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Viagens de Gulliver/Parte II/IV

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Viagens de Gulliver
ilustração de Thomas M. Balliet

[Descrição do país. Uma proposta para correção dos mapas modernos. O palácio do rei; alguns relatos sobre a metrópole. O modo de viajar do autor. Descrição do templo principal.]

Pretendo agora oferecer ao leitor uma breve descrição deste país, e de todos os lugares que conheci, trajeto esse que não passou de duas mil milhas em torno de Lorbrulgrud, a metrópole. Pois que a rainha, a quem sempre estive a serviço, nunca foi além quando ela acompanhava o rei em suas viagens, e alí permaneci até que sua majestade retornasse de suas visitas às fronteiras. A extensão total dos domínios do príncipe alcançava cerca de seis mil milhas de comprimento, e de três a cinco mil milhas de largura: de onde posso apenas concluir, que os nossos geógrafos da Europa incorrem em grande erro, ao supor nada além do mar entre o Japão e a Califórnia; pois essa também era a minha opinião, que deve haver um equilíbrio da terra para contrabalançar o grande continente da Tartária, e portanto, eles devem corrigir seus mapas e cartas geográficas, acrescentando esta vasta imensidão de terra às regiões do nordeste da América, e para isso estou disposto a oferecer-lhes minha ajuda.

O reino é uma península, limitado a noroeste por uma cadeia de montanhas de trinta milhas de altura, as quais são totalmente intransponíveis, por causa dos vulcões nos topos: nem os mais sábios imaginam que tipo de mortais habitam além daquelas montanhas, ou se ao menos elas são habitadas. Nos outros três lados, ele é cercado pelo oceano. Não há um único porto marítimo em todo o reino: e aquelas regiões litorâneas onde os rios desaguam, são tão repletos de rochas pontiagudas, e o mar geralmente é tão agitado, que ninguém se arrisca com o menor dos seus barcos; de modo que, estes povos estão totalmente excluídos de qualquer tipo de comércio com o resto do mundo.

Mas os rios imensos estão tão cheios de navios, e existe uma imensidão tão grande de excelentes peixes, pois eles raramente retiram alguma coisa do mar, porque os peixes do mar são do mesmo tamanho que os da Europa, e consequentemente não vale a pena pescar, de onde resulta que a natureza, na produção de plantas e animais de tão extraordinário tamanho, está totalmente confinada a este continente, cujas razões deixo aos filósofos para tirarem suas conclusões. Entretanto, de vez em quando eles pegam uma baleia que por acaso entrou em colisão com as rochas, a qual as pessoas comuns comem com prazer. Estas baleias que conheci são tão grandes, que dificilmente um homem poderia carregar em seus ombros, e algumas vezes, por curiosidade, elas são levadas em cestos para Lorbrulgrud; eu vi uma delas num prato na mesa do rei, que seria considerada uma raridade, mas não notei se ele gostou, pois eu acho, que, na verdade, o seu tamanho muito grande não o agradou, embora eu tenha visto algumas maiores na Groenlândia.

O país é bem habitado, pois ele abrange cinquenta e uma cidades, quase cem cidades muradas, e uma grande quantidade de aldeias. Para satisfazer meu curioso leitor, creio ser suficiente descrever Lorbrulgrud. A cidade é dividida em duas partes iguais, uma de cada lado do rio que a atravessa. Ela tem mais de oitenta mil casas, e cerca de seiscentos mil habitantes. Ela tem o comprimento de três GLOMGLUNGS (o que equivale a aproximadamente cinquenta e quatro milhas inglesas), e dois e meio de largura, como eu mesmo medi no mapa real feito por ordem do rei, e que fora colocado no chão de propósito para mim, e que media trinta metros de extensão: eu caminhei sobre o diâmetro e a circunferência diversas vezes a pé, e fazendo o cálculo por meio de uma escala, o medí com bastante exatidão.

O palácio do rei não é um edifício regular, mas um conjunto de edificações, aproximadamente com sete milhas de diâmetro: as salas principais geralmente tinham setenta e três metros de altura, sendo a largura e o comprimento proporcionais. Uma carruagem foi cedida para Glumdalclitch e para mim, na qual a sua tutora frequentemente saía para ir à cidade, ou para fazer compras, eu estava sempre em festa, transportado dentro de minha caixa; embora a garota, atendendo a meu pedido, sempre me levasse para sair, e me segurava em sua mão, para que eu visse as casas e as pessoas mais convenientemente, a medida que passeávamos pelas ruas. Calculei que a nossa carruagem era como uma nave de Westminster-hall, mas não totalmente tão alta: entretanto, não posso ser muito preciso.

Um dia a tutora ordenou ao nosso cocheiro para parar em várias lojas de comércio, onde os mendigos, que esperavam uma oportunidade, se amontoaram ao lado da carrugem, e me ofereceram o mais horrível espetáculo que os olhos de um europeu já contemplaram. Havia uma mulher com câncer no seio, inchado até chegar a um tamanho assustador, repleto de buracos, em dois ou três dos quais eu poderia facilmente me arrastar, e cobriam o meu corpo inteiro. Havia um homem com um tumor no pescoço, maior que cinco pacotes de algodão, e um outro, com um par de muletas, cada uma tinha seis metros de altura. Mas a visão mais horrorosa de todas, era o piolho rastejando em suas roupas. Eu podia ver perfeitamente os membros deste piolho a olho nu, com muito mais clareza do que aqueles de um piolho europeu com um microscópio, e seus focinhos com os quais eles rosnavam que nem porco. Eles foram os primeiros que eu já vi, e teria tido curiosidade o bastante para dissecar um deles, caso dispusesse dos instrumentos apropriados, os quais eu infelizmente havia deixado para trás no navio, embora, na verdade, a visão era tão repugnante, que me revirou completamente o estômago.

Além da caixa grande na qual eu geralmente era transportado, a rainha ordenou que uma menor fosse fabricada para mim, maior que três metros e meio quadrados, e três de altura, para comodidade nas viagens, porque a outra era um pouco grande demais para o colo da Glumdalclitch, incômoda na carruagem; ela fora confeccionada pelo mesmo artista, a quem orientei em todo o projeto. Este gabinete para viagens era um perfeito quadrado, com uma janela no meio dos três lados do quadrado, e cada janela tinha grades com arames de aço do lado de fora, para evitar acidentes nas viagens longas. No quarto lado, o qual não tinha janela, dois fortes prendedores foram fixados, através do qual a pessoa que me transportava, quando eu tinha vontade de andar a cavalo, colocava um cinto de couro, e prendia com fivela na sua cintura.

Esta tarefa, quase sempre, era de algum trabalhador leal, no qual eu poderia confiar, caso eu acompanhasse o rei e a rainha em suas viagens, ou estivesse disposto a ver os jardins, ou fazer uma visita a uma grande senhora ou a um ministro do estado na corte, quando Glumdalclitch por acaso não estivesse disponível, pois eu logo comecei a ser conhecido e estimado pelos maiores oficiais, e suponho, mais por causa dos favores de sua majestade, do que por qualquer mérito meu. Nas viagens, quando eu estava cansado da carruagem, um criado a cavalo prendia com fivela a minha caixa, e a colocava sobre uma almofada diante dele, e lá eu tinha a melhor perspectiva do país nos três lados, das minhas três janelas. Eu tinha, neste gabinete, uma cama de campanha e uma rede, pendurada no teto, duas cadeiras e uma mesa, muito bem parafusadas no chão, para evitar que fossem sacudidas com a agitação do cavalo ou da carruagem. E como estava há muito tempo acostumado às viagens marítimas, esses movimentos, embora algumas vezes muito violentos, não me incomodavam muito.

Quando eu desejava ver a cidade, era sempre levado dentro do meu gabinete de viagem; o qual Glumdalclitch segurava em seu colo como uma espécie de liteira aberta, segundo a moda do país, suportado por quatro homens, e auxiliado por outros dois na carruagem da rainha. As pessoas, que frequentemente tinham ouvido falar de mim, ficaram muito curiosas em se amontoar em torno da liteira, e a garota era delicada o bastante para fazer com que os carregadores parassem, e me pegava na mão, para que eu pudesse ser visto mais comodamente.

Eu tinha muita vontade de conhecer o templo principal, e particularmente a sua torre, que é reconhecidamente a mais alta do reino. Um dia combinei com minha babá que me levou até lá, mas na verdade devo dizer que voltei desapontado, porque a altura não passava dos novecentos e catorze metros, contando desde o solo até o topo do pináculo mais alto; o que, dada a diferença de tamanho entre aquelas pessoas e nós da Europa, não é motivo para grande assombro, nem chega proporcionalmente (se estou bem lembrado) à torre do campanário de Salisbury. Mas, para não desprestigiar a nação, à qual, durante a minha vida, me reconhecerei agradecido pelo resto da vida, temos que admitir, que o que falta em altura a esta famosa torre, sobra em beleza e solidez: pois as paredes tem mais de trinta metros de largura, e foram feitas de pedra talhada, cada uma medindo um quadrado com mais de doze metros de largura, e enfeitada por todos os lados com estátuas de deuses e imperadores, esculpidas em mármore, maior que o tamanho natural, e posicionadas em diversos nichos.

Eu medi um dedinho que havia caído de uma dessas estátuas, e que permanecia despercebido entre alguns entulhos, e descobri que ele media exatamente vinte e seis centímetros de comprimento. Glumdalclitch o embrulhou em seu lenço, e o levou para casa em seu bolso, para guardá-lo junto com outras bugigangas que a garota gostava, como fazem as crianças de sua idade.

A cozinha do rei era de fato um belo edíficio, com uma abóbada no topo, e aproximadamente cento e oitenta e dois metros de altura. O grande forno não era tão grande, cerca de dez passos maior, que a cúpola da Catedral de São Paulo em Londres: porque eu a medi com esse propósito depois que retornei. Mas se eu tivesse que descrever a grelha da cozinha, as enormes panelas e chaleiras, aqueles pedaços grandes de carne dando volta nos espetos, além de muitos outros detalhes, talvez dificilmente iriam acreditar em mim; ou ao menos uma crítica severa seriam capaz de pensar que eu aumentei um pouco, como se presume que fazem frequentemente os viajantes. Para evitar esta censura, receio ter incorrido muito no outro extremo; e caso este tratado seja um dia traduzido para o idioma de Brobdingnag (que é o nome daquele reino), e transmitido para lá, o rei e o seu povo teriam razão em se queixar de eu ter cometido uma ofensa para com eles, com uma representação falsa e tão diminuta.

Sua majestade raramente guarda mais que seiscentos cavalos em seus estábulos: geralmente eles tem de dezesseis a dezoito metros de altura. Mas quando ele viaja para o exterior nos dias de festa, ele é esperado, como honra de estado, por uma guarda miliciana de quinhentos cavalos, os quais, de fato, considerei a vista mais espetacular que jamais poderia ser contemplada, até que vi parte do seu exército em batalha, do qual falarei em outra ocasião.

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