Dicionário de Cultura Básica/Lusíadas

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LUSÍADAS (poema épico de Camões) → ÉpicaLíricaRenascimento

Amor é fogo que arde sem se ver

Luís Vaz de Camões (1524?-1580), apesar de ser um dos maiores poetas da Renascença européia, tem uma biografia obscura. Não sabemos a data certa nem o lugar de seu nascimento (Lisboa ou Coimbra?). Filho de fidalgos empobrecidos viajou muito, especialmente pelas colônias portuguesas de ultramar (Goa e Moçambique), sofrendo exílio, naufrágio e prisão. O rei D. Sebastião (→ Sebastianismo) concedeu-lhe uma modesta pensão para alguns anos. Enfim, morreu num hospital de Lisboa na mais negra miséria. Ele cultivou todas as formas poéticas da sua época, mas se tornou imortal pelas suas poesias líricas e pela epopéia Os Lusíadas, a maior obra do Renascimento português. Quanto à produção lírica, os melhores poemas de Camões são os produzidos na chamada "medida nova", introduzida em Portugal por Sá de Miranda, em 1527, quando de sua volta da Itália. Mas o maior poeta lírico da Renascença européia, pela sua genialidade, está acima de qualquer corrente estética. Nele convergem todas as correntes poéticas de sua época, transitando o poeta lusitano livremente entre a lírica tradicional e a clássica. O poema épico Os Lusíadas começa com o conhecido verso:

As armas e os barões assinalados...

Etimologicamente, a palavra "lusíada" ou lusitano significa "acerca de Luso", figura da mitologia greco-romana, filho do deus Baco (Dionísio), considerado o lendário fundador de Portugal. A grandiosa obra reflete os dois postulados principais da cultura renascentista: a imitação dos modelos artísticos da Antiguidade greco-romana e a exaltação do homem na sua conquista de novos caminhos marítimos, com vistas a ampliar suas atividades comerciais. Daí a importância deste poema camoniano no contexto da cultura do Renascimento europeu. O "narrador" da aventura de Vasco da Gama em busca do caminho marítima para a Índia, evidentemente, não é o autor, a pessoa física de Camões, mas personagens que assumem o papel de contadores das histórias, apesentando ações, idéias e sentimentos através de pontos de vista diferentes. Podemos distinguir três "visões" ou "perspectivas" principais, cada qual dependendo de um diverso sujeito do discurso: 1) o ponto de vista do eu poemãtico (eu canto o peito ilustre Lusitano): é a "voz" que interpreta os acontecimentos, emite julgamento de valores, adverte seus contemporâneos, acusando a participação subjetiva de Camões, como cidadão de Portugal; 2) o ponto de vista do narrador onisciente (Já no largo Oceano navegavam): aqui o narrador é um ser onisciente e onipresente, que sabe tudo a respeito de todos, apresentando Camões como profundo conhecedor da cultura clássica e da história do seu país; 3) O ponto de vista dos personagens-narradores (Ó glória de mandar, ó vã cobiça): aqui é o Velho do Restelo, assim como Inês de Castro, o Gigante Adamastor e outros personagens em várias passagens d’Os Lusíadas, que toma a palavra para expressar, pela sua "fala", sua opinião sobre os acontecimentos. Essas várias "vozes" às vezes se entrelaçam, outras vezes se contradizem, cada qual expressando uma faceta do espírito do poeta. Estamos perante um "eu dividido", que ora idealiza a viagem do Gama, ora a julga à luz da história; ora enaltece os heróis e os reis de Portugal, ora denuncia os graves defeitos da gente de sua terra; ora relata a intervenção dos deuses pagãos nos acontecimentos portugueses, ora os considera divindades falsas e mentirosas. Estas (e outras) contradições seriam inexplicáveis sem o recurso estilístico da pluralidade dos sujeitos da enunciação. Considerado sob este aspecto, o poema camoniano apresenta traços de semelhança com a produção poética de outro grande expoente da literatura portuguesa, Fernando Pessoa que, através do processo da criação heterônima, desdobra o próprio "eu" em várias personalidades humanas e poéticas. Os Lusíadas, portanto, poderia ser submetido ao mesmo tipo de análise que M. Bakhtine utilizou para a exegese da obra de Dostoievski, em que ressalta a oposição dialética existente dentro do ser humano e o ilogismo e o paradoxismo das situações. As contradições encontráveis no poema camoniano constituem seu aspecto mais moderno, pois denunciam as perplexidades de Camões, que quebram a estrutura fechada e o sentido monológico da poesia épica clássica.

Se o plano da enunciação dos Lusíadas, como acabamos de ver, diz respeito ao "discurso" do poema, ao modo pelo qual o narrador está presente na narrativa, o plano do enunciado se relaciona com a "história", o modo pelo qual o conjunto dos fatos é narrado. Camões propõe-se cantar a história dos fatos gloriosos de Portugal, dando particular ênfase à expedição portuguesa, chefiada por Vasco da Gama, em busca do caminho marítimo para a Índia. A matéria-objeto da épica camoniana é a "fábula" do povo português, desde seu fundador mítico, Luso, filho de Baco, passando pelo seu fundador histórico, D. Afonso Henriques, e chegando até os feitos de D. Sebastião, rei de Portugal na época da publicação dos Lusíadas. Mas este assunto poemático não é narrado na sua ordem cronológica, não havendo coincidência entre "fábula" e "trama". Camões, seguindo o exemplo de Homero e de Virgílio ("o grego e o troiano"), começa seu poema in medias res: a trama inicia pelo meio da fábula, quer em relação à viagem de Vasco da Gama, quer em relação à história de Portugal. O poema, dividido em dez cantos, começa quando a armada portuguesa já se encontra perto de Moçambique, na costa africana. O início da trama tem, portanto, como elemento temporal de referência, o ano da expedição do Gama e como elemento espacial a África, quase a metade da distância entre Portugal e a Índia. Como os portugueses lá chegaram e por que iniciaram a longa viagem é contado através da narração retrospectiva (flash-back) do capitão Vasco da Gama ao rei de Melinde. Mas o herói português não conta apenas o início da viagem, recuando a narração até o início da fundação da nacionalidade lusitana e sintetizando em dois cantos (III e IV) mais de três séculos de história de Portugal. Após essa interrupção, a narração continua linearmente, descrevendo as peripécias da viagem da armada portuguesa de Melinde até a Índia. Aí se dá outro flash-back, quando Paulo da Gama, irmão do capitão-mor, explica ao Catual de Calicute o significado das figuras desenhadas nos painéis das bandeiras. Após a narração das transações comerciais e do pacto de amizade entre os dois povos, Camões descreve a viagem de volta da armada para Portugal e a parada intermediária na utópica ilha dos Amores. Mas estava no plano dos Lusíadas cantar também acontecimentos portugueses posteriores à viagem do Gama. Para tanto, era necessária uma narração prospectiva, através de uma visão profética: é o que faz a ninfa da ilha de Vênus, mostrando aos portugueses de Vasco da Gama as futuras glórias de seu país na Europa, na África e na Ásia, que ocupam o lapso de tempo que decorre da expedição do Gama até a publicação da obra. Em resumo, nos Lusíadas encontramos a narração entrelaçada de três grupos de acontecimentos mítico-históricos, de épocas diferentes: a) Presente da enunciação = época da publicação do poema (1572); b) Presente do enunciado = época da expedição do Gama (1498); c) Passado anterior ao enunciado = período de tempo que vai desde a fundação da nacionalidade portuguesa (meados do século XII) até a viagem do Gama.