos, a paixão, é mais forte do que as prescrições e interdições socio-morais. Helena é o símbolo da criatura seduzida e sedutora. Representada como a correspondente humana de Vênus, Helena vive apenas em função do amor, elevando-se a protótipo de mulher fatal, a cujo fascínio ninguém pode resistir. Morto Páris, ela se une maritalmente a outro filho de Príamo, Deífobo. Após a tomada de Tróia, quando Menelau se aproxima dela com a intenção de castigá-la com a morte pela sua traição, eis que Helena se despe na sua frente, seduzindo novamente seu marido e voltando a ser sua esposa. A presença do corpo de Helena evoca os desejos sexuais latentes no subconsciente do príncipe grego, que anulam seu propósito de vingança. É a paixão que triunfa sobre a razão.
Heitor é o maior herói troiano. Filho do rei Príamo e da rainha Hécuba, é ele quem preside as assembléias, toma as decisões e chefia a guerra contra os gregos. Auxiliado pelos deuses Apolo e Marte e amado pelo seu povo, Heitor é o protótipo do governante justo e sábio e do chefe de família devotado. Homero compara Heitor aos heróis gregos Aquiles, quanto ao valor militar, e Agamenão, quanto ao poder de chefia das ações bélicas. Mas, no confronto, a simpatia dos leitores da Ilíada tende para o herói troiano. Se Aquiles é mais forte e Agamenão mais prepotente, Heitor é mais humano e mais sensato. Ele luta por uma causa justa, que é a defesa de sua cidade, de seu patrimônio e de sua família, contra os gregos invasores. Mesmo cônscio de que é vontade do Destino que morrerá lutando contra Aquiles, ele não recusa o duelo com o inimigo grego, pois o sentimento do dever cívico supera qualquer egoísmo. Comovente é a cena familiar, descrita no canto VI, quando se despede da esposa, da mãe e do filho, antes de ir para a luta.
Páris, apesar de ser o maior responsável pelo assédio dos gregos contra sua cidade, no poema é apresentado como fraco e covarde. Prefere as delicias do amor de Helena à luta contra os inimigos. Só vai ao combate nos momentos de perigo, quando vê ameaçada a segurança do lar, e, mesmo então, estimulado pelo irmão Heitor e sob a proteção da deusa Vênus. A função que o Destino lhe prescrevera era a de amar, subjugado como estava pela beleza divina da esposa grega. A tradição fez de Páris o protótipo do homem belo, elegante e amoroso (→ Adônis).
Andrômaca, a esposa de Heitor, contrastando com Helena, é a mais bela configuração da fidelidade conjugal e da devoção ao lar. Filha do rei de Tebas, já de solteira experimentara o sofrimento pela morte do pai e dos sete irmãos, massacrados por Aquiles. Durante o assédio grego a Tróia, ela tem pressentimentos do aproximar-se de novas desgraças e pede ao marido que lhe poupe a sua viuvez e a orfandade do filho Astíanax. Mas, de outro lado, sabe que a vontade do Destino deve realizar-se: Heitor, homem justo e digno, não pode afastar-se da luta para evitar a morte. As lágrimas de Andrômaca sobre o cadáver de Heitor são fortemente expressivas, sendo este trecho considerado um dos mais comoventes do poema.
A Ilíada é a expressão artística da idade guerreira do povo grego, caracterizada pelas grandes emigrações. Neste estágio de civilização, a educação estava centrada na areté, conceito que o nosso termo "virtude" traduz apenas parcialmente: era o ideal cavaleiresco de vida, unido a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. A virtude estava sempre ligada à nobreza e ao valor bélico. Mesmo nos breves períodos de paz, o dever e o prazer das lutas se manifestavam nas várias formas de atividades esportivas. Intimamente relacionado com o conceito de virtude, estava o sentimento da "honra", pois a ética grega, acima de qualquer outra coisa, exigia o respeito ao ser humano, quer em vida, quer após a morte. Daí a grande importância conferida aos funerais dos heróis e à comemoração do aniversário de sua morte. A honra era satisfeita pelo reconhecimento público do valor do indivíduo: o contentamento íntimo será uma aquisição posterior da cultura grega, quando de sua passagem para a época da filosofia.