Dicionário de Cultura Básica/Lutero

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LUTERO (a revolta contra a Igreja de Roma: Reforma Protestante)

"Paris bem vale uma missa"
(Henrique de Navarra)

Apesar do enorme progresso social e cultural que se deu na Europa a partir do Renascimento, ainda persistiam estruturas medievais, centradas sobre os poderes absolutistas do Império Romano-Germânico e da Igreja Católica. A nascente burguesia sentia sua atividade obstaculada pela falta de liberdade de locomoção (pesadas taxas alfandegárias de um feudo para outro), de comércio (a Igreja proibia a usura e o lucro) e de autonomia (exigência de impostos e dízimos). A classe nobre (reis e príncipes) também era obrigada a pagar onerosos tributos ao papa e ao imperador. A massa popular, por sua vez, vivia num estado de servidão, obrigada a trabalhar com remuneração ínfima e quase sem direitos: os proprietários das terras proibiam de catar lenhas, de caçar, de ter criações próprias. Por isso, cada vez mais, os camponeses abandonavam a roça para tentar melhor sorte nas cidades. Devido a esses fatores, a nobreza aliou-se à burguesia na luta contra o absolutismo político e a exploração econômica do Império e da Igreja, tendo como principal aspiração a constituição de Estados Nacionais, independentes do poder centralizador do Papa e do Imperador. Surgiram, assim, vários movimentos de protesto, que lançaram gritos de reformas políticas, religiosas e sociais. O primeiro movimento reformista aconteceu na Inglaterra, quando, em 1381, o estudante de Teologia de Oxford, John Wycliffe, estimulou as insurreições camponesas. Ele, junto com padres franciscanos que chegaram do continente, tentou uma reforma dos costumes, insurgindo-se contra a prepotência e a corrupção da Igreja, exigindo que os prelados católicos renunciassem aos bens materiais e obrigassem padres e monges a trabalhar. Wycliffe foi condenado como herege, mas suas idéias se difundiram pela Europa toda. No reino da Boêmia, Estado eslavo encravado no Sacro-Império e disputado pelos príncipes tchecos e germânicos, surgiu o segundo movimento de purificação da Igreja: Jan Huss, outro estudante de Teologia, com suas pregações começou a denunciar a venda das "indulgências" (o perdão dos pecados em troca do pagamento à Igreja de uma certa quantia de dinheiro) e a atacar a riqueza material e a imoralidade do alto clero, que vivia faustamente e exigia tributos para sustentar seu luxo. Sua sorte foi pior: o papa João XXII o condenou a morrer na fogueira, no ano de 1415. Mas a grande Reforma protestante contra a autoridade do papa e os desmandos do Catolicismo eclodiu na Alemanha, no início do século XVI: em 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero afixou na porta de uma igreja da Saxônia suas "95 teses". Entre os tópicos mais importantes da Reforma luterana, apontamos: 1) O livre exame da Sagrada Escritura: a palavra de Deus deve ser conhecida diretamente pelos fiéis e não indiretamente pela pregação dos padres católicos. Daí o apego dos protestantes à leitura da Bíblia, que perdura até hoje. Tal propósito foi facilitado pela invenção da imprensa e pela tradução do Velho e do Novo Testamento nas línguas vernáculas; 2) A negação da autoridade papal: o papa não é infalível e a Igreja Católica não tem poder sobre o Estado ou sobre outras formas de religiosidade. Qualquer cristão tem acesso direto a Deus e pode ser salvo pela fé em Jesus Cristo; 3) A iconoclastia: as imagens e as estátuas de Nossa Senhora e dos Santos, assim como qualquer tipo de "relíquia", devem ser destruídas, consideradas como novas formas do politeísmo pagão. O crente não precisa de intermediários, porque adquire o conhecimento da vontade de Deus pelos textos sagrados e pode arrepender-se de seus pecados pedindo perdão diretamente a Deus. 4) A abolição de cinco sacramentos (ficaram apenas o batismo e a eucaristia) e do celibato eclesiástico: a permissão do casamento dos padres esvaziou paróquias e conventos. O próprio Lutero deu o exemplo, casando-se com uma freira.

A Reforma luterana provocou várias rebeliões na Alemanha. Os nobres empobrecidos assaltaram abadias; a massa popular, liderada por Thomas Münzer e congregada numa seita chamada de "Anabatista", lançou o grito comunitário: se todos os homens são iguais perante Deus, é justo que todos os bens sejam divididos entre todos. Mas tal posição extrema foi condenada pelo próprio Lutero, que nunca deixou de representar os interesses da burguesia. As forças conservadoras do clero e dos nobres acabaram decapitando Münzer e os outros dirigentes da liga camponesa. Na Suíça, já então um Estado independente do Sacro-Império e governado por ricos burgueses, o protestantismo chegou com a motivação de não pagar impostos ao papa. Ulrich Zwingli e João Calvino encabeçaram a revolta dos quatro cantões. O Calvinismo deu à Reforma de Lutero um caráter mais conservador, exaltando o espírito da burguesia. Considerando o enriquecimento (mesmo ilícito, através da usura) como um sinal da bênção divina, o Calvinismo santificou os empreendimentos industriais, a atividade comercial e a especulação financeira. Daí alguns historiadores terem sustentado a tese da existência de uma relação muito estreita entre a ética protestante e o triunfo do sistema capitalista. Veja-se, por exemplo, a obra famosa do sociólogo e economista alemão Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905). Essa tese fornece o motivo ideológico para a explicação do fato histórico de que os povos de religião protestante são mais ricos e mais desenvolvidos. Mas o Calvinismo, se do ponto de vista social foi progressista, revelou-se extremamente conservador quanto à moral, impondo pesadas restrições. O Capitalismo marchou junto com o puritanismo na construção de um novo modelo de vida social. Na Inglaterra, o protestantismo se revestiu de um caráter mais propriamente político. Henrique VIII, rei do Estado nacional, não queria se submeter à autoridade papal. Aproveitando a recusa do papa Clemente VII de conceder-lhe o divórcio de sua esposa Catarina de Aragão, para contrair novas núpcias com a bela cortesã Ana Bolena, consumou o cisma com Roma e fundou a Igreja Anglicana que, embora respeitasse quase integralmente os dogmas católicos, não evitou violentas lutas por motivos religiosos. A Igreja de Roma, para enfrentar a disseminação das várias seitas protestantes, iniciou um movimento de renovação dos costumes, que se chamou de "Contra-Reforma". Para tanto, convocou o Concílio de Trento, que funcionou ao longo de dezoito anos, de 1545 a 1563, quando bispos de toda a Europa fizeram uma revisão da doutrina católica e impuseram severas normas de conduta moral. A execução das resoluções do Concílio foi confiada à "Companhia de Jesus", ordem religiosa fundada pelo cavaleiro espanhol Inácio de Loyola, em 1534, com o fim específico de lutar contra o protestantismo, através do ensino religioso dirigido. Inúmeros colégios jesuítas se espalharam pela Europa, América e Oriente, sendo que, nas regiões recém-descobertas, a tarefa dos religiosos era evangelizar os indígenas e organizar "reduções", onde os índios catequizados aprendiam a lavrar a terra e a criar o gado. No Brasil, o nobre apostolado dos jesuítas está substanciado nas ações de três padres que passaram a integrar a história de nossa terra: Nóbrega, Anchieta e Vieira. Mas a Companhia de Jesus, se teve inegável mérito pela sua ação religiosa, social e cultural, como braço forte da Contra-Reforma, foi acusada de crimes horríveis na tentativa de reprimir hereges e protestantes. O Tribunal da Inquisição, instituído no século XIII para combater a heresia cátara, teve seu apogeu na época barroca, quando se notabilizou por seus métodos arbitrários e cruéis. As pessoas delatadas, consideradas "bruxas", eram submetidas à tortura até à confissão e, depois de condenadas nos autos-de-fé, eram queimadas na fogueira, tendo seus bens confiscados (→ Joana d’Arc). Durante o Concílio de Trento foi reformulada a Inquisição medieval, criando-se o Tribunal do Santo Ofício, com sede na Espanha. Essa Inquisição, além de perseguir hereges, protestantes e judeus, teve a incumbência de processar e condenar cidadãos acusados de outros crimes também, assim como sodomia, poligamia, bruxaria. O primeiro Grande Inquisidor espanhol, o padre dominicano Tomás de Torquemada, durante os dezesseis anos que ocupou o cargo, condenou à fogueira aproximadamente duas mil pessoas. A Contra-Reforma ensejou inúmeras e sangrentas guerras de religião em toda a Europa, que ainda hoje têm reflexos na Irlanda e em alguns países do Oriente Médio. Somente na França e apenas durante a segunda metade do século XVI, travaram-se oito guerras entre católicos e protestantes, estes chamados pejorativamente de "huguenotes". No decorrer da quarta guerra, na famosa Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572), foram massacrados aproximadamente trinta mil huguenotes. Junto com o motivo religioso, existiam também interesses políticos pela disputa de territórios entre França e Espanha. Enfim, para terminar as hostilidades, Henrique de Navarra converteu-se ao catolicismo, pronunciando a famosa frase "Paris bem vale uma missa". Coroado rei com o nome de Henrique IV, ele solucionou o conflito religioso, concedendo liberdade de culto aos protestantes (Edito de Nantes, 1594). A partir daí, o Protestantismo começou a se desenvolver paralelamente ao Catolicismo, adquirindo múltiplos aspectos. Com base no seu princípio fundamental da livre interpretação das Escrituras, apareceram várias correntes dentro da sua doutrina, tornando-se setas religiosas diferenciadas. Os ramos mais antigos foram: Luteranismo (Alemanha e países Escandinavos); Calvinismo (Suíça, Países Baixos, França e USA); Anglicanismo (Inglaterra). Mais tarde surgiram as Igrejas das congregações de batistas, metodistas, pentecostais, evangélicos, entre outras, cada qual adquirindo feições locais nas diversas regiões do planeta.