Dicionário de Cultura Básica/Fernando
FERNANDO Pessoa (o inventor dos "heterônimos")
Fernando Pessoa (1888–1935) tornou-se imortal não apenas pela beleza de seus versos e pela acuidade de seus pensamentos críticos sobre a vida e sobre a arte literária, mas especialmente por ter inventado personalidades poéticas distintas de si próprio. Sua obra lírica leva a assinatura de vários "heterônimos", distinguindo-se em sua produção poemas atribuídos a Alberto Caeiro, a Ricardo Reis, a Álvaro de Campos e a Fernando Pessoa ele mesmo ou "ortônimo" (= nome verdadeiro). "Heterônimo" significa, etimologicamente, "outro nome", um nome imaginário a quem é atribuída a autoria de coletâneas de poesias. É preciso não confundir "heterônimo" com "pseudônimo", que significa "nome falso" de uma mesma pessoa. Os heterônimos foram concebidos como seres diferentes de seu autor, pois Fernando Pessoa não se limitou a assinar seus poemas com nomes fictícios, mas criou, junto com cada nome, uma personalidade humana e poética com biografia, cosmovisão e tendências literárias próprias. A heteronímia é, portanto, um caso de "desdobramento de personalidade": da aparente unidade psíquico-intelectual de Fernando Pessoa emanam e se substancializam diferentes modos de sentir o mundo e a poesia. O poeta português, autodefinindo-se "um novelo embrulhado para o lado de dentro", procura desembrulhar-se, colocando para fora de si as diversas tendências humanas, filosóficas e artísticas, que estavam confusas no seu espírito:
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente...
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras...
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas
Essas "pessoas diversas" são os heterônimos. O próprio sobrenome do poeta português significa, segundo o étimo latino, "máscara", "fingimento": "pessoa" vem de persona, substantivo composto pelo prefixo per (através de) e sonun (som). Persona era chamada a mascara que os atores do teatro greco-romano usavam para camuflar sua figura física, sendo conhecidos pelo público apenas através de sua voz. A coexistência de várias pessoas, de "vozes" diferentes no mesmo ser, cria um tormento no espírito do poeta: daí a necessidade de quebrar "a cadeia de ser um", de libertar-se do sofrimento dos contrastes acumulados dentro de si. O fundamento psíquico da criação heterônima reside na complexidade do ser humano: o espírito é um "pseudo-simplex", a unidade do eu não passando de um preconceito. Cada um de nós encerra dentro de si uma pluralidade de vozes, de tendências, de desejos, de idéias, de sentimentos, que muitas vezes são contraditórios. Fernando Pessoa consegue superar artisticamente esta contradição imaginando a coexistência, dentro de si, de vários seres, cada qual indicando uma faceta peculiar de seu espírito. A capacidade de sentir várias coisas ao mesmo tempo, de desdobrar sua personalidade ou, para usar seu neologismo, de se "outrar", se manifesta em Fernando Pessoa desde a infância: com apenas seis anos de idade cria o primeiro heterônimo, um certo Chevalier de Pas, em cujo nome "escrevia cartas dele a mim mesmo". A produção dos poemas em língua inglesa da juventude, entre 1903 e 1909, é atribuída ao heterônimo Alexander Search. Mas é a partir de 1914, ano em que imagina ter andado "viajando a colher maneiras-de-sentir", que Fernando Pessoa inventa os três heterônimos melhor acabados e mais importantes, atribuindo-lhes a autoria das Ficções do interlúdio. A nosso ver, para a gênese dos heterônimos concorreram vários fatores:
1) A constituição biopsíquica do poeta português, que se autodefinia "um histérico-neurastênico". Evidentemente, o caráter excessivamente sensível de Fernando Pessoa contribuiu para que se ensimesmasse, se olhasse mais para dentro do que para fora, cultivasse poucas amizades, tivesse uma dificuldade grande em se relacionar afetiva e sexualmente com mulheres e procurasse no álcool a fuga da realidade. A introversão induz à introspecção, fazendo com que o poeta descubra, analise e dê vida própria às contradições que o habitam. Mas, daí a admitir a hipótese da gênese patológica dos heterônimos, a distância é grande. Como releva Octavio Paz, enquanto o neurótico é súcubo de suas obsessões, o artista as domina e as transforma.
2) O interesse pela teosofia, pela alquimia e pelas ciências ocultas. É sabido que Fernando Pessoa, como outros poetas de sua época (Novalis, Poe, Baudelaire, Yeats), se interessou pelos fenômenos parapsicológicos e pelas doutrinas místicas, que proliferavam na Europa, no começo do século XX, com o intuito de combater o racionalismo e o positivismo dominantes. A convivência com uma tia médium levou Fernando Pessoa a participar de sessões espíritas. Além disso, traduzindo para a língua portuguesa livros encomendados pela Sociedade Teosófica, se familiarizou com a história, a doutrina e a simbologia da ordem rosa-cruziana. Descobriu, então, dentro de si faculdades mediúnicas, chegando a praticar a escrita automática e a comunicar-se com o mundo dos espíritos. Paralelamente, o estudo da astrologia levou-o a admitir a influência dos astros no destino humano, tanto que, a certa altura de sua vida, teve a intenção de profissionalizar esses conhecimentos e abrir um consultório de astrólogo. Enfim, o conhecimento da alquimia fez-lhe estabelecer uma comparação entre o processo da criação poética e a atividade alquimista:
"O génio é uma alquimia. O processo alquímico é quádruplo: 1) putrefação; 2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação. Deixam-se primeiro apodrecer as sensações; depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam pela expressão".
As experiências mediúnicas e os conhecimentos das ciências ocultas, sumariamente apontados, induziram certa crítica biográfica a admitir a hipótese de serem os heterônimos "cristalizações de eus superterrestres" no ser real de Fernando Pessoa. Esta hipótese é insustentável, se atentar quer para a grande lucidez mental do poeta português, quer para o lado materialista de seu espírito, quer para a unidade humana e poética de sua personalidade, apesar da diversidade das facetas com que ele se nos apresenta. A criação heterônima deve ser considerada, essencialmente, ficção, fingimento artístico, drama íntimo, jogo cerebral e poético. Qualquer relação que se possa estabelecer entre a gênese dos heterônimos e a vida real do escritor português é fadada a ser uma mera conjectura, mesmo quando estiver fundamentada nos próprios escritos de Fernando Pessoa. Devemos acreditar nele quando, por exemplo, afirma, em carta a Adolfo Casais Monteiro, que apenas num dia (8 de março de 1914) escreveu, de pé e a fio, trinta e tantos poemas, com o título O guardador de rebanhos, com o nome de Alberto Caeiro, e, ainda, os seis poemas da Chuva oblíqua, em seu nome verdadeiro? Não esqueçamos que Fernando Pessoa chamou a todo verdadeiro poeta de "fingidor", e nele é difícil estabelecer limites entre realidade e fantasia, entre vida e arte. Fernando Pessoa "ele mesmo" não é mais real ou menos ficcional do que qualquer outro heterônimo. A nosso ver, os seres imaginários que diz o habitarem não são senão as várias posturas ideológicas e estéticas que ele viveu ao longo de sua vida, independentemente de qualquer "inspiração" momentânea ou "influxo" sobrenatural que possa ter tido como pessoa física. A criação heterônima é fruto de longa maturação humana e poética, de que seu autor tem plena consciência.
3) Os antecedentes culturais: a partir do início do séc. XX, pela influência da filosofia existencialista, pela difusão das várias correntes psicanalíticas e pelo progresso das teorias científicas sobre a relatividade, o dogma antigo da personalidade una e compacta entra em crise e vários escritores procuram expressar em forma de arte a multivocidade do ser humano. O fenômeno pode ser relevado em filósofos, dramaturgos e poetas: Kierkegaard, o pai do Existencialismo, desdobrou-se em vários autores pela necessidade de se manter imparcial ante o desenrolar do seu pensamento dialético; o escritor francês Renan, em seus Diálogos filosóficos afirma que, quando refletia, tinha a impressão de ser o autor de um diálogo entre os dois lóbulos de seu cérebro; o poeta Unamuno coloca à base do sentimento trágico da vida a luta, dentro do mesmo indivíduo, entre a "Inteligência" (= as forças racionais) e a "Vida" (= as forças irracionais), considerando o vital como irracional e o racional antivital; Pirandello, na peça Seis Personagens em busca de um Autor, cria personagens com vida própria, independentes de seu criador; o russo Evreinoff no drama O teatro da alma, considera as personagens como várias sub-individualidades componentes desse "pseudo-simplex" que se chama espírito; Valèry revela que, quando procurava a solução de um problema estético, sentia-se um doublé, como se fosse duas pessoas distintas; o lírico espanhol Antonio Machado inventa "os poetas apócrifos" para transformar-se em outros "eus". Estes fatos e testemunhos, citados ao acaso, demonstram que, na época de Fernando Pessoa, a personalidade humana não era mais considerada como algo coerente, monolítico e indivisível, reputando-se o espírito como um agregado de sensações e idéias diferentes e contraditórias. Essa nova concepção da personalidade, que pairava no ambiente cultural da época em que Fernando Pessoa viveu, deve ter influenciado o poeta português na criação de seus heterônimos, sem todavia tirar-lhe o brilho da genialidade, quer porque em nenhum outro escritor a despersonalização foi sentida tão fortemente, quer porque foi expressa artisticamente de um modo todo peculiar. Só em Fernando Pessoa a heteronímia chegou ao ponto da "dramaticização", constituindo-se as várias correntes humanas, poéticas e estéticas, que existiam dentro dele, em seres autônomos que lutam entre si.
4) A intelectualização dos sentimentos: a poética moderna se diferencia da romântica pelo fato de que o poeta, mais do que se sentir um "inspirado", opera como um "artífice", um construtor de seus versos; e se diferencia da poética clássica pela atitude crítica do autor perante a gênese e o processo de sua construção artística. Fernando Pessoa, como T.S. Eliot, E.A. Poe, P. Valéry, Maiakovski e outros poetas modernos, é, ao mesmo tempo, criador e crítico de sua poesia. A análise do processo da criação poética e a preocupação crítica procedem paralelamente à construção da obra de arte, no intuito de arrancar a poesia do mito do mistério e da inspiração divina (a figura da musa inspiradora é posta de escanteio) e apresentar o poético como um produto do homem para o homem. O conhecido verso de Fernando Pessoa "O que em mim sente, está pensando" expressa bem esta tomada de consciência do poeta perante o ato da criação artística. Pensamento e sentimento, faculdades do espírito que por longo tempo foram consideradas antitéticas, cada qual estando ao centro de duas estéticas diferentes e divergentes— a clássica e a romântica —, encontram, nos melhores poetas modernos, sua conjunção e sua simbiose. O "pensamento sentido" e o "sentimento pensado" enformam a matéria da poesia de Fernando Pessoa. Nele, poética e estética andam de braços dados. Na medida em que cada heterônimo é a encarnação de uma tendência literária, ele funciona também como crítico da corrente divergente ou contrária, personificada por outro heterônimo. Assistimos, então, dentro do mesmo Poeta, a um drama vivido por vários poetas. Segundo Fernando Pessoa, o poeta dramático é o melhor de todos, porque só ele consegue despersonalizar-se, pondo para fora e expressando em forma de arte os diferentes modos de ver o mundo e de sentir a poesia. Apresentamos, a seguir, as quatro personalidades poéticas de Fernando Pessoa:
I — Fernando Pessoa ortônimo: o poeta do saudosismo português.
A biografia de Fernando Pessoa, como pessoa física, pode ser reduzida a alguns dados essenciais: nasce em Lisboa em 1888, fica órfão de pai em 1893 e, dois anos depois, contraindo a mãe novas núpcias com o cônsul português em Durban, se transfere para a África do Sul, onde fica dez anos, completa os estudos secundários e se familiariza com a língua e a literatura anglo-americana. Suas leituras preferidas são os poetas Milton, Byron, Keats, Poe, escrevendo poemas, cartas e trabalhos críticos e filosóficos em inglês. Em 1905 volta definitivamente para Portugal, de onde nunca mais sairá. Tendo os pais regressados a África do Sul, Fernando Pessoa fica em Lisboa, vivendo um pouco só, um pouco na companhia de uma tia espírita, e exercendo a profissão de tradutor. Entra em contatos mais estritos com a literatura da Europa continental, especialmente com os simbolistas franceses e o incipiente movimento futurista. Mas é a tradição poética portuguesa que mais o atrai: Antero de Quental, Camilo Pessanha e Teixeira de Pascoais são seus poetas preferidos. Junto com Mário de Sá Carneiro, José Régio e outros poetas exponenciais da época, publica poemas e escreve artigos de fundamentação teórica em três revistas literárias, sucessivamente ("Águia", "Orpheu" e "Presença"), que tentavam uma renovação da poesia e da cultura portuguesas. Morreu em 1935, na mesma cidade natal. A poética de Fernando Pessoa, anteriormente à criação dos heterônimos — fenômeno que começa em 1914 —está ligada visceralmente ao Simbolismo e ao Saudosismo, o primeiro sendo movimento literário de origem francesa (Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Valérie, Rimbaud) e o segundo, fruto da cultura autóctone. A partir de Antero de Quental, a poesia portuguesa se caracteriza pela fuga da realidade e pelo refúgio no mundo do sonho. Teixeira de Pascoais, recolhendo as aspirações dos poetas que o precederam, procura motivar o ressurgimento das letras e da civilização portuguesas com base na grandiosidade do passado político e literário de Portugal. Fernando Pessoa, na primeira fase de sua produção, adere a esta poética, lançando inclusive um movimento literário novo, o "Paulismo", que é um Saudosismo intelectualizado. O nome é um derivado de "paul" (= "pântano"), sugerindo um tipo de poesia estagnada, em que predomina o sentimento do vago e do sutil. Mas o Paulismo, fruto da atmosfera "decadente" dos ultra-românticos, ocupa uma pequena importância no itinerário estético de Fernando Pessoa. Aliás, os três "ismos" — Paulismo, Interseccionismo e Sensacionismo —, sucessivamente inventados pelo poeta português, são de pouca relevância teórica. Sua inovação realmente original em matéria de teoria estética e que deu, no campo da poética, brilhantes frutos, foi a criação dos heterônimos. A coletânea de poesias Mensagem, a única obra publicada em vida, juntamente com o Cancioneiro, contém a produção poética de Fernando Pessoa "ele mesmo" e expressa sua faceta lírico-patriótico-saudosista, nas pegadas dos melhores escritores da história literária de Portugal. A obra Mensagem foi estruturada para oferecer um painel simbólico e artístico da história das grandezas de sua terra. Divide-se em três partes, com várias subdivisões. A primeira parte, "Brasão", contém uma série de poesias que enaltecem os fundadores da nacionalidade portuguesa; a segunda parte, "Mar português", tem como assunto poemático as conquistas ultramarinas de Portugal; a terceira parte, "O encoberto", refere-se ao mito do Sebastianismo. Para o estudo do poeta português "ele próprio", relevante é o poema Ulisses. O título do poema tem como referente extratextual um dos personagens mais famosos da mitologia grega, Ulisses. Sem o conhecimento deste mito é impossível entender este texto de Fernando Pessoa. O poema é composto de três pentásticos, cada estrofe sendo formada de quatro heptassílabos e de um verso mais curto, de quatro sílabas, com rima alternada de esquema ABABA. Na primeira estrofe, o poeta nos dá a sua definição do mito, fundamentada numa identificação de termos contrários:
O sintagma evidencia uma figura retórica chamada "oxímoro", que consiste na predicação de um termo contrário ou contraditório, em relação ao sujeito da oração. Nesse primeiro verso temos duas formas oximóricas encadeadas: 1) "O mito é", que indica a existência, e a sua predicação "o nada", que indica a não-existência; 2) "nada", que indica uma totalidade negativa, e sua predicação adjetiva "tudo", que indica uma totalidade positiva. Para entendermos a figura retórica, o tropo de sentido, é preciso estabelecer a escala de valores em que o mito pode ser considerado um nada e uma outra escala de valores pela qual o mito é tudo: o mito é nada do ponto de vista da realidade histórica, porque é fruto da imaginação popular que inventa biografias e façanhas acerca de entes sobrenaturais que não tiveram existência real, para poder explicar a origem das coisas; o mito é tudo do ponto de vista espiritual, porque nenhum povo pode viver sem crenças que lhe expliquem a causa dos fenômenos e lhe determinem o comportamento a seguir. A segunda estrofe refere-se à ação de um mito específico, o de Ulisses, que chega na costa atlântica e dá origem à cidade de Lisboa, cuja etimologia é Ulissipona ("a cidade de Ulisses"), nome que se encontra na capa da primeira edição da obra Mensagem, onde está inserido o poema Ulisses. A explicação do título "Ulisses" é indispensável para a compreensão do poema por um motivo muito peculiar: quando o ciclope Polifemo, personagem da Odisséia, obra atribuída ao poeta grego Homero, perguntou a Ulisses qual era o seu nome, o herói astuciosamente respondeu: "Meu nome é Ninguém". Ora, como podemos constatar, o poema todo está baseado na oposição dialética do "ser" e do "não-ser", do "tudo" e do "nada". Os três versos medianos são formados por três oxímoros de contraditoriedade: Ulisses existiu e não existiu, foi e não foi suficiente, chegou e não chegou. Também para o entendimento do mito peculiar de Ulisses é preciso recorrer às duas escalas de valores diferentes: Ulisses não existiu no plano histórico, real, porque é uma lenda; mas ele existiu no plano espiritual, porque a crença numa origem sobrenatural estimulou o povo português a imitar as façanhas de seu fundador, aventurando-se no mar para o conhecimento e a descoberta de novos mundos. A última estrofe tem como momento ideológico a proliferação do mito: este fecunda a realidade e se espalha entre os povos. A oposição da parte espiritual do homem, alimentada pelo mito, e da sua parte material, expressa pelo advérbio de lugar "em baixo", é apresentada mediante um dúplice oxímoro de contrários: "vida" x "morte" e "metade" x "nada". Evidentemente, "nada" sendo uma totalidade negativa, não pode ter uma "metade"; mas o poeta definiu o mito como um nada-tudo e portanto a vida "metade de nada" é igual à vida "metade de mito". Quer dizer, a vida humana é regida, de um lado, pela força do mito e, de outro lado, pela força da realidade. O que "morre" no ser humano é a sua parte material, que é perecível, ao passo que o elemento mítico, por ser espiritual, se perpetua continuamente no seio da humanidade, sendo fator de seu progresso civilizacional.
II — Alberto Caeiro: o poeta da natureza
O heterônimo Alberto Caeiro, considerado por Fernando Pessoa como "o mestre" dos outros heterônimos e de si próprio, foi o primeiro alter ego a se esboçar por inteiro no espírito do poeta português. Na biografia imaginária traçada para este heterônimo, Fernando Pessoa apresenta Caeiro como um jovem loiro, de olhos azuis e infantis, que nasceu em Lisboa em 1889, mas viveu toda sua vida na roça, em companhia de uma tia velha, e morreu tuberculoso em 1915. Sua formação escolar não passou do curso primário e sua poesia pretende ser como sua vida: simples, espontânea, instintiva, inspirada pelo contato direto e imediato com a natureza:
A minha poesia é natural
como levantar-se o vento
Ele é o poeta da realidade objetiva, porque descreve o que vê e o que sente, longe de qualquer elucubração mental, inimigo de todas as filosofias. Caeiro procura substituir o pensamento pelas sensações, o subjetivo espiritual pelo objetivo real, a reflexão pela visão direta das coisas. A matéria de sua poesia é o mundo que o circunda: árvores, sol, ovelhas, flores etc.:
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
O órgão-guia de Alberto Caeiro não é nem o cérebro nem o coração, mas a visão:
Este heterônimo, além de negar a possibilidade de o homem filosofar (porque, segundo ele, não existe uma "constituição íntima das coisas", sendo os seres e os objetos apenas fenômenos da natureza) e de proibir qualquer subjetivismo (que levaria à distorção da realidade objetiva), ele também recusa todo tipo de estética, aproximando a poesia da prosa, da linguagem discursiva:
Por mim escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente...
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Mas, no próprio momento em que se confessa antifilósofo e antipoeta, Alberto Caeiro, paradoxalmente, se revela como um grande poeta e um exímio pensador. Com efeito, no próprio ato de negar a filosofia, Caeiro está fazendo filosofia, visto que seus versos são gerados sob o signo da dialética e da polêmica com os cultores do pensamento especulativo. O mesmo acontece em relação à estética literária: no momento em que se opõe e critica o modo de poetar tradicional, feito de fidelidade aos cânones métricos, rítmicos e retóricos, ele cria uma nova estética (especialmente por isso é considerado "o mestre"), a do "versolivrismo", da pobreza lexical, da repetição, do polissíndeto, da aproximação de termos e conceitos opostos. Sua aversão, portanto, ao pensamento teórico, à poética formal e a qualquer tipo de cientificismo, mais do que pertencer à estrutura de sua personalidade, é uma postura mental proposital, que funciona como contraponto às cosmovisões e às linguagens poéticas de Fernando Pessoa ortônimo e dos outros heterônimos. A poesia de Caeiro pode ser vista como reação a quase todas as orientações filosóficas e poéticas da época: opõe-se ao Saudosismo, que exaltava o passado; ao Simbolismo, que espiritualizava a natureza; ao Decadentismo, que cultivava o vago e o imaginário; ao Futurismo, que enaltecia a vida socializada e mecanizada; a toda sorte de psicologismo, interiorismo, subjetivismo, humanitarismo. A indiferença de Caeiro perante o sofrimento humano é uma denúncia da impostura dos ideais filantrópicos apregoados por cristãos e humanitaristas. Para Caeiro, os seres humanos, como os elementos da natureza, são imutáveis, cada qual seguindo seu curso e seu destino, não havendo nem possibilidade nem necessidade de modificações. Os entes naturais são como são porque são assim. Se quisermos atribuir um "ismo" à poética de Alberto Caeiro, o que mais lhe convém é o "Sensacionismo": a poesia deve descrever, numa linguagem clara, os seres e os objetos assim como são apreendidos pelos sentidos. É fácil perceber que, pela postura teórica e pela atividade poética de Caeiro, Fernando Pessoa pode ser visto como uma realização poética do pensamento filosófico a ele contemporâneo: a Fenomenologia, de Edmund Husserl, que afirmava a verdade dos seres e dos objetos estar em si mesmos, sendo apreendida pela experiência que deles temos. O objeto artístico deve ser visto como algo que está a nossa frente, como um "fenômeno", algo que aparece a nós, e que pode ser analisado em seus elementos constitutivos, independentemente de sua origem e de sua relação com outros objetos. Sob este aspecto, a crítica fenomenológica tem muito em comum com o tipo de abordagem da obra de arte, praticado atualmente por lingüistas, estruturalistas e semanticistas. Enfim, à margem de qualquer especulação teórica, Alberto Caeiro expressa a faceta humana e poética de Fernando Pessoa, que quer viver ao contato da natureza, ver e sentir a realidade assim como ela é, sem nenhuma abstração e sem a intervenção do pensamento reflexivo. Sua concepção religiosa pode ser considerada panteísta, visto que a idéia que ele tem de Deus é imanente, não transcendendo a natureza. A obra poética de Fernando Pessoa, assinada com o nome de Alberto Caeiro, consta de três coletâneas de poemas: O guardador de rebanhos, O pastor amoroso, Poemas inconjuntos.
III — Ricardo Reis: a herança clássico-pagã.
A filiação deste heterônimo ao "mestre" Caeiro se fundamenta em três pontos básicos:
1) O objetivismo: Reis herda de Caeiro o culto da realidade material e humana que nos circunda, em oposição ao subjetivismo dos românticos e dos simbolistas e aos exageros da arte moderna. Mas discorda de seu mestre quanto à prática deste objetivismo. Reis não se limita, como faz Caeiro, a observar e a contemplar os fenômenos do mundo exterior, mas quer compreendê-los e expressá-los artisticamente de um modo objetivo. Do ponto de vista da estética formal, acha que, para reprimir a emoção, a qual leva fatalmente ao subjetivismo, o artista deve usar técnicas histórica e universalmente consagradas. Contra o versolivrismo de Caeiro, Reis estrutura seus versos, enfeixando-os em estrofes rimadas e ritmadas, seguindo os esquemas e os cânones da poética tradicional. Segundo ele, a superioridade da poesia sobre a prosa consiste em submeter a emoção a uma forma rigorosa. Quanto ao conteúdo, a poesia deve entender e expressar a realidade objetiva assim como é vista e sentida pela generalidade dos homens e não através de um prisma individual que a deforma. É evidente que esta postura estética e poética aproxima Ricardo Reis do ideal greco-romano de vida e de arte: o equilíbrio dos sentimentos, a harmonia de formas, o desejo da inteligibilidade, o espírito "apolíneo", as normas da conveniência e da decência e a representação do mundo real fazem deste heterônimo a expressão mais acabada de um vir classicus. Deve-se ressaltar, porém, que o classicismo de Reis não é "neo", mas "pan". Com efeito, ele propõe um classicismo acrônico e atópico: mais do que se referir a um tipo de classicismo limitado a um espaço ou a um tempo determinado, Reis tenta criar um ideal de vida e de arte "científico", válido para sempre e para qualquer lugar, porque universal e atemporal. Ricardo Reis pode ser considerado, portanto, um "teórico" do Classicismo.
2) O sensacionismo: para Reis, como para Caeiro, a essência da vida e da arte está nas sensações que temos do universo circunstante. Mas, se quisermos transmitir a outros a nossa experiência do mundo (e é essa a finalidade da arte), a nossa sensibilidade deve ser depurada de todo elemento subjetivo para que possa atingir a universalidade. Para que isso se torne possível, é necessário a intelectualização da sensibilidade e a reflexão crítica sobre as sensações. O aspecto moralista da poesia de Reis reside nesse esforço de indagar quais são os sentimentos comuns à coletividade humana e sugerir soluções para os problemas que a vida apresenta. Os temas que trespassam suas odes são tópicos explorados pela poesia milenária e que se encontram especialmente em Horácio, o seu poeta clássico preferido: a fugacidade do tempo, a inanidade dos bens terrenos, a força do destino, a imparcialidade e a imprevisibilidade da morte, a efemeridade da juventude, a inconstância do amor. Estes temas são frutos da observação da natureza e da condição humana e, portanto, são gerais e universais. O conselho de vida que ele dá a si mesmo e aos seus leitores também não é original, pois está fundamentado na filosofia moral do Estoicismo e do Epicurismo: em face da relatividade de qualquer bem humano, não adianta perseguir valores absolutos; é sábio quem vive o dia-a-dia, gozando dos prazeres que a vida lhe oferece, sem deixar-se dominar pelas paixões, que lhe causam sofrimentos, e sem abater-se perante as adversidades, que são também elas passageiras. 3) O panteísmo: a concepção religiosa de Reis difere da idéia de Deus de seu mestre pelo fato de que, enquanto Caeiro está inclinado para um "panteísmo cósmico", seu discípulo propõe um "panteísmo racionalista". Os deuses não existem nem dentro nem fora da natureza, mas são apenas concretizações de idéias humanas acerca do universo. Reis, evidentemente, não acredita na existência das divindades que pululam suas odes; os deuses pagãos estão aí apenas como figurações simbólicas, representações tradicionais de vícios, virtudes, problemas e realidades humanas. Como podemos perceber, o heterônimo Ricardo Reis foi inventado por Fernando Pessoa não para expressar sua crença no paganismo ou propor uma volta aos ideais do mundo greco-romano, mas apenas para oferecer uma tentativa de resposta ao problema crucial do homem, que é o da busca da felicidade, além, evidentemente, da afirmação da validade atual da poética clássica. A solução que oferece Reis é a de um esteta requintado, cético e hedonista: refugiar-se no mundo da arte, ter sensibilidade para o belo em todas suas manifestações, tentar alcançar a perfeição formal, aproveitar moderadamente dos prazeres que a existência apresenta aos nossos sentidos e à nossa inteligência, sofrer o mínimo possível e esperar que a morte, a qualquer momento, venha e nos faça voltar ao nada de onde viemos. O ideário de vida e de arte de Ricardo Reis está de acordo com seus traços pseudobiográficos: Fernando Pessoa imagina Ricardo Reis "educado num colégio de jesuítas", "latinista por educação alheia" e "semi-helenista por educação própria". Como se vê, o Classicismo está na base da formação escolar de Ricardo Reis e a cultura greco-romana é sua matéria de escolha. Outros elementos tradicionalistas de sua personalidade são os estudos de medicina e o seu monarquismo. Ele sente-se como o último homem pagão e clássico, exilado no mundo moderno. O exílio não é apenas espiritual, mas também físico: com a proclamação da República em Portugal, em 1910, ele, o heterônimo Ricardo Reis, descontente com o novo regime político, se afasta de sua terra natal e se refugia no Brasil. Eis uma "ode" para saborearmos a poesia do heterônimo Ricardo Reis:
Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
A barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.
É evidente nesse poema (como na quase totalidade da obra poética de Ricardo Reis) a influência epicurista e horaciana. A título de exemplo, transcrevemos e traduzimos três versos do poeta latino Horácio:
Pallida mors aequo pulsat pede pauperum tabernas
Regumque turres. O beati Sesti,
Vitae summa brevis spem nos vetat inchoare longam!
("A pálida morte bate com golpes iguais à porta dos
casebres, como à dos palácios. Oh, feliz Sesto, a extrema
brevidade da vida nos impede de alimentar esperanças longas"!)
Nesses versos encontram-se condensados os dois temas principais, comuns à poética de Horácio e de Ricardo Reis: 1) a igualdade dos homens perante a morte; 2) a exortação ao gozo dos prazeres da vida, em vista da efemeridade da existência e da imprevisibilidade do futuro. Este segundo tema está formalizado alhures e mais sinteticamente pelo mesmo poeta Horácio: é o proverbial carpe diem (aproveite do dia que passa). O substrato filosófico desse preceito ético encontra-se na filosofia de Epicuro, o sábio grego do século IV a.C., que se preocupou principalmente com o problema da felicidade humana. Segundo seu pensamento, o homem para ser feliz deve conseguir o estado da "ataraxia", a ausência de preocupações, e cultivar a justa medida na prática dos prazeres. O texto espelha a visão do mundo pagão de Fernando Pessoa, expressa artisticamente através da poesia do heterônimo Ricardo Reis.
IV — Álvaro de Campos: o poeta da Era Moderna.
Este heterônimo é também imaginado como discípulo de Caeiro, só que de formação e de tendência apostas às de Ricardo Reis, com o qual trava constantes lides acerca do ideal de vida e do modo de poetar. Álvaro de Campos expressa a faceta de Fernando Pessoa voltado para o mundo moderno, a civilização industrial, o universo das máquinas, de que sente, ao mesmo tempo, o fascínio e a repulsa. Pela biografia ficcional, inventada por Fernando Pessoa, sabemos que Álvaro nasceu em Tavira, em 1890, filho de judeus portugueses, e estudou na Escócia, tirando o diploma de engenheiro naval pela Universidade de Glasgow. Acusou as influências literárias de Walt Whitman, poeta norte-americano em sua época considerado escandaloso, quer pela forma de sua poesia (verso livre e vocabulário de baixo calão), quer pelo conteúdo (exaltação da sensualidade impudica), e de Marinetti, poeta italiano fundador do Futurismo. Mas, em verdade, mais do que um "futurista", Álvaro de Campos é o poeta do "sensacionismo", o filão português do Modernismo europeu. Este heterônimo, autodefinindo-se como "o poeta das sensações", afirma postulados humanos próprios:
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo...
Este conteúdo programático, centrado na exteriorização das sensações, de qualquer tipo que elas forem, é realizado por uma estética que ajusta a forma à essência das coisas: à liberdade que goza a substância do conteúdo corresponde a mesma liberdade na forma da expressão. Diferentemente da do heterônimo Ricardo Reis e da de Fernando Pessoa ortônimo, a poesia de Álvaro de Campos, como a do mestre Caeiro, se compõe de verso livre, sem metro, sem rima, sem divisão estrófica regular. O ritmo corre livre, sem os artifícios dos esquemas e das imagens retóricas da poesia tradicional. A poesia de Álvaro de Campos procura adequar o ritmo poético ao sabor dos objetos de suas sensações. A este heterônimo devemos algumas das mais belas páginas da poesia portuguesa moderna: "Opiário", "Ode triunfal", "Ode marítima", "Tabacaria", "Ode marcial", "Poema em linha reta", "Datilografia".
Sintetizando: unidade dentro da pluralidade em Fernando Pessoa.
Apresentamos, em rápidos esboços, a plurifacetação de Fernando Pessoa, cada heterônimo mostrando um ângulo diferente da concepção humana e literária do grande poeta português. Esta diversidade, porém, não anula a unidade da personalidade poética de Fernando Pessoa, encontrável quer ao nível da forma da expressão (paralelismos, repetições, hipérbatos, rasgos lingüísticos e estruturais comuns), quer ao nível da substância do conteúdo (sensacionismo, culto da natureza, anticristianismo, dialética dos contrastes, motivos e temas que se repetem na poesia ortônima e heterônima). No fundo, o tradutor, o pastor, o médico e o engenheiro, apesar de suas características individuais até antitéticas, devem ser considerados como configurações diferentes de um mesmo ser, preocupado em expressar artisticamente os problemas vitais que o afligem: a luta dramática entre o livre-arbítrio e a limitação imposta pelas determinações naturais e sociais; a constatação de que tudo é ilusão e que, portanto, não vale a pena acalentar valores reputados absolutos; a hipocrisia humana; o pensamento como destruidor da beleza original das coisas; a indiferença perante a prática de um ideal clássico ou moderno de vida. A nosso ver, Fernando Pessoa, como Machado de Assis, é um grande cético, na vida e na arte. Construiu vários modos de viver e de poetar para que se negassem reciprocamente. Mas a grandeza da poesia não reside em dar respostas definitivas e satisfatórias aos problemas humanos, mas em questionar o mundo, expressando em forma de arte seus absurdos.