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Dicionário de Cultura Básica/Poe

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POE, Edgar Allan (poeta e contista norte-americano) → Romantismo

Quoth the Raven: "Nevermore"!

Edgar Allan Poe (1809–1849), de língua inglesa, mas de nacionalidade norte-americano, é um dos maiores escritores da época romântica, muito bom em versos e em prosa, criando um estilo próprio, largamente imitado por poetas e ficcionistas do continente americano e europeu. Nasceu em Boston, filho de um casal de atores mal sucedidos. Com apenas dois anos de idade, morre-lhe a mãe de tuberculose, já viúva ou abandonada pelo marido, deixando três crianças de tenra idade na mais negra miséria. Edgar é acolhido pelo comerciante escocês John Allan, casado e sem filhos. De 1815 a 1820, os Allan passam a residir na Escócia e na Inglaterra, onde a criança inicia sua formação escolar. Mas os negócios não andam bem e John Allan resolve retornar aos USA. Em Richman, na Virgínia, a adolescência de Edgar é relativamente feliz, pois sua aplicação nos estudos e nas práticas esportivas lhe cativa a simpatia de familiares e colegas. Especialmente a senhora Jane Stanard, mãe de um colega de quem freqüentava assiduamente a casa, sente pelo rapaz, inteligente e atlético, uma profunda afeição, romanticamente retribuída. Os ataques de loucura e a conseqüente morte dessa senhora são um golpe profundo na sua sensibilidade do jovem poeta. A ela dedicará, mais tarde, um poema, cantando-a sob o pseudônimo "Helena". Os breves anos de uma adolescência serena passam logo: em 1824 começa o longo conflito com seu pai adotivo. Edgar não perdoa as aventuras extraconjugais de John Allan, que fazem sofrer sua bondosa esposa, já doente. O comerciante retruca lançando lama sobre a família de Poe e recusando-se a adotá-lo legalmente como filho, para que não se torne seu herdeiro. Em 1826, Poe ingressa na Universidade de Virgínia, fundada no ano anterior por Thomas Jefferson. O pai adotivo não lhe fornece o dinheiro suficiente e o jovem poeta se dedica ao jogo e à bebida. A conduta deplorável e a situação familiar irregular fazem com que os pais de Elmira Royster se oponham ao noivado com o filho enjeitado de Allan. John insistia em que Edgar deixasse os estudos literários e se dedicasse à advocacia. Em 1827, abandona a família e se arrola no exército. Dois anos depois, morre-lhe a mãe adotiva, a bondosa Frances Allan, que tanto o amara, e Edgar aproxima-se da família de seu pai natural, indo morar com sua tia Maria Glemm, sua futura sogra, em Baltimore. Em 1830, ingressa como cadete na Academia Militar de West Point, onde permanece por menos de um ano, pois decide finalmente dedicar-se exclusivamente à sua verdadeira vocação de escritor. Voltando a morar junto com a tia Maria Glemm, casa-se secretamente com sua prima Virgínia, de treze anos, e torna-se redator do Southern Literary Messenger, começando a publicar contos e poemas, com uma certa regularidade, além de exercer a função de crítico literário. Mas o emprego não dura muito. Sempre vivendo miseravelmente, vítima da pobreza e da bebida, desloca-se por várias cidades e Estados (Nova York, Filadélfia, Richmond, Baltimore), à procura de emprego em empresas editoriais, sendo sucessivamente demitido, pelo seu caráter inconformado e pela embriaguez, carregando ainda o ônus doloroso da esposa doente de tuberculose. Sente ainda a morte do irmão e da irmã. Em 1847, morre-lhe a esposa e, após inconseqüentes aventuras amorosas, Poe tenta reviver seu primeiro amor com Elmira Royster, agora rica viúva. Mas o vício do alcoolismo faz fracassar também este último sonho: de passagem por Baltimore, é encontrado bêbado na estação ferroviária, num estado miserável. Levado para o hospital local, morre como um mendigo e viciado desconhecido.

Na sua obra em prosa, desprezando o uso dos romances longos, volta-se pata as short stories, mais aptas a expressar a densidade dramática e a causar no leitor o efeito de surpresa e de estranhamento, característico do seu estilo literário. Quanto à tipologia de sua narrativa, distinguimos os contos policiais, os contos de terror e de mistério, os contos de caráter filosófico e humorístico, além de outras narrativas de viagens fantásticas e de alguns ensaios. Poe foi o primeiro grande ficcionista do continente americano e dos países colonizados que, mais do que recebeu, exerceu influências sobre os escritores do Velho Mundo. Depois que Baudelaire, pela tradução das Estórias extraordinárias, revelou Edgar Allan Poe à cultura européia, seus passos, consciente ou inconscientemente, foram seguidos por vários ficcionistas ocidentais. Seus contos policiais, especialmente o antológico Os crimes da rua Morgue, o primeiro do gênero, criaram escola: os personagens Lecoq, de Emile Gaboriau, e Sherlock Holmes, de Conan Doyle, são réplicas modernas do detetive Dupin, idealizado pelo escritor norte-americano. O romance de ficção científica de Júlio Verne deve muito aos contos fantásticos As aventuras sem par de um certo Hans Pfaal e A baleia do balão. Influência enorme Poe teve também sobre o chamado "romance negro", as narrativas de terror e de morte, cujos exemplos mais marcantes são seus contos A queda do solar de Usher, O caso do senhor Valdemar e A máscara da morte rubra.

Sua obra em versos, também, foi imitada largamente por autores europeus, especialmente os ligados à escola simbolista. Um dos poetas "malditos" da literatura universal, Poe explorou as anomalias da natureza humana. Vivendo na plena explosão do movimento romântico, ele conseguiu expressar esteticamente os anseios e as perplexidades, as contradições e as complexidades dos homens da sua época. Contestando os valores sociais do viver burguês, tentou mergulhar nas profundezas da alma humana, revelando o lado desconhecido da existência individual. Seus personagens, quase todos representações artísticas do seu "eu", são seres de mente lúcida e inquieta, habitando um corpo doente. O refúgio no mundo do sonho e da imaginação, que leva Poe à descrição do insólito e do surpreendente, é uma constante da sua poética. Mas o irreal é expresso com tanta lucidez e coerência interna, que nos dá a impressão de realidade. Apesar de ser substancialmente um escritor dionisíaco, por deixar-se levar constantemente pela sensibilidade e pela inspiração, formalmente ele pode ser considerado um escritor apolíneo ou clássico, porque seus textos literários são extremamente elaborados, apresentando uma grande verossimilhança interna. Haja vista a lógica primorosa com que compõe o poema The raven ("O corvo"), descrita por ele mesmo no ensaio A filosofia da composição. Tal retroconstrução dá prova de que Poe foi um poeta altamente estruturante, que teve em Fernando Pessoa um dos sucessores mais ilustres. É essa capacidade de conjugar a inspiração com uma técnica apurada ("engenho e arte", diria Camões) que faz de Edgar Allan Poe um poeta singular, um mestre de poesia, que vive acima de qualquer escola literária. A produção em versos de Poe é constituída de trinta e quatro poemas, em que se destacam as poesias inspiradas por mulheres: Para Helena, Annabel Lee, Eulália, Á minha mãe, Lenora, Para Annie. Seu poema mais famoso é The Raven, traduzido para as mais importantes línguas ocidentais. Em português, lembramos as traduções de Machado de Assis, Fernando Pessoa, Oscar Lopes e Gondin da Fonseca. O poema é classificado como "balada", pois, na sua essência, é uma pequena narrativa. É composto de dezoito estrofes, cada uma de cinco versos longos, seguidos de um curto, que funciona como estribilho, repetindo-se em cada final de estrofe a palavra nevermore (nunca mais), com exceção do final da segunda estrofe, onde, porque já existe o negativo nameless (sem nome), aparece a forma positiva evermore (para sempre), e do final das estrofes primeira, terceira, quarta, quinta, sexta e sétima, terminadas pela palavra nothing more (nada mais). Eis o resumo da história: numa certa noite, enquanto o eu poemático estava lendo para vencer a insônia, causada pela lembrança saudosa da amada Lenora, ouve um barulho estranho, que o amedronta. Procura acalmar-se, atribuindo o rumor às batidas à porta de algum visitante inesperado. Mas o leve barulho continua e ele toma coragem para desvendar o mistério: imaginariamente dirige a palavra à suposta visita noturna, pedindo desculpas pelo atraso em atender. Ao abrir a porta, porém, só encontra na sua frente a escuridão da noite. Perante as trevas, num silêncio sepulcral, sente mais medo ainda. Não há sinais de visitante algum. Apenas uma palavra parece romper o silêncio da noite: o nome de Lenora, murmurado pelo seu espírito, ecoa na noite calma. Voltando ao seu quarto, ouve outra vez o misterioso rumor. Pensa, então, que o barulho é provocado pelo vento que bate na janela. Mas, ao abri-la, grande é a sua surpresa: encontra lá um corvo que, esvoaçando, penetra no quarto e vai pousar-se num busto da deusa grega Minerva, que estava acima da porta. Passado o medo, o eu poemático acha até graça na postura do corvo acocorado solenemente no busto de Atena. Dirige-lhe, então, a palavra, perguntando-lhe o nome. E o corvo responde: Nevermore. Insiste em dialogar com o corvo, expressando-lhe o sentimento de sua solidão, temendo que a ave vá embora no dia seguinte, abandonando-o, como já fizeram seus amigos. E o corvo responde: Nevermore. Aí ele percebe que a expressão "nunca mais" não é o nome do corvo, mas apenas a única palavra que a ave conhece, tendo-a aprendido de algum dono antigo, palavra que repete a esmo. Volta-lhe à mente a recordação da amada Lenora, quando a via sentar-se na almofada de veludo. A saudade outra vez aflige-lhe o coração, e o corvo continua repetindo: Nevermore. Interpela o corvo, chamando-o de "Profeta" ou "Demônio", querendo saber dele se existe no mundo um remédio contra o mal da melancolia; mas o corvo responde: Nevermore. Pergunta-lhe ainda se um dia, lá no céu, poderá abraçar outra vez sua amada, a virgem Lenora; e o corvo grasna: Nevermore. O eu poemático, então, enfurecido, tenta expulsar a ave maldita do seu quarto, intimando-a a voltar para a tempestade ou para o reino dos mortos, de onde tenha vindo; mas o corvo responde: Nevermore. E lá permanece a ave negra no busto branco de Minerva a espalhar sua sombra, da qual a alma do poeta nunca mais se libertará!

Relacionando estritamente o texto artístico com a vida do Autor, o poema The Raven pode ser submetido a uma abordagem psicanalítica. Pela nossa interpretação, o "eu" que narra é o próprio Edgar Allan Poe; a amada "Lenora", a mãe do poeta; e o "corvo", a representação artística do pai adotivo John Allan. Como vimos pelos traços biográficos, Poe perdeu a mãe com menos de 3 anos, idade em que o sentimento da morte é ainda desconhecido. Na mente infantil fixou-se a imagem da mãe "adormecida" que é levada embora de sua casa. O complexo de Édipo, assim como descoberto e descrito por Sigmund Freud, que leva o menino a apaixonar-se pela própria mãe, não teve o tempo de ser superado pela morte prematura da progenitora do poeta. Essa fixação estaria na origem do seu caráter neurótico: por ser subconscientemente um necrófilo, Poe nunca conseguiu relacionar-se afetiva e sexualmente com mulheres vivas e saudáveis. Marcado por uma infância de insegurança e sofrimento, Poe viveu circundado de gente doente ou hostil ao seu modo de sentir a vida. O primeiro amor de sua juventude, a relação romântica que teve com a mãe de um colega de colégio, gorou pela morte dessa senhora. Abandonado pela noiva Elmira Royster, mais tarde casa-se com a prima Virgínia, jovem de pouco mais de treze anos; mas trata-se de "núpcias brancas", pois, segundo alguns biógrafos, Poe não conseguiu consumar o casamento, num primeiro momento por achá-la nova demais e mais tarde porque a esposa começara a sofrer de tuberculose. O poeta sempre sofreu da necessidade de depender de mulheres (uma dúzia delas vangloriaram-se de terem sido desejadas por Edgar Allan Poe), mas com nenhuma conseguiu realizar-se plenamente. Esse fato, junto com as privações econômicas, as desgraças familiares e as brigas com o pai adotivo, fez com que procurasse na alucinação etílica o esquecimento de seus males. Mas Poe, felizmente, encontra na arte a superação de sua neurose. No poema em estudo, a imagem da mãe morta é sublimizada na figura de Lenora, a amada saudosa que vive no céu, em companhia dos anjos. O corvo que se instala no seu quarto simboliza o pai adotivo, o intruso que se insere na sua vida, impedindo-lhe de cultivar a lembrança nostálgica da mãe. Com efeito, o corvo, que vem do mundo de fora, mundo exterior e material e que se aninha de uma forma imóvel, quase petrificado, no busto de Minerva, a deusa da razão prática, da ciência humana, é uma feliz imagem de John Allan, o abastado comerciante, o burguês autoritário, que personifica as forças do superego, as convenções sociais que frustram a realização dos sonhos individuais. São essas forças que esmagam a alma de Edgar Allan Poe, expressas, na última estrofe, pela belíssima imagem da sombra do corvo que aprisiona o espírito do poeta e da qual "nunca mais" se libertará.