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Anexo:Imprimir/Vila Rica (Cláudio Manuel da Costa)

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Poema de CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, Árcade Ultramarino, com o nome de GLAUCESTE SATÚRNIO, oferecido ao Ilmo e Exmo Sr. Conde de Bobadela

Ano de 1773

Ultra gargantas, et Indos proferet imperium
VIRGÍLIO, Eneida, VI

Índice

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Depois de haver escrito o meu Poema da fundação de Vila Rica, Capital das Minas Gerais, minha Pátria, a quem o deveria eu dedicar mais que a V.Exa.? Há muito que ansiosamente solicito dar ao Mundo um testemunho de agradecimento aos benefícios que tenho recebido da Excelentíssima Casa de Bobadela: este me persuado que o pode ser, se não pelo mais completo, ao menos pelo mais puro: a idade que o ler confessará ingenuamente que não obrou a lisonja, aonde sobressai a verdade. Dirão que adornei de louvores os preclaríssimos nomes de V.Exa. e do Esmo. Sr. Gomes Freire de Andrada, bem digno Irmão, mas poder-se-á conhecer ao mesmo tempo que me deu dilatadíssimo campo um merecimento a todas as luzes sólido, grande e incontestável.

Quem ignora que por quase trinta anos descansaram com felicidade nas mãos dos Exmos. Freires as Minas do Ouro do nosso Portugal? Quem não viu alegres os Povos, satisfeito o Monarca e conseguida em toda a sua extensão a igualdade da justiça por todo este espaço do saudoso governo daqueles Heróis? Podéra produzir muitas provas, se me não sobrasse por todas a mesma diuturnidade dos anos que refiro. Parece que o Rei desejava fazer eternos na proteção destes vassalos, tão apartados do seu trono, aqueles espíritos que tanto apetecia ter ao seu lado: esta foi a maior significação de amor com que distinguiu aos moradores das Minas e este o testemunho maior com que qualificou o conceito que formava dos Excelentíssimos. Freires.

Devera agora arrebatar-me na individual exposição de todas as virtudes de v. exc., no elogio do seu esclarecido sangue, na portentosa série das suas ações: tudo tenho diante dos olhos, tudo me lisongêa por extremo, e me estimula tudo.

Levantara uma nova Epopéia, que fizesse emudecer o rapto dos Mantuanos nos seus Marcelos; mas que posso dizer, se reconheço tão desigual o canto à vista do objeto que concebo! O Mundo me acusaria sempre de diminuto: e eu receberei grande vaidade de acabar com a ponderação deste embaraço este obséquio. Sou

De V. Exa.

Humilde Servo,
Claudio Manuel da Costa

LEITOR,

Eu te dou á lêr uma memória por escrito das virtudes de um Herói que fora digno de melhor engenho para receber um louvor completo. Não é meu intento sustentar que eu tenho produzido ao Mundo um Poema com o caráter de épico; sei que esta felicidade não conseguiram até o presente aqueles homens a quem a Fama celebra laureados na Grécia, na Itália, em Inglaterra, em França e nas Espanhas. Todos se expuseram à censura dos críticos, e todos são argüidos de algum erro ou defeitos; a razão pode ser a que assina um bom Autor: inventaram-se leis aonde as não havia. Mas doute, que eu não te ofereça mais que uma composição em metro, para fazer ver o distinto merecimento de um General que tão prudentemente pacificou um Povo rebelde, que segurou a Real Autoridade e que estabeleceu e firmou, entre as diferentes emulações de uns e outros Vassalos desunidos, os interesses que se deviam aos Soberanos Príncipes de Portugal: dirás que é digna de repreensão a minha empresa? Na verdade não espero do teu benigno ânimo esta correspondência: e tudo o que não for injúria ou acusação será para mim uma inestimável remuneração das minhas fadigas.

Se eu fiz alguma diligência por averiguar a verdade, digam-te as muitas Ordens e Leis que vês citadas nas minhas notas, e a extensão de notícias tão individuais com que formei o plano desta obra: pode ser que algum as conteste pelo que tem lido nos escritores da História da América; mas esses não tiveram tanto à mão as concludentes provas de que eu me sirvo; não se familiarizaram tanto com os mesmos que intervieram em algumas das ações e casos acontecidos neste País; e ultimamente não nasceram nele, nem o comunicaram por tantos anos como eu.

E se estas Minas, pelas riquezas que têm derramado por toda a Europa, e pelo muito que socorrem com a fadiga dos seus habitantes ao comércio de todas as nações polidas, eram dignas de alguma lembrança na posteridade, desculpa o amor da Pátria, que me obrigou a tomar este empenho, conhecendo tanto a desigualdade das minhas forças. Estimarei ver elogiada por melhor pena uma terra que constitui hoje a mais importante Capitania dos domínios de Portugal.

PERSUADIDO O AUTOR desta obra de que não serão bastantes as notas com que ilustrou os seus Cantos á instruir ao Leitor da notícia mais completa do descobrimento das Minas Gerais, da sua povoação e do aumento a que têm chegado os seus pequenos Arraiais, se resolveu a escrever esta preliminação histórica, em que protesta não pertender alterar a verdade a benefício de alguma paixão, e só se regula pelo mais crítico e incontestável exame, que por si e por pessoas de conhecida inteligência e probidade pôde conseguir sobre fatos que ou a tradição conserva de memória, ou escreveu raramente algum gênio curioso, que o testemunhou de vista.

Entre os desta conduta deu um importante socorro o Coronel Bento Fernandes Furtado, natural da Cidade de São Paulo, que há poucos anos faleceu no Serro do Frio, tendo sido morador no Arraial de São Caetano, distrito da Cidade Mariana. Confiou ele do Autor em sua vida alguns apontamentos que fizera, e achando-os o Autor em muita parte dissonantes do que havia lido na História de Sebastião de Pita Rocha e outros escritores das cousas da América, procurou confirmar-se na verdade pelos monumentos das Câmeras e Secretarias dos Governos das duas Capitanias, S. Paulo e Minas.

O sargento-mór Pedro Taques de Almeida Paes Leme, natural tambem da mesma Cidade de S. Paulo, e ali morador, de estimável engenho e de completo merecimento, remeteu ao Autor desde aquela Cidade todos os documentos que conduziam ao bom discernimento desta obra, e regendo-se o Autor por Ordens Régias, Cartas de Governadores e atestações de Prelados Eclesiásticos, e manuscritos desde a era de 1682 achados nos arquivos que foram dos padres denominados da Companhia de Jesus naquela Província, facilmente poderá desculpar-se se oferece ao público este Poema, sem o receio de ser insultado nas opiniões que sustenta, ainda quando mais contestadas de uns e outros sectários.

Os naturais da Cidade de S. Paulo, que têm merecido a um grande número de geógrafos antigos e modernos serem reputados por uns homens sem sujeição ao seu Soberano, faltos do conhecimento e do respeito que devem às suas leis, são os que nesta América têm dado ao Mundo as maiores provas de obediência, fidelidade e zelo pelo seu Rei, pela sua Pátria e pelo seu Reino.

A vigilância com que atendiam pela harmonia e utilidade econômica do seu País os aconselhou, muito antes que a todo o Portugal, a fazer sair das suas terras aos padres denominados da Companhia de Jesus; por sediciosos e maus, os puseram eles em um total extermínio em o mês de julho de 1640 e, por força de caridade indiscreta de Fernão Dias Paes contra o voto comum, foram depois restituídos a S. Paulo no anno de 1653.

Trabalharam incessantemente por adiantar os interesses do Real Erário e se gloriam de que fossem Carlos Pedroso da Silveira e Bartolomeu Bueno de Siqueira os primeiros Paulistas que apresentaram as mostras do ouro das Minas Gerais ao Governador do Rio de Janeiro, Antônio Paes de Sande, pelos anos de 1695.

Falecendo o dito Sande, ficou com o governo Sebastião de Castro Caldas, o qual remeteu a El-Rei D. Pedro as mostras do dito ouro em carta datada em o Rio de Janeiro, a 16 de junho do mesmo ano.

Por este tempo se serviu Sua Majestade de despachar a Artur de Sá e Menezes por Governador e Capitão General do Rio de janeiro, e por Carta Régia de 16 de dezembro de 1695 lhe ordenou passasse aos descobrimentos das minas do Sul a executar o que se havia encarregado a Antônio Paes de Sande, praticando com os Paulistas beneméritos as mesmas honras, e mercês de Hábitos, e foros de Fidalgos da Casa, conteúdos na Real Instrução, que pela Secretaria do Estado se expedira ao dito Sande. Depois por Carta Régia de 27 de janeiro de 1697 se mandou sair ao dito Sá com seiscentos mil réis de ajuda de custo em cada um ano, além do seu soldo.

Buscando porém as cousas na sua origem, segue o Autor por mais certa e prudente opinião não se poder averiguar indubitavelmente qual fosse o primeiro Paulista que descobriu as Minas Gerais, de que particularmente se trata nesta obra. É sem controvérsia que o primeiro objeto dos conquistadores de São Paulo foi o cativeiro dos índios, porque eles substituíam a falta dos escravos, que ao depois entraram em grande número das costas d'África.

Desde o estabelecimento daquela Povoação, que foi em 25 de janeiro de 1554, dia da conversão de São Paulo, de onde derivou o nome, se deve presumir que giravam muitos dos conquistadores pelo centro dos Sertões, e atravessavam as Minas, saindo em Bandeiras (que assim chamavam as companhias que para esta diligência se armavam), e recolhendose ao depois com a presa que facilmente podiam segurar.

Dos Sertões penetrados era o mais notável o da Casa da Casca, nome que se deu a uma Aldeia sobre as costas do Rio Doce, que vai fazer barra à Capitania do Espírito Santo e principia a formar-se desde o Córrego do Ouro Preto, recebendo em si imensos ribeiros e rios caudalosos. Destes Sertões se recolhia na era de 1693 Antônio Rodrigues Arzão, natural da Vila de Taboaté, com mais cinqüenta homens de sua comitiva. Chegado à Capitania doEspírito Santo, apresentou ao Capitão-Mor Regente daquela Vila três oitavas de ouro; a Câmara os recebeu com agrado e lhes subministrou os víveres e vestuários de que careciam, segundo as ordens que d'El-Rei tinha.

Deste ouro se mandaram fazer duas memórias, uma, que ficou ao dito Arzão, e outra, que tomou para si o Capitão-Mor: aqui se fundamenta o episódio do Segundo Canto.

A denunciação desta limitada porção foi sem dúvida a primeira que se fez de ouro que se descobria nas Minas Gerais; e a de que se conserva memória em São Paulo, que é a de Carlos Pedroso da Silveira, por algumas circunstâncias discorre o Autor ser posterior a ela. Antônio Rodrigues Arzão, não podendo ajuntar na Vila do Espírito Santo a gente que precisava para segunda vez tornar aos Sertões, se passou ao Rio de Janeiro e daí para São Paulo: nesta Cidade, ferido gravemente dos trabalhos que passara, enfermou e veio a morrer finalmente, deixando encarregado a Bartolomeu Bueno, seu cunhado, de continuar no descobrimento de que havia apresentado as mostras.

Era Bartolomeu Bueno dotado de bastante agilidade e fortaleza de espírito e, como tinha perdido em jogos todo o seu cabedal, foi fácil querer melhorar de fortuna, tomando sobre si, com o favor de alguns amigos e parentes, a grande empresa a que havia dado princípio Antônio Rodrigues Arzão.

Convocados todos e guiados pelo roteiro que lhes deixara o falecido, saíram da Vila de São Paulo pelos anos de 1694. Romperam os matos gerais, e servindo-lhes de norte o pico de algumas serras, que eram os faróis na penetração dos densíssimos matos, vieram estes generosos aventureiros sair finalmente sobre a Itaverava, serra que de Vila Rica dista pouco mais de oito léguas: aí plantaram meio alqueire de milho; e porque o Sertão era mais estéril de caça que o do Rio das Velhas, para este passou Bartolomeu Bueno a tropa, enquanto madurava a pequena sementeira de que esperava manter-se, para continuar o descobrimento.

No ano seguinte, que foi o de 1695, voltaram os referidos sertanistas a colher a sua planta, e entrando na Itaverava foram encontrados do Coronel Salvador Fernandes Furtado e do Capitão Manuel Garcia Velho e outros, conquistadores também do Gentio e povoadores das Vilas que ficam ao leste de São Paulo: já então trabalhavam com algum desembaraço os primeiros sertanistas, ajudados de um grande número de índios, que haviam cativado nos sertões do Caeté e Rio Doce; mas como lhes obstava a falta de experiência necessária, e não tinham instrumentos de ferro para a laboreação, apenas se contentavam com o pouco que podiam apurar em pequenos pratos de pau ou de estanho, servindo-lhes os mesmos paus aguçados de cavar a terra e descobrir os cascalhos, formações em que se conserva e se cria o ouro.

Quis Miguel de Almeida, um dos companheiros do Bueno, melhorar de armas, e propôs ao Coronel Salvador Fernandes Furtado a troca de uma clavina, dando-lhe por avanço todo o ouro que se achasse nos da comitiva; aceitou o Coronel a oferta, e dando-se busca ao ouro, se não achou entre outros mais que doze oitavas; recebeu-as o Coronel, e como Manuel Garcia Velho quisesse ter a vaidade de aparecer com todo aquele ouro em São Paulo, cometeu ao Coronel a venda de duas índias, mãe e filha, a preço das doze oitavas: conveio este no trato e compra das índias, as quais catequizadas, se batizou uma com o nome de Aurora, e outra com o de Célia. Desta última há notícia que faleceu há poucos anos na Vila de Pitangui, em casa de uma filha casada do dito Coronel, e aqui tem fundamento histórico o episódio de Aurora.

Despedidos uns sertanistas dos outros, partiu ufano para São Paulo o Capitão-Mor Manuel Garcia Velho; entrando na Vila de Taboaté, aí o foi visitar Carlos Pedroso da Silveira; e porque lhe não faltava habilidade e engenho para se conciliar com os patrícios, houve a si as doze oitavas de ouro; com elas se passou ao Rio de Janeiro, apresentou-as ao Governador (como já se disse) e foi premiado com a patente de Capitão-Mor da Vila de Taboaté.

Conseqüentemente o nomeou o mesmo Governador Provedor dos Quintos, concedendo-lhe as ordens necessárias para estabelecer fundição na mesma Vila, por ser ela a povoação onde desembarcavam primeiro os conquistadores. Por este modo se vê que, posto que Antônio Rodrigues Arzão denunciasse primeiro que Carlos Pedroso da Silveira as três oitavas de ouro que descobriu nas Minas Gerais, a sua morte impediu o progresso desta denunciação, e ficou Carlos Pedroso conseguindo a glória de apresentar o ouro que ele não descobrira.

O descobrimento pois denunciado pela interposta pessoa de Carlos Pedroso da Silveira e o estabelecimento da Casa da Fundição em Taboaté foram os dous fortes estímulos que animaram os Paulistas a armarem tropas, a prevenirem-se de alguma fábrica mais proporcionada ao uso de minerar, e a desampararem a Pátria, rompendo os matos gerais desde a grande Serra do Lobo, que divide a Capitania de São Paulo, até penetrarem o mais recôndito das Minas, menos) á na conquista do Gentio, que na diligência do ouro. O grande número de concorrentes que buscavam as Minas, e a emulação que logo se acendeu entre os da Vila de São Paulo e os naturais de Taboaté fez que, estendidos por várias partes, buscasse cada um novo descobrimento em que se estabelecesse, não se contentando os Paulistas de entrarem em parte nas repartições das faisqueiras que denunciavam os de Taboaté, nem estes nas que denunciavam os Paulistas.

Esta opinião, que tinha um semblante de fanatismo, por serem todos da mesma Pátria, posto que de diferentes distritos, veio finalmente a produzir a grande utilidade de se desentranharem em toda a sua extensão as minas do nosso Portugal, de serem penetradas de uns e de outros, não se perdoando ao rio mais remoto e caudaloso, nem à serra mais intratável e áspera, se bem que o conhecimento do ouro nas montanhas e serras veio a conceber-se mais tarde que o dos rios e seus taboleiros, que são as margens planas que os cercam dos lados.

E porque não é intento do Autor cansar ao Leitor com a multiplicidade dos nomes de tantos que têm a glória de descobridores, e apenas podem ser conhecidos dentro das suas famílias e pátria, e menos noticiar individualmente os rios, córregos e serras que por sua ordem se foram descobrindo, de que tudo tem uma verídica e suficiente informação, só pelas datas dos tempos fará ver ao curioso quais foram aqueles que deram ao manifesto as faisqueiras mais avultadas em que hoje se acham criadas as Vilas do Ouro Preto, a Cidade Mariana, a Vila do Sabará, a do Caeté, a de São João d'El-Rei, a de São José e a do Príncipe no Serro do Frio, que fazem as cabeças das quatro Comarcas da Capitania das Minas Gerais.



Vila do Carmo, hoje Cidade Mariana
1699

MIGUEL GARCIA, natural de Taboaté, foi o primeiro que deu ao manifesto um córrego que faz barra no Ribeirão do Carmo, e se compreende no distrito da Cidade Mariana: fez a repartição o Guarda-Mor Garcia Rodrigues Velho, com assistência do Escrivão das Datas, o Coronel Salvador Fernandes Furtado. O Ribeirão chamado o do Carmo descobriu pelo mesmo tempo João Lopes de Lima, natural de São Paulo, e o manifestou em 1700: repartiuse, e porque as faisqueiras eram invencíveis pela grande frialdade das águas, despenhadeiros e matos cerradíssimos que o cercavam de ambas as margens, tanto, que só permitia trabalhar-se dentro dele quatro horas do dia, além da grande penúria dos mantimentos, que chegou a trinta, e quarenta oitavas o alqueire de milho, e o de feijão a oitenta oitavas, foi fácil desampararem os mineiros por algum tempo a sua Povoação, e só permaneceu nela o Coronel Salvador Fernandes Furtado. Dista este Ribeirão até a barra do Rio Doce 16 te 18 léguas, e pela volta do Rio se computam 30. Está situada em 20 graus e 21 minutos. Passou a ser Vila por criação do Governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em 8 de abril de 1711.



Ouro Preto, ou Vila Rica

O OURO PRETO, que compreende em si vários ribeiros e morros com diferentes denominações, como são Passadez, Bom Sucesso, Ouro Fino, ou Bueno etc, teve por descobridores nos mesmos anos de 1699, 1700, 1701 Antônio Dias, natural de Taboaté, ao Padre João de Faria Fialho, natural da Ilha de São Sebastião, que viera por Capelão das Tropas de Taboaté, a Tomás Lopes de Camargo, que se sitiou nas lavras, que ao depois vieram a ser de Pascoal da Silva, e a Francisco Bueno da Silva, ambos Paulistas, e este último primo do primeiro descobridor da Itaverava, Bartolomeu Bueno: de todos estes tomaram nome alguns bairros de Vila Rica. Foi criada a Vila pelo Governador Albuquerque, no dia 8 de julho de 1711; está situada em 20 graus e 24 minutos ao poente.



Sabará

TENDO SIDO ATRAVESSADO o dilatadíssimo sertão do Sabará-Bussu muito antes de qualquer outro das Minas, porque os primeiros conquistadores demandavam o Rio das Velhas, cujas dilatadas campinas eram mais povoadas dos Gentios e férteis de caça, e as primeiras diligências do ouro e pedras se fizeram ao norte de São Paulo, consta que o seu descobridor, ou denunciante das suas faisqueiras, fora o Tenente-General Manuel de Borba Gato, natural de São Paulo, de cuja história se faz menção no Canto nl. O descobrimento foi na era de 1700. Assistiu à repartição o Governador Artur de Sá e Menezes: passou Sabará a ser Vila em 17 de julho de 1711, por criação do Governador Antônio de Albuquerque: a sua situação é em 19 graus e 52 minutos.



Caeté, Vila da Rainha

ENTRE o SABARÁ e o Arraial de Santa Bárbara se criou a Vila Nova da Rainha, conhecida ainda pelo nome brasílico de Caeté, que vale o mesmo que mato bravo, sem mistura alguma de campo: foi descobrimento do Sargento-Mor Leonardo Nardes, Paulista, e de uns fulanos Guerras, naturais da Vila de Santos. O Governador D. Brás da Silveira lhe deu o foral de Vila em 29 de janeiro de 1714, por virtude da faculdade concedida ao seu antecessor Antônio de Albuquerque. Está situada em 19 graus e 55 minutos.



Rio das Mortes, Vila de São João e São José

O Rio DA MORTES, que os Paulistas e viandantes das mais partes atravessavam freqüentemente, por distar nos primeiros tempos do Ouro Preto pouco mais de cinco dias de jornada ordinária, foi descoberto por Tomé Portes d'El-Rei, natural de Taboaté, passados muitos anos depois do descobrimento das primeiras povoações. Aí se criou a Vila de São João d'ElRei, ficando-lhe ao nascente a de São José, no lugar então chamado a Ponta do Morro; foi descobrimento de José de Siqueira Afonso, natural de Taboaté. Foram criadas estas Vilas pelo Governador D. Pedro de Almeida, em 19 de janeiro de 1718. A Vila de São João está em 21 graus e 20 minutos; São José em 21 e 5.



Serro Frio, Vila do Príncipe

ANTÔNIO SOARES, natural de São Paulo, avançando maior salto que todos os outros, atravessou os Sertões ao norte de São Paulo, descobriu o grande Serro vulgarmente chamado o do Frio, que na língua gentílica era tratado por Hivituraí, por ser combatido de frigidíssimos ventos, todo penhascoso e intratável: do seu descobridor proveio o nome a uma das suas serras, que hoje se conhece pelo Morro d'Antônio Soares. Neste descobrimento se associou um Antônio Rodrigues Arzão, descendente do primeiro Arzão, de quem já se deu notícia. As grandes preciosidades deste continente em ouro, diamantes e todo o gênero de pedras estimáveis são bem conhecidas por toda a Europa: nele se estabeleceu o Real Contrato Diamantino, que tem devido aos Senhores Reis de Portugal a maior vigilância e zelo. A Capital denominada Vila do Príncipe foi criada por D. Brás da Silveira, em 29 de janeiro de 1714. Está situada em 18 graus e 23 minutos.

Discorrendo por entre a grande extensão destas quatro Comarcas,
apenas se achará rio, córrego ou serra que não devesse aos Paulistas o descobrimento das suas faisqueiras, e estes são os serviços com que se têm acreditado, além de muitos outros, os naturais da Cidade de São Paulo.

Digam agora os geógrafos que todos são mamelucos; arguam-lhes defeitos que nunca tiveram; sirva-lhes de injúria o haverem nascido entre aquelas montanhas: as almas é certo que não têm Pátria, nem berço; deve-se amar a virtude onde ela se acha: nenhuma obrigação tinha a natureza de produzir só na Grécia os Alexandres, só em Roma os Cipiões.

Qui pur s'intende
Di gloria il nome, e la virtù s'onora,
A l'Alessandri suvi l'Idaspe ancora.

O ABADE PEDRO METASTÁSIO, no Drama de Alexandre



Primeira divisão das Comarcas

EM 6 DE ABRIL DE 1714 se fez a divisão das Comarcas com assistência do Sargento-Mor, Engenheiro Pedro Gomes Chaves, e do Capitão-Mor Pedro Frazão de Brito, e se assentou que a Comarca de Vila Rica se dividisse dali em diante da de Vila Real, indo pela estrada de Mato-Dentro pelo ribeiro que desce da Ponta do Morro, entre o sítio do Capitão Antônio Ferreira Pinto e do Capitão Antônio Correia Sardinha, e faz barra no Ribeirão de São Francisco, ficando a Igreja das Catas Altas para a Vila do Carmo, e pela parte da Itaubira se faz divisão no mais alto do morro dela, e tudo o que pertence a águas vertentes para a parte do sul tocará à dita Comarca de Vila Rica, e para a parte do norte tocará à Comarca de Vila Real. O Ribeirão das Congonhas, junto do qual está um sitio chamado Casa Branca, servirá de divisão entre as Comarcas de Vila Rica e de São João d'El-Rei, devendo tocar a Vila Rica tudo o que se compreende até ela vindo do dito ribeirão para as Minas Gerais; e do mesmo pertencerá à Comarca de São João d'El-Rei tudo o que vai até à Vila de Guaratinguetá pela Serra da Mantiqueira. Presidiu a esta repartição o Governador D. Brás Baltezar da Silveira, e assinaram nela todos os Procuradores das Vilas. Consta do Livro dos Termos na Secretaria do Governo, à fl.36.



Série dos Governadores

TORNANDO A SÉRIE dos Governadores que ou entraram nas Minas, tendo anexas as Capitanias de São Paulo e Rio de janeiro, ou que particular e sepa radamente as governaram, a que aludiu o Autor naquele verso.- Fernando, Artur e D. Rodrigo, o morto - é sem dúvida que deixados alguns governos interinos de ordem d11-Rei, ou sem ela, sucederam na administração das Minas Gerais todos os que se apontaram cronologicamente no Canto IX.

Recolhia-se Fernão Dias Paes a enviar a El-Rei as mostras das esmeraldas, e deixando a seu genro Manuel de Borba Gato, morador no Rio das Velhas, a pólvora e o chumbo, e mais petrechos e ferramenta da sua laboreação para tornar às Minas logo que recebesse as Reais Ordens. Saía D. Rodrigo por este tempo (que seria pouco mais ou menos na era de 1681) acompanhado de alguns Paulistas, como foram Matias Cardoso, Domingos do Prado, João Saraiva de Morais, Manuel Francisco, pai de Salvador Cardoso, Domingos do Prado, pai de Genuário Cardoso, e vários outros que tinham a prática dos sertões das Minas.

Avizinhando-se D. Rodrigo ao Borba, no intento de querer passar às minas das esmeraldas, lhe mandou pedir o socorro, que precisava de pólvora e chumbo, e dos mais instrumentos de ferro: repugnou o Borba, a pretexto da espera em que estava de seu sogro Fernão Dias Paes; e querendo os que acompanhavam ao Fidalgo ir à força despojar o Borba do que pediam, pacificou D. Rodrigo este primeiro ímpeto, tomando sobre si a consecução do negócio por meios menos arriscados.

Desordenou a imprudência de um ameaço toda a felicidade do empenho; e ainda que sem mandato expresso do Borba, foi morto D. Rodrigo nessa ocasião por uns pajens, ou bastardos, que viviam agregados a ele: a esta morte se seguiu salvar-se engenhosamente o Borba, afetando a repentina chegada de Fernão Dias Paes; e em conseqüência da fugida, em que para logo se puseram os Paulistas acima nomeados, foram eles os primeiros que se entranharam pelo Rio de São Francisco, e povoaram e encheram de gados as suas margens, de que hoje se sustenta o grande corpo de Minas Gerais; nem mais quiseram voltar para a Pátria, envergonhados do engano em que haviam caído.

Temeroso o Borba de que o buscassem as justiças, e que sobre a sua prisão fizesse El-Rei as maiores diligências, se meteu aos sertões do Rio Doce com alguns Índios domésticos da sua comitiva: aí viveu vários anos respeitado por Cacique, sem mais lei, ou civilidade, que aquela que podia permitir uma comunicação entre bárbaros.

Estimulado contudo dos remorsos da consciência, cuidou em mandar dous Índios práticos a São Paulo a tomar alguma inteligência dos seus parentes sobre o estado em que se achava o seu crime; estes lhe facilitaram o acesso ao Governador Artur de Sá e Menezes, recentemente chegado àquela Capitania; falou-lhe Artur de Sá com afabilidade e lhe prometeu o perdão em nome d'El-Rei, contanto que ele fizesse certo o descobrimento que denunciava do Rio das Velhas.

Bem se pode considerar o estado em que se achariam as Minas por todo este tempo, em que só o despotismo e a liberdade dos facinorosos punham e revogavam as leis a seu arbítrio. O interesse regulava as ações, e só se cuidava em avultar em riquezas, sem se consultarem os meios proporcionados a uma aquisição inocente. A soberba, a lascívia, a ambição, o orgulho e o atrevimento tinham chegado ao último ponto.

Aprestado o Borba, e socorrido de muitos parentes e amigos, acompanhou a Artur de Sá, chegou ao Rio das Velhas; deu ao manifesto este descobrimento, e se fez digno, pela grandeza das suas faisqueiras, que o Governador o premiasse com a patente de Tenente-General de uma das praças do Rio de Janeiro.

Pouco tempo se demorou Artur de Sá no Rio das Velhas; lavrado o mais fácil daqueles ribeiros, se retirou outra vez para São Paulo, substituindo-lhe uma espécie de jurisdição no Cível e no Crime o Mestre de Campo dos Auxiliares, Domingos da Silva Bueno, Guarda-Mor das Repartições das Terras e Datas Minerais, criado pelo mesmo Governador.

Com a ausência de Artur de Sá, como corpo sem cabeça, tornaram as Minas à primeira desordem: as distâncias das quatro Comarcas já penetradas, e cheias de um grande número de povoadores de diferentes Capitanias, que tinham entrado, dificultavam as providências de um só homem, em quem ainda não acabavam de reconhecer os povos a jurisdição de que estava encarregado.

Por este tempo se começaram a suscitar os ódios entre os filhos de São Paulo e os naturais de Portugal, que eles denominavam Buabas. Dous religiosos, cujos nomes e religiões se não declaram por se evitar o escândalo, fomentaram todo o calor desta desunião. Viviam eles na liberdade que permitia o País, e a impulsos de uma desordenada ambição atravessara com três arrobas de ouro o fumo e a cachaça, ou aguardente da terra, para a venderem monopolizadamente pelo mais alto preço. Quiseram logo praticar o mesmo com a carne dos gados, e encontrando a oposição dos Paulistas, resolveram acabar com eles, expelindo-os de uma vez das Minas, que eles haviam conquistado, e em que estavam estabelecidos com as suas famílias e fábricas.

Sucedendo uns fatos a outros, e tomando corpo a emulação, conseguiram os Europeus a expulsão e despejo dos Paulistas pelos anos de 1709 para 1710, regendo-os nesta ação os dous Chefes, Manuel Nunes Viana, com o caráter de Governador, com que o decoravam os seus, e Antônio Francisco, com o de Mestre de Campo, por nomeação do mesmo Viana.

Quais fossem estes dous homens, o dão bem a conhecer as notas que se ajuntaram ao Canto Quinto e Sexto e, posto que pelo que respeita a Viana se citasse só o testemunho do Conde de Assumar em uma carta registada no Livro n° 7 da Secretaria do Governo das Minas Gerais, no mesmo Livro se encontram infinitas outras, que acusam as intrigas, sublevações e desordens que ele continuava a maquinar nos distritos, onde vivia, do Rio das Velhas, as quais por brevidade se não transcrevem. Quanto a Antônio Francisco, o mesmo Conde dá um testemunho do seu caráter na carta escrita ao Doutor Valério da Costa Gouvea, Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes, datada em 14 de março de 1718, páginas 22 e 23; nela se lêem estas palavras:

Eu não sei se me expliquei bem, quando falava a V. Mcê. na minha antecedente no extermínio deste homem, porque, se queria saber de V. Mcê. o partido com que aí me achava, era julgando ser precisa a prisão, porque bem sabia eu que os perturbadores e sediciosos não só podiam, mas deviam ser expulsados; a dificuldade só que se me oferecia era no modo de o fazer, porque a desgraça deste País é tal, que sendo de tão baixo nascimento este homem é daqueles que se não prendem para se soltarem.

Fazendo, porém, justiça, é certo que entre os rebeldes e levantados daquele tempo, tinha melhor índole que todos o suposto Governador Manuel Nunes Viana: não consta que cometesse, por si ou por algum de seus confidentes, positivamente ação alguma nociva ao próximo; desejava reger com igualdade o desordenado corpo que se lhe ajuntara; acolhia afavelmente a uns e a outros; socorria-os com os seus cabedais; apaziguava-os, compunha-os, e os serenava com bastante prudência; ardia porém por ser Governador das Minas e, se tivesse letras, se podia dizer que trazia em lembrança a máxima de César - Si violandum est jus, regnandi gratia violandum est.

Este projeto lhe desordenava a serenidade do ânimo, e o punha na consternação de dissimular os insultos daqueles a quem era devedor do mesmo lugar que ocupava: sobre este artigo é que o Autor o acusa nesta obra; sendo certo que a obediência aos Soberanos se deve tributar sem algum rebuço, e que nada tão sagradamente deve respeitar um fiel Vassalo.
Atormentavam os ouvidos de D. Fernando Martins de Mascarenhas os tumultos e desordens em que estavam as Minas, e querendo pessoalmente sossegá-las, marchou para elas desde o Rio de janeiro em o mês de junho de 1710. Chegou ao Rio das Mortes com o intento de passar ao Ouro Preto, aonde residiam principalmente os Chefes dos levantados: ofereceram-se-lhe alguns Paulistas e filhos de Portugal mais bem intencionados para o acompanharem nesta diligência; ele porém não consentiu no obséquio, por evitar assim algum ruído maior entre os sublevados; não cessaram contudo eles de fazer espalhar a notícia de que D. Fernando trazia cargas de correntes e outros instrumentos de ferro para punir aos cúmplices do levantamento e conspiração contra os Paulistas.

Derramada esta voz pelas Gerais, se dispôs Manuel Nunes Viana a disputar-lhe a entrada; armou então de política e cortejo um grande número de homens de cavalo, e repartiu ordens por todos os distritos circonvizinhos ao Ouro Preto, que com pena de morte se aprontassem aqueles moradores para uma diligência. Chegava D. Fernando ao Arraial das Congonhas, distante oito léguas de Vila Rica, quando os que acompanhavam a Viana, avistando de longe ao Governador, clamaram em altas vozes: Viva o nosso Governador Manuel Nunes Viana, e morra D. Fernando, se não quiser voltar para o Rio de janeiro!

Alguns se querem persuadir que Manuel Nunes Viana entrara violentado nesta ação, e ele se pertendeu escusar do conceito de rebelde e sublevado, passando ocultamente na noite seguinte a falar a D. Fernando, protestando-lhe estar pronto para entregar o governo quanto à sua parte, e de tudo isto lhe pediu por escrito uma atestação.

Assustou-se o Governador com a inesperada saudação dos rebeldes, e pediu oito dias para se retirar: concederam-se-lhe estes, mas não se aproveitou D. Fernando do beneficio, porque sem muita demora deu as costas às Minas e voltou para São Paulo; aí trabalhava ansiosamente em se reforçar com os Paulistas, para vir sobre os levantados, fazendo comua a afronta deles, e meditando para o seu despique puxar as tropas do Rio e Bahia, e juntos por uma parte e outra atacarem todos ao mesmo tempo as Minas.

Chegou ao Rio de Janeiro a frota de Portugal, e nela veio render a D. Fernando o Governador e Capitão General Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, por patente datada em Lisboa em 23 de novembro de 1709.

Sem perda de tempo se pôs em marcha para as Minas, e levando a resolução de entrar nelas disfarçado como qualquer particular, buscou o Arraial do Caeté a avistar-se com um Sebastião Pereira de Aguilar, filho da Bahia, homem rico e poderoso, de conhecido valor e espírito, que tinha por então tomado sobre si atacar a Manuel Nunes Viana e todos os seus parciais pelas injustiças e violências que praticavam, especialmente com os filhos do Brasil de qualquer Província, a quem tinha transcendido o ódio conciliado contra os Paulistas.

Consta que o dito Sebastião Pereira de Aguilar escrevera a São Paulo a D. Fernando Martins de Mascarenhas, oferecendo-se-lhe para lhe segurar o governo com o poder de muitas armas e gentes que tinha já adquirido; e talvez foi este o motivo que obrigou a Albuquerque a buscar na sua entrada aquele distrito do Caeté, hoje Vila Nova da Rainha.

Na passagem que fez a comitiva de Albuquerque pelos levantados, foi conhecido de Antônio Francisco o Capitão José de Souza, que vinha na sua guarda: cumprimentaram-se sem algum susto, por ter servido o dito Antônio Francisco de soldado na praça da Colônia, na Companhia do mesmo Capitão. Este lhe deu a notícia de haver entrado já nas Minas o Governador, e o capacitou com fortes persuasões a que o buscassem, e se lançassem a seus pés os Chefes dos levantados, se queriam melhorar de semblante na sua causa.

A perturbação em que se via posto o governo de Viana, combatido pela parcialidade avultada de Sebastião Pereira de Aguilar, e os ameaços de um formidável castigo, que de ordem d'El-Rei acabava de insinuar o Capitão José de Souza, obrigaram a Manuel Nunes Viana, a Antônio Francisco e a muitos outros cabeças do levantamento a partirem sem demora para o Arraial do Caeté: aí se achava hospedado o Governador em casa de uns três irmãos, naturais também da Bahia, que eram José de Miranda Pereira, Antônio de Miranda Pereira e Miguel Alves Pereira, talvez parentes ou amigos de Sebastião Pereira de Aguilar.

Prostraram-se aos pés de Albuquerque os rebeldes, e desculparam como lhes foi possível os seus crimes: o Governador os recebeu afavelmente, não querendo usar do poder e das ordens de que vinha fortalecido; segurou a todos o perdão pela emenda que dessem a conhecer para o futuro; e não tardou a capacitar a Manuel Nunes e Antônio Francisco que não convinha a assistência deles nas Minas Gerais, por sossegar de uma vez o tumulto dos povos.

Retiraram-se com este conselho os dous para as fazendas que tinham nos Sertões: sossegou o povo com a ausência dos Patronos, e prosseguiu Albuquerque na criação das Vilas e estabelecimento da Capitania. Bem é de ver quanto suor e fadigas empregaria o prudente General em segurar o fim de uma tão escabrosa como interessante empresa. Foi ele o primeiro que susteve com desembaraço as rédeas do governo; que pisou as Minas com luzimento e firmeza do caráter, em que El-Rei o pusera; que promulgou as leis do Soberano, e fez respeitar neste Continente o seu nome. Esta a heroicidade que lhe considera o Autor por virtude da qual o contempla digno do elogio com que honra Solis ao seu Cortês:

Admirável conquista, e sempre ilustre Capitão! Daqueles que vagarosa
mente produzem.os séculos, e de que há raros exemplos na História!

Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho sucedeu D. Brás Baltezar da Silveira, o qual tomou posse na Comarca de São Paulo, em 1713, e passou para as Minas nos fins de setembro do dito ano.

A este sucedeu em 1717 0 Conde de Assumar, D. Pedro de Almeida, que passou para as Minas em setembro do dito ano. Foi o seu governo bastantemente crítico por encontrar a oposição dos povos na criação das Casas da Fundição. Subjugou heroicamente alguns levantados e sublevações, principalmente os de Pitangui, fulminados por Domingos Rodrigues do Prado, e o de Vila Rica, que foi ter a Mariana em 28 de junho do ano de 1720: aqui se lhe fez perciso prender a uns e castigar a outros com a última pena.

Estes procedimentos lhe adquiriram o nome de tirano nas Minas; mas à sua constância e resolução deve Portugal a inteira sujeição da Capitania; o exemplar castigo acabou de aterrar os ânimos de um povo tantas vezes rebelde e segurou de uma vez a Real Autoridade.

Quod si non aliam venturo fata Neroni
Invenere viam, magno que Eterna parantur

Regna Deis, CÊlumque suo servire Tonanti
Non nisi sÊvorum potuit post bella Gigantum
jam nihil, ó Superi, querimur, scelera ista nefasque Hac mercede placent.

LUCANO, Pharsal., Liv. 1, v. 33.

Durou o governo do Conde de Assumar até o ano de 1721, em que o substituiu D. Lourenço de Almeida, que foi o primeiro Governador positivo das Minas, porque nele se separou a Capitania de São Paulo em governo à parte, ficando os Generais respectivos só com sujeição aos ViceReis do Estado.

Tomou D. Lourenço de Almeida posse na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ouro Preto, com assistência da Câmera, em 18 de agosto de 1721.

A D. Lourenço de Almeida sucedeu o Conde das Galveas, André de Melo e Castro, que tomou posse em o 10 de setembro de 1732, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias.

O Conde das Galveas deu posse a Gomes Freire de Andrada, em 26 de março de 1735.

Mediaram alguns governos, como foi o de Martinho de Mendonça Pina e Melo na ida que fez o dito Conde de Bobadela ao Rio de Janeiro, em 15 de março de 1736; foi outra vez levantado o pleito de homenagem em 26 de dezembro de 1737.

Pelos tempos em que se deteve no Uraguai com a Real Comissão do Tratado de Limites, substituiu seu irmão José Antônio Freire de Andrada, Conde atual de Bobadela, o governo das Minas. Igualmente falecendo em o 1.° de janeiro de 1763, se praticou a via de sucessão no Exmo. Bispo D. Frei Antônio do Desterro, e nos mais chamados por ela, te que no ano de 1763, em 28 de dezembro, entrou no governo o General Luiz Diogo Lobo da Silva.

Este Governador, enchendo de merecimento os dias do seu governo, deu a posse ao Exmo. Conde de Valadares, em 16 de julho de 1768.



Descobrimento das esmeraldas, de que se faz menção no Canto Oitavo

DA o AUTOR uma idéia deste descobrimento, conforme o que leu em um Poema manuscrito de Diogo Grasson Tinoco, feito no ano de 1689; e mostra quanto trabalhou nesta empresa Fernão Dias Paes, natural de São Paulo.
A 27 de setembro de 1664, cometeu o Senhor Rei D. Afonso VI a Agostinho Barbalho a empresa do descobrimento das esmeraldas, facilitando-lhe o fim deste negócio com uma carta, que escreveu o mesmo Senhor a Fernão Dias Paes, cujo zelo e capacidade já era bem conhecida naquela Corte, na qual lhe ordenava desse todo o socorro necessário para a conclusão deste particular. Esta carta fez tanta impressão no espírito generoso de Fernão Dias Paes, como se pode coligir da presteza com que satisfez as primeiras ordens que nela se continham, e bem o refere Diogo Grasson na oitava 27 do seu panagírico ao mesmo Fernão Dias.

Lendo-a Fernão, achou que EI-Rei mandava
Dar-lhe ajuda, e favor para esta empresa,
E em juntar mantimentos se empenhava

Com zelo liberal, rara grandeza;
Mas porque exausta a terra então se achava,
E convinha o socorro ir com presteza,
Mandou-lhe só cem negros carregados
À custa de seus bens, e seus cuidados.

Depois de passados alguns anos, tempo em que já estava no Trono o Senhor D. Pedro ii, sabendo Fernão Dias que com a morte de Agostinho Barbalho não tiveram efeito as ordens que trouxera, se quis encarregar voluntariamente da execução delas, escrevendo primeiro a Afonso Furtado de Mendonça, Governador que era então daqueles Estados, e tinha a sua residência na Bahia, oferecendo-se-lhe para este fim com a sua pessoa, e com todos os seus bens: mandou-lhe Afonso Furtado uma patente de primeiro Chefe daquela empresa aos 3o de abril de 1672. Nos princípios do ano de 1673 se pôs Fernão Dias em marcha com vários parentes e amigos seus, demandando a altura em que Marcos de Azeredo fazia certo o descobrimento das esmeraldas, em cuja diligência sofreu trabalhos infinitos, como testifica o seu panagerista na oitava 35.

Parte enfim para os serros pertendidos,
Deixando a Pátria transformada em fontes,
Por termos nunca usados, nem sabidos,
Cortando matos, e arrasando montes;
Os rios vadeando mais temidos
Em jangadas, canoas, balsas, pontes,
Sofrendo calmas, padecendo frios
Por montes, campos, serras, vales, rios.

Desta sorte chegou à paragem chamada pelos naturais Anhonhecanhuva, que quer dizer água que se some, e entre nós tem o nome de sumidouro. Aqui se deteve Fernão Dias por espaço de quatro anos com pouca diferença, e fez várias entradas no Sobra Bussu, que val o mesmo que cousa felpuda, e é uma serra de altura desmarcada, que está vizinha ao Sumidouro, a qual chamam todos hoje Comarca do Sabará. Nela achou diversa qualidade de pedras, que por falta de prática se lhes não soube dar o valor de que talvez eram dignas. Da demora que aqui teve Fernão Dias, e do muito que aqui sofreu, teve origem a discórdia entre muitos dos seus companheiros, pois quase todos conspiraram contra a sua vida, e por último o deixaram só.

Vendo-se Fernão Dias neste desamparo, não esmorece, antes entra a cuidar na brevidade da sua derrota, com ânimo de buscar a endireitura chamada Vupabussu, que soa na nossa língua lago grande, e junto deste é que se supunham os socavões das esmeraldas. Achava-se Fernão Dias falto do necessário para adiantar o giro desta expedição. Escreve à Pátria e ordena à mulher não se lhe negue cousa alguma do que pede. Assim o diz a oitava 4 do seu elogio.

Isto suposto, já para a jornada
Manda à Pátria buscar quanto a seu cargo
Incumbe, pois que a fábrica guiada
Destruída se vê do tempo largo.
Determiria à fiel consorte amada
Que a nada, do que pede, ponha embargo,
Inda que sejam por tal fim vendidas
Das filhinhas as jóias mais queridas.

Com efeito chegou o postilhão, e trouxe consigo o que Fernão Dias pedia. Puseram-se a caminho e foram discorrendo por uma dilatada montanha, até que chegaram a Tucambira, que quer dizer papo de tucano, e deixando todo este espaço avassalado, partiram para a Itamirindiba, que é rio muito fértil de peixe e significa propriamente pedra pequenina e buliçosa. Aqui pararam por algum tempo, e se proveram de forma que lhes não fosse danosa qualquer invasão do Gentio: ultimamente buscaram o rumo do Norte, te que, depois de atravessarem uma parte dos Sertões incultos, chegaram águas do Vupabussu.
Aqui cuidou Fernão Dias logo em expedir cem bastardos dos que trazia, a fim de examinar a formalidade das terras circunvizinhas a este lago, a ver se achavam algum língua que os informasse melhor do que buscavam. Na verdade não se frustrou de todo esta diligência, porque sobre o cume de uma montanha, vendo os bastardos muita gente daquela que podia dar notícia das pedras pertendidas, investiram a ela, e apenas seguraram um que, sendo trazido à presença de Fernão Dias, mandou este que com toda a humanidade fosse tratado entre os seus. Era ele de um ânimo seguro, conforme o pinta Diogo Grasson na oitava 61.

Era o Silvestre moço valeroso,
Sobre nervudo, de perfidia alheio,
O gesto respirava um ar brioso,
Que nunca conhecera o vão receio:
Pintado de urutu vinha pomposo,
E o lábio baixo roto pelo meio,

Com três penas de arara laureado,
De flechas, de arco e de garrote armado.

Foi este o que descobriu os socavões de Marcos de Azeredo junto a um serro que corre do Norte para o Sul. Mas quanto não custou a Fernão Dias este descobrimento? Trabalhou sete anos nesta empresa. Foi-lhe perciso muitas vezes romper por todas as resoluções dos seus, que só o aconselhavam se retirasse para Itamirindiba, e deixasse para melhor tempo o descobrimento pertendido, certificando-o de que os matos circunvizinhos a Vupabussu exalavam de si um hálito pestilento, e que toda a sua demora ali não podia ser proveitosa. Ultimamente mandou enforcar à vista de todos os seus soldados um filho bastardo, que mais estimava, por lhe constar que conspirava contra a sua vida. Chegou enfim a ver o que tanto desejava, e fazendo-se na volta de São Paulo, donde era natural, não quis o Céu que ele tivesse a glória de apresentar ao seu Soberano o testemunho do seu zelo e da sua lealdade. Morreu junto ao Guaiaqui, que entre nós vale o mesmo que rio das velhas. Isto é tudo quanto sabemos do descobrimento das esmeraldas, sem que possamos afirmar o rumo, altura e os graus certos em que foram descobertas estas pedras.

Cantemos, Musa, a fundação primeira
Da Capital das Minas, onde inteira
Se guarda ainda, e vive inda a memória
Que enche de aplauso de Albuquerque a história.

Tu, pátrio Ribeirão, que em outra idade
Deste assunto a meu verso, na igualdade
De um épico transporte, hoje me inspira
Mais digno influxo, porque entoe a Lira,
Por que leve o meu Canto ao clima estranho
O claro Herói, que sigo e que acompanho:
Faze vizinho ao Tejo, enfim, que eu veja
Cheias as Ninfas de amorosa inveja.

E vós, honra da Pátria, glória bela
Da Casa e do Solar de Bobadela,
Conde feliz, em cujo ilustre peito
De alta virtude respeitando o efeito,
O Irmão defunto reviver admiro:
Afável permiti

que eu tente o giro
Das minhas asas pela glória vossa,
E entre a série de Heróis louvar-vos possa.

Rotos os mares, e o comércio aberto,
Já de América o Gênio descoberto
Tinha ao Rei Lusitano as grandes terras,
Que o Sul rodeia de escabrosas serras.

O título contavam de Cidades
Pernambuco, Bahia; e as crueldades
Dos índios superadas, já se via
O Rio de janeiro, que fazia
Escala às Naus: buscando o continente
De Paulo, uma conquista está patente,
Que aos Portugueses com feliz agoiro
Prometia o diamante, a prata, o oiro.

O arbítrio de um só braço moderava.
Toda a Capitania; e projetava
Albuquerque, que a gente ao Cetro alista,
Fazer mais dilatada esta conquista.

Da notícia de alguns tinha alcançado
(E muito mais na idéia está gravado
O profético anúncio) que faria
Grande serviço ao Rei, se a Serrania
Vencesse, e além passasse, e visse a testa
Do soberbo Itamonte: manifesta
A estrada se lhe mostra, e um Gênio experto
O guia a ver da empresa o fim mais certo.

Tornando à margem de um soberbo Rio,
Já se alojava o Herói, e do sombrio
Amparo de umas árvores, enquanto
Vagava a comitiva, ao doce encanto

Do murmúrio das águas e do vento,
Dando aos membros suave acolhimento,
O leve sono lhe deitava as asas.
Tecia débil cana as moles casas,
Em que apenas descansa algum rendido
Da fatigada marcha; ali ferido
De uma estranha paixão, que n'alma alenta,
Ao lado está do General; sustenta
O brioso Garcia o oficio inteiro
De súdito, de amigo e companheiro.

Rende-se ao sono o Herói, e ao anelante
Pulsar do peito, observa o vigilante
Mancebo que o combate aflita luta
No horror da fantesia; um ai lhe escuta,
Que ansioso respira; outro mais vivo
Lhe percebe no assalto sucessivo;
E ao ver que estende duramente os braços,
Já teme, e grita, e já lhe rompe os laços
Do funesto letargo: Ai! caro amigo
(Lhe diz o Herói), não temas, eu prossigo,
Se é que o espanto e o terror, que n'alma provo,
Me dão para falar-te alento novo.
Neste instante (ai de mim!), ou fosse imagem
Que há muito me oprimia, ou que a passagem
Deste Rio me ofereça agouro triste,
Eu vi (eu inda o vejo, inda me assiste
Presente aos olhos o medonho objeto!),
Eu vi que me apartava do projeto
De penetrar estes Sertões escuros
O grande Dom Rodrigo; dos seguros
Ombros, de que pendera agrave espada,
Rasga o vestido, e mostra inda manchada

A carne das feridas, de que o sangue
Correr se via; eu tremo, e quase exangue
Desmaio a tanta vista. Ele se avança,
Da mão me prende, e diz: Em vão se cansa,
Em vão o vosso Rei, se ver pertende
Subjugado este povo, que defende
Com o bárbaro zelo as pátrias Minas;
Debalde tu também hoje imaginas
Chegar ao centro delas; eu contemplo
Mil perigos na empresa; fresco exemplo
Te dá a minha morte; só te espera
De gênios brutos pertinácia fera;
Falta de fé, traições, crimes atrozes
Só terás de encontrar; se as minhas vozes
Teu crédito merecem, deixa, evita
A infame estrada... ; nisto ao ver que grita
Mais forte e mais medonha a sombra, tremo,
Pasmo, e me assusto, me horrorizo, e gemo.

Sem trabalhos (Garcia então lhe torna)
A glória não se alcança, não se adorna
Do louro da virtude o que se nega
Às árduas diligências; sei que chega
Vosso zelo e valor ao termo, aonde
Tudo o que é grande apenas corresponde
Ao meditado arrojo; mas passado
É talvez o pior, e já lembrado
Posso esperar que o mal encha algum dia
Os corações e as almas de alegria.
Temos dobrado a grande Serra;
temos Rompido os matos, onde ver podemos
As feras e o Gentio que a brenha oculta
Girar por entre nós: a alma insepulta
Do morto General a nós nos deva
Vencer do esquecimento a escura treva;

Busque-se o seu cadáver, e entre os nossos
Honrada sepultura achem seus ossos.

Aqui chegava, quando a comitiva,
Desde o vizinho monte, viva! viva!
Bradava em altas vozes; cresce o espanto;
Ambos se admiram; de alarido tanto
A causa buscam; pouco tempo tarda
Em recolher-se a dividida guarda,
Com salvas, e com vivas festejando
A presa, que já vem apresentando.

Três índias são, que do Pori robusto
Em resto escapam; todo o corpo adusto
Mostra que o Sol sobre a nudez queimara,
E que a ingênita cor de branca e clara
Tornou um pouco escura; a longa idade
A todas três enruga a mocidade;
Curvos os ombros, poucas cãs, os braços
Murchos e descarnados, mal os passos
Regem tremendo; breve arrimo fazem
De tintos paus, que apenas nas mãos trazem.

Tecendo a teia na morada escura
Do negro Radamanto, outra figura
Não inculcara mais enorme e triste
O termo horrendo, que aos mortais assiste.
Conta Camargo, que o vizinho monte
Subira com os seus, e que de ponte
Um madeiro, que o tempo derribara,
Lhe servira, e por ele além passara,
Que desde ali por entre as brenhas via
Uma pequena Aldeia, a quem fazia
Baixa e comprida choça a cobertura

Aos queimados Tapuias: desde a altura
Do monte disparou por meter medo
Um tiro de espingarda; nenhum quedo
Se deixa então ficar: todos se apressam,
Fogem, nem mais às flechas se arremessam.
Desamparado o sítio humilde e pobre,
Desce ao terreno, e as índias três descobre,
Que de oprimidas dos cansados anos
Não puderam fugir, temendo os danos
Que dos antigos Pais ouvido tinham.

Variamente uns e outros se entretinham
Em contar o sucesso; e já notava
Garcia, que nas índias se firmava,
Que uma delas com gesto mais sereno
Punha nele os [seus olhos]; por aceno
Observa, mais que explica, que o conhece;
Da língua portuguesa lhe parece
Que entende; e mais se assombra o bom Garcia
Ao ver como em um dedo ela prendia
Uma memória de ouro; a jóia observa;
Cala-se, e a melhor tempo o mais reserva,
Exprimindo em um ai, que d'alma exala,
O mais, que por então sepulta e cala.

Recolhidos a um tempo os companheiros,
Junto aos troncos, nas grutas dos outeiros
Se armam as mesas; de viandas servem
A mortas caças, que nos cobres fervem:
As aves, que do chumbo o globo estreito
Feriu nas asas, e rompeu o peito;
O veado, a que o índio na carreira
Seguiu, e a seta disparou ligeira;
Não falta o louro mel da abelha astuta,

O grelo da palmeira, e a tosca fruta,
Que alguma árvore brota ali nascida,
Por menos venenosa conhecida,
Enquanto os brutos animais a comem
(Tanto dos brutos aprendera o homem!).

Tornando às praias da infeliz Cartago
O triste resto do troiano estrago,
Tal se consola na fatal ruína,
Que pode a Musa celebrar latina.

Longe de Europa os provimentos ficam,
Nem os fortes cavalos, que se aplicam
À condução dos víveres, se atrevem
A romper os caminhos; mal se devem
Pequenas cargas aos robustos ombros
Dos domésticos índios: se os assombros
Desperta em vós esta fatal penúria,
Ó Generais da Europa, nobre injúria
Concebe o meu Herói; ali sentado
Entre os mais companheiros, rodeado
Sem distinção alguma, ou já na mesa,
No leito, ou no quartel, ou junto à acesa
Chama, em que esperam reparar o frio,
Tem toda a autoridade, todo o brio
Posto no zelo só, na vigilância,
Com que prova os esforços da constância,
Esquecido de si e da grandeza,
Por ver o fim da cometida empresa.

Caía a noite, e apenas cintilava
No Céu alguma estrela; ao chão baixava
Escassamente a luz, que Cíntia fria
Mal distinta espalhava entre a sombria
Rama da espessa mata e duros troncos.
Não se ouvem mais que os formidáveis roncos
De aves noturnas, e famintas feras.

Só tu, Garcia amante, consideras
Oportuna a teus ais a estação triste;
Amor, que ardendo no teu peito assiste,
Vai buscar o remédio a seu cuidado;
Ele te guia e leva disfarçado
À choça que às três índias deu abrigo.
Oh! quanto louvas o silêncio amigo,
Quanto o sono dos mais! Chega, repara
Na velha aflita, que a choupana avara
Apenas cobre com a palha agreste;
A leve cana, que as montanhas veste,
Já seca ao sol se acende, e a luz ministra
Com que uma a uma as índias três registra.
Na língua nacional, que não ignora,
Saúda, e neste instante a Mãe de Aurora
Conhece; Aurora, a bela prisioneira
Que houve da mão de Arzão, que co'a primeira
Medalha de ouro ele prendara; cresce
De novo a admiração, e se oferece
A Índia a dar-lhe relação da filha.


Se o ver-me neste estado é maravilha,
b Garcia, lhe diz, humilde e nua,
Eu sou Neágua, eu sou a escrava tua.
Muitas luas, me lembro, têm passado,
Desde quando dos vossos atacado
Foi meu esposo Caribó: seguidos
Vínheis de muitos arcos, socorridos
Do Coroa, do Paraci valente:
Assaltastes de noite a nossa gente,
E mortos os mais destros na peleja,
Fosse rigor do Céu, ou fosse inveja
Da Fortuna, eu, que a Aldeia governava,
Passei com minha filha a ser escrava.

Era ela em seus anos tão mimosa,
Que à vista sua desmaiava a rosa,
Seus olhos claros, as pupilas belas,
Oh! quantas vezes cri que eram estrelas!
Não tinham nossos campos, nem o prado
Planta mais tenra, flor de mais agrado;
Enfim, porque de vós as cores tome,
De Aurora os vossos lhe dão hoje o nome.

Vagando estes sertões na companhia
Dos vossos, eu me lembro como um dia,
A preço do metal, que desprezamos,
Vós nos comprastes; ainda nos lembramos
Do mimo do agasalho que fizestes,
Quando na vossa casa recolhestes
A mim e a minha Aurora: esta memória
Desperte toda em vós a antiga história,

Como? Por que arte? Por que modo fora
Trazida dentre os seus? A sua Aurora,
Se a seguira também? Se vive? E aonde?
Garcia lhe pergunta; ela responde:

Senhor, eu creio que inda vive
A minha e vossa Aurora: dela tive
Notícia há pouco tempo; um desses bravos,
Que o nosso bom Pori tem feito escravos,
Me contou como lá na sua Aldeia,
Que não longe é de nós, ela passeia,
Do Cacique estimada; ele contente
A busca esposa, e ela o não consente.

Mas por que quereis vós da minha boca
Ouvir todo o sucesso? Só me toca
Referir uma parte, que outra ignoro.
Lá na domada Aldeia, onde sonoro
Se vê correr o Paraíba, postas
Fomos por vosso mando: ali dispostas
A viver de outras leis, outros costumes
Detestávamos já dos nossos Numes
(Se alguns Deuses talvez nós conhecemos
Na bruta liberdade em que vivemos),
O culto, a religião; já divertidas
No curvo anzol, nas redes bem tecidas
Armávamos ao peixe; sobre o rio
Nos viu um dia o bárbaro Gentio,
Que em pequenas canoas rouba e mata;
Fugíramos talvez, mas o pirata
Nos surprende e conduz: vimos cativas
A viver entre os seus, e apenas vivas
De povo em povo nos transportam; fico
Co'a nação do Pori, e passa o rico
Tesouro de uma filha, que inda choro,
Ao crespo Monaxós; qual fosse, ignoro,
O triste resto do fatal destino.
Dos braços ma arrancaram: de ouro fino,
Ao despedir-se terna a Filha amada,
Com esta jóia então me quer prendada.

Se pois de Aurora o caso vos incita
À compaixão, se em vosso peito habita
O antigo amor, fazei que a liberdade
Se dê a quem desperta esta saudade;
Esse vizinho povo ao fogo, ao ferro
Abatei, destruí: pague o seu erro;
E alegre eu veja em vossa companhia
A vossa Aurora, que ao meu lado via.
Absorto está Garcia; do que escuta,
Apenas deixa ver a face enxuta;
De Aurora o caso o tem sobressaltado,
Quer para logo dar a seu cuidado
O desafogo da cruel vingança;
Mas bem que o lisonjeie inda a esperança
De ver a bela Indiana, a incerta sorte
Lha pinta, antes que viva, entregue à morte.
Baixel, que sobre o Egeu de mil procelas
Combatido se viu, rotas as velas,
Não soçobra talvez mais duvidoso
Ao grave Noto, ao Euro tormentoso.
Farei... clamava; e eis que interrompido
Foi de um aviso, com que o Herói erguido
Chama a Conselho os companheiros todos.
Se combatidos por diversos modos,
Diz Albuquerque, de trabalhos tantos,
Entre estas penhas só despertam prantos
As memórias da morte de Rodrigo,
Deixemos este assento; o sonho antigo
Tenho de descobrir-vos, com que a idéia
Igualmente me aflige e me recreia.
Lembrados estareis que há mais de um ano
Vos fiz saber que o nosso Soberano,

Que dos quatro Joões o nome e glória
Herdou para triunfo da memória,
Vendo ao Norte da terra povoada,
Que atrás deixamos na primeira entrada,
Que fazem vossos Pais, achar-se o ouro
À custa me ordenou do seu Tesouro,
Que entrasse ao centro dos Sertões, buscasse
As novas minas, e que examinasse
As margens, onde em vão tomaram porto
Fernando, Artur e Dom Rodrigo, o morto.
Cheio deste projeto eu vejo um dia
Que um rochedo fatal, a quem a fria
Neve branqueja a descalvada testa,
Com medonha carranca me protesta
Não passe a descobrir o seu segredo;
Avizinho-me a ele e rompo o medo:
Quem és, pergunto, que ignorado encanto
Se esconde em ti? Ele me torna entanto:

"Eu sou dos filhos que abortara a Terra,
E fiz com meus Irmãos aos Deuses guerra
(Tu, negro Adamastor, hoje em memória
Me obrigas a trazer a tua história).
Meu caso um dia o Fado te destina
Que escutes inda pela voz de Eulina,
No centro vivo dos Sertões, que apenas
Tocam das aves as ligeiras penas;
De feios monstros grande cópia habita
Meu triste seio; ali se deposita
Tudo quanto de grande, novo e raro
O Cetro Lusitano fará claro.
Ali... mas tudo aos olhos patenteio."
Disse, e deixando ver o escuro seio,
De uma pequena lágrima, que a penha

Derrama das entranhas, se despenha
Gota a gota um ribeiro; logo á raia
De ambas margens excede e já se espraia,
Separado do berço na campina,
Um murmurio sonoro só de Eulina
Repete o nome; a maravilha estranha
Inda mais se adianta; ao longe apanha
Uma nympha na arêa os montes de ouro,
Com que esmalta o cabello e o torna louro.

A margem deste rio povoada
Vejo da portuguesa gente amada,
Toda entregue á solicita porfia,
Com que o rico metal da terra fria
Vai buscar a ambição: vejo de um lado
Erguer-se uma cidade, e situado
Junto ao monte, que um valle aos pés estende,
Vejo um povo tambem: (26) tudo surpr’ende,
Tudo encanta a minha alma, estou detido
No phantastico objecto: eis que um gemido
Arranca desde o seio o monstro escuro,
E diz: Entre as imagens do futuro
Talvez te espera... mas...: e nisto em nada
Se torna toda a machina ideada;
Desfez-se a penha, a nympha e o ribeiro,
Solto dos olhos o sopòr grosseiro.

Não de outra sorte no ultimo horisonte
Ao sepultar-se o sol, lá desde um monte
Podem ver-se as imagens differentes
A’s refrações da luz: estão presentes
Bosques, cidades, ruas e castellos,
Que os raios em distinctos paralellos
Talvez figurão; despertando a aurora,
Desapparece a sombra enganadora.


O sonho muitas vezes repetido,
Desde que tenho a idéia concebido
De entrar para estas Minas, me figura
Um mistério na sombra e na pintura.
Vós, que por tantas vezes discorrido
Tendes estes Sertões, tereis ouvido ,
O nome de Itamonte; esta lembrança,
Este sinal só tenho de esperança;
Talvez tomando o cume desta Serra,
Acharemos um dia o Rio, a Terra,
A Ninfa e os mais portentos, donde tome,
Dos tesouros que espero, a Vila, o nome.

Calou-se o General, e qual murmura
Uma abelha, e mais outra, quando a pura
Substância chupam das mimosas flores,
Assim, não de outra sorte, entre os rumores
Do inquieto coração, estão falando
Entre si cada um, e estão pensando;
Rompe o silêncio o próvido Faria:
Eu dos primeiros fui, eu fui, dizia,
Dos primeiros que o berço abandonado
Deixei, mais do fervor estimulado
De reduzir os Índios à justiça
Da nossa religião, que da cobiça.
Entrei estes países e inda noto
Em cada tronco os pousos onde, roto
O vestido, tentei passando avante
O giro dos Sertões; de bem distante
Parte dos grossos matos descobria
Uma elevada e tosca penedia,
A quem coroa um pico a altiva frente.
Demandei esta rocha, e do eminente
De toda ela um ribeiro vi que nasce,
Que do Sol recolhendo dentro a face

Pareceu converter-se todo em ouro.
Não vou buscar no meu invento o agouro,
Nem creio que este o Itamonte seja,
Mas sei que a língua pátria, se deseja
Explicar sempre em tudo a natureza,
De Itá nome lhe deu, e na rudeza
Do Gentio talvez, que hoje alterado,
O nome Curumim lhe seja dado.

Itá é nome pátrio (diz Garcia,
Que apenas sua dor n'alma alivia),
Este o Gentio a toda a pedra estende;
O esperado Itamonte em vão se entende
Na confusão das Serras e dos montes,
Que assombram todos estes horizontes.

Eu também discorrera de outra Serra
O mesmo que Faria, aonde a guerra
De feroz Botecudo inda me assusta,
Mas pouco à conjectura se me ajusta
Toda a confrontação (disse Camargo).

É deste continente o Sertão largo
(Dizia Bueno), o Lago, a Serra, o Rio,
Espalhado por tudo o infiel Gentio,
Não deixam à notícia cousa certa,
Onde possa entender-se descoberta
A terra que buscamos. Nela intento
(Albuquerque tornava) o fundamento
Erguer da Capital; de penha empenha
Andarei, se a Fortuna o não desdenha,
Té descobrir o Monte e o Rio, aonde
Tão grande maravilha o Céu me esconde.
Prosseguira o Herói, mas o embaraça
Descobrir desde longe a vista escassa
Brioso Cavaleiro, que seguido

Vem de um forte esquadrão do índio vencido;
Soa alegre o clarim, que a marcha guia,
A salva amiudada ao ar se envia;
E enquanto de Garcia o Herói se informa
Do novo Aventureiro, posta em forma
Cada uma das nações, que traz consigo,
Um e outro se encontra ao doce amigo,
Prontos os servos a estribeira pegam,
E ele se apeia e abraça aos que se chegam.

As paixões acalmara de Garcia
A chegada do Borba, e suspendia
Ela mesma a partida de Albuquerque.
Sem que temor algum lhe oprima, ou cerque
O nobre coração, na tenda entrava,
E cortejando o Herói, assim falava:

Terás ouvido, ó General famoso,
Variamente o meu caso; e duvidoso
Talvez estás da fé, que guardo atento
Ao meu Rei em sinal do juramento.
Acusado por cúmplice na morte
Do grande Dom Rodrigo, a minha sorte,
Mais que o delito meu, desculpar venho;
Sem adorno o sucesso agora tenho
De dizer- te; e verás, hoje informado,
Que sou mais infeliz do que culpado.

Pouco mais de três léguas em distância
Deste sítio me via, quando a instâncias
Do novo General, que aqui chegava,
A voz de um mensageiro me ordenava
Entregasse os socorros prevenidos

Da pólvora e do chumbo e os cometidos
À minha guarda prontos instrumentos
Do ferro e do aço: oponho a seus intentos
A razão que me assiste; e enfim me escuso,
Dizendo que das ordens não abuso
Do meu fiel Parente, a quem espero
A cada instante, e perto considero
De entrar comigo a registar as faldas
Das montanhas e minas de esmeraldas.

Mal satisfeito da resposta volta
O importuno ministro, e já se solta
Contra mim declarada toda a fúria
Dos vis aduladores: por injúria
Reputam toda aquela resistência,
E protestam que aos braços da violência
Há de ceder a repugnância minha.
Um e outro se oferece, mas detinha
Ao prudente Fidalgo o árduo projeto
Da brandura e da paz; o nobre objeto
Do serviço do Rei a mim o guia;
Em pessoa aparece, e me seria
Muito fácil ceder, se não houvesse
Mais forte obrigação, que [me] prendesse.
Uma e mil vezes represento o empenho,
Que a duvidar me induz e me detenho
Irresoluto um pouco (nem atino
Se obrava nisto a força do destino!);
Constante era a razão, pois esperando
As Reais Ordens para a empresa, quando
Fernão Dias voltasse, não teria
Os provimentos que deixado havia.
Enfim ele de cólera se acende,
Nem às minhas desculpas mais atende;
Enfurece-se, grita e ameaça:

E eu (ó duro extremo da desgraça!),
Rendido a todo o lance, só procuro
Mitigar-lhe o rancor; um braço duro,
Sacrílego, insolente, infame, ousado,
Sem que eu presuma o bárbaro atentado,
Se arroja dentre os meus; dispara um tiro,
E a alma envolta no mortal suspiro
Voou, deixando a mágoa em que me vejo,
Para salvar a vida, a honra e o pejo.
A notícia do caso acende a ira
Em todos os que o seguem; já conspira
Em meu dano o parente e mais o amigo;
Querem vingar a morte de Rodrigo;
Em vão lhes serve de reparo ou freio,
A inocência em que estou; medito um meio
De salvar-me; em esquadras divididas
Reparto a gente, sobre as mais crescidas
Montanhas, de onde fossem descobertas.

As estradas ao longe em parte abertas
Davam já vista aos ímpios conjurados,
Quando os tambores e os clarins tocados
Em vários sítios amotinam tudo:
Cresce o temor ao meditado estudo,
E crêem que era chegado Fernão Dias.
Amparado do engano, as Serras frias
Destes Sertões dobrei; passo a corrente
De um grande Rio, e a margem florescente
Piso, apenas de alguns acompanhado;
Aqui descubro um plano dilatado,
Cômodo à criação; nele apascento
Por muito tempo o gado, e em novo aumento
Às descobertas Minas já preparo
Na fome e na penúria o bom reparo.


Estes são os serviços com que chego,
Estes os testemunhos são que alego
Da inocência em que vivo; os meus parentes,
Amigos e obrigados, que presentes
Em grande parte estão, por mim te falem,
E quando todos por lisonja calem,
Do teu antecessor terás ouvido
Quanto servem de informe; e este luzido
Bastão, dádiva sua (então levanta
A insígnia militar), é prova tanta,
Que sobra a escurecer qualquer suspeita
Que ao mesmo Rei pudesse ser aceita.

Dizia; e sempre grave e sempre airoso,
Deixava ver no rosto generoso
O espírito magnânimo que o alenta.
O Herói, que sem mudança se contenta
De ouvir todo o sucesso por inteiro,
Suave acolhe ao nobre Aventureiro,
E dando-lhe mil mostras de amizade,
De ordem do mesmo Rei o persuade
A que viva seguro do delito;
Informa-se do sítio e do distrito
Em que está, e o convida para a empresa,
E por ele pertende haver certeza
Da serra que demanda, onde fundada
Veja uma vez a povoação sonhada.

Consultando as precisas providências
Se detém alguns dias, e as urgências
Do estéril sítio apenas socorridas
Eram de algumas caças, que trazidas
Vinham dos índios menos assustados
Co'a chegada dos mais, que estão listados
À comandância do Hóspede: entre vários

Da nação Monaxós, que voluntários
Ao Herói visitavam, se encontrava
Um mancebo gentil, a quem cercava
Branco penacho a testa; os braços cinge
De amarela plumagem; bravo o finge
A tinta do urucú: a cor, nem preta,
Nem branca por extremo, mas que afeta
Do gelado Samiúte o estranho gesto;
Pouco ao braço e ao ombro lhe é molesto
O arco e a aljava; o rosto, a fala e tudo
Verte um ar de respeito, ar sem estudo.
Em vão das flechas a purpúrea arara
Fugir-lhe espera; em vão na garra avara
Mosqueado tigre lhe ameaça a morte:
Empunha o dardo, e valeroso e forte
O faz despojo do robusto braço,
A fere, e corta no vazio espaço.

De impulso por então não conhecido,
O índio, a quem Amor tinha ferido,
Se deixava arrastar, e praticando
Tudo quanto a paixão lhe está ditando,
Do valor de seu braço ele confia
Roubar traidor a vida de Garcia.
Protegido da noute, às horas quando
Jaziam todos, n'ua mão tomando
Uma faca e em outra o dardo agudo,
Por tudo olhando e precavendo tudo,
A tenda busca do saudoso amante;
A luz lhe rege o passo e ao mesmo instante
Na cama o tenta e lhe prepara a morte.
Houve uma vez de ser propícia a sorte,
Que não dorme Garcia e sente o ruído;

Ergue-se; toma a espada e acometido
Se vê apenas, quando reparada
A ferida do dardo, mete a espada
Por um lado ao traidor, em sangue envolta
A tira e a mão suspende; a um tempo solta,
A corrente de sangue inunda a terra;
O índio semivivo os dentes ferra,
Acena de morrer, e grita, e brada
Em roucas vozes, com que amotinada
Tem toda a gente, que ao sucesso acode.
Debalde a conjectura alcançar pode
O mesmo, que está vendo; estranho e oculto
É o motivo do aleivoso insulto.
Faminto lobo no redil fechado
Assim receoso entrou; mas acossado
Do molosso feroz, foi de repente
Cair despojo ao sanguinoso dente.

Conhecendo Albuquerque, que respira
Inda vivo, a um dos pousos o retira,
E lhe põe sentinelas; manda entanto
Se lhe apliquem remédios: o óleo Santo,
Que ministra de Bueno a mão experta,
Estanca o sangue, e da ferida aberta
Cerrando a boca, inda a esperança anima
De que a morte de todo o não oprima.

A continuar a marcha se dispunha
O Herói, que um vivo zelo testemunha
Em todos que os seguem; repartidos
Aqueles a quem são mais conhecidos
Os Sertões, pela margem se espalhavam
À direita do Rio e se empregavam

Em socavar a terra, em diligência
Do metal de que têm verde experiência.

Tinha Pegado adiantado o passo
Algum tanto dos mais, e o corpo lasso
Junto a um lago, que sobre uma campina
Se espraia e quebra as ondas, brando inclina,
Procurando em um tronco em parte encosto
Ao ombro, e alívio à cabeça, e rosto.
Estende-se na areia e reclinado
Se vê apenas, quando (oh! inesperado
Prodígio, que o surprende!) eis que mover-se
Pouco a pouco se admira, ora estender-se,
Ora encurvar-se o formidável tronco.
Levanta-se assustado e logo um ronco
Ouve medonho, que de todo o rende;
A causa do prodígio não entende,
Não pensa, não discorre o bom Pegado;
Grita aos índios atônito, pasmado,
E o tronco então com rapto mais furioso
Se arroja desde a praia e busca ansioso
Sepultar-se no lago, o seio abrindo
Das águas, que co'a cauda vai ferindo.
Não de outra sorte sobre os grossos mares,
Que do Antártico Céu cobrem os ares,
De mergulho se vê buscar a areia
O pardo e negro monstro da baleia,
Quando do arpão do pescador ferida
Tinge as ondas de sangue e, submergida,
Ao fundo leva a barbatana dura.

Vêm os índios chegando, e entre a escura
Sombra do lago inda estão vendo o rasto
Da fera, que conhecem; tanto ao pasto
Da presa que avistou Leão não corre,

Como um e outro Tape se socorre
Dos pés nadantes, e nas mãos levando
O pronto ferro, o tronco vão rasgando
Co'as cortadoras facas; já de todo
Boiando o fazem vir; por arte e modo
Não pensado o arrojam sobre a praia.
De curioso ardor cada um se ensaia
Em arrancar-lhe das entranhas tudo
Quanto a fome tragara; absorto e mudo,
Pegado está notando a maravilha.
Três veados comera, enquanto trilha
A margem da lagoa; estão inteiros
No ventre e ainda em pêlo os dous primeiros.
Riem-se os índios de Pegado, e o riso
Tem ao Mancebo então mais indeciso,
Vendo que novo ali não conhecera
Que é o Sucuriú aquela fera,
De quem ouvido aos nacionais havia
Que um tronco na grandeza parecia.

Mas não foi tão debalde este portento,
Que olhando para o sítio, aonde assento
Fizera o monstro, o chão não descobrisse
Inda mal apagado, e não se visse
Um vestígio de humana sepultura.
Manda cavar Pegado a terra dura,
E dentro (oh! pasmo!) os ossos encontrava
De um cadáver, a quem assinalava
A cruz que tem de Cristo e lhe servira
De hábito, ou mortalha; então se admira
Mais cada um; e aviso ao Herói dando,
Todos ao mesmo passo vão cercando
Em roda a sepultura: Borba chega,
Afirma que é Rodrigo e logo alega

Como dos índios seus à pressa fora
Sepultado, fugindo os mais; e agora
Reconhece o sinal na Cruz bendita,
O autêntico padrão mais acredita
Vizinho um tronco, à mão cortado, aonde
De ordem do mesmo Borba corresponde
Outra Cruz à memória deste oficio.
Celebrou-se o devoto sacríficio
Junto ao sepulcro; e as últimas piedades,
Pela mão de Faria, as saudades
Temperaram do Morto, consoladas
As memórias de sangue inda banhadas.
Urnas fastosas, que cobris no Egito
Heróis famosos, sobre vós escrito
Viva embora o epitáfio, que em memória
Dos Ptolomeus inda respira a glória!
Sobra ao bom General, sobra a Rodrigo
Da nua areia o mísero jazigo;
A vida pelo Rei sacrificada
Basta a deixar a sepultura honrada!

Magoado deste objeto se cansava
O Herói, e já partir dali pensava,
Mas o deteve e lhe cortou o passo,
Convalescido da ferida, Argasso
(Este era o nome do índio); em companhia
Vinha da sentinela, a quem pedia
Que à presença do Herói o conduzisse;
Como acaso a seu lado então não visse
A Garcia, falou mais animado:
De traidor e aleivoso sou culpado,
Magnânimo Albuquerque; ouve-me, atende,
Saberás que o meu braço não te ofende,
Nem se conspira contra os teus; a dura

Condição de uma bárbara, que jura
Não ser minha, apesar dos meus desvelos,
Meu coração encheu tanto de zelos,
Que imaginei na morte de Garcia
Vingar o meu desprezo, e a tirania
Castigar do meu bem: fui desgraçado,
Inda não me arrependo do passado.

Albuquerque lhe diz que exponha a história
De seu furioso amor e que em memória
Traga todo o sucesso; ele, mordendo
Raivoso os beiços e mil ais vertendo,
Não posso, diz, não posso em tudo ou parte
Dizer-te o que padeço; o esforço, a arte
Vos sobra a vós; em mim obra a rudeza,
Que mais desculpa a natural fraqueza.

Amo a bela Indiana, a linda Aurora,
Que não daqui muito distante mora:
Prisioneira em meu braço a vim trazendo
Lá desde o Paraíba, e discorrendo
Que entre os meus Monaxós se renderia,
Só o nome lhe lembra de Garcia.
Neágua, a Mãe, desde o Pori roubada,
Conheceu-me e me informa da chegada
Deste bom Cavalheiro; não sabia
Que o meu curioso ardor se dirigia
A mais árduo projeto; tento a morte,
E em despojo cuidei do braço forte
Por triunfo levar à minha amada
A cabeça do tronco separada.

Assim fala arrogante; o Herói piedoso
Quer dar provas do peito generoso:
Chama a Garcia; informa-se do resto,

E por voz de Neágua é manifesto
O vário giro da amorosa história.
Argasso (diz), da portuguesa glória
Tu não sabes o timbre; a Indiana bela
Não disputa Garcia, e a tua estrela
Não queiras contrastar por modo estranho;
Ele ta cede, eu próprio te acompanho,
E contigo pertendo ver a Aldeia,
Onde ela vive e o teu amor te enleia.

Que vós partais, Senhor, eu não consinto,
Disse Garcia; ao meu valor distinto,
Ao meu zelo católico era injúria
Saber-se que a conter a minha fúria
Necessária se fez vossa presença;
A Argasso desde já perdôo a ofensa,
E quero que conheça aos Portugueses;
Com ele partirei, e as suas vezes
Sustentando ao favor da bela Indiana,
Farei que ele ditoso, e mais humana
Ela, se abrasem no gostoso alento
De um santo, de um perpétuo sacramento.

Fia de mim (ao índio se tornava),
Que a mesma que já viste minha escrava,
Há de ver-me a seus pés por ti rogando;
Nem de ti outro prêmio então demando
Mais que em uso melhor convertas logo
Esse tão louco, como ilustre fogo,
Que alimentas no peito; serás nosso
Amigo e não escravo, e quanto eu posso,
Nobre rival, te digo desde esta hora,
Neágua é tua, é tua a minha Aurora.

Ó tu, Ciro famoso, se pudeste
Eternizar teu nome, quando deste

A formosa Pantéia ao nobre Araspe;
Se na dádiva bela de Campaspe
Ao namorado Apeles, glória tanta
Te adquire, ó Macedônio, a voz que canta
Teu nome inda por toda a redondeza,
Vê quanto mais se avança esta grandeza,
Com que de uma paixão a rebeldia
Doma, e castiga o esplêndido Garcia.

Convém o Herói e espera que domado
O Monaxós, e à Religião chamado
Se veja por tal modo; do projeto
Se faz parcial Faria; turvo o aspecto
O Índio tem a tanta ação, nem sabe
Como no coração de um homem cabe
Subjugar tão valente a paixão dura,
Que inspira amor. Neágua se procura
Unir à companhia; as outras ficam
Entregues ao favor dos que se aplicam
A povoar entanto aquela margem.
Despedem-se; e Albuquerque, pela vargem
Que ali se estende, a marcha ao centro guia;
De Borba tendo pronta a companhia,
E dos mais, parte em tropas do Gentio,
E das Velhas o nome impõe ao Rio.

Magnífica, esquisita arquitetura
De um templo guarda o abismo, onde a figura
Ao preço da matéria corresponde;
Lá no mais fundo dos altares, onde
Arde em perpétuo fumo o rendimento,
Tem o Interesse seu dourado assento.

Este ídolo fatal, que se alimenta
De humano sangue, um monstro representa
Armado sempre em guerra, cobre o peito
Três vezes de aço, e tem o braço feito
Ao furor, aos estragos e à ruína;
Tinto em sangue um punhal a mão fulmina,
E enterrando em um globo a aguda ponta
Pareceu intentar por nova afronta
Cravar o coração de todo o mundo;
Indignou-se, e do seio mais profundo
Suspirou esta vez; e conhecendo

Que do calvo Itamonte o aspecto horrendo
De um pânico terror ao longo ameaço
Não bastava a cortar do Herói o passo;
Que ao fim se dirigia a ilustre empresa
E que em breve há de ver posta em certeza
Toda a idéia do sonho concebido;
De todo agora em cólera acendido
Se empenha a embaraçar o alto projeto
Do magnânimo Chefe; toma o aspecto
De um Frade (quem o crera!), que influíra
Nas primeiras desordens e que vira
Dos nacionais sinceros o destroço:
Este em tratos ilícitos um grosso
Cabedal ajuntara, tendo a idéia
De vender por estanco' o que franqueia
O liberal despego dos paisanos.

Meditando traições, tecendo enganos,
Firmado no caráter o respeito,
Aparecia o indigno; e tendo feito
Já parciais de seu ânimo alguns poucos,
Assim lhes fala: Ó Europeus, que loucos
Às portas esperais vossa ruína!
Credes que esta inação é de vós digna?
Assim vos vejo estar com gesto manso,
Quando a desconcertar vosso descanso

Corre armado o furor de um braço forte?
Desconheceis acaso que outra sorte,
Outra fortuna vos espera, vindo
Tão próximo Albuquerque, a quem seguindo
Vem o infame tumulto dos Paulistas,
Que aspiram senhorear estas conquistas?
Já vos não lembra o meditado empenho
De evitar as justiças, e o despenho
Patrocinar dos novos atentados
No refúgio aos países retirados
Que domina o Espanhol? Tanto afortuna
Abandonais na máxima oportuna
De nos enchermos dos preciosos frutos
Que guarda a Terra, e dos Reais Tributos
Fugir à imposição? Credes que venha
A outra cousa, e outro projeto tenha
Mais que roubar-nos as fazendas nossas,
Ganhadas a tal preço, que inda as grossas
Correntes desses rios se estão vendo
Turvas de sangue? O ímpeto tremendo
Não trazeis em memória dos tiranos,
Que fundados no timbre de paisanos,
Mais escravos que amigos nos queriam?
Não vos lembra os insultos que faziam?
Não vos lembra quem foi, quem é Pedroso?
Ignorais que no cerco duvidoso
Perto estivemos de perder as vidas,
Se por meio de Antunes conseguidas
Não fossem por então nossas idéias?
Ignorais que as montanhas estão cheias
Destes perturbadores, desde quando,
Arbitrária e fantástica ordem dando
Em o nome do Rei, os compelimos
A largar-nos as armas com que os vimos?
Se do auxílio do Grande se aproveitam,
Se a sua fé, se o seu favor aceitam
(

Como é crível que o façam), que destino
Tão triste para nós! Eu imagino
Que não sois Europeus: a vossa glória
Acabou de uma vez para a memória.
Virá, eu vejo, o Montanhês tirano,
Roubará nossos bens, irá ufano
Contar aos nacionais seu vencimento;
Albuquerque, eu o vejo, em nobre aumento
Fará brilhar a Lusa Monarquia;
Nós lhe daremos nova glória um dia.
Eia, Europeus briosos, eia amigos,
Vejam-se os ódios respirar antigos.
Torne, torne de nós a ser lembrada
De Dom Fernando a fresca retirada;
Venha em memória de Rodrigo o caso;
E ou em falsa traição, ou campo raso
Ataque-se Albuquerque, fuja e leve
De uma vez, pois que a tanto hoje se atreve
O desengano da ousadia sua.

Assim fala Menezes: continua
A propagar Conrado o ímpio partido,
Que de acordo comum têm concebido.
Derrama-se o veneno e vai chegando
Aos corações de muitos, avivando
As imagens da antiga rebeldia.
Já um número grande concilia
De atrevidos o Frade: estão dispostos
A disputar a entrada; ao Herói opostos,
Se querem sustentar na liberdade;
Francisco, o vil Francisco os persuade
A viverem seguros nos protestos
Firmados com Viana: de funestos
Agouros ao Paulista se enche tudo.

Eis do sulfúreo pó, do ferro agudo
Se buscam munições. A arte, o engenho
(

Qual o País permite), o desempenho
Se propõem da vitória nos tostados
Paus, de que os duros cafres vêm armados:
Emboscadas ao longe se preparam;
Tomam-se os sítios, fortes se declaram
Contra Albuquerque os insolentes peitos.

Já de Marte ao furor, campos estreitos,
Eu ouço em vós soar da guerra o brado,
A arcada trompa do Indiano ousado
Enche a terra de horror, de assombro os ares.
Conta-me, ó Fama, de que estranhos lares,
De que montes, florestas, vales, rios
Vistes correr os bárbaros Gentios,
Que o bravo Tutonaque armou de lanças?
Que socorros são estes, que alianças,
Que aos Chefes dos rebeldes votos rendem?
Desde o Sabrabuçu matos se estendem
Que habita o Pataxós, nação que um dia
Um Reino, um vasto Reino parecia.
Tutonaque é quem manda a turba imensa;
Ele os nutriu no crime e na licença,
Cheios de raiva e de furor salvagem;
A seu arco é quem só dão vasselagem;
De verdes anos a domar valentes
Da onça as garras, e do tigre os dentes
Aprenderam talvez; o óleo os tinge
Do pau silvestre, que inda mais os finge
À vista horrendos; são caciques deles
Olinté, Mamigé, Teuco, Tameles,
Marminton, Quezincoal, Remlo, Kalupa.
Bárbara esquadra desta gente ocupa
Toda a falda de um monte; em roda os matos
Dão abrigo aos rebeldes, que insensatos
Não pensam mais que em fazer crer a todos
Que a antiga liberdade por mil modos
Será turbada, se o bom Chefe os rege.
Entre nós, diz Francisco, se protege
A maldade; debaixo deste indulto
A traição, a vingança, o roubo, o insulto,
Tudo concorre a nos fazer ditosos.
Em paz tranqüila a desfrutar gostosos
Vivemos no País que outro não manda;
Sem susto o delinqüente entre nós anda;
Que será quando um braço mais potente
Arroje do castigo o raio ardente?
Quando as nossas paixões intime o freio?
De qualquer desafogo no receio
Cheios de medo sempre, e sempre indignos,
Não saberemos contestar malignos
A oposição dos Montanheses feros.
Quanto conosco hão deportar-se austeros
Os Chefes recebidos! Não é novo
Viver sem leis, e sem domínio um povo;
Nações inteiras têm calcado a terra
Sem adorar a mão que o Cetro aferra;
E tal houve que creu felicidade
Desconhecer inda a justiça: a idade
Tem [ ] a humana inteligência
Para abraçar sem susto o que é violência:
Que tormento maior a um livre peito
Que a um homem, a um igual viver sujeito?
A liberdade a todos é comua;
Ninguém tão louco renuncia à sua.
As leis, que um ente humano lhe prescreve,
Cego capricho sustentar-nos deve
Neste, diga-se embora fanatismo,
Embora seja abismo de outro abismo.
Talvez justa noção, princípio, ou dogma
O comum bem noutros projetos soma;
Mas dou que haja razão que assim o dite,
Que um saudável concelho facilite
O bem e a paz na obediência; eu vejo
Que não podemos já viver sem pejo.
Ao ludíbrio dos mais sacrificados
Nos tratarão de membros empestados;
Sobre nós cairá todo o castigo,
Que nos encobre agora um rosto amigo.
Longe, longe, tão baixos pensamentos;
Este é o fim, que segue a passos lentos
O novo Chefe; eu o provejo: posso
Contestar-lhe o poder; o resto é vosso.

Calou o Infame; em um tremendo grito
Soa aplaudida a idéia do delito;
É geralmente a rebeldia aceita.
Do descuido do grande se aproveita
Entretanto o Traidor; expede aviso
A um corpo de Europeus, que vê preciso
Para auxiliar seu braço: o Itatiaia
Os recolhe em seu seio; ali se ensaia
A sedição em poucos mais de um cento.

Houvera de lograr-se o ousado intento,
Mas o Gênio, que guarda as Pátrias Minas,
E a seus descobridores de benignas
Influências enchera, percebendo
A crua idéia do atentado horrendo,
Do mais fundo de um monte a estância bruta
Buscara; ali se acolhe; e em uma gruta
Da cavernosa lapa anima o gesto
De um índio já cansado, inútil resto
Dos anos que contara a mocidade.
Barba e cabeça lhe branqueja a idade;

Dos fundos olhos inda mal se via
O fogo cintilar, em que nutria
Um espírito vivo e penetrante:
De leito serve a pedra, e tem diante
De si os secos ramos, onde acende
A pequena fogueira; a ela estende
As mãos mirradas, o calor buscando.
De uma clara corrente, que manando
Vinha do centro do penhasco, o curso
Segue Albuquerque, entregue o seu discurso,
Separado dos mais, a idéias várias;
Entrava; e suspendido entre as contrárias
Imagens que o combatem, de repente
Punha os olhos no índio, e no acidente
Do inesperado encontro está pasmado.
Caminhante que dorme descuidado
Tanto não se enche de terror e medo,
Quando abre os olhos, e vizinho e quedo
Vê desde longe o tigre, a onça brava,
Que da brenha saía, e atento o olhava.
Cuida ver uma fera o Herói; ousado
Aponta o férreo cano, e já dobrado
Houvera a mola, se de riso o velho
A boca não enchera; ao seu conselho,
Às suas vozes Albuquerque chega,
E todo ao pasmo e à admiração se entrega.
Eu vos conheço, ó Europeus, conheço
(Dizia o Gênio) o generoso apreço,
Que de vós faz o Mundo; em vão dos anos
Não conto os largos e crescidos danos.
Confunde-se o Varão; pede-lhe conte
Quem é. Que faz? Eu sou, diz Filoponte,
O primeiro que entrei estas montanhas
Com o famoso Arzão; ele às estranhas
Regiões se passou; eu só deixado,
E ao comércio dos homens já negado
Vivo neste retiro; a minha vida,
Fortuna e mal, história é tão crescida,
Que só pode cansar-te a minha história;
Mas, pois a sorte com feliz vitória
Te conduziu té aqui, chegando a ver-me,
Sabe quem sou, e aspira a conhecer-me.

Assim dizendo, com a mão feria
O penedo de um lado, e já se via
Aberta uma estrutura transparente
De cristalinos vidros, tão luzente,

Que aos olhos retratava um firmamento
De estrelas esmaltado, e o nascimento
Do roxo Sol, quando no mar desperta.
Em cada vidro a um tempo descoberta
Uma imagem se vê, que os riscos formam,
Estas em outros vultos se transformam,
E a cena portentosa a cada instante
Se muda e se converte; está diante
Uma extensão larguíssima de montes,
Que cortam vários rios, lagos, fontes;
Densos matos a cobrem; vêem-se as serras
De escabrosos rochedos novas guerras
Tentar, buscando os Céus, como tentara
Briareu, quando aos Deuses escalara.

Logo uns homens se vêem, que vão rompendo
Com intrépida força o mato horrendo,
Nus os braços e os pés, mal socorridos
Do necessário à vida: estão metidos
Por entre as feras,-e o Gentio adusto;
Cada um de si só, perdido o susto,
Se embosca ao centro dos Sertões, se entranha
Já pelo serro, já pela montanha;
Uma e outra distância gira em roda,
E deixa descoberta a extensão toda.

Passa este quadro, e logo outra pintura
Nova imagem propõe, nova figura,
Que retrata uns mortais de negras cores,
Regando o aflito rosto de suores
À força das fadigas com que cavam
As brutas serras, e nos rios lavam
As porções extraídas, separando
As pedras do metal, que andam buscando.

Eis que outros homens de semblantes feros
Contra os Conquistadores já severos
Os fazem despejar desde os seus lares;
Disperso o sangue se recolhe em mares;
Família, e armas, cabedais, e tudo
Cede aos avaros, que do ferro agudo
Fazem despojo à fugitiva gente.
Ao som da caixa o vidro transparente
Retrata logo em monstruoso vulto
Correndo à rédea solta a todo o insulto
Confusa multidão, que se prepara
Arrogar-se o Governo e emprende avara
Sustentar com seu sangue o roubo indigno;
De um Chefe os rege o coração maligno,
Bem que se justifique na aparência
De um influxo de zelo e de prudência.
Desde o cume de um monte está voltando
As costas um Guerreiro, que domando
A insígnia traz na mão; segue seus passos
O resto desses míseros, que aos laços
Dos ímpios escapara; tem a morte
Presente aos olhos; e na dúbia sorte
Escolhe de outras forças redobrar-se,
Té que chega a ocasião de vindicar-se
O respeito, que em vão aos maus intima.
Passavam outros vultos, quando em cima
De um soberbo cavalo vem montado
O mesmo Herói, o Herói que está pasmado
De se ver a si próprio: ao longe um pico
Desde uma serra o convidava ao rico
País, que assombra o bárbaro Itamonte
Co'a robusta presença: tem defronte
O demandado Rio, que já vira,

E notara em seu sonho; então se admira
Inda mais Albuquerque, e crê que a idéia
Em um fingido objeto se recreia,
Figurando por força do costume
O Rio e a Serra, que encontrar presume.

Alegre se encantara nesta vista:
Mas notou (triste horror!) que da conquista
Embaraçava a entrada o vil partido
Dos conjurados Chefes, produzido
O exemplo do retiro de Fernando.
Tanto se atreve o insolente bando!

Encheu-se de tristeza, e o Gênio ativo,
Que atende a protegê-lo, logo um vivo
Esforço comunica ao nobre peito;
Antes que em fumo ou ar voe desfeito
De tanta idéia o quadro portentoso,
Quer declarar em tudo o misterioso
Teatro das imagens: vós agora
Influí-me uma voz alta e sonora,
Ninfas do pátrio Rio, com que eu possa
Cantar na glória minha a glória vossa.

Na diáfana máquina presente
(Diz Filoponte) todo o continente
Vês, Albuquerque, das buscadas Minas.
São estas, são as regiões benignas,
Onde nutre a perpétua primavera
As verdes folhas, que abrasar pudera
Em outros climas o chuvoso inverno.
Dos mesmos Deuses o poder eterno
Não se atrevera a combater os montes

E as serras, que em distintos horizontes
Murando vão pelos remotos lados
Mares e lagos, com que ao Sul marcados
Seus limites estão: a forma, o nome
Variam serra e rio, e sem que tome
Firmeza alguma o prolongado vulto,
Sempre o princípio te há de ser oculto,
Quando chegues ao fim do rio ou serra.
Levados do fervor que o peito encerra
Vês os Paulistas, animosa gente,
Que ao Rei procuram do metal luzente
Co'as próprias mãos enriquecer o Erário.
Arzão é este, é este o temerário,
Que da Casca os sertões tentou primeiro.
Vê qual despreza o nobre aventureiro
Os laços e as traições, que lhe prepara
Do cruento Gentio a fome avara.

A exemplo de um contempla iguais a todos,
E distintos ao Rei por vários modos
Vê os Pires, Camargos e Pedrosos,
Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos,
Lemos, Toledos, Paes, Guerras, Furtados,
E os outros, que primeiro assinalados
Se fizeram no arrojo das conquistas,
Ó grandes sempre, ó imortais Paulistas!
Embora vós, Ninfas do Tejo, embora
Cante do Lusitano a voz sonora
Os claros feitos do seu grande Gama,
Dos meus Paulistas louvarei a fama.
Eles a fome e sede vão sofrendo,
Rotos e nus os corpos vêm trazendo;
Na enfermidade a cura lhes falece,
E a miséria por tudo se conhece.

Em seu zelo outro espírito não obra
Mais que o amor do seu Rei: isto lhes sobra.
Abertas as montanhas, rota a Serra,
Vêconverter-se em ouro a pátria terra;
O Etíope co'os Índios misturado
Eis obedece ao próvido mandado
Dos bons Conquistadores: desde o fundo,
De ouro e diamantes o país fecundo
Produzas grandes, avultadas somas.
Tu por empresa, nobre engenho, tomas
Fabricar inda o esférico instrumento,
Que o trabalho fará menos violento.

Já dos rebeldes o esquadrão ferino
Se conjura afazer o roubo indigno,
Tomando outro partido esses, que devem
Respeitar um só Rei; ímpios se atrevem
A lançar desde os lares, que têm feito
Os míseros Vassalos: o preceito
Intimado na voz do Rei lhes tira
As armas, um e outro se conspira,
E em vários choques, em ataques vários,
Ou morrem já, ou buscam solitários
E fugitivos o seu pátrio berço.
Ide, infelices; o ânimo perverso
Cessará uma vez de maltratar-vos;
O Rei sabe puni-los, sabe dar-vos
Justa satisfação, justa vingança.
Sobre eles vem Fernando; mas o lança
Inda o furor da levantada gente;
Volta a munir-se o Capitão valente,
E a vosso beneficio já protesta:
Fará cair ao chão mais de uma testa.


Já dos parentes, dos amigos vossos
Se vão juntando e vêm correndo os grossos
Esquadrões, que pertendem desde a Serra
Fazer aos ímpios a sangüínea guerra;
Mas tu sucedes, Albuquerque invicto,
No bastão a Fernando; o Rei prescrito
As ordens te tem já, porque temperes
O orgulhoso furor: não consideres
Tão segura porém a tua entrada;
A vil conspiração mal apagada
Inda ao longe te forja e te fulmina
Nos levantados Chefes a ruína.

Tens ao teu lado a próvida influência
Do pátrio Gênio; contra uma violência
Outras suscitarei; lá desde o seio
Das mesmas Minas, um incêndio ateio
Nos ilustres Pereiras: estes passam
A disputar co'os outros e se enlaçam
Em vingar os domésticos insultos.
Vós e os mais vossos passareis ocultos
E disfarçados aos distritos, onde
Dos rebeldes o número se esconde.
Lá convosco estarei, e... prosseguia,
Mas de uma e outra parte concorria
Buscando o Herói a comitiva, crendo
Que aos matos se entranhara e que,
perdendo Talvez o rumo, duvidoso errava.
Faria já com eles se ajuntava,
E Garcia, que o rosto traz magoado
Do sucesso infeliz que tem notado.

Tudo desaparece neste instante
Ao assombro da nuvem, que diante
Da penha condensara o Gênio astuto.
Um chuveiro cerrado desde o bruto

Cume da rocha se estendia, e nada
Mais que a sombra na lôbrega morada
Se deixa perceber por tudo quanto
Detivera ao Herói no estranho encanto.

Ao passo que se assusta e se entristece
Das imagens que vira, restablece
O espírito no amparo prometido
Do Gênio, em quem contempla introduzido
O influxo de alguma alta inteligência,
Que se encobre dos homens na aparência.

Alegre sai da nuvem, que desata,
E no arcano mais íntimo recata
O que ouve e vê, notando os companheiros;
Que é isto, diz, chegastes mui ligeiros,
Vós, Padre, e vós, Garcia! A vossa empresa
Talvez se conseguiu com mais presteza
Do que eu tinha esperado: em doce laço,
Dizei, já vive Aurora? Vive Argasso?

Ah! Senhor, diz Fialho (que Garcia,
Os olhos rasos d'água, mal podia
Falar, e quase absorto o Herói saúda),
O caso é tão funesto, que na muda
Mágoa só pode cabalmente ouvir-se.

Saímos há seis dias; descobrir-se
A Aldeia pouco já se começava;
Aos acenos de Argasso festejava
O Monaxós alegre a nossa vinda;
Não tardou de saber a crua Eulinda,
Rival de Aurora, o firme pensamento
Do meditado Santo Sacramento;
Conspirou em seu dano, e de ira cheia
A cova

foi buscar de Teriféia:
Esta a superstição teve por nome,
Inocentes meninos traga e come.

Dous arrancados dos maternos peitos
Lhe leva a crua Indiana; ela desfeitos
Os tem já entre as presas aguçadas:
"Eu vi (contou algum) que sufocadas
As cãs estavam de seu sangue, e quentes
Brotavam dentre os beiços as correntes."
Do destroço fatal contente a velha,
Nas vítimas, que Eulinda lhe aparelha,
A dar-lhe ajuda alegre se convida.

A instâncias de Garcia está rendida
Em breve instante Aurora; nem se assusta
Ao proposto Himeneu, e crê que é justa
A persuasão, ao ver que afaz Garcia.
Do antigo amor de todo se esquecia
Um e outro; e a virtude só pertendem
Acreditar no estímulo, que acendem
Dentro em seus corações, de propagada
Ver uma vez a religião amada.

Ao Índio instruo nos mistérios Santos
Da ortodoxa doutrina; e longe encantos,
Superstições e mágicas, já creio
Que tenho descoberto nele um meio
De derramar por entre os mais a cura
Da radicada antiga desventura.

Contentes andam todos pela Aldeia,
Festejando o consórcio; qual passeia,
Calçados pés e mãos de várias plumas,
Qual faz soar o apito (nem presumas)

Que se ignora da música o concerto
Entre os crus Monaxós); já vinha perto
O dia ao caro laço destinado;
O Cacique, do amor estimulado
Que tem pelos seus hóspedes, destina
Que divididos vão pela colina,
E que desçam ao vale os que destreza
Têm no dardo e na flecha; encher a mesa
Intenta com a caça, que sepulta
Nos seus seios a gruta mais oculta;
Brindar quer os mais índios deste modo:
Convida desde já ao povo todo.
Ele próprio à fadiga não se nega;
Arremessa-se ao mato. Aurora pega
No seu arco também; todos se atiram
Ao fundo espesso, e pelas brenhas giram.
Teriféia a ocasião julga oportuna,
Põe os olhos no Céu, alta coluna
Levanta e firma em terra; já sobre ela
Se ergue e murmura, e nota cada estrela
Com o dedo; depois desce, e riscando
Muitas vezes em roda, vai tocando
A coluna, que treme e que se move:
Tolda-se em sombra o ar, troveja e chove;
E o tronco, dentre a nuvem que o cobrira,
Sai figurando um tigre, que respira
Fogo e veneno pelos olhos; passa
Com ele ao monte, e o guia aonde a caça
Se tenta e busca: aqui dormia Aurora;
Dormia; e junto aos pés branda e sonora
Fontezinha o repouso convidava;
O peito em grande parte debruçava
Sobre uma penha, e ao gesto brando e lindo

De encosto o mole braço está servindo.
Chega a Maga cruel, põe-lhe diante
A fera que conduz, e ao mesmo instante
Se oculta em parte onde o sucesso veja.
O cuidado de a ver, ou fosse a inveja,
Àquele sítio encaminhava os passos
Do destemido Argasso; entre embaraços
De mal distintos ramos, já descobre
O mosqueado tigre, ao braço nobre
O crê despojo, e de matá-lo espera;
Firme o pé desde longe aponta a fera,
E atrás puxando o braço a seta envia,
Que vai cravar no monstro aponta fria.
Corre gritando - oh! Céus! - e vê passado
De Aurora o peito; em vão busca assombrado
O tigre, que não há; já desfalece
A pouco a pouco a bela; a mágoa cresce
No mísero homicida, clama e grita,
Atroa os Céus, e contra os Céus se irrita;
Nem mais a vida, que estimara, preza;
Arroja o arco, e à infeliz beleza
Consagra de seu corpo o último resto.
"Amor, disse, cruel, pois que funesto
Foi o fim de um princípio tão ditoso,
Pois que cortastes o vínculo gostoso
Que a dita, a mesma dita ia tecendo;
Bem que inocente o impulso inda estou vendo,
Que animou este braço, acabe o peito,
Onde ele se forjou; roto e desfeito
O véu que cerca esta alma, ela se aparte,
Indiana adorada, ou a pagar-te
Com seu eterno pranto a dura ofensa,
Ou a pôr de teus olhos na presença,
A mágoa enfim de um erro involuntário."

Disse; e trepando a penha, ao chão contrário
Desesperado já se precipita.
Teriféia de longe aos índios grita,
E alegre da vitória deixa o monte;
Não há quem visse, ou quem a história conte:
Mas da homicida bárbara informada
Já torna Eulinda; furiosa brada
A Aldeia, por vingar tanta maldade;
Sobre nós faz cair a atrocidade
Do delito, e abrasando a Aldeia inteira
De oculta chama, que ateou ligeira,
Ministros nos faz crer deste atentado:
A fuga nos salvou, nem avisado
Serias de um tão trágico sucesso,
Se de Argasso um rival, que a tanto preço
Eulinda amava, então não descobrira
Tudo o que a Eulinda e a Teriféia ouvira.

Calou Fialho; em vão susteve o pranto
Albuquerque; e notando que o quebranto
De Garcia a rendê-lo se avançava,
Consolando seu mal, assim falava:
Jamais se viu segura uma alegria,
Nem estável jamais pôde algum dia
Sustentar-se a fortuna de um ditoso:
Espere sempre o inverno proceloso
Aquele por quem passa a primavera;
Amor que em brandas almas só pudera
Empregar toda a força de seus tiros,
Fará que troque as glórias em suspiros
Aquele que em vão crera aos desenganos;
Ó vós, felices, vós, que os doces anos
Entregais à virtude, eu vos agouro
O sempre imarcescível, fresco louro,
Que vos há de levar na longa idade
Muito além da cansada humanidade.

A Madre de Mêmnon dourava a terra,
E já se descobria uma alta Serra
Com três dias de marcha; de Itamonte
O carregado aspecto está defronte.
Não repugna do Herói à nobre entrada,
Mas tem presente ainda a retirada
De Fernando; inda vê de sangue tinto
O campo; e nota o ódio mal extinto
Dos infames rebeldes, conjurados.

Embaraçar pertende os apressados
Passos que vêm trazendo, e quer primeiro
Co'a vista de um obséquio lisonjeiro
Demorar a Garcia: teve o indulto
Este Vassalo de avançar-se oculto
E entrar na povoação, notando o estado
Da levantada gente: era chegado
À margem de um ribeiro; e os olhos tendo
Mal enxutos ainda, se está vendo
Na prisão insensível de um encanto,
Que enfim lhe acaba de pôr termo ao pranto.

Uma voz se lhe finge, que feria
Os ares docemente e assim dizia:
Saudoso Ribeirão, Mancebo infausto,
Seja perdida a pompa, a glória, o fausto,
Em pequena corrente convertido
Vás regando este vale, o teu gemido

Não acuse de Eulina o brando peito;
Talvez Amor tirano a teu respeito
Quis que eu fosse cruel, e involuntário
Seguiu meu pensamento esse contrário
Influxo das Estrelas; eu te amava,
E dentro da minha alma protestava
Não render o troféu desta beleza
Mais que aos suspiros teus, e à chama acesa
De Amor, que nos teus olhos percebia.
Apolo, o ingrato Apolo é quem devia
Ser contigo mais brando e mais propício:
A culpa é só de Aucolo; o sacrifício,
O voto que ele fez ao Deus tirano,
Tudo enfim se ajuntou para o teu dano.

Talvez não conhecia eu, desgraçada,
Que eras tu o que então com mão armada
Me estavas a esperar lá perto à fonte.
Este aleivoso Deus, para que conte
Da minha história a triste desventura,
Depois que presa a minha formosura
Entre a nuvem levara enganadora,
Faltando a toda a fé, me ordena agora
Que eu torne ao pátrio berço, e convertida
Em Ninfa destas águas, passe a vida
Entregue sempre a míseros lamentos.
Oh! e quem crê de um Deus nos juramentos!

Aqui o teu sussurro estou ouvindo,
E nele a tua queixa inda sentindo,
Quando escapada aos amorosos laços
Dizer-te escuto: "Onde a meus ternos braços,
Onde te escondes, onde, amada Eulina,
Quem tanto estrago contra mim fulmina?"


Aqui teu duro mal percebo e noto,
Quando, do agudo ferro o peito roto,
Dás à cega ambição em cópias de ouro
O que roubaste, mísero tesouro
De Itamonte, teu Pai, que não sabia
Que a seus cansados anos deveria
Suceder um tão fúnebre desgosto.

Cheio de mágoas te estou vendo o rosto
Com que acusas o humano atrevimento,
Quando lhe acordas o furor violento
Que faz de Polidoro a desventura,
Oh! ambição! Oh! sede! Oh! fome dura!

Ouve Garcia o canto, e não atina
De onde tanto prodígio, mas de Eulina
A delicada face está patente:
Fita os olhos, e vê desde a corrente
Lançar a mão à praia a Ninfa bela;
Toma uma areia de ouro, e já com ela
Pulveriza os cabelos: neste instante
O sonho de Albuquerque o faz avante
Passar; os braços abre, à Ninfa chama;
Ela o vê, e não teme, e já se inflama
De amor por ele; aos braços o convida,
E abrindo o seio o Rio, uma luzida
Urna de fino mármore os sepulta,
Recebendo-os em si: ficou oculta
A maravilha a quantos o acompanham.
Em busca de Garcia já se entranham
Pelos matos mais densos, mas perdida
A esperança de achá-lo, e recolhida
Volta ao Herói a esquadra aventureira.

De inadvertido brincos ação grosseira
Turbara neste tempo a comitiva;

Querem que entre eles o partido viva
De Europeus e Paulistas, e já passa
A desafio em uns o que foi graça.
Conta-se que por mofa algum dizia
Que seguro em si só não vai Garcia;
Que ao valor europeu em pouco ou nada
Disputar do Paulista pode a espada.
Leva-se Borba do furor ardente,
Empunha o ferro, atreve-se valente
Ao mesmo tempo a rebater Pegado
O colérico ardor; vê-se insultado
No respeito Albuquerque: Olá! dizia,
Os braços suspendei; de rebeldia
É este um sinal claro; não se deve
Tanto despique à ofensa, que é tão
leve. Se ao Paulista de fraco alguém acusa,
Ele de seus espíritos só usa,
Quando a honra do empenho ao campo o chama.
Não é valente, não, o que se inflama
No criminoso ardor de a cada instante
Dar provas de soberbo, e de arrogante.
Os Europeus são fáceis neste arrojo."

Se justo imaginais foi o despojo
Das Minas, que lhes tiram, porque avaros
Se pertendem mostrar (bem que são raros
Os que entre eles se arrastam da cobiça),
Dizei: não pede a próvida Justiça
Que zele cada um, que guarde, e reja
O que adquire o seu braço, quando a inveja
Lho pertende roubar? Estas conquistas,
A quem se deverá mais que aos Paulistas?

Mas eu ponho de parte os argumentos,
Que com substância igual os fundamentos

Fazem desta disputa assaz ligeira;
Seguiremos a máxima grosseira
Dos espíritos vis, que têm formado
Nestas Minas um corpo levantado?
Acaso um mesmo Rei nos não protege?
Uma só Lei a todos nos não rege?
Do tronco português não é que herdamos
O sangue de que as veias animamos?
Não faz comuas um Vassalo as glórias
Do seu Rei? Do seu Reino? Das vitórias
Que um ganha, o outro perde, não alcança
A todos o infortúnio ou a bonança?
Somos nós dessa estirpe, que brotara
Do antigo Cadmo a bárbara seara,
Onde uns irmãos com outros pelejando
O ferro no seu sangue estão banhando?
Árbitro entre vós outros me conheço,
Do Europeu, do Paulista faço apreço,
E distinguindo em todos a virtude
Não espereis que de projeto mude.
Não faz a Pátria o Herói, nascem de Aldeias
Almas insignes, de virtudes cheias;
E nem sempre na Corte nobre e clara
Ingênua série, portentosa e rara
Se vê de corações, que resplandecem
Pela glória somente, e nela crescem

Dizia; e ao mesmo passo de Pereira
Um aviso chegava, de onde inteira
Informação o Herói já recebia
Da sacrílega, ousada rebeldia.
Sabe que ao longe os montes estão cheios
Dos conjurados Chefes; nisto os meios
Consulta de passar; e tem presente
A imagem, que no vidro transparente

Formara o Gênio; de Garcia ousado
Só quisera partir acompanhado;
Por ele chama, e teme, e se entristece
Ao ver que falta, e apenas aparece
Quem dê notícia, ou conte a sua ausência.

Teme que surprendido na violência
Ficasse dos Rebeldes; resolvido
Já tem partir sem ele; do vestido
Que traja, militar, e rica banda
Se despe; humilde capa aos ombros manda,
E por tudo disfarça o alto respeito,
Que inculca o aspecto: a todos no conceito
Segura desta empresa, e lhes ordena
Que em marcha vagarosa, entre a serena
Sombra da noite ao longe o vão seguindo;
Parte, e encostado à Serra vai subindo
Uma colina, que lhe põe defronte
O pico, o grande pico de Itamonte.

Chegava o dia ao termo derradeiro,
E ao vale vem descendo desde o outeiro
A sombra carregada; humilde tenda
Aqui recolhe o Herói; como pertenda
O Interesse adiantar o seu partido,
Bem que o Gênio a seu ímpeto escondido
Tinha as idéias com que o Herói salvava,
Na mesma tenda a um tempo abrigo dava
O indigno Monstro aos Chefes levantados.

Todos em um congresso declarados
Entre si praticando estão na vinda
De Albuquerque, nem crêem que esteja ainda
Tão próximo a chegar; longe o figuram,
E muitas vezes protestando juram

De obrigá-lo a voltar; a morte certa
Prometem, se o resiste; descoberta
A Albuquerque se faz por este modo
A torpe idéia do desígnio todo.

Recolhem-se a dormir, e se recolhe
Albuquerque também, que não lhe tolhe
A constância o temor; cauto pertende
Aos Pereiras juntar-se, e mais se acende
No desejo de ver ao bom Garcia,
Que aos três irmãos já crê que passaria.

Cheio destes cuidados entregava
Ao leito os lassos membros, e pensava
Em vencer da alta noite por diante
O caminho. Eis o Gênio vigilante,
Que o perigo iminente está prevendo,
Com seus influxos sobre o Herói descendo,
Da mão o prende e o guia a um sítio aonde
O escuro Caeté de acordo esconde
Um magnífico Paço, em que destina
Que tenha o Herói habitação mais digna.
Aqui dos três Pereiras o esperava
O nobre ajuntamento, e protestava,
Cada um em seu nome, que faria
Cair por terra a infame rebeldia;
Que de amigos, patrícios e parentes
Tinha a seu mando prontas e obedientes
Muitas esquadras, que traria ao lado.
Tudo agradece o Herói; mas tem pensado
Mover por arte e por indústria os Povos.

Estamos, disse, em uns países novos,
Onde a polícia não tem inda entrado;
Pode o rigor deixar desconcertado

O bom prelúdio desta grande empresa.
Convém que antes que os meios da aspereza
Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura
Decepar aquela árvore que pode
Sanar, cortando um ramo, se lhe acode
Com sábia mão a reparar o dano.
Para se radicar do Soberano
O conceito, que pede a autoridade,
Necessária se faz uma igualdade
De razão e discurso; quem duvida
Que de um cego furor corre impelida
A fanática idéia desta gente?
Que a todos falta um Condutor prudente
Que os dirija ao acerto? Quem ignora
Que um monstruoso corpo se devora
A si mesmo, e converte em seu estrago
O que pensa, e medita? Ao brando afago
Talvez venha a ceder; e quando abuse
Da brandura, e obstinado se recuse
A render ao meu Rei toda a obediência,
Então porei em prática a violência;
Farei que as armas e o valor contestem
O bárbaro atentado; e que detestem
A preço de seu sangue a torpe idéia.
Disse; e deixando a todos a alma cheia
De uma nobre esperança, já passava
A saber de Garcia; nem lhe dava
Notícia dele algum dos três Pereiras.
A um fundo Rio estavam sobranceiras
Espessas matas de árvores copadas;
De seus ramos, quais) á foram mostradas
Ao Troiano, que tenta o Reino escuro,
Em vãs imagens pende o sonho; um duro

Tronco escolhera o Gênio; ali fizera
Em uma e outra fúnebre quimera
Respirar o terror, forjar-se o susto.
Dali manda se espalhe a todo o custo
Uma e outra ilusão; partem voando
As fantásticas sombras; vão pintando
Grilhões, cadeias, cárceres, suplícios,
Degoladas cabeças, artifícios
Nunca inventados de instrumentos vários
Que estão ameaçando aos temerários,
E rebeldes Vassalos a ruína:
Confundem-se os infames, e destina
Cada um desde já buscar o meio
De pôr de parte o crime enorme e feio,
E acreditar aos pés do Herói que chega
A fé, com que ao seu Rei se rende e entrega.

Entretanto que o Gênio se cansava
Nesta empresa, o Interesse fomentava
Novas discórdias; e do altar impuro,
Aos sussurros de um fúnebre conjuro,
Subir fazia desde o horrível centro
Vorazes Fúrias, e do Abismo dentro
A guerra ateia, que aos mortais destroça;
Tiram bravos leões uma carroça,
Em cujo assento aparecer se via
Com vulto horrendo a infame Rebeldia;
Víboras os cabelos são, que estende
Sobre a enrugada testa; um Etna acende
Em cada olho, e da boca em cada alento
O veneno vomita o mais violento.

Tem por despojos a seus pés caídas
Púrpuras rotas, destroçadas vidas
De Reis, de Imperadores; vem cercada
Da Traição e do Engano, e disfarçada
Entre estes monstros com fingido rosto
A Hipocrisia tem seu trono posto.

Este ídolo cruel, que se autoriza
Mais entre os outros, porque estraga e pisa
Com mudo pé dos Grandes as moradas,
Tendo a seu lado as Fúrias convocadas,
E entrando em parte já co'a Rebeldia,
Ao Nume do Interesse assim dizia:

Sei que vacila o teu arrojo, e vejo
Que muito além do natural desejo
Vão correndo as cansadas diligências,
Com que até aqui no esforço das violências
Quisemos impedir a triste entrada
Deste Herói, que nos traz ameaçada
Toda a ruína de uma longa idéia.
Se talvez sombra vã não lisonjeia
Meus altos pensamentos, eu discorro
Que a mim me toca só dar o socorro
Ao decadente impulso desta empresa.
Não sei de que triunfo na certeza
Eu me prometo um dia a segurança
De uma eterna, pacífica bonança.
Se passou Albuquerque, e tem rompido
Ao centro destas Minas, destruído
Eu verei de uma vez o seu projeto.
Tomo a meu cargo simular o aspecto
De uma rendida sujeição, levando
Na lisonja encoberto o insulto, e quando
Ele acredite mais nossa obediência,

Farei que, rota a máscara, a violência
Dentro dos nossos braços o acometa;
Que morra a frio sangue, ou que se meta
Às brenhas fugitivo, e busque a estrada
Que lembra de Fernando a retirada.

Assim falava a torpe Hipocrisia,
O Engano co'a Traição já se lhe unia;
Aprovava o Interesse a idéia insana,
A Rebeldia se gloriava ufana;
E por todos o alento suscitado,
Se alegram, crendo já executado
Tudo quanto entre as Fúrias se medita.
Vão buscando os Chefes; corre, e grita
A infame esquadra de uma e outra Fúria:
Pouco se afligem da passada injúria.
Cortam desde o seu templo os crespos ventos;
E ao hábito nocivo, aos pestilentos
Influxos, que derramam, se enche tudo
De serpentes, de feras, que de agudo
Veneno têm a fauce infeccionada.
Talvez não viste tu, Líbia abrasada,
De monstros mais coberta a tua areia,
Quando o Filho de Acrísio ali semeia
O sangue da cabeça que cortara
O ferro, de que a Deusa a mão lhe armara.
Mas já, Garcia amante, me convidas
A descrever as horas entretidas
Nos braços a que Eulina te trouxera.
Dentro da mansa e dilatosa esfera
Do peregrino Rio entrado havia
O Mancebo feliz, e já se via

Pisando de uma sala o pavimento;
Por tudo refletia o luzimento
Da riqueza, que os tetos esmaltava;
Sobre colunas de cristal estava
Sustentado o edifício; delas pendem
Lâminas de ouro, onde seu rosto acendem
Em vivo resplandor Varões egrégios.
Da Fortuna e do Tempo os privilégios
Inculcam dominar; nas mãos sustentam
As insígnias do mando, e representam
A Régia Autoridade: em cada testa
Lhes verdeja o laurel que manifesta
A duração da imarcescível Fama.
Eulina, que Garcia ao lado chama,
Em um assento de ouro marchetado
Lhe tem junto a uma mesa preparado
O brinde da mais rara formosura.
Cem taças de ouro são, onde procura
Mostrar-lhe aos olhos quanto desentranha
De mais precioso o Rio, ou a Montanha.
Cerrava um branco véu logo diante
Uma estância; rasgou-se, e em breve instante
Deixou ver recortado junto a um monte
O venerando rosto de Itamonte.
Era de grossos membros a estatura,
Calva a cabeça, a cor um pouco escura,
De muitos braços, qual a idade vira
Tifeu, que a dura Terra produzira.

Quase a seus pés, o corpo debruçando
Sobre um punhal, estava trespassando
O peito um gentil Moço; da ferida
Uma fonte brotava, que estendida
Com as vermelhas águas rega a areia.

Eulina, que nas graças não receia
Competir co'a Deidade que o Mar cria,
De transparente garça se vestia,
Toda de flores de ouro matizada:
A cabeça de pedras tem toucada,
Deixando retratarem-se as estrelas
Em seus olhos; tão ricas, como belas,
Muitas Ninfas em roda a estão cercando,
Nas lindas mãos nevadas sustentando
Os tesouros que oculta e guarda a Terra
(Tristes causas do mal, causas da guerra!).

Niséia em uma taça oferecia
Um monte de custosa pedraria,
Em que estão misturados os diamantes,
Co'as safiras azuis, e co'os brilhantes
Topázios, co'os rubis, co'as esmeraldas
Que servem de esmaltar essas grinaldas,
De que as Ninfas do Rio ornam a frente.

Em outra taça do metal luzente,
Copioso monte apresentava Loto,
Por extremo formosa; desde o roto
Seio do Rio o louro pó juntara;
Dele costuma usar Eulina clara
Para dar novo lustre a seus cabelos.
Parece que a fadiga dos martelos
Batem o mesmo pó coalhado ao fogo,
Pois deixada esta taça e olhando logo
Para outra que Licenda na mão tinha,
Nelas de barras mil um monte vinha,
Em que o divino pó se convertera.

Não tardava a chegar branda, e sincera,
A mimosa Leutipo: esta ofertava
Uma e outra medalha, que cunhava
Nas pequenas esferas do ouro fino.

De vários caracteres peregrino
[De ouro, de diamantes circulado]
Jeroglífico ali se vê gravado,
Onde a letra em três riscos dividida
Tinha estampa entre as outras mais luzida.

Do formoso espetáculo no meio,
De júbilos Garcia se vê cheio;
As Ninfas o entretêm, Eulina o prende,
De Itamonte a grandeza mal entende,
E do Moço qual vê rasgando o peito
Não sabe a história; que se o doce efeito
Provado houvesse do gostoso fruto
Que encontrara na Hespéria o Grego astuto,
De si, dos companheiros se esquecia,
E transportado em outro já se via.

Com a voz descansada lhe falava
O bom velho Itamonte: e pois que a brava
E inculta região das pátrias Minas
Tens pisado, ó Garcia, de ti dignas
Sejam tuas ações; tu te atreveste
Primeiro que outro algum; e tu pudeste
Romper os matos, franquear o passo
Do não tentado Rio; o Fado escasso
Contigo não será, tendo encoberto
Por mais tempo o País que traz incerto
O teu grande Albuquerque; ele procura
Erguer a Capital, aonde a escura
Sombra de um sonho lhe propôs defronte
O carregado aspecto de Itamonte.
Neste sítio ele está; ali se ajunta
Com os fortes Pereiras, e pergunta
Por ti: o pátrio Gênio o tem guiado;
Deu-lhe a mão, lá opôs, ali prostrado
Ele vê a seus pés esse que há pouco,

Levado de um furor insano e louco,
Embargar pertendera a sua entrada.

Por muitos anos sei como ignorada
Foi aos humanos esta Serra: agora
A têm tentado alguns e nela mora
Um corpo de Europeus, a quem oculto
Tenho ainda os tesouros que sepulto.
Permite o Céu que sejas o primeiro,
A quem eu patenteie por inteiro
Todo o segredo das riquezas minhas.
Já desde quando no projeto vinhas
De encontrar as preciosas esmeraldas,
Eu te esperava deste monte às faldas.
O Deus destes tesouros impedia
Até aqui descobri-los, e fingia
Meu rosto aos homens tão escuro e feio,
Porque infundisse em todos o receio.

E pois que a sorte tens de que em meus braços
Ele mesmo te ponha; os ameaços
Cederão de Itamonte ao teu destino;
Vê pois, Garcia amado, o peregrino
Cabedal que possuo, e que pertendo
Ceda ao teu Rei. Se aos olhos estás crendo,
Não é fábula, não, essa grandeza
Que tens defronte da preciosa mesa.
Toda essa terra, que o descuido pisa
Dentro em meus braços, crê que se matiza
Com o louro metal, geral o fruto,
O nome de Gerais por atributo
Estas Minas terão; vês os diamantes:
Eles vêm de outras serras mais distantes,
Mas tudo corre a encher os meus tesouros;

Hão de brilhar os séculos vindouros
Com esta fina pedra; em abundância
Vencerão os que vêm de outra distância;
[E do Indo será menor a gloria,]
Quando vir apagar sua memória,
Nas terras onde o Sol iguala o dia,
Do meu Jaquitinhonha, a onda fria.
Sobre grossos canais ao alto erguidas
As correntes do Rio, e divertidas
Da margem natural, darão entrada
À industriosa mão, que já rasgada
Uma penha, e mais outra, faz que a terra
Descubra aos homens o valor que encerra.
De ti, ó Rei, das tuas Mãos só fio
Romper o seio do empolado Rio.

As pedras amarelas, e encarnadas,
De que estão essas taças coroadas
Produz o Itatiaia; aquele Rio,
Que vai buscar com plácido desvio
Outro, que do guará, purpúrea ave,
Na língua pátria o nome tem suave;
[Ele por vários córregos girando]
E juntando as correntes, vai formando
O grande Rio Doce; de Gualacho
Nos futuros auspícios talvez acho
Que um pequeno ribeiro o nome guarda.
Nas margens suas de nascer não tarda
O grato engenho, que decante um dia
As memórias da Pátria, e de Garcia;
Que levante Albuquerque sobre a Fama,
Que a Vila adorne de triunfante rama,
E dos pátrios Avós louvando a empresa,
Sobre o estrago dos anos deixe acesa
A memória defeitos tão gloriosos;
Crescei para o cercar, louros famosos.


As safiras azuis produz a Serra
Do Itambé; tem rubis aquela terra,
Aonde em breves fontes a Juruoca
Vê o Rio nascer, que as águas toca
Do grosso Paraguai; o Rio Verde
Daqui nasce também, que o nome perde,

Entrando pelo Grande; estes unidos
Vão formar com mais outros os crescidos
E agigantados passos, que desata
Pela raia da Espanha o Rio da Prata.

Das esmeraldas ao precioso Erário,
Talvez que não permita o Céu contrário
Que outro mais que teu Pai registre as Minas.
Encobertas serão as pedras finas
Por uma longa idade, e fatigadas
Serão debalde as serras levantadas
Do escuro Caeté, onde se abriga
O Botecudo infiel, gente inimiga,
Gente fera e cruel, que o sangue bebe
Humano, e encarniçado não concebe
Zelo algum pela própria Natureza.

Todos estes tesouros e a grandeza
De todas estas pedras determino,
Que por mão de um benévolo destino
Vão buscar inda a Lusa Monarquia.
Desde o seio da terra a ver o dia
O mármore virá, que aos Céus levante
Edifícios soberbos; a elegante
Mão do artífice, a Vila edificada,
Fará que sobre as outras respeitada
De Rica tenha o nome, derivado
Dos tesouros o epíteto prezado.


Aqui chegava, e quase enfraquecido
Tinha o vigor da voz, quando advertido
De Eulina o arrebatado pensamento
Com que o grande Garcia olhava atento
Para as imagens que pendentes via;
Com que igualmente os olhos dirigia
Para o Mancebo que rasgara o peito;
Tomando a lira, e com suave efeito
Soar fazendo as cordas de ouro fino,
Em cadências de um número divino
De Itamonte lembrava a grande história;
Contava que empreendendo por mais glória
Os Deuses conquistar deste Hemisfério,
Deixando a Adamastor no vasto Império
Das ondas lá do Atlântico Oceano,
O pacífico mar buscara ufano;
Que de um raio de Júpiter ferido
Fora em duro penhasco convertido;
Que um filho concebera de uma penha,
Que foi Ninfa algum dia; ele se empenha
Em contrastar de Eulina o peito ingrato;
Apolo oposto ao amoroso trato
Lha rouba, e leva em uma nuvem; triste
O Mancebo infeliz, já não resiste
Ao rigor de seu Fado: busca ansioso
Sobre um punhal o termo lastimoso
De tanta desventura; de piedade
Movido o louro Deus, ou de crueldade,
Em fonte o converteu, e a cor trazendo
Do sangue, que do peito está vertendo,
Por castigo maior do fatal erro
Sobre ele faz bater o duro ferro.
Assim atado ao Cáucaso gelado
O ventre vê das aves devorado
Em contínuo tormento esse, que intenta

De Apolo arrebatar com mão violenta
O raio, de que anima a estátua muda,
Que tanto em fabricar seu dano estuda.

Tudo isto canta a Ninfa, e alegre passa
A dar à linda voz mais bela graça:
Levando o rosto, e os olhos aplicando
Para as lâminas de ouro, e reparando
Em cada uma, concebe um novo alento;
Aqui levanta, e esforça o acorde acento,
E como se Itamonte lhe influíra,
Do peito do Gigante as vozes tira.

Matéria é de coturno, e não de soco,
O que a Ninfa cantava; eu já te invoco,
Gênio do pátrio Rio; nem a lira
Tenho tão branda já, como se ouvira
Quando a Nise cantei, quando os amores
Cantei das belas Ninfas e Pastores.
Têm os anos corrido, além passando
Do oitavo lustro; as forças vai quebrando
A pálida doença; e o humor nocivo
Pouco a pouco destrói o suco ativo,
Que da vista nutrira a luz amada:
Tampouco vi a testa coroada
De capelas de louro, nem de tanto
Preço tem sido o lisonjeiro canto,
Que os mesmos que cantei me não tornassem
Duro prêmio; se a mim me não sobrassem
Estímulos de honrar o pátrio berço,
Deixara de espalhar pelo Universo
Algum nome, deixara... mas Eulina
Me chama já: soava a voz divina,

E aos bustos discorrendo, assim cantava:
Aquele (e no primeiro se firmava),
Aquele que na frente traz gravado
O caráter de um ânimo empregado
Em contínuas fadigas, que inda sua
Por entre a espessa brenha e serra nua,
Vencendo ásperos riscos e as correntes
Dos rios não cortadas de outras gentes
Mais que do hirsuto e bárbaro Gentio,
É Rodrigo, que junto àquele rio
Que acabas de pisar a vida entrega
Às mãos de uma ousadia infame e cega.
Em vão tentou ao Rei dar novo aumento
Das Minas no feliz descobrimento,
Que atalhando seus passos duro fado
Aqui lhe tinha a urna preparado:
Em vez de roxos lírios e açucenas,
Bárbaras flores lhe derrama apenas
Piedosa mão, se acaso Monstro enorme
Seu túmulo não pisa, e nele dorme.
Artur é quem sucede mais ditoso,
Pois que atraindo ao Borba generoso,
Que ao centro dos Sertões se retirara,
Com ele emprende ver a terra avara,
Onde jaz de Rodrigo a sepultura:
Vê qual próvida mão dar-lhe procura
O luzente metal, que em longos anos
Se negara à fadiga dos humanos.

O terceiro é Fernando, que sustendo
Dificilmente as rédeas se está vendo
Entre os insultos da rebelde gente;
Desde longe o ameaça a bala ardente,
A crua espada e o punhal ferino,

Se não volta e obedece ao seu destino:
É prudente o Varão; vê-se arriscado
Sem armas, sem defesa, e profanado
O respeito não quer e a autoridade,
Que sustenta do Rei a Majestade.

De vendicar o mando a empresa toma
O famoso Albuquerque, e a grande soma,
Dos tesouros que guardo eu lhe preparo.
Melhor do que nos mármores de Paro,
Ou nos polidos bronzes de Corinto,
Ele o seu nome levará distinto,
De uma vez as cabeças decepando
Da Hidra venenosa, que soprando
Ainda o fogo está da rebeldia.
Fará subir com nobre valentia
De choupanas humildes a altas torres
Essas povoações, que a ver discorres
Desde esta margem te meu fundo centro;
Quanto do seio meu se encerra dentro
Liberal eu virei dar-lhe em tributo;
Da grande cópia do amarelo fruto
Os curvos lenhos em fecundas frotas
Irão levar às regiões remotas
As preciosas porções, que nunca vira
Em tal grandeza o Rei, que dividira
As águas do Eritreu, e desde o Tiro
Ao claro Ofir voou com longo giro.

Do Carmo a Vila, e a Vila do Ouro
Preto Formarão das conquistas o projeto;
Junto ao Rio, a que as Velhas deram nome,
A terceira erguerá, que o foral tome.
lá vens cortando o mar para rendê-lo,
Magnânimo Silveira; do teu zelo

Fia o
Rei se adiante o novo Empório:
Em trinta arrobas de ouro faz notório
Por esta vez o Povo o seu tributo,
E agradecido o Rei conhece o fruto
Da tua persuasão, sem que a violência
Arrastasse os esforços da prudência.
Do teu Antecessor seguindo a estrada,
Passas a ver com glória edificada
A Vila que escondida o Fado tinha
Com o precioso nome da Rainha;
E no distante Serro se levanta
A outra, que do Príncipe se canta;
Ditosas povoações, que hão de algum dia
Encher de lustre a Lusa Monarquia.

Criadas as três Vilas, já demarcas
Os distintos limites das Comarcas:
Dás com próvida mão leis, e moderas
As discórdias civis; já consideras
Domado o povo, e em sucessão gloriosa
Ao claro Almeida entregas a preciosa
Porção das Minas do Ouro: ó tu, mil vezes
Digno filho de Marte, que os arneses
Acabas de romper entre os Iberos;
Que ousados braços, que semblantes feros
Te não cabe aterrar! Ao longe eu vejo
Erguer-se a multidão, que em vão forcejo
De atrair e render; vem arrastando
Infames Chefes o atrevido bando:
Chegam, propõem, disputam; nem se nega
Teu intrépido rosto à fúria cega
Do fanático orgulho. Ah! não se engane
O Vassalo infiel; bem que profane,
Que ataque e insulte a Régia Autoridade,
Ao destroço da vil temeridade

Será o campo teatro, e em sangue escrito
Chorarão sem remédio o seu delito.

Cai a sublevação, e restablece
Outro Almeida o real decoro; cresce
A opulência no Estado; um Melo e Castro,
Da esfera lusitana feliz astro,
Já sucede ao bastão que Almeida empunha;
Deste Herói as virtudes testemunha
Itália toda, e as suas glórias soma,
Cheia de tanto nome, a ilustre Roma.

Mas qual te chamarei, ó sempre digno
Sucessor de Galveas; o benigno
Céu, que te envia a nós, de riso cheio
O seu semblante inculca; ah! que do meio
Do Guadiana te arrancou! Pendente
Lá vejo a espada, e vejo a areia quente
Do sangue derramado! Que destino
Tão fausto para nós! Já imagino
Que eternos os teus dias lograremos!
Dos Tritões sobre as costas levaremos
Ao luso Atlante, nunca tão pesados,
Os Reais Cofres; vinde, ó dilatados
Sertões, vinde montanhas, vinde rios;
Chegai também, ó bárbaros Gentios
Do bravo Cuiabá, do Mato Grosso,
De Pilões, de Goiases, vede o vosso
Destro Governador, que desde as
Minas Sustenta a rédea, e manda as peregrinas
E sábias direções, com que reparte
Em uma e outra dilatada parte
Sua próvida mão, com que segura
O bem do Rei, dos Povos a ventura!
Já do pardo Uraguai busca a corrente;
O Irmão o substitui;

o sangue ardente
Lhe lembra a imitação de heróicos feitos,
Generosos A Andradas, dignos peitos!
Este alimpa os Sertões da gente ociosa,
Que do roubo se nutre; a deliciosa
Margem do Rio Grande é povoada.
Toda a larga campina que pisada
Fora do cafre vil ao Régio Erário
Rende os tributos; pode o Céu contrário,
Sim, roubar-vos, ó Freires, mas na idade
Há de ser imortal nossa saudade.
Vês ora o grande Lobo: este caminha
Seguindo a Serra, que lá tem vizinha
De Paulo a Capital; impede os passos,
Que abre o extravio; pronto aos ameaços
Da Guerra acode, a Terra fortalece
De militares tropas, e a guarnece
De bélicos petrechos: já fundido
Sai da fornalha o bronze, e convertido
Em raios de Vulcano atroa os montes.

Mas ai! que já do Tejo os horizontes
Se vêem escurecer! Já deixa a praia
Aquele Herói saudoso, que se ensaia
De verdes anos a ganhar vitórias!
Já nos demanda e busca: nas memórias
Seu nome impresso guardarão as Minas.
Oh! e de que influências tão benignas
Seu governo não é! Ao conquistado
Quanto de novo tem acrescentado!
Domésticas aldeias reconhecem
A proteção do Rei; já obedecem
As distantes regiões; vem o Tapuia
Do escuro Cuieté, ou do Urucuia

Beijar o Santuário: qual se esconde
Rio, ou montanha tão remota, aonde
Não se investigue por seu mando o ouro?
Que crime há tão seguro, que ao vindouro
Com o exemplo profane? Oh! singulares
Dotes do Conde meu de Valadares!

Assim cantava a Ninfa, arrebatada
Do profético espírito; dourada
E sonorosa a trompa já se ouvia
Entre um tropel de brutos, que feria
A praia oposta; a luminosa sala
Se ia negando aos olhos; já não fala
Itamonte, e o Mancebo já se esconde;
E Garcia (oh! prodígio!) se acha aonde
Há pouco antes se achara, e adverte, e nota
Que para ali com plácida derrota
Vêm chegando Albuquerque e os companheiros.
Já festivos clarins pelos oiteiros
Se deixam perceber, louvando a vinda;
Em vivas tudo soa; e corre ainda
O mesmo bando que turbara a entrada
A protestar a fé, já detestada
A torpe idéia, que o arrastara um dia.

Alegre o Herói se abraça com Garcia;
Alegres dão-se as mãos Borba e Camargo;
Conta o Mancebo do feliz letargo
As horas; conta o Herói o que passara,
Como um e outro Chefe ali o buscara;
Como já com certeza achado tinha
O sítio, aonde levantar convinha
A Capital das Minas: vem Fialho,
Afirma que, seguindo um breve atalho,
O fundo registrara de Itamonte;

Que vira o vale e a aprazível fonte,
Onde de Eulina inda a memória vive.
Presente, diz o Herói, também eu tive
Toda esta noite quanto viu Garcia.
O Gênio celestial, que pôde um dia
Descobrir-me o segredo deste empório,
Tudo aos meus olhos, tudo pôs notório;
Vi este sítio, o Vale, o Rio, a Serra,
E os tesouros, que o monte ao longe encerra;
Aqui entre estes povos se levante
A Vila, e já passando mais avante
Se erija a Capital: isto dizendo,
Reparte as ordens; todos concorrendo
A um tempo vão na fábrica luzida
De um e outro edifício! Da ferida
Que abria o ferro em um robusto lenho,
Cômodo à obra, por notícia tenho
Que um cheiroso licor se derramava
Da cor do sangue; absorto o Herói estava,
E vendo a maravilha, diz a Bueno:

Acaso crera que o país ameno
Lembra o sucesso das irmãs piedosas,
Que inda choram no Erídano as saudosas
Memórias do abrasado irmão; coalhadas
Assim se vêem as lágrimas brotadas
Dos moles choupos. Bueno, que não perde
A oportuna ocasião, do tronco verde
Toma argumento e diz: A antiga história
Desta árvore, eu a guardo de memória,
Desde a primeira vez que um índio velho
Encontrei nos Sertões, e de conselho
Saudável quis que eu fosse socorrido.
Nestes montes me conta que nascido
Fora um mancebo: Blázimo era o nome,

Que a corrupção do tempo em vão consome,
De bálsamo guardando inda a lembrança.
Este, tão destro em sacudir a lança,
Como em matar às mãos o tigre ousado,
Da formosa Elpinira namorado,
E seguro no cetro que mantinha
De trinta aldeias que a seu mando tinha,
A demandava esposa: disputava
Argante um tal amor; a grossa aljava
Dos ombros lhe pendia, e sempre em guerra
Fumar fazia a ensangüentada terra.
Elpinira, que causa se conhece
De tanto estrago, entre ambos se oferece
A dar a mão ao que a ganhasse em sorte
(Por que caminhos não buscava a morte!).
Convêm os dois rivais, e o pacto aceito,
Um dos dias do ano têm eleito,
Em que o seu Paraceve festejavam.
Brancas e negras pedras ajuntavam
Em uma concha e, em roda juntos todos,
Ao grande ato concorrem; vários modos
Inventam já de baile, jogo e dança,
Coroando cada um sua esperança.
Preside às sortes o bom velho Alpino,
Pai de Elpinira e Rei: vem o ferino
Argante, pés e mãos tendo cercado
De verdes penas, onde amor firmado
Traz a esperança da vitória; a frente
Blázimo adorna de um laurel florente,
Que tecem muitas rosas, misturadas
De suavíssimo cheiro; estão sentadas
Várias índias, cercando em meio a bela
Elpinira; orna a testa uma capela
De rosas, e folhetas pendem de ouro

Das orelhas; por tudo um triste agouro
Respirou: muitas árvores tremeram,
Os pássaros do dia se esconderam,
Só os da noite sussurrar se viram.
Juram, dando-se as mãos os dois, e tiram
Cada qual sua pedra; a branca expunha
Sorte feliz; a negra testemunha
A perda da consorte; está jurado
Sofrer com paz o que não for premiado.
Blázimo vence, Argante se retira,
E simulando a dor, geme e suspira.
"Viva Blázimo!", dizem: logo as vozes
A Argante vão ferir, e tão atrozes
Passam a ser as fúrias em seu peito,
Que desde aquele instante faz conceito
De vingar sua dor, roubando a glória
Ao mesmo que o privara da vitória.

Com rosto disfarçado quer contudo
Lograr o golpe; um meditado estudo
Lhe lembra a ocasião, o sítio, e a hora
De banhar toda em sangue a mão traidora:
"Eu, diz Argante, eu devo entrar em parte
Nas vossas glórias; todo o esforço d'arte
E do engenho porei, por que se veja
Que cedo alegre, e não me arrasta a inveja.
Na minha aldeia, e entre os meus povos quero
Festejar vossas núpcias; nela espero
Dar-vos provas do gosto e da alegria
Que me sabe trazer tão fausto dia.
Ali de firme paz e de aliança
Farei novo concerto, e da vingança
Cederá de uma vez o vil projeto"
(Oh! dura força de um mentido afeto!).
Aceita Alpino: Blázimo é contente,

E Elpinira também, que já presente
Crê a ventura que esperava ansiosa.
Três dias pede Argante, e a insidiosa
Idéia lhe propõe um torpe meio
De executar o dano sem receio.
Manda alimpar a estrada, funda cava
Faz abrir no mais plano, que abarcava
Ambas as margens; desde o centro ao alto
Mete a aguçada estaca, e quanto falto
De terra está cobre de ramo brando;
Sobre ele moles folhas vai deitando,
Que a mesma terra entaipa, e já figura
A superfície igual, e limpa, e pura.

Chega a terceira Aurora; desde a Aldeia
Alegres vêm saindo, e os lisonjeia
Argante, tendo em fronte aparelhado
Do lugar da traição o costumado
Baile, com que na paz se festejavam
De muitos dos seus índios. Já pisavam
A estrada os dois amantes: o Pai vinha
De um lado, e de outro lado da mão tinha
Blázimo presa a idolatrada Esposa
(Que alegre vista, que ilusão faustosa!).
Todos diante vêm; este o costume
É da nação; nem teme, nem presume
Algum dos três, e inda o povo todo,
A urdida morte por tão novo modo.

Com Argante e seus índios se avistavam,
Em vivas desde longe se saudavam.
Infelizes (que dor!) as plantas punham
Sobre a coberta cava, e já supunham
Que os braços ao amigo se estendiam,
Quando passados os seus peitos viam

Das aguçadas farpas: volta Argante
Colérico, soberbo e triunfante
Sobre os desprevenidos que acompanham
Sem armas ao seu Rei; todos se apanham
Presos às mãos das emboscadas; morrem
Imensos índios; a fugir recorrem,
Mas a gente que às costas lhes ficava,
O resto, o infeliz resto destroçava.

Já mortos os três índios, lançam terra
Sobre os seus corpos; uma só urna encerra
O mísero despojo. O Céu procura
Vingar o grave horror: da sepultura
Vê-se brotar uma árvore, que verte
Cheiroso sangue. O caso se converte
Em fabulosa história, e se acredita
Que Blázimo, a quem segue esta desdita,
Das mesmas flores de que a testa ornara,
E do seu sangue a cor e o cheiro herdara;
E que o Céu testemunhos multiplica,
Multiplicando os troncos; assim fica
A tradição nos nacionais guardada;
O Índio que me conta a dilatada
História diz-me, então, que mal segura
É sempre a fé que o inimigo jura.

Ouve Albuquerque o caso, e não ignora
Que alto mistério dissimula agora
Em suas vozes Bueno; tem previsto
Quanto o nome do Rei se vê malquisto
Entre os Chefes do povo levantado;
E trazendo em memória o já passado
Encontro adulador, que de Fernando
Acobardara a entrada, então chamando
Os membros principais, que arrebatava
A fanática idéia, assim falava:


Vassalos sois de um Rei, que não vos deve
O cetro, ou a coroa; a origem teve
Já dos vossos Senhores; por herança
O Reino Augusto em suas mãos descansa.
Sendo assim, bem sabeis que é só tributo,
E não dádiva vossa aquele fruto
Que adquirem vossas forças; dou que fosse
Vossa a conquista; o seu domínio e posse
Só cede ao vosso Rei; causa comua
Seja ela embora, é nossa, porque é sua.
Ele os seus braços para nós estende,
Nos manda e rege; e tudo compreende
O seu Império na maior distância;
Nós juramos das Leis toda a observância,
E do primeiro pacto não devemos
Apartar-nos, pois nele nos prendemos.
Do castigo e do prêmio ele confia
Das minhas mãos o arbítrio; eu deveria
Usar do meu poder; porém cedendo
À piedade o rigor, de vós pertendo
Só dignas provas de obediência pura.
Não quero crer a sem-razão perjura,
Que dominou em vós; a caluniosa,
Torpe mentira, cuido que enganosa
Fez voar tudo quanto é já notório
Que tem feito a ruína deste empório;
Enfim perdôo a todos o passado;
Firma o Rei o perdão que tenho dado.

Conheço (e com Viana só falava)
Que em vós, e em vosso peito dominava
Um zelo justo pelas leis que guardo;
De dar as providências já não tardo
Sobre os dous ímpios, que influir puderam
Nas discórdias civis: eles se alteram

Com a minha chegada, e vão buscando
Estranhos climas, libertando o bando,
Que atraíram talvez, ou que arrastaram:
Os poucos membros, que entre nós ficaram,
Farei por conservar na paz, que espero;
Mas da vossa obediência aprova quero
Mais sólida e mais firme; ao longo centro
Dos Sertões passareis, e ali dentro
Dos seus limites contereis seguros
Na doce paz os ânimos impuros;
Que os não manche outra vez o humor nocivo
Da infame Rebeldia; o braço ativo
Saberá, esgotando todo o empenho,
Destroçá-los, puni-los: mas que venho
A meditar? De vós tudo confio;
De vós, do vosso zelo, esforço e brio.

Isto dizendo, os braços estendia
Para Viana: neles recebia
Logo a Francisco, a quem recomendava
O mesmo, e muitas vezes protestava
Que do seu Rei poria na presença
Um tal serviço; ordena sem detença
Que partam desde logo; têm por dita
Os dous Vassalos ver que os acredita
O conceito do Herói; as mãos lhe beijam,
E o desterro político desejam
Cumprir, mais que por força, por vontade.

Conrado e outro conspirado Frade
Ao longe vão marchando; e dão as costas
À torpe Hipocrisia, que dispostas
Tinha em vão as idéias do atentado;
A Rebeldia ao centro tem baixado;

Cheio de fúrias mil vomita fogo
O Interesse, que o guia e arrasta logo
O falso Engano e a Traição malvada,
Que vêem tanta fadiga malograda.

De Flégon e Pírois as rédeas de ouro
Batia o Sol, e com feliz agouro
Em giros onze ao lusitano fasto
Sobre mil setecentos que tem gasto
Pelo eclítico cerco, enfim trazia
O mês que Roma do seu Júlio fia

Eis que Albuquerque, adiantando o passo
Da margem que deixara, em breve espaço
Pisava as faldas do Itamonte: estava
Co'os olhos fitos o Gigante, e dava
Vivos sinais de uma alegria interna;
Certo que de seus braços já governa
Tão grande parte a direção prudente
Do magnânimo Herói, ele impaciente
Na dilação de ver a Vila erguida,
Conta-se (nem do caso se duvida),
Que assim falara quando o viu diante:

Ó tu, por tantos riscos triunfante,
Albuquerque feliz, pois que a fortuna
Te conduziu com máxima oportuna
A registar de perto os meus domínios,
Pois que cortados os fatais desígnios
Do conjurado bando alegre pisas
Este verde País, onde eternizas
Em gloriosos feitos o teu nome,

Deixa que em teu obséquio a empresa tome
De ir já desentranhando do meu seio
Os mármores mais finos; nisto veio
Pulando desde o centro um Padrão liso
Da mais subida massa; eu já diviso
Nele entalhadas do cinzel agudo
As Régias Armas; tanto ao destro estudo
De Praxíteles não devera a idade:
Sobre o quadro da base à eternidade
Se recomenda a estampa; ao alto erguida
Sobre a coluna, a ponta está partida
De um aguçado alfanje; assim denota
Que aos crimes ameaça, e o sangue esgota
Dos que entregues à pérfida maldade
Desconhecem as leis da humanidade.

Este Padrão no meio se coloca
Da Régia Praça, que os Céus provoca
Soberba torre em que demarca o dia
Volúvel ponta, e o Sol ao centro guia.

De férreo pau já sobe, e já se estende
Magnífico edifício, onde pertende
A Deusa da justiça honrar o assento.
Aqui das penas no fatal tormento
A liberdade prende o delinqüente,
E arrastando a misérrima corrente
Em um só ponto de equilíbrio alcança
Todo o fiel da sólida balança.

Da sala superior teto dourado
Já se destina ao público Senado,
Que o Governo econômico dispensa.


Lavra artífice destro sem detença
Os mármores cavados; de polidas
E altas paredes já se vêem erguidas
As majestosas casas, que recolhem
Régios Ministros que os tributos colhem;
Em respectivos tribunais decentes
Dão as próvidas leis: talvez presentes
Tem Itamonte já no claro auspício
De um e outro magnífico edifício
As que espera lavrar líquidas fontes,
Que vomitam delfins, e régias pontes,
Que se hão de sustentar sobre a firmeza
De grossos arcos da maior riqueza.

Presentes tem talvez os Santuários,
Em que se hão de esgotar tantos erários,
Onde Roma há de ver com glória rara
Que debalde aos seus templos disputara
A grandeza, o valor e a preeminência.

Trajando as galas da maior decência
Na casa do Senado o Herói entrava;
Da cor da tíria púrpura talhava
A farda militar; cinge-lhe o lado
A rica espada, que já tem provado
Mil vezes o furor do irado Marte;
E a mão, que os prêmios liberal reparte
E dispõe os castigos, já sustenta
O bastão que os poderes representa.

Estão no plano os esquadrões formados,
Monta a Cavalaria, e cinge os lados;
O centro ocupa a Infantaria; tudo
Respira da grandeza um novo estudo:
Brilha o asseio e a ostentação; a idéia
Crê que dos Céus na vista se recreia,

Vendo nos recamados fios de ouro
Que o Sol retrata ali o seu tesouro.

Desta arte entrando vai na Régia Sala,
Senta-se, mede a todos, e assim fala:
Felizes vós, feliz também eu devo
Chamar-me neste dia, pois que escrevo
Com letras de ouro o meu, e o nome vosso.
Entre as vitórias e entre as palmas posso
Seguro descansar: enfim caída
Vejo de todo a rebeldia erguida,
E Vassalos de um Rei, que mais vos ama,
Buscais acreditar a vossa fama
Com o dote imortal, que a Nação preza,
De uma fidelidade portuguesa.
De meus antecessores longe o susto;
Goze-se a doce paz, e um trato justo
De amizade e de fé, de hoje em diante
Acabe de apagar o delirante,
Fanático discurso, que inda excita
De algum Vassalo a dor; não se limita
O Régio Braço: a todos se dilata,
A todos favorece, acolhe, e trata
Sem outra distinção mais do que aquela
Que demanda a virtude ilustre e bela.

Disse; e solenizando a ação, procura
Se lavre logo a sólida escritura,
Onde o foral da Vila se establece.
Entanto o pátrio Gênio lhe oferece,
Por mão de destro artífice pintadas
Nas paredes, as férteis, dilatadas
Montanhas do País; e aqui lhe pinta,
[Por ordem natural, clara e distinta]
A diferente forma

do trabalho
Com que o sábio mineiro entre o cascalho
Busca o louro metal, e com que passa
Logo a purificá-lo sobre a escassa
Tábua, ou canal do liso bulinete,
Com que entre a negra areia ao depois mete
Todo o extraído pó nos lisos vasos
(Que uns mais côncavos são, outros mais rasos)
E aos golpes d'água da matéria estranha
O separa e divide; alta façanha
De agudo engenho! A máquina aparece,
Que desde a sua altura ao centro desce
Da profundada cata, e as águas chupa.

Vê-se o outro mineiro, que se ocupa
Em penetrar por mina o duro monte
Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte
Da gruta, que abre, a terra que extraíra;
Os lagrimais das águas que retira
Ao tanque artificioso logo solta;
Trazida a terra entre a corrente envolta,
Baixa as grades de ferro; ali parados,
Os grossos esmeris são depurados,
Deixando ao dono em prêmio da fadiga
Os bons tesouros da fortuna amiga.

Por entre a pedra estoutro vai buscando
As betas de ouro; aquele vai trepando
Pelo escabroso serro, e as águas guia
Pelos canais que lhe abre a pedra fria.

Não menos mostra o Gênio a agricultura
Tão rara do País, aonde a dura
Força dos bois não geme ao grave arado;
Só do bom lavrador o braço armado
Derriba os matos, e se ateia logo
Sobre a seca matéria o ardente fogo.


Da mole produção da cana loura
Verdeja algum terreno, outro se doura;
O lavrador a corta, e lhe prepara
As ligeiras moendas; ali pára
O espremido licor nos fundos cobres:
Tu, ardente fornalha, me descobres
Como em brancos torrões haja tornado
A estímulos do fogo o mel coalhado.

O arbusto está, que o vício tem subido
A inestimável preço, reduzido
A pó sutil o talo e a folha inteira.
Não menos brota a oriental figueira
Com as crescidas folhas, e co'o fruto,
Que inda nos lembra o mísero tributo,
Que pagam nossos Pais, que já tiveram
A morada do Éden e não puderam
Guardar por muito tempo a lei imposta
(Ó natureza ao Criador oposta!).

Os pássaros se vêem de espécie rara
Que o Céu de lindas cores emplumara;
As feras e animais mais esquisitos
Todos no alegre mapa estão descritos,
Os olhos deleitando e entretendo
O Herói que facilmente o está crendo,
Ao ver que destra mão dar-lhes procura
A vida que lhes falta na pintura.

Mas já lavrado estava e já firmado
O termo, que escrevera o bom Pegado;
Quando mais que a eleição, podendo o acaso,
Manda o Herói que se extraiam dentre um vaso
Os nomes dos primeiros a quem toca
Reger a Vara que a justiça invoca.

A ti te chama a sorte, ó grande Melo,
E tu, Fonseca, em nobre paralelo
Cedes nos anos teus a precedência,
Do que contemplas próvida influência.
Seguem-se àqueles dous um Figueiredo,
Um Gusmão, um Faria, e te concedo
Que sejas tu, Almeida, o que completes
O número na ação em que competes.

Ansioso o Povo às portas esperava
Pela alegre notícia, e já clamava
Viva o Senado... Viva! Repetia
Itamonte, que ao longe o eco ouvia.

Enfim serás cantada, Vila Rica,
Teu nome impresso nas memórias fica;
Terás a glória de ter dado o berço
A quem te faz girar pelo Universo.