Dicionário de Cultura Básica/Joyce
JOYCE (a Epopéia moderna, análise de Ulisses) → Odisséia
O irlandês James Joyce (1882–1941) é considerado o pai da ficção modernista, pois de sua obra beberam todos os romancistas que tentaram afastar-se da narrativa tradicional, adulterando a linguagem e inovando as técnicas formais da prosa de ficção, na tentativa de representar a fragmentação espiritual do mundo em que vivemos. Sua obra mais famosa, Ulisses, publicada em 1922, mas sofrendo inicialmente ostracismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, é uma espécie de epopéia do homem moderno (→ Gênero → Épico), colocando perante nossos olhos todas as áreas do conhecimento humano: reflexões filosóficas, perplexidades religiosas oscilantes entre o helenismo e o hebraísmo (→ Jerusalém), consciência moral, ciências naturais e médicas, psicologia do subconsciente, política, sociologia, economia, jornalismo, publicidade, literatura e artes plásticas. O volumoso romance, de dimensões míticas, está calcado sobre A Odisséia, tomando como título o nome latino do protagonista da obra de Homero ("Odisseu", em grego e Ulisses, em latim), e descreve o que acontece a Leopold Bloom num dia comum (16 de junho de 1904), na cidade de Dublin, capital da Irlanda do Sul. O Ulisses está dividido em três partes, separadas por algarismos romanos:
I — Corresponde à "Telemaquia" de A Odisséia, de Homero, onde se descreve a viagem de Telêmaco a Pilos e a Esparta, procurando saber notícias sobre o retorno do pai Ulisses. O protagonista desta primeira parte é Stephen Dedalus, um professor de história que, inconscientemente, busca um pai de verdade, visto que seu progenitor natural vive bêbado, tendo abandonado a família na miséria.
II — É a parte mais longa do romance e tem como paralelo mítico as viagens do herói homérico Ulisses. Seu protagonista é Leopold Bloom, agente publicitário casado com Molly, atriz de cabaré. As oito da manhã, Leopold se levanta da cama e, após realizar as ações corriqueiras (toma café, vai ao banheiro etc.), sai de casa para enfrentar a vida agitada da metrópole. As cenas que se sucedem tem correspondências com episódios de A Odisséia, de Homero: o enterro do amigo Dignam (descida de Ulisses ao Hades → Inferno), o almoço (episódio dos Lestrigões, povo antropófago), visita ao bordel (episódio de Circe) etc.
III — Corresponde ao retorno de Ulisses a Ítaca e o reencontro com sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco. Pelas três da madrugada, Leopold, junto com Stephen (símbolo do encontro entre o pai e o filho), volta para sua casa e encontra sua mulher dormindo. A protagonista desta última parte é Molly que, acordando, remói toda sua vida passada num longo monólogo interior.
Este brevíssimo resumo da fábula do Ulisses de Joyce nos fornece apenas uma pálida idéia da estrutura da obra, que é extremamente complexa. Os fatos não são apresentados de uma forma linear, numa ordem cronológica, mas misturados com as lembranças, os desejos, as frustrações, as obsessões dos personagens, através da técnica da corrente do pensamento e das associações de sensações. Por exemplo, toda a última parte é composta de um único período, sem nenhuma pontuação e com inúmeras extravagâncias morfológicas e sintáticas, para expressar o fluxo ininterrupto da consciência da personagem, que nos releva o encavalgamento, no seu espírito, de idéias, sentimentos e sensações passadas, presentes e futuras. Na obra de Joyce devemos ressaltar duas tendências que, embora opostas, se combinam: a atmosfera naturalista, criada pela descrição das minúcias da vida cotidiana, e o simbolismo épico, que universaliza e eterniza ações e sentimentos. Desta concordantia oppositorum surge o aspecto irônico da obra, que reduz seus personagens ao absurdo do heróico-burlesco. Assim, a protagonista Molly, que deveria ser a correspondente atual da mítica Penélope, a esposa fiel por antonomásia, é descrita como uma mulher lasciva, sensível aos chamamentos do sexo, pronta a se entregar ao primeiro amante que aparecer. A narrativa de Joyce, portanto, apresenta a mistura do mundo mítico, com seus arquétipos ideológicos, e do mundo da realidade cotidiana, em que o homem é solicitado pelas baixas exigências do viver individual e social. O romance Ulisses, quando publicado em Paris, em 1922, pelo mecenatismo de uma amiga do escritor, encontrou sérias resistências nos ambientes puritanos da época, que o consideraram uma obra obscura e obscena. Mas, anos depois, pela crítica elogiosa de Stuart Gilbert, T. S. Eliot e Edwin Muir, o romance teve o merecido sucesso e foi traduzido para as principais línguas da Europa. Joyce, então, passou a ser considerado o grande inovador da prosa de ficção e sua técnica narrativa passou a fazer escola. Em verdade, não há ficcionista da Vanguarda que não acuse influências joycianas, quer inove a linguagem romanesca, quer reestruture fábulas e personagens. . Nessa vertente da narrativa modernista, a linguagem não é mais considerada apenas um meio para a representação do real, mas é criadora de novas realidades, pois utiliza signos sem referentes extratextuais. Como releva o crítico E. T. Rosenthal, "as novas criações lingüísticas agem de maneira direta, a consciência lingüística impõe-se decididamente no processo da formação da obra, e o estado de consciência a ser projetado traduz-se em uma nova sintaxe e em composições vocabulares ousadas". O romance não tem mais por objeto de representação uma história linear, com começo, meio e fim, mas é a transfiguração artística das associações de idéias e de sentimentos que invadem o espírito dos personagens. O fluxo da consciência, desconexo e fragmentário, é expresso poeticamente mediante a deformação lingüística, as orações paratáticas, a aglutinação de palavras e de frases, a criação de novos termos. Joyce fez escola: Virgínia Woolf pode ser considerada sua melhor aluna. No Brasil, a narrativa de introspecção psicológica foi cultivada por vários escritores modernistas e atuais. Lembramos o romance intimista de Otávio de faria, de Lúcio Cardoso, de Cornélio Pena, de Autran Dourado. Mas a técnica do monólogo interior para expressar a corrente do pensamento é usada de uma forma exemplar por Clarice Lispector.