Dicionário de Cultura Básica/Pirandello
PIRANDELLO (dramaturgo siciliano: Seis personagens em busca de um Autor)
"Se nos fosse dado prever
todo o mal que pode nascer
do bem que pensamos fazer!"
Luigi Pirandello (1867–1936), produzindo seus melhores textos poéticos entre o fim do Positivismo e o início do Modernismo, acusa todas as inquietações humanas e artísticas do Decadentismo italiano. Em sua obra encontramos reflexos do pensamento filosófico de Henri Bergson, (→ Intuicionismo), segundo o qual a vida é um contínuo fluir de idéias e de sensações, e do psicologismo do escritor norte-americano Henry James, cuja prosa dramática está centrada sobre a exploração dos acontecimentos na consciência das personagens. A postura de Pirandello perante a vida e a arte é essencialmente "relativista", negando qualquer valor absoluto. Os cânones éticos e estéticos não têm um valor em si e universal, mas apenas relativo ao sujeito, ao momento e ao lugar. Alguns dados biográficos nos ajudam a compreender a complexa personalidade humana e literária do grande escritor siciliano. Pertencente a uma família abastada de Agrigento, estuda Letras em Palermo e, sucessivamente, em Roma e em Bonn. De volta da Alemanha, fixa sua residência na capital italiana, abandonando a prima Lina, por quem nutrira uma paixão juvenil. A moça que, como boa siciliana, levara a sério o namoro, não resiste ao repúdio e enlouquece. Mais tarde, em 1894, contrai matrimônio com Maria Antonietta Portulano, com quem tem três filhos. Mas é infeliz no casamento, pois a esposa sofre de distúrbios psíquicos e, também ela, acaba enlouquecendo. A terceira mulher de sua vida é Marta Abba, a primeira atriz de sua Companhia de Teatro, com quem mantém uma longa relação amorosa. Em 1924, dois anos após a Revolução Fascista na Itália, Pirandello resolve aderir ao Partido, não por convicção ideológica, mas apenas para conseguir verbas oficiais para organizar seu Teatro delI’Arte, com que excursiona por vários países da Europa e da América Latina.
As mudadas condições econômicas de sua família o induzem a tornar-se um profissional de literatura e de teatro. Após a fase juvenil, quando cultivara a poesia lírica (Mal Jucundo e Páscoa de Gea), dedica-se à prosa de ficção, escrevendo coletâneas de contos e romances. Sua obra narrativa de maior sucesso é o romance O falecido Matias Pascoal (1904), onde desenvolve pela primeira vez a temática que aparecerá em muitas de suas peças: o paradoxo entre o ser e o parecer, entre o individual e o social, entre o desejo de liberdade e a necessidade de pertencer à coletividade. Mas a vocação literária de Pirandello bem cedo canaliza suas potencialidades poéticas para a arte dramática. É no teatro onde melhor se encontra expressa sua genialidade. A peça que analisaremos, Seis personagens à procura de um autor, considerada sua obra-prima, junto com mais duas, Esta noite improvisamos e Cada um a seu modo, forma a trilogia dedicada à exposição de problemas concernentes à criação literária e à arte dramática, exemplos de "teatro dentro do teatro". A relação entre a vida e o palco aparece expressa artisticamente também em outras peças: Assim é, se lhe parece (a perda da identidade psíquica); O jogo dos papéis (triângulo amoroso); Tudo por bem (assunção da falsa paternidade); A senhora Marli, Uma e duas (o problema da despersonalização); Henrique IV (loucura real e loucura fingida); Vestir os nus (a empregada que resolve morrer para que um belo vestido possa cobrir a nudez de sua existência infeliz). Em todas estas peças, a semelhança temática é encontrável na demonstração da tese de que a vida é uma farsa e todo homem é um comediante, que de manhã sai para a rua vestindo a máscara do homem de bem e ocultando pensamentos e sentimentos inconfessáveis. Em verdade, para Pirandello, não existe diferença relevante entre pessoa e personagem, porque na vida real o ser humano, da mesma forma que o ator no palco, exerce um papel falso e fingido. Outro aspecto comum da dramaturgia pirandelliana é a representação da pseudo-unidade do ser: a personalidade humana é una só aparentemente, pois, na realidade, muda continuamente, apresentando vários aspectos diversos e contraditórios. O tema da plurifacetação do "eu" encontra-se também em outros escritores europeus, quase contemporâneos de Pirandello: pensamos especialmente em Fernando Pessoa e Miguel de Unamuno. Relevamos, enfim, mais um tema recorrente: a angústia existencial proveniente da inútil busca da verdade que, não sendo absoluta, se encontra fragmentada nos seres diferentes e em diversos momentos da existência. Pela temática apontada e pelas novas técnicas de representação experimentadas, Pirandello pode ser considerado o precursor de quase todas as tendências do teatro moderno, influenciando autores como Sartre, Camus, Beckett, O’Neill, Pinter, Albee, Ionesco, Genet, entre outros. Sua importância transcende a dramaturgia e a própria arte. Antes de Einstein demonstrar cientificamente o princípio da "relatividade" da física quântica, Pirandello já defendia a relatividade da moral na famosa peça, cujo título é o tema: "Assim é, se lhe parece!"
Análise da peça: Seis personagens à procura de um autor.
Pirandello, no "Prefácio" a esta peça, declara que a "fantasia", serva assídua de sua arte literária, um dia levou para sua casa (para o seu espírito), não um personagem, mas uma família inteira, composta de seis personagens, que deveriam constituir os elementos básicos da composição de um enredo de uma obra narrativa ou dramática. Não encontrando na fábula destes seis personagens uma consciência filosófica, um valor universal relevante, ele se recusa a dar-lhe vida no mundo da arte. Mas, uma vez nascidos da fantasia do escritor, esses personagens já adquiriram vida própria, independente de seu criador, insistindo para que o drama de suas vidas fosse representado. Ocorre-lhe, então, a idéia genial de compor uma peça em que se represente, não a história familiar, mas o drama desses seis personagens procurando um autor. A peça, portanto, trata apenas indiretamente do drama familiar dos personagens, pois o seu intuito principal é pôr em evidência a angústia dos seis seres que, recusados pelo seu criador, procuram um autor que lhes dê vida artística.
1) O drama dos personagens
Os seis personagens, fruto da fantasia do poeta, são entes que possuem uma meia existência anônima, porque não são nem seres vivos do mundo real, nem personagens de uma obra literária. Eles são nomeados apenas pela relação de parentesco que os une. O "Pai", homem culto, inteligente, introspectivo, casado com a "Mãe" mulher simples, inculta, tímida, com ela tem um "Filho". Mas o casal não é feliz, pois a diferença de cultura e de sensibilidade cria um abismo entre marido e mulher. Esta, emocionalmente, se afasta cada vez mais do marido, cuja excessiva intelectualidade a espanta. Aproxima-se, então, cada vez mais, do secretário da firma, homem simples como ela, que se torna seu confidente. O "Pai", percebendo, de um lado, a impossibilidade de um relacionamento intelectual e afetivo com sua esposa e, de outro lado, as afinidades que existem entre sua mulher e o secretário, induz a mulher a viver com o outro homem. A "Mãe", que já fora privada do "Filho" que, com apenas 2 anos, o Pai levara para o campo para proporcionar-lhe um crescimento físico e moral mais sadio, se resigna à determinação do marido, abandona o lar e inicia uma nova vida a dois, tendo com o segundo homem mais uma filha, a "Enteada". O Pai assiste de longe ao desenvolvimento da nova família de sua ex-esposa. Quase diariamente, vai esperar a menina ao sair do colégio e a vê crescer forte e bonita. De vez em quando lhe dá presentes. Mas o pai da Enteada, enciumado, resolve impedir a aproximação de seu ex-patrão com sua família e muda de emprego e de cidade. Os anos passam e o Pai não tem mais notícias da família de sua ex-esposa. Esta tem mais dois filhos, o "Rapazinho" e a "Menina". Impulsionada pela miséria, a família retorna à cidade onde morara antes. A Mãe enviúva e começa a costurar para fora. A Enteada, já mocinha, é encarregada de buscar panos e levar roupas costuradas para "Madama Pace", personagem que é apenas evocada na peça. Mas o ateliê desta senhora é só um disfarce; na realidade, ela exerce a profissão de aliciadora de moças de família para sua freguesia de homens maduros em busca de satisfação sexual. Acossada pela miséria, para que não falte o alimento para sua mãe e as duas crianças, a jovem acaba se prostituindo. Um dia o Pai, que continuara vivendo sua vida de homem solitário, vai ao bordel de Madama Pace e reconhece sua Enteada na moça a ele destinada, no ato de a jovem se despir para ter com ele uma relação sexual. Após este clímax, provocado pela anagnórisis (revelação da verdade) num momento tão aviltante, temos o desfecho do drama das personagens: o Pai leva a família toda para sua residência, onde ele vive com o Filho. Este despreza a Mãe por tê-lo abandonado e os meio-irmãos por considerá-los bastardos e intrusos.
2) O conflito entre personagens e atores
O texto pirandelliano apresenta a peculiaridade da existência de dois tipos de personagem: os "Personagens" que querem ser encenados e os "Atores" de uma companhia teatral. A representação da peça implica, portanto, a exigência de dois tipos de intérprete: os atores que deverão representar os Personagens e os atores que irão encarnar os Atores da Companhia.. A peça apresenta, na situação inicial da trama, um palco de uma companhia de teatro onde se está ensaiando a representação da peça de Pirandello O jogo dos papéis. As cenas iniciais mostram os costumeiros problemas da vida de teatro: atraso da Primeira Atriz, piadinhas, reclamações de Atores, nervosismo despótico do Diretor etc. Não falta a crítica a si próprio, o Autor da peça, tachado de complicado e cerebral, como se depreende da resposta que o Diretor dá ao Primeiro Ator, que acha ridículo colocar na cabeça um gorro de cozinheiro:
"Ridículo! Ridículo!" E que quer o senhor que eu faça,
se não nos vem mais da França uma boa comédia
e se estamos reduzidos a pôr em cena peças de Pirandello,
que só os "iniciados" entendem, feitas, de propósito,
de tal modo que não satisfazem nem aos atores nem aos críticos nem ao público?...
O gorro de cozinheiro, sim, senhor! E bata os ovos!
Os ensaios da peça são interrompidos pelo aparecimento de seis figuras: um casal de adultos, um casal de jovens e um casal de crianças. Elas se apresentam ao Diretor dizendo serem personagens vivas que procuram um Autor. A surpresa é geral entre os componentes da companhia teatral. Diretor e Atores consideram os intrusos como brincalhões ou loucos e os convidam a retirar-se, pois seu trabalho de ensaio tem que continuar. Mas o Pai e a Enteada insistem, afirmando que são realidades vivas, nascidas da fantasia de um Autor e que, portanto, têm o direito de ver representado no palco o drama doloroso de suas vidas. Seguem-se animadas discussões sobre a arte teatral e a natureza dos personagens de ficção. O Pai esclarece ao Diretor a superioridade do personagem sobre o ser real:
Sim, desperdiçadas, isso mesmo!
No sentido de que o autor que nos criou vivos não quis, depois,
ou não pôde, materialmente, meter-nos no mundo da arte.
E foi um verdadeiro crime, senhor,
porque quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode rir até da morte.
Não morre mais! Morrerá o homem, o escritor, instrumento da criação:
a criatura não morre jamais!
Aos poucos, o Diretor passa da indignação para a curiosidade e o interesse pelo drama dos seis Personagens, que lhe vão contando episódios de sua vida, cada um a seu modo, tentando justificar-se e atribuindo a outros a responsabilidade dos acontecimentos. Enfim, o Diretor dispõe-se a representar o drama dos Personagens, improvisando um texto e distribuindo entre os Atores os papéis dos Personagens. São apresentadas as dificuldades de encenação para adaptar o drama ao palco e às exigências do espetáculo, com vistas a tornar o enredo inteligível ao público virtual. Reclamações dos Personagens que não se sentem satisfatoriamente interpretados pelos Atores. A impossibilidade de um ator conseguir a perfeita encenação do personagem é salientada pelo Pai:
He! Quero dizer... a representação que fará,
mesmo pondo em prática todos os recursos de caracterização
para ficar parecido comigo... acho que, com essa altura...
dificilmente poderá ser uma representação de mim, como realmente sou.
Será, antes pondo de parte o aspecto — será, mais exatamente,
como lhe parece que sou, como o senhor me sente — se é que me sente —
e não como eu me sinto, dentro de mim.
Enfim, tenta-se representar a cena do Pai com a Enteada no quarto da casa de Madama Pace. A representação de uma segunda cena, a da Enteada e da Menina no jardim, é interrompida pela morte da Menina, afogada numa fonte, e do Rapazinho, que se suicida com um tiro de revólver. Entre os gritos de dor dos Personagens, ecoam as exclamações dos Atores, uns gritando "Ficção", outros "Realidade". O Diretor dispensa todo mundo, apagam-se as luzes e, por trás do telão branco, aparecem as sombras dos quatro Personagens remanescentes.
3) A verdade de cada personagem
A peça analisada ao nível da fábula e da trama apresenta, nos diálogos entre Personagem e Personagem e entre Personagens e Atores, animadas discussões sobre temas fundamentais, encontráveis também em outras obras de Pirandello, tais como a impossibilidade da representação da vida real pela arte, a eternidade da personagem de ficção e a efemeridade da pessoa real, a relação de semelhança entre a máscara teatral e a máscara social, o conceito de personalidade desintegrada e plurifacetada. O que queremos ressaltar é outro aspecto peculiar da dramaturgia de Pirandello e bem marcante nesta peça: a relatividade da verdade que pode apresentar vários ângulos de enfoque. Faremos isso relevando o investimento semântico conferido a cada "Personagem da comédia por fazer":
O Pai: é o personagem mais importante da peça e o que melhor encarna o pensamento ético e estético do autor, apresentando inclusive traços biográficos comuns (casamento infeliz; remorso por ter sido, involuntariamente, causa da loucura da noiva e da esposa; tipo humano essencialmente cerebral, caráter oscilante entre o viver segundo a própria razão ou segundo as conveniências sociais). O traço fundamental da psique deste personagem é a necessidade de explicar-se perante os outros, de fazer compreender a razão profunda do seu proceder. Numa outra passagem, Pirandello afirma que "um fato é como um saco: vazio, não fica de pé. Para tanto é preciso colocar-lhe dentro a razão e o sentimento que o determinaram". Voltando à analise do personagem Pai, este, seguindo a doutrina de Maquiavel, acha que o fim justifica o meio. Para ele, é mais importante tentar conseguir uma felicidade autêntica, que consiste na realização dos desejos existenciais mais íntimos de cada um, do que "fazer de conta", acomodar-se a situações falsas, apenas para satisfazer o superego (→ Freud), atendendo às injunções sociais. Assim, perante o fracasso de seu casamento, o Pai tenta resolver o problema colocando os componentes de sua família cada qual no seu lugar certo: o Filho na vida sadia do campo, a esposa junto com o homem com quem ela sente afinidades psíquicas, ele próprio na condição de homem solitário, mais condizente com sua personalidade de intelectual refratário a conviver na mediocridade. Mas o plano fracassa porque sua esposa, incapaz de compreender a nobreza de seus sentimentos, não recorre ao marido quando está na miséria e, sem o saber, obriga a filha a se prostituir. O que mais aflige o Personagem-Pai é a obtusidade dos outros, a incapacidade de compreenderem a intencionalidade de seus atos, julgando-o ao nível do parecer e não ao nível do ser. Daí o seu desabafo:
Se nos fosse dado prever todo o mal que pode nascer
do bem que pensamos fazer!
Os casos de sua vida se tingem de matizes trágicos, como se dá na "peripécia", figura retórica definida por Aristóteles como uma ação cujo resultado é o contrário do esperado. Por ironia do destino, as ações do personagem Pai, intencionalmente meritórias, acabam provocando a desgraça das pessoas que ama. Por exemplo, a afeição que sentia pela Enteada, quando menina, motivada pelo desejo de ver o progresso da nova família que ele realizara e ajudara a se formar, é interpretada pelos outros Personagens, especialmente pela própria Enteada, como um impulso inconfessável de luxúria. Daí a repetição do pormenor de que a menina usava "as calcinhas abaixo da saia". Enfim, ao longo da peça, aparece "a verdade" do Pai sempre em contraste com a verdade percebida pelos outros Personagens. A concepção da verdade poliédrica, cuja conseqüência é a negação da validade de qualquer julgamento moral, está intimamente conexa com a descoberta da plurifacetação da personalidade humana:
O drama para mim está todo nisso:
na convicção que tenho de que cada um de nós julga ser "um",
o que não é verdade, porque é "muitos";
tantos quantas as possibilidades de ser que existem em nós:
"um" com este; "um" com aquele — diversíssimos!
E com a ilusão, entretanto, de ser sempre "aquele um"
que acreditamos ser em cada ato nosso.
Não é verdade!
A Enteada: se a figura do Pai é apresentada como encarnação do "Castigo" ou do "Remorso", provocado por uma culpa que, pelo menos intencionalmente, não cometera, a Enteada representa a "Vingança". Recusando-se a entender as razões profundas que levaram o Pai a abandonar a esposa, culpa-o da desgraça da família e se vinga acusando-o de egoísmo, de brutalidade mental, de sem-vergonhice. A ansiedade mórbida com que quer reproduzir a cena do bordel lhe proporciona um prazer sádico em assistir à vergonha do Pai, colhido num momento de fraqueza carnal. Obrigada a se prostituir, assume toda a postura de uma profissional de proprostíbulo, com seu cinismo, sua petulância, sua vulgaridade. Sente afeição e carinho apenas pela irmãzinha, a Menina em que, talvez, vê refletida a imagem da inocência e da pureza perdidas. Se a verdade do Pai é "conceitual", estando toda contida em suas intenções, a verdade da Enteada é "factual", é a verdade das coisas acontecidas, da realidade, os fatos sendo julgados por suas conseqüências práticas.
A Mãe: enquanto o Pai e a Enteada são representados como "espíritos", como seres pensantes, que se revoltam contra a realidade, cada qual, a seu modo, tentando modificá-la, a Mãe é toda "natureza", aceitando passivamente o que ocorre ao seu redor. Ela é incapaz de compreender as razões sofismáticas do abandono do marido, os motivos da prostituição da Filha, a causa do desprezo do Filho. A melhor explicação do caráter deste Personagem é fornecida pelo próprio Pirandello no Prefácio a esta peça: "Sem dúvida é uma figura humaníssima porque carente de espírito, isto é, por faltar-lhe a consciência de ser aquilo que é, e não se preocupar em querer compreendê-lo. Eis aqui, em minha peça, o drama dela. Drama cuja manifestação mais viva expressa-se por meio daquele grito lançado contra o diretor, quando este procura fazer-lhe compreender que tudo já acontecera e, portanto, nada mais há que possa constituir motivo para novo pranto":
Não; acontece agora; acontece sempre!
A minha dor não é fingida, senhor!
Eu sou viva e presente, sempre,
a cada instante de minha dor
que sempre se renova viva e presente.
Ela "sente" tudo sem consciência e, portanto, como algo inexplicável. Porém, sente-o com tão grande terribilidade que sequer imagina poder explicá-lo para si e para os outros. Sente-o e basta. Sente-o como dor. Dor imediata que lhe arranca um grito lancinante. É dessa maneira que, nela, a fixidez da vida, que atormenta de outro modo o Pai e a Enteada, projeta-se numa forma. Enquanto estas duas últimas personagens são completamente espiritualidade, ela é apenas "natureza". A espiritualidade rebela-se contra isso tudo ou, quando muito, procura tirar proveitos; a natureza, caso não seja instigada pelos estímulos dos sentidos, limita-se a chorar sobre tudo isso".
A verdade desta Personagem, portanto, não está baseada nem na razão teórica, como a do Pai, nem na razão prática, como a da Enteada, mas no seu instinto natural de mãe, que ama seus filhos pura e simplesmente, a todos com igual intensidade, sem distinção da paternidade deles e sem querer saber quem é o agressor e quem é a vítima.
O Filho: esse personagem exerce o papel-símbolo do "Orgulho", do "Desdém". Ele se recusa a participar do drama da família, por considerar-se o único filho legítimo, o único membro da família que possui uma moralidade. Ele despreza o Pai, por julgá-lo um devasso, a Mãe, por tê-lo abandonado quando pequeno, a Enteada, por ser uma prostituta, o Rapazinho e a Menina, por considerá-los intrusos na sua casa. Embora personagem secundário, o Filho ocupa um papel de destaque na economia da tragédia familiar: é por causa de seu desprezo que a Mãe vive angustiada, e seus meio-irmãos sentem, a todo o instante, o peso da humilhação e da vergonha. Sua verdade é a verdade da "realidade social" que, presa aos interesses da herança e ao preconceito da legitimidade, renega os valores humanos do amor e da piedade para com os que sofrem, vítimas de um destino cruel.
O Rapazinho e a Menina: o casal de crianças desta peça pirandelliana representa o papel das "Vítimas" inocentes de um drama familiar, que eles não compreendem, mas de que sentem todo o peso do sofrimento. Sua função é apenas a de padecer, quer a miséria na casa da Mãe, quer o desprezo na residência do padrasto. Quanto ao fato de eles serem Personagens, esta sua entidade artística também sofre limitações na economia do drama da procura do Autor. Pelo motivo de terem sido concebidos como não-falantes, o Rapazinho e a Menina não têm meios para expressar o que sentem. É este, a nosso ver, o motivo de sua morte física e do sucessivo desaparecimento da cena final da peça. Os dois morrem quer como personagens da fábula familiar, para sublimarem a insuficiência de sua existência, quer como personagens da representação desse drama, por não terem substância estética. O conflito final entre Personagens e Atores sobre a natureza da morte das duas crianças encontra, nessa explicação, sua solução: eles morrem na "Realidade", enquanto membros de uma família, e na "Ficção", enquanto personagens do drama a ser representado. O fato de, no fim do espetáculo, aparecerem apenas quatro sombras, projetadas na tela, sugere que os dois personagens estão mortos também no mundo da arte, por serem privados da palavra. Isso, evidentemente, só pode ser compreendido no contexto da técnica pirandelliana de criar o teatro dentro do teatro, a ficção dentro da ficção. A verdade das duas crianças, enfim, é a verdade "muda" dos que sofrem em silêncio, sem sequer terem a oportunidade de reclamar seu direito de participar da vida e da morte. É a verdade das vítimas das controvérsias e das incompreensões sociais, para as quais a única saída do aviltamento é o desaparecimento no nada, quer por morte acidental, quer por morte voluntária.