História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/III/XV
Vendo Duarte Coelho de Albuquerque a muita gente que acudia, assim de Portugal como das outras capitanias, para povoarem a sua de Pernambuco, e fazerem nela engenhos e fazendas; e que as terras do cabo, que os gentios inimigos tinham ocupadas, eram as mais férteis, e melhores, determinou de lhas fazer despejar por guerra, e para isto fez resenha de gente que podia levar, e ordenou que com a gente de Iguaraçu fosse por capitão Fernão Lourenço, que era o mesmo capitão da dita vila: com a gente de Parati Gonçalo Mendes Leitão, irmão do bispo, que então era d. Pedro Leitão, e casado com uma filha de Jerônimo de Albuquerque; com a gente da Várzea de Capiguaribe Cristovão Lins, fidalgo alemão; e da gente da vila, mercadores, e moradores, porque eram de diversas partes do reino, ordenou outras três companhias, e que por capitão dos Vianenses fosse J.0 Paes; dos do Porto, Bento Dias de Santiago; e dos de Lisboa, Gonçalo Mendes Delvas, mercador; pelas quais seis companhias iam repartidos vinte mil negros, os mais deles do gentio da mata do pau-brasil, contrários dos do cabo.
Também lhes mandou o capitão da ilha de Itamaracá uma companhia de trinta e cinco soldados brancos, e dois mil índios flecheiros, e por capitão Pero Lopes Lobo: posto que ele os entregou a Duarte Coelho, para que os repartisse por onde visse serem necessários, e quis antes meter-se na companhia dos aventureiros, que era dos mancebos solteiros.
Sobre todos ia por general Duarte Coelho de Albuquerque, acompanhado de d. Filipe de Moura, e Filipe Cavalcante, genros de Jerônimo de Albuquerque, e de outros homens nobres e honrados, que todos o quiseram acompanhar, e não ficou mais na vila que Jerônimo de Albuquerque com alguns velhos, que não podiam menear as armas.
Com toda esta gente se partiu Duarte Coelho de Albuquerque, e foi marchando até às primeiras cercas dos inimigos, onde o esperaram aos primeiros encontros, e houve alguns mortos e feridos de parte a parte, mas vendo que era impossível resistir a tantos, se puseram em fugida com grande pressa, para que seguindo-os com a mesma não tivessem os nossos lugar de desmanchar-lhes as casas, e as cercas, e assim tornassem depois pelos matos a meter-se nelas; mas Duarte Coelho, que lhes adivinhou os pensamentos, lhes mandou queimar algumas, e em outras deixou presídios, com ordem que lhes arrancassem todos os mantimentos, com o que os obrigou a cometer pazes, e ele lhas outorgou com as condições, que melhor lhe estiveram, e repartiu as terras por pessoas, que as começaram logo a lavrar, os quais como acharam tanto mantimento plantado não faziam mais que comê-lo, e replantá-lo da mesma rama, e nas mesmas covas, e com isto foram fazendo seus canaviais, e engenhos de açúcar, com que enriqueceram muito, por a terra ser fertilíssima, e só um, que por isto se chamou João Paes do Cabo, chegou a fazer oito engenhos, que repartiram por oito filhos que teve, e coube a cada um seu de legítima.
E porque as terras do rio de Cirinhaen, que ficam defronte da ilha de Santo Aleixo, seis léguas do cabo, eram também muito boas, e as tinha ocupadas outro gentio contrário, que já estava sujeito e pacífico, e de lá os vinham inquietar, e salteá-los, lhes mandou Duarte Coelho dizer pelos nossos línguas, e intérpretes, que se quietassem, e fossem amigos, senão que lhe seria necessário defendê-los, e tomar vingança dos agravos, e injúrias, que lhes faziam.
Ao que eles com muita arrogância responderam que não o haviam com os brancos, nem com ele, senão com aqueles que eram seus inimigos, e contrários antigos; mas se os brancos queriam por eles tomar pendências, ainda tinham braços para se defenderem de uns, e de outros.
Tornados os línguas com esta reposta, fez Duarte Coelho de Albuquerque uma junta de oficiais da Câmera, e mais pessoas da governança, onde se julgou ser a coisa bastante para se lhes fazer guerra justa, e os cativar, e com este assento se aprestou logo outro exército, em que foi Filipe Cavalcante, fidalgo florentino, capitão dos que foram por mar em barcos, e caravelões, e Jerônimo de Albuquerque, dos que marcharam por terra, que Duarte Coelho como soldado quis ir solto, na companhia dos aventureiros, e tanto que chegaram às cercas, e aldeias dos inimigos, tiveram grandes encontros, e resistências, porque eram muitas, e rotas umas se acolhiam logo, e se fortificavam, e defendiam em outras com grande ânimo e coragem.
Porém quando viram o socorro dos barcos, e que não puderam impedir-lhes o desembarcar, posto que o acometeram animosamente, logo desconfiaram, e fugiram para o sertão, levando as mulheres, e filhos diante, e ficando os valentes fazendo-lhes costas, que nunca as viraram aos nossos aventureiros, e índios nossos amigos, que os foram seguindo muitas léguas, até chegar a uma grande cerca, onde se meteram uma tarde, aparecendo alguns pelos altos dela, com tantos ralhos, e mostras de se defenderem, que ali cuidaram os nossos que os tinham certos, e não sabiam já quando havia de amanhecer para abalroarem, animando-se todos uns aos outros para a peleja; porém pela manhã a acharam despejada, que todos haviam fugido, e só saíram de entre o mato um moço e uma moça de outro gentio, que eles tinham cativos, os quais contaram que no mesmo tempo, que os ralhadores apareceram na fronteira da cerca, iam todos os mais secretamente fugindo pela outra parte; e assim não havia para que cansar mais em os seguir, porque iam para mui longe, e para mais não tornarem, como de feito assim foi, e os nossos se tornaram para onde haviam deixado os mais, e os acharam arrancando, e desfazendo os mantimentos dos fugidos, com o que se tornaram todos, uns por mar outros por terra, a Olinda com muito contentamento.
A fama destas duas vitórias ficou todo o gentio desta costa até o rio de S. Francisco tão atemorizado, que se deixavam amarrar dos brancos como se foram seus carneiros e ovelhas; e assim iam em barcos por esses rios, e os traziam carregados deles a vender por dois cruzados, ou mil-réis cada um, que é o preço de um carneiro. Isto não faziam os que temiam a Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida, que da que haviam de dar a Deus, e principalmente veio um clérigo a esta capitania, a que vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar de grande mineiro, e por esta arte era mui estimado de Duarte Coelho de Albuquerque, e o mandou ao sertão com 30 homens brancos, e 200 índios, que não quis ele mais, nem lhe eram necessários; porque em chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte, e bem povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas , ou folhas lançava para o ar tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobres gentios machos, e fêmeas, tremendo de pés e mãos, e se acolhiam aos brancos, que o padre levava consigo; os quais não faziam mais que amarrá-los, e levá-los aos barcos, e aqueles idos, outros vindos, sem Duarte Coelho de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu tio, e de seu irmão Jorge de Albuquerque, do reino, querer nunca atalhar tão grande tirania, não sei se pelo que interessava nas peças, que se vendiam, se porque o Padre Mágico o tinha enfeitiçado; e foi isto causa para que el-rei d. Sebastião o mandasse ir para o reino, donde passou, e morreu com ele na África, e ficou a capitania a Jorge de Albuquerque Coelho, que também passou com el-rei, e foi cativo, ferido, e aleijado de ambas as pernas, mas resgatou-se, e viveu depois muitos anos casado com a filha de d. Álvaro Coutinho de Amourol, da qual houve dois filhos, Duarte de Albuquerque Coelho, e Mathias de Albuquerque, de que trataremos em o Livro Quinto. E o Padre do Ouro também foi preso em um navio para o reino, o qual arribou às ilhas, donde desapareceu uma noite sem mais se saber dele.