Anexo:Imprimir/O Segredo de Augusta
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São onze horas da manhã.
D. Augusta Vasconcellos está reclinada sobre um sofá, com um livro na mão. Adelaide, sua filha, passa os dedos pelo teclado do piano.
— Papai já acordou? pergunta Adelaide á sua mãi.
— Não, resdonde esta sem levantar os olhos do livro.
Adelaide levantou-se e foi ter com Augusta.
— Mas é tão tarde, mamãi, disse ella. São onze horas. Papai dorme muito.
Augusta deixou cahir o livro no regaço, e disse olhando para Adelaide:
— É que naturalmente recolheu-se tarde.
— Reparei já que nunca me despeço de papai quando me vou deitar. Anda sempre fóra.
Augusta sorrio.
— És uma roceira, disse ella; dormes com as gallinhas. Aqui o costume é outro. Teu pai tem que fazer de noite.
— É politica, mamãi? perguntou Adelaide.
— Não sei, respondeu Augusta.
Comecei dizendo que Adelaide era filha de Augusta, e esta informação, necessaria no romance, não o era menos na vida real em que se passou O episodio que vou contar, porque á primeira vista ninguem diria que havia alli mãi e filha; parecião duas irmãs, tão joven era a mulher de Vasconcellos.
Tinha Augusta trinta annos e Adelaide quinze; mas comparativamente a mãi parecia mais moça ainda que a filha. Conservava a mesma frescura dos quinze annos, e tinha de mais o que faltava a Adelaide, que era a consciencia da belleza e da mocidade, consciencia que seria louvavel se não tivesse como consequencia uma immensa e profunda vaidade. A sua estatura era mediana, mas imponente. Era muito alva e muito corada. Tinha os cabellos castanhos, e os olhos garços. As mãos compridas e bem feitas, parecião creadas para os afagos de amor. Augusta dava melhor emprego ás suas mãos; calçava-as de macia pellica.
As graças de Augusta estavão todas em Adelaide, mas em embryão. Adivinhava-se que aos vinte annos Adelaide devia rivalisar com Augusta; mas por emquanto havia na menina uns restos da infancia que não davão realce aos elementos que a natureza puzera n’ella.
Todavia, era bem capaz de apaixonar um homem, sobretudo se elle fosse poeta, e gostasse das virgens de quinze annos, até porque era um pouco pallida, e os poetas em todos os tempos tiverão sempre quéda para as creaturas descoradas.
Augusta vestia com suprema elegancia; gastava muito, é verdade; mas aproveitava bem as enormes despezas, se acaso é isso aproveital-as. Deve-se fazer-lhe uma justiça; Augusta não regateava nunca; pagava o preço que lhe pedião por qualquer cousa. Punha n’isso a sua grandeza, e achava que o procedimento contrario era ridiculo e de baixa esphera.
N’este ponto Augusta partilhava os sentimentos e servia aos interesses de alguns mercadores, que entendem ser uma deshonra abater alguma cousa no preço das suas mercadorias.
O fornecedor de fazendas de Augusta, quando fallava a este respeito, costumava dizer-lhe:
— Pedir um preço e dar a fazenda por outro preço menor, é confessar que havia intenção de esbulhar o freguez.
O fornecedor preferia fazer a cousa sem a confissão.
Outra justiça que devemos reconhecer era que Augusta não poupava esforços para que Adelaide fosse tão elegante como ella.
Não era pequeno o trabalho.
Adelaide desde a idade de cinco annos fôra educada na roça em casa de uns parentes de Augusta, mais dados ao cultivo do café que ás despezas do vestuario. Adelaide foi educada n’esses habitos e n’essas idéas. Por isso quando chegou à côrte, onde se reunio á familia, houve para ella uma verdadeira transformação. Passava de uma civilisação para outra; viveu n’uma hora uma longa serie de annos. O que lhe valeu é que tinha em sua mãi uma excellente mestra. Adelaide reformou-se, e no dia em que começa esta narração já era outra; todavia estava ainda muito longe de Augusta.
No momento em que Augusta respondia á curiosa pergunta de sua filha ácerca das occupações de Vasconcellos, parou um carro á porta.
Adelaide correu á janella.
— É D. Carlota, mamãi, disse a menina voltando-se para dentro.
D’ahi a alguns minutos entrava na sala a. D. Carlota em questão. Os leitores ficaráõ conhecendo esta nova personagem com a simples indicação de que era um segundo volume de Augusta; bella, como ella; elegante, como ella; vaidosa, como ella.
Tudo isto quer dizer que erão ambas as mais affaveis inimigas que podem haver n’este mundo.
Carlota vinha pedir a Augusta para ir cantar n’um concerto que ia dar em casa, imaginado por ella para o fim de inaugurar um magnifico vestido novo.
Augusta de boa vontade accedeu ao pedido.
— Como está seu marido? perguntou ella a Carlota.
— Foi para a praça; e o seu?
— O meu dorme.
— Como um justo? perguntou Carlota sorrindo maliciosamente.
— Parece, respondeu Augusta.
N’este momento, Adelaide, que por pedido de Carlota tinha ido tocar um nocturno ao piano, voltou para o grupo.
A amiga de Augusta perguntou-lhe:
— Aposto que já tem algum noivo em vista?
A menina corou muito, e balbuciou:
— Não falle n’isso.
— Ora, ha de ter! Ou então approxima-se da época em que ha de ter um noivo, e eu já lhe prophetiso que ha de ser bonito...
— É muito cedo, disse Augusta.
— Cedo!
— Sim, está muito criança; casar-se-ha quando fôr tempo, e o tempo está longe...
— Já sei, disse Carlota rindo, quer preparal-a bem... Approvo-lhe a intenção. Mas n’esse caso não lhe tire as bonecas.
— Já não as tem.
— Então é difficil impedir os namorados. Uma cousa substitue a outra.
Augusta sorrio, e Carlota levantou-se para sahir.
— Já? disse Augusta.
— É preciso; adeos !
— Adeos!
Trocárão-se alguns beijos e Carlota sahio logo.
Logo depois chegárão dous caixeiros: um com alguns vestidos e outro com um romance; erão encommendas feitas na vespera. Os vestidos erão carissimos, e o romance tinha este titulo: Fanny, por Ernesto Feydeau.
Pela uma hora da tarde do mesmo dia levantou-se Vasconcellos da cama.
Vasconcellos era um homem de quarenta annos, bem apessoado, dotado de um maravilhoso par de suiças grisalhas, que lhe davão um ar de diplomata, cousa de que estava afastado umas boas cem leguas. Tinha a cara risonha e expansiva; todo elle respirava uma robusta saude.
Possuia uma boa fortuna e não trabalhava, isto é, trabalhava muito na destruição da referida fortuna, obra em que sua mulher collaborava conscienciosamente.
A observação de Adelaide era veridica; Vasconcellos recolhia-se tarde; acordava sempre depois do meio-dia; e sahia ás ave-marias para voltar na madrugada seguinte. Quer dizer que fazia com regularidade algumas pequenas excursões á casa da familia.
Só uma pessoa tinha o direito de exigir de Vasconcellos mais alguma assiduidade em casa: era Augusta; mas ella nada lhe dizia. Nem por isso se davão mal, porque o marido em compensação da tolerancia de sua esposa não lhe negava nada, e todos os caprichos d’ella erão de prompto satisfeitos.
Se acontecia que Vasconcellos não pudesse acompanhal-a a todos os passeios e bailes, incumbia-se d’isso um irmão d’elle, commendador de duas ordens, politico de opposição, excellente jogador de voltarete, e homem amavel nas horas vagas, que erão bem poucas. O irmão Lourenço era o que se póde chamar um irmão terrivel. Obedecia a todos os desejos da cunhada, mas não poupava de quando em quando um sermão ao irmão. Boa semente que não pegava.
Acordou, pois, Vasconcellos, e acordou de bom humor. A filha alegrou-se muito ao vêl-o, e elle mostrou-se de uma grande affabilidade com a mulher, que lhe retribuio do mesmo modo.
— Porque acorda tão tarde? perguntou Adelaide acariciando as suiças de Vasconcellos.
— Porque me deito tarde.
— Mas porque se deita tarde?
— Isso agora é muito perguntar! disse Vasconcellos sorrindo.
E continuou:
— Deito-me tarde porque assim o pedem as necessidades politicas. Tu não sabes o que é politica; é uma cousa muito feia, mas muito necessaria.
— Sei o que é politica, sim! disse Adelaide.
— Ah! explica-me lá então o que é.
— Lá na roça, quando quebrárão a cabeça ao juiz de paz, disserão que era por politica; o que eu achei exquisito, porque a politica seria não quebrar a cabeça...
Vasconcellos rio muito com a observação da filha, e foi almoçar, exactamente quando entrava o irmão, que não pôde deixar de exclamar:
— A boa hora almoças tu!
— Ahi vens tu com as tuas reprimendas. Eu almoço quando tenho fome... Vê se me queres agora escravisar ás horas e ás denominações. Chama-lhe almoço ou lunch, a verdade é que estou comendo.
Lourenço respondeu com uma careta.
Terminado o almoço, annunciou-se a chegada do Sr. Baptista. Vasconcellos foi recebêl-o no gabinete particular.
Baptista era um rapaz de vinte e cinco annos; era o typo acabado do pandego; excellente companheiro n’uma ceia de sociedade equivoca, nullo conviva n’uma sociedade honesta. Tinha chiste e certa intelligencia, mas era preciso que estivesse em clima proprio para que se lhe desenvolvessem essas qualidades. No mais era bonito; tinha um lindo bigode; calçava botins do Campas, e vestia no mais apurado gosto; fumava tanto como um soldado e tão bem como um lord.
— Aposto que acordaste agora? disse Baptista entrando no gabinete de Vasconcellos.
— Ha tres quartos de hora; almocei n’este instante. Toma um charuto.
Baptista aceitou o charuto, e estirou-se n’uma cadeira americana, emquanto Vasconcellos acendia um phosphoro.
— Viste o Gomes? perguntou Vasconcellos.
— Vi-o hontem. Grande noticia: rompeu com a sociedade.
— Devéras?
— Quando lhe perguntei por que motivo ninguem o via ha um mez, respondeu- me que estava passando por uma transformação, e que do Gomes que foi só ficará lembrança. Parece incrivel; mas o rapaz falla com convicção.
— Não creio; aquillo é alguma caçoada que nos quer fazer. Que novidades ha?
— Nada; isto é, tu é que deves saber algum cousa.
— Eu, nada...
— Ora essa! não foste hontem ao Jardim?
— Fui, sim; houve uma ceia...
— De familia, sim. Eu fui ao Alcazar. A que horas acabou a reunião?
— Ás quatro da manhã.
Vasconcellos estendeu-se n’uma rede, e a conversa continuou por esse tom, até que um moleque veio dizer a Vasconcellos que estava na sala o Sr. Gomes.
— Eis o homem ! disse Baptista.
— Manda subir, ordenou Vasconcellos.
O moleque desceu para dar o recado; mas só um quarto de hora depois é que Gomes appareceu, por demorar-se algum tempo em baixo conversando com Augusta e Adelaide.
— Quem é vivo sempre apparece, disse Vasconcellos ao avistar o rapaz.
— Não me procurão... disse elle.
— Perdão; eu já lá fui duas vezes, e disserão-me que havias sahido.
— Só por grande fatalidade, porque eu quasi punca saio.
— Mas então estás completamente ermitão?
— Estou chrysalida; vou reapparecer borboleta, disse Gomes sentando-se.
— Temos poesia... Guarda debaixo, Vasconcellos...
O novo personagem, o Gomes tão desejado e tão escondido, representava ter cerca de trinta annos. Elle, Vasconcellos e Baptista erão a trindade do prazer e da dissipação, ligada por uma indissoluvel amizade. Quando Gomes, cerca de um mez antes, deixou de apparecer nos circulos do costume, todos reparárão n’isso, mas só Vasconcellos e Baptista sentírão devéras. Todavia, não insistírão muito em arrancal-o á solidão, sómente pela consideração de que talvez houvesse n’isso algum interesse do rapaz.
Gomes foi portanto recebido como um filho prodigo.
— Mas onde te metteste? que é isso de chrysalida e de borboleta? Cuidas que eu sou do mangue?
— É o que lhes digo, meus amigos. Estou creando azas.
— Azas! disse Baptista suffocando uma risada.
— Só se são azas de gavião para cahir...
— Não, estou fallando serio.
E com effeito Gomes apresentava um ar serio e convencido.
Vasconcellos e Baptista olhárão um para o outro.
— Pois se é verdade isso que dizes, explica-nos lá que azas são essas, e sobretudo para onde é que queres voar.
A estas palavras de Vasconcellos, accrescentou Baptista:
— Sim, deves dar-nos uma explicação, e se nós que somos o teu conselho de familia, acharmos que a explicação é boa, approvamol-a; senão, ficas sem azas, e ficas sendo o que sempre foste...
— Apoiado, disse Vasconcellos.
— Pois é simples; estou creando azas de anjo, e quero voar para o céo do amor.
— Do amor! disserão os dous amigos de Gomes.
— É verdade, continuou Gomes. Que fui eu até hoje? Um verdadeiro estroina, um perfeito pandego, gastando ás mãos largas a minha fortuna e o meu coração. Mas isto é bastante para encher a vida? Parece que não...
— Até ahi concordo... isso não basta; é preciso que haja outra cousa; a diferença está na maneira de...
— É exacto, disse Vasconcellos; é exacto; é natural que vocês pensem de modo diverso, mas eu acho que tenho razão em dizer que sem o amor casto e puro a vida é um puro deserto.
Baptista deu um pulo...
Vasconcellos fitou os olhos em Gomes:
— Aposto que vais casar? disse-lhe.
— Não sei se vou casar; sei que amo, e espero acabar por casar-me com a mulher a quem amo.
— Casar! exclamou Baptista.
E soltou uma estridente gargalhada.
Mas Gomes fallava tão seriamente, insistia com tanta gravidade n’aquelles projectos de regeneração, que os dous amigos acabárão por ouvil-o com igual seriedade.
Gomes fallava uma linguagem estranha, e inteiramente nova na boca de um rapaz que era o mais doudo e ruidoso nos festins de Baccho e de Cythera.
— Assim, pois, deixas-nos? perguntou Vasconcellos.
— Eu? Sim e não; encontrar-me-hão nas salas; nos hoteis e nas casas equivocas, nunca mais.
— De profundis... cantarolou Baptista.
— Mas a final de contas, disse Vasconcellos, onde está a tua Marion? Póde-se saber quem ella é?
— Não é Marion, é Virginia... Pura sympathia ao principio, depois affeição pronunciada, hoje paixão verdadeira. Lutei emquanto pude; mas abati as armas diante de uma força maior. O meu grande medo era não ter uma alma capaz de offerecer a essa gentil creatura. Pois tenho-a, e tão fogosa, e tão virgem como no tempo dos meus dezoito annos. Só o casto olhar de uma virgem poderia descobrir no meu lodo essa perola divina. Renasço melhor do que era...
— Está claro, Vasconcellos, o rapaz está doudo; mandemol-o para a Praia Vermelha; e como póde ter algum accesso, eu vou-me embora...
Baptista pegou no chapéo.
— Onde vais? disse-lhe Gomes.
— Tenho que fazer; mas logo apparecerei em tua casa; quero ver se ainda é tempo de arrancar-te a esse abysmo.
E sahio.
Os dous ficárão sós.
— Então é certo que estás apaixonado ?
— Estou. Eu bem sabia que vocês difficilmente acreditarião n’isto; eu proprio não creio ainda, e comtudo é verdade. Acabo por onde tu começaste. Será melhor ou peior? Eu creio que é melhor.
— Tens interesse em occultar o nome da pessoa ?
— Occulto-o por ora a todos, menos a ti.
— É uma prova de confiança...
Gomes sorrio.
— Não, disse elle, é uma condição sine qua non; antes de todos tu deves saber quem é a escolhida do meu coração; trata-se de tua filha.
— Adelaide? perguntou Vasconcellos espantado.
— Sim, tua filha.
A revelação de Gomes cahio como uma bomba. Vasconcellos nem por sombras suspeitava semelhante cousa.
— Este amor é da tua approvação? perguntou-lhe Gomes.
Vasconcellos reflectia, e depois de alguns minutos de silencio, disse:
-— O meu coração approva a tua escolha; és meu amigo, estás apaixonado, e uma vez que ella te ame...
Gomes ia fallar, mas Vasconcellos continuou sorrindo:
— Mas a sociedade?
— Que sociedade?
— A sociedade que nos tem em conta de libertinos, a ti e a mim, é natural que não approve o meu acto.
— Já vejo que é uma recusa, disse Gomes entristecendo.
— Qual recusa, pateta! É uma objecção, que tu poderás destruir dizendo: a sociedade é uma grande calumniadora e uma famosa indiscreta. Minha filha é tua, com uma condição.
— Qual?
— A condição da reciprocidade. Ama-te ella ?
— Não sei, respondeu Gomes.
— Mas desconfias...
— Não sei; sei que a amo e que daria a minha vida por ella, mas ignoro se sou correspondido.
— Has de ser... Eu me incumbirei de apalpar o terreno. D’aqui a dous dias dou-te a minha resposta. Ah! se ainda tenho de ver-te meu genro!
A resposta de Gomes foi cahir-lhe nos braços. A scena já roçava pela comedia quando derão tres horas. Gomes lembrou-se que tinha rendez-vous com um amigo; Vasconcellos lembrou-se que tinha de escrever algumas cartas.
Gomes sahio sem fallar ás senhoras.
Pelas quatro horas Vasconcellos dispunha-se a sahir, quando vierão annunciar-lhe a visita do Sr. José Brito. '
Ao ouvir este nome o alegre Vasconcellos franzio o sobr’olho.
Pouco depois entrava no gabinete o Sr. José Brito.
O Sr. José Brito era para Vasconcellos um verdadeiro phantasma, um écho do abysmo, uma voz da realidade : era um credor.
— Não contava hoje com a sua visita, disse Vasconcellos.
— Admira, respondeu o Sr. José Brito com uma placidez de apunhalar, porque hoje são 21.
— Cuidei que erão 19, balbuciou Vasconcellos.
— Ante-hontem, sim; mas hoje são 24. Olhe, continuou o credor pegando no Jornal do Commercio que se achava n’uma cadeira: quinta-feira 21.
— Vem buscar o dinheiro?
— Aqui está a lettra, disse o Sr. José Brito tirando a carteira do bolso e um papel da carteira.
— Porque não veio mais cedo? perguntou Vasconcellos, procurando assim espaçar a questão principal.
— Vim ás oito horas da manhã, respondeu o credor, estava dormindo; vim ás nove, idem; vim ás dez, idem; vim ás onze, idem; vim ao meio-dia, idem. Quiz via á uma hora, mas tinha de mandar um homem pata a cadêa, e não me foi possivel acabar cedo. Ás tres jantei, e ás quatro aqui estou.
Vasconcellos puxava o charuto a ver se lhe occorria alguma idéa boa de escapar ao pagamento com que elle não contava.
Não achava nada; mas o proprio credor forneceu-lhe ensejo.
— Além de que, disse elle, a hora não importa nada, porque eu estava certo de que o senhor me vai pagar:
— Ah! disse Vasconcellos, é talvez um engano; eu não contava com o senhor hoje, e não arranjei o dinheiro...
— Então; como ha de ser? perguntou o credor com ingenuidade.
Vasconcellos sentio entrar-lhe n’alma a esperança.
— Nada mais simples, disse; o senhor espera até amanhã...
— Amanhã, quero assistir á penhora de um individuo que mandei processar por uma larga divida; não posso...
— Perdão, eu levo-lhe o dinheiro á sua casa...
— Isso seria bom se os negocios commerciaes se arranjassem assim. Se fossemos dous amigos é natural que eu me contentasse com a sua promessa, e tudo acabaria amanhã; mas eu sou seu credor, e só tenho em vista salvar o meu interesse... Portanto, acho melhor pagar hoje...
Vasconcellos passou a mão pelos cabellos.
— Mas se eu não tenho! disse elle.
— É uma cousa que o deve incommodar muito, mas que a mim não me causa a menor impressão... isto é, deve causar-me alguma, porque o senhor está hoje em situação precaria.
— Eu?
— É verdade; as suas casas da rua da Imperatriz estão hypothecadas; a da rua de S. Pedro foi vendida, e a importancia já vai longe; os seus escravos têm ido a um e um, sem que o senhor o perceba, e as despezas que o senhor ha pouco fez para montar uma casa a certa dama da sociedade equivoca são immensas. Eu sei tudo; sei mais do que o senhor...
Vasconcellos estava visivelmente aterrado.
O credor dizia a verdade.
— Mas emfim, disse Vasconcellos, o que havemos de fazer?
— Uma cousa simples; duplicamos a divida, e o senhor passa-me agora mesmo um deposito.
— Duplicar a divida! mas isto é um...
— Isto é uma taboa de salvação; sou moderado. Vamos lá, aceite. Escreva-me ahi o deposito, e rasga-se a lettra.
Vasconcellos ainda quiz fazer objecção; mas era impossivel convencer o S. José Brito.
Assignou o deposito de dezoito contos.
Quando o credor sahio, Vasconcellos entrou a meditar seriamente na sua vida.
Até então gastára tanto e tão cegamente que não reparára no abysmo que elle proprio cavára a seus pés.
Veio porém advertil-o a voz de um dos seus algozes.
Vasconcellos reflectio, calculou, recapitulou as suas despezas e as suas obrigações, e vio que da fortuna que possuia tinha na realidade menos da quarta parte.
Para viver como até alli vivêra, aquillo era nada menos que a miseria.
Que fazer em tal situação?
Vasconcellos pegou no chapéo e sahio.
Vinha cahindo a noite.
Depois de andar algum tempo pelas ruas entregue ás suas meditações, Vasconcellos entrou no Alcazar.
Era um meio de distrahir-se.
Alli encontraria a sociedade do costume.
Baptista veio ao encontro do amigo.
— Que cara é essa? disse-lhe.
— Não é nada, pisárão-me um callo, respondeu Vasconcellos, que não encontrava melhor resposta.
Mas um pedicura que se achava perto de ambos ouvio o dito, e nunca mais perdeu de vista o infeliz Vasconcellos, a quem a cousa mais indifferente incommodava. O olhar persistente do pedicura aborreceu-o tanto, que Vasconcellos sahio.
Entrou no hotel de Milão, para jantar. Por mais preoccupado que elle estivesse, a exigencia do estomago não se domorou.
Ora, no meio do jantar lembrou-lhe aquillo que não devia ter-lhe sahido da cabeça: o pedido de casamento feito n’essa tarde por Gomes.
Foi um raio de luz.
— Gomes é rico, pensou Vasconcellos ; o meio de escapar a maiores desgostos é este ; Gomes casa-se com Adelaide, e como é meu amigo não me negará o que eu precisar. Pela minha parte procurarei ganhar o perdido... Que boa fortuna foi aquella lembrança do casamento!
Vasconcellos comeu alegremente; voltou depois ao Alcazar, onde alguns rapazes e outras pessoas fizerão esquecer completamente os seus infortunios.
Ás tres horas da noite Vasconcellos entrava para casa com a tranquillidade e regularidade do costume.
No dia seguinte o primeiro cuidado de Vasconcellos foi consultar o coração de Adelaide. Queria porém fazêl-o na ausencia de Augusta. Felizmente esta precisava de ir ver á rua da Quitanda umas fazendas novas, e sahio com o cunhado, deixando a Vasconcellos toda a liberdade.
Como os leitores já sabem, Adelaide queria muito ao pai, e era capaz de fazer por elle tudo. Era, além d’isso, um excellente coração. Vasconcellos contava com essas duas forças.
— Vem cá, Adelaide, disse elle entrando na sala; sabes quantos annos tens?
— Tenho quinze.
— Sabes quantos annos tem tua mãi?
— Vinte e sete, não é?
— Tem trinta; quer dizer que tua mãi casou-se com quinze annos.
Vasconcellos parou, afim de ver o effeito que produzião estas palavras; mas foi inutil a expectativa; Adelaide não comprehendeu nada.
O pai continuou:
— Não pensaste no casamento?
A menina corou muito, hesitou em fallar, mas como o pai instasse, respondeu:
— Qual, papai! eu não quero casar,..
—. Não queres casar? É boa! porque?
— Porque não tenho vontade, e vivo bem aqui.
— Mas tu pódes casar e continuar a viver aqui...
— Bem; mas não tenho vontade.
— Anda lá... Amas alguem, confessa.
— Não me pergunte isso, papai... eu não amo ninguem.
A linguagem de Adelaide era tão sincera, que Vasconcellos não podia duvidar.
— Ella falla a verdade, pensou elle; é inutil tentar por esse lado...
Adelaide sentou-se ao pé d’elle, e disse:
— Portanto, meu paizinho, não fallemos mais n’isso...
— Fallemos, minha filha; tu és criança, não sabes calcular. Imagina que eu e tua mãi morremos amanhã. Quem te ha de amparar? Só um marido.
— Mas se eu não gosto de ninguem...
— Por ora; mas has de vir a gostar se o noivo fôr um bonito rapaz, de bom coração... Eu já escolhi um que te ama muito, e a quem tu has de amar.
Adelaide estremeceu.
— Eu? disse ella. Mas... quem é?
— É o Gomes.
— Não o amo, meu pai...
— Agora, creio; mas não negas que elle é digno de ser amado. Dentro de dous mezes estás apaixonada por elle.
Adelaide não disse palavra. Curvou a cabeça e começou a torcer nos dedos uma das suas tranças bastas e negras. O seio arfava-lhe com força; a menina tinha os olhos cravados no tapete.
— Vamos, está decidido, não? perguntou Vasconcellos.
— Mas, papai, e se eu fôr infeliz?...
— Isso é impossivel, minha filha; has de ser muito feliz; e has de amar muito a teu marido.
— Oh! papai, disse-lhe Adelaide com os olhos rasos de agua, peço-lhe que não me case ainda...
— Adelaide, o primeiro dever de uma filha é obedecer a seu pai, e eu sou teu pai. Quero que te cases com o Gomes; has de casar.
Estas palavras, para terem todo o effeito, devião ser seguidas de uma retirada rapida. Vasconcellos comprehendeu isso, e sahio da sala deixando Adelaide na maior desolação.
Adelaide não amava ninguem. A sua recusa não tinha por ponto de partida nenhum outro amor; tambem não era resultado de aversão que tivesse pelo seu pretendente.
A menina sentia simplesmente uma total indifferença pelo rapaz.
N’estas condições o casamento não deixava de ser uma odiosa imposição.
Mas que faria Adelaide? a quem recorreria?
Recorreu ás lagrimas.
Quanto a Vasconcellos, subio ao gabinete e escreveu as seguintes linhas ao futuro genro:
« Tudo caminha bem; autoriso-te a vires fazer côrte á pequena, e espero que dentro de dous mezes o casamento esteja concluido. »
Fechou a carta e mandou-a.
Pouco depois voltárão de fóra Augusta e Lourenço.
Emquanto Augusta subio para o quarto da toilette para mudar de roupa, Lourenço foi ter com Adelaide, que estava no jardim.
Reparou que ella tinha os olhos vermelhos, e inquirio a causa; mas a moça negou que fosse de chorar.
Lourenço não acreditou nas palavras da sobrinha, e instou com ella para que lhe contasse o que havia.
Adelaide tinha grande confiança no tio, até por causa da sua rudeza de maneiras. No fim de alguns minutos de instancias, Adelaide contou a Lourenço a scena com o pai.
— Então, é por isso que estás chorando, pequena?
— Pois então? Como fugir ao casamento?
— Descansa, não te casarás; eu te prometto que não te has de casar...
A moça sentio um estremecimento de alegria.
— Promette, meu tio, que ha de convencer a papai?
— Hei de vencêl-o ou convencêl-o, não importa; tu não te has de casar. Teu pai é um tolo.
Lourenço subio ao gabinete de Vasconcellos, exactamente no momento em que este se dispunha a sahir.
— Vais sahir? perguntou-lhe Lourenço.
— Vou.
— Preciso fallar-te.
Lourenço sentou-se; e Vasconcellos, que já tinha o chapéo na cabeça, esperou de pé que elle fallasse.
— Senta-te, disse Lourenço.
Vascóncellos sentou-se.
— Ha dezeseis annos...
— Começas de muito longe; vê se abrevias uma meia duzia de annos, sem o que não prometto ouvir o que me vais dizer.
— Ha dezeseis annos, continuou Lourenço, que és casado; mas a differença entre o primeiro dia e o dia de hoje é grande.
— Naturalmente, disse Vasconcellos. Tempora mutantur et...
— N’aquelle tempo, continuou Lourenço, dizias que encontráras um paraiso, o verdadeiro paraiso, e foste durante dous ou tres annos o modelo dos maridos. Depois mudaste completamente; e o paraiso tornar-se-hia verdadeiro inferno se tua mulher não fosse tão indifferente e fria como é, evitando assim as mais terriveis scenas domesticas.
— Mas, Lourenço, que tens com isso?
— Nada; nem é d’isso que vou fallar-te. O que me interessa é que não sacrifiques tua filha por um capricho, entregando-a a um dos teus companheiros de vida solta...
Vasconcellos levantou-se :
— Estás doudo! disse elle.
— Estou calmo, e dou-te o prudente conselho de não sacrificares tua filha a um libertino.
— Gomes não é libertino; teve uma vida de rapaz, é verdade, mas gosta de Adelaide, e reformou-se completamente. É um bom casamento, e por isso acho que todos devemos aceital-o. É a minha vontade, e n’esta casa quem manda sou eu.
Lourenço procurou fallar ainda, mas Vasconcellos já ia longe.
— Que fazer? pensou Lourenço.
A opposição de Lourenço não causava grande impressão a Vasconcellos. Elle podia, é verdade, suggerir á sobrinha idéas de resistencia; mas Adelaide, que era um espirito fraco, cederia ao ultimo que lhe fallasse, e os conselhos de um dia serião vencidos pela imposição do dia seguinte.
Todavia era conveniente obter o apoio de Augusta. Vasconcellos pensou em tratar d’isso o mais cedo que lhe fosse possivel.
Entretanto, urgia organisar os seus negocios, e Vasconcellos procurou um advogado a quem entregou todos os papeis e informações , encarregando-o de oriental-o em todas as necessidades da situação, quaes os meios que poderia oppôr em qualquer caso de reclamação por divida ou hypotheca.
Nada d’isto fazia suppôr da parte de Vasconcellos uma reforma de costumes. Preparava-se apenas para continuar a vida anterior.
Dous dias depois da conversa com o irmão, Vasconcellos procurou Augusta, para tratar francamente do casamento de Adelaide.
Já n’esse intervallo o futuro noivo, obedecendo ao conselho de Vasconcellos, fazia côrte prévia á filha. Era possivel que se o casamento não lhe fosse imposto, Adelaide acabasse por gostar do rapaz. Gomes era um homem bello e elegante; e, além d’isso, conhecia todos os recursos de que se deve usar para impressionar uma mulher.
Teria Augusta notado a presença assidua do moço? Vasconcellos fazia essa pergunta ao seu espirito no momento em que entrava na toilette da mulher.
— Vais sahir? perguntou elle.
— Não; tenho visitas.
— Ah! quem?
— A mulher do Seabra, disse ella.
Vasconcellos sentou-se, e procurou um meio de encabeçar a conversa especial que alli o levava.
— Estás muito bonita hoje !
— Devéras? disse ella sorrindo. Pois estou hoje como sempre, e é singular que o digas hoje...
— Não; realmente hoje estás mais bonita do que costumas, a ponto que sou capaz de ter ciumes...
— Qual! disse Augusta com um sorriso ironico.
Vasconcellos coçou a cabeça, tirou o relogio, deu-lhe corda; depois entrou a puxar as barbas, pegou n’uma folha, leu dous ou tres annuncios, atirou a folha ao chão, e a final, depois de um silencio já prolongado, Vasconcellos achou melhor atacar a praça de frente.
— Tenho pensado ultimamente em Adelaide, disse elle.
— Ah! porque?
— Está moça...
— Moça! exclamou Augusta, é uma criança...
— Está mais velha do que tu quando te casaste...
Augusta franzio ligeiramente a testa.
— Mas então... disse ella.
— Então é que eu desejo fazêl-a feliz, e feliz pelo casamento. Um rapaz, digno d’ella a todos os respeitos, pedio-m’a ha dias, e eu disse-lhe que sim. Em sabendo quem é, approvarás a escolha; é o Gomes. Casamol-a, não?
— Não! respondeu Augusta.
— Como, não?
— Adelaide é uma criança; não tem juizo nem idade propria... Casar-se-ha quando fôr tempo.
— Quando fôr tempo? Estás certa se o noivo esperará até que seja tempo?
— Paciencia, disse Augusta.
— Tens alguma cousa que notar no Gomes?
— Nada. É um moço distincto; mas não convem a Adelaide.
Vasconcellos hesitava em continuar; parecia-lhe que nada se podia arranjar; mas a idéa da fortuna deu-lhe forças, e elle perguntou:
— Porque?
— Estás certo de que elle convenha a Adelaide? perguntou Augusta, illudindo a pergunta do marido.
— Affirmo que convem.
— Convenha ou não, a pequena não deve casar já.
— E se ella amasse?...
— Que importa isso? esperaria!
— Entretanto, Augusta, não podemos prescindir d’este casamento... É uma necessidade fatal.
— Fatal? não comprehendo.
— Vou explicar-me. O Gomes tem uma boa fortuna.
— Tambem nós temos uma...
— É o teu engano, interrompeu Vasconcellos.
— Como assim?
Vasconcellos continuou:
— Mais tarde ou mais cedo havias de sabêl-o, e eu estimo ter esta occasião de dizer-te toda a verdade. A verdade é que, se não estamos pobres, estamos arruinados.
Augusta ouvio estas palavras com os olhos espantados. Quando elle acabou, disse:
-— Não é possivel!
— Infelizmente é verdade!
Seguio-se algum tempo de silencio.
— Tudo está arranjado, pensou Vasconcellos.
Augusta rompeu o silencio.
— Mas, disse ella, se a nossa fortuna está abalada, creio que o senhor tem cousa melhor para fazer do que estar conversando; é reconstruil-a.
Vasconcellos fez com a cabeça um movimento de espanto, e como se fosse aquillo uma pergunta, Augusta apressou-se a responder:
— Não se admire d’isto: creio que o seu dever é reconstruir a fortuna.
— Não me admira esse dever; admira-me que m’o lembres por esse modo. Dir-se-hia que a culpa é minha.....
— Bom! disse Augusta, vais dizer que fui eu....
— A culpa, se culpa ha, é de nós ambos.
— Porque? é tambem minha?
— Tambem. As tuas despezas loucas contribuírão em grande parte para este resultado; eu nada te recusei nem recuso, e é n’isso que sou culpado. Se é isso que me lanças em rosto, aceito.
Augusta levantou os hombros com um gesto de despeito; e deitou a Vasconcellos um olhar de tamanho desdem que bastaria para intentar uma acção de divorcio.
Vasconcellos vio o movimento e o olhar.
— O amor do luxo e do superfluo, disse elle, ha de sempre produzir estas consequencias. São terriveis, mas explicaveis. Para conjural-as era preciso viver com moderação. Nunca pensaste n’isso. No fim de seis mezes de casada entraste a viver no turbilhão da moda, e o pequeno regato das despezas tornou-se um rio immenso de desperdicios. Sabes o que me disse uma vez meu irmão? Disse-me que a idéa de mandar Adelaide para a roça foi-te suggerida pela necessidade de viver sem cuidados de natureza alguma.
Augusta tinha-se levantado, e deu alguns passos; estava tremula e pallida.
Vasconcellos ia por diante nas suas recriminações, quando a mulher o interrompeu, dizendo:
— Mas por que motivo não impedio o senhor essas despezas que eu fazia?
— Queria a paz domestica.
— Não! clamou ella; o senhor queria ter por sua parte uma vida livre e independente; vendo que eu me entregava a essas despezas, imaginou comprar a minha tolerancia com a sua tolerancia. Eis o unico motivo; a sua vida não será igual á minha, mas é peior.... Se eu fazia despezas em casa o senhor as fazia na rua.... É inutil negar, porque eu sei tudo; conheço, de nome, as rivaes que successivamente o senhor me deu, e nunca lhe disse uma unica palavra, nem agora lh’o censuro, porque seria inutil e tarde.
A situação tinha mudado. Vasconcellos começára constituindo-se juiz, e passára a ser co-réo. Negar era impossivel; discutir era arriscado e inutil. Preferio sophismar.
— Dado que fosse assim (e eu não discuto esse ponto), em todo caso a culpa será de nós ambos, e não vejo razão para que m’a lances em rosto. Devo reparar a fortuna, concordo; ha um meio, e é este: o casamento de Adelaide com o Gomes.
— Não, disse Augusta.
— Bem; seremos pobres, ficaremos peiores do que estamos agora; venderemos tudo...
— Perdão, disse Augusta, eu não sei por que razão não ha de o senhor, que é forte, e tem a maior parte no desastre, empregar esforços para a reconstrucção da fortuna destruida.
— É trabalho longo; e d’aqui até lá a vida continúa e gasta-se. O meio, já lh’o disse, é este: casar Adelaide com o Gomes.
— Não quero! disse Augusta, não consinto em semelhante casamento.
Vasconcellos ia responder, mas Augusta, logo depois de proferir estas palavras, tinha sahido precipitadamente do gabinete.
Vasconcellos sahio alguns minutos depois.
Lourenço não teve conhecimento da scena entre o irmão e a cunhada, e depois da teima de Vasconcellos resolveu nada mais dizer; entretanto, como queria muito á sobrinha, e não queria vêl-a entregue a um homem de costumes que elle reprovava, Lourenço esperou que a situação tomasse caracter mais decisivo para assumir mais activo papel.
Mas, afim de não perder tempo, e poder usar alguma arma poderosa, Lourenço tratou de instaurar uma pesquiza mediante a qual pudesse colher informações minuciosas ácerca de Gomes.
Este cuidava que o casamento era cousa decidida, e não perdia um só dia na conquista de Adelaide.
Notou, porém, que Augusta tornava-se mais fria e indifferente, sem causa que elle conhecesse, e entrou-lhe no espirito a suspeita de que viesse d’alli alguma opposição.
Quanto a Vasconcellos, desanimado pela scena da toilette, esperou melhores dias, e contou sobretudo com o imperio da necessidade.
Um dia, porém, exactamente quarenta e oito horas depois da grande discussão com Augusta, Vasconcellos fez dentro de si esta pergunta:
— Augusta recusa a mão de Adelaide para o Gomes; porque?
De pergunta em pergunta, de deducção em deducção, abrio-se no espirito de Vasconcellos campo para uma suspeita dolorosa.
— Amal-o-ha ella? perguntou elle a si proprio.
Depois, como se o abysmo attrahisse o abysmo, e uma suspeita reclamasse outra, Vasconcellos perguntou:
— Ter-se-hião elles amado algum tempo?
Pela primeira vez, Vasconcellos sentio morder-lhe no coração a serpe do ciume.
Do ciume digo eu, por euphemismo; não sei se aquillo era ciume; era amor-proprio offendido.
As suspeitas de Vasconcellos terião razão?
Devo dizer a verdade; não tinhão. Augusta era vaidosa, mas era fiel ao infiel marido; e isso por dous motivos: um de consciencia, outro de temperamento. Ainda que ella não estivesse convencida do seu dever de esposa, é certo que nunca trahiria o juramento conjugal. Não era feita para as paixões, a não serem as paixões ridiculas que a vaidade impõe. Ella amava antes de tudo a sua propria belleza; o seu melhor amigo era o que dissesse que ella era mais bella entre as mulheres; mas se lhe dava a sua amizade, não lhe daria nunca o coração; isso a salvava.
A verdade é esta; mas quem o diria a Vasconcellos? Uma vez suspeitoso de que a sua honra estava afectada, Vasconcellos começou a recapitular toda a sua vida. Gomes frequentava a sua casa ha seis annos, e tinha n’ella plena liberdade. A trahição era facil. Vasconcellos entrou a recordar as palavras, os gestos, os olhares, tudo que antes lhe foi indifferente, e que n’aquelle momento tomava um caracter suspeitoso.
Dous dias andou Vasconcellos cheio d’este pensamento. Não sahia de casa. Quando Gomes chegava, Vasconcellos observava a mulher com desusada persistencia; a propria frieza com que ella recebia o rapaz era aos olhos do marido uma prova do delicto.
Estava n’isto, quando na manhã do terceiro dia (Vasconcellos já se levantava cedo) entrou-lhe no gabinete o irmão, sempre com o ar selvagem do costume.
A presença de Lourenço inspirou a Vasconcellos a idéa de contar-lhe tudo.
Lourenço era um homem de bom senso, e em caso de necessidade era um apoio.
O irmão ouvio tudo quanto Vasconcellos contou, e concluindo este, rompeu o seu silencio com estas palavras:
— Tudo isso é uma tolice; se tua mulher recusa o casamento, será por qualquer outro motivo que não esse.
— Mas é o casamento com o Gomes que ella recusa.
— Sim, porque lhe fallaste no Gomes; falla-lhe em outro, talvez recuse do mesmo modo. Ha de haver outro motivo; talvez Adelaide lhe contasse, talvez lhe pedisse para oppôr-se, porque tua filha não ama o rapaz, e não póde casar com elle.
— Não casará...
— Não só por isso, mas até porque...
— Acaba.
— Até porque este casamento é uma especulação do Gomes.
— Uma especulação? perguntou Vasconcellos.
— Igual á tua, disse Lourenço. Tu dás-lhe a filha com os olhos na fortuna delle; elle aceita-a com os olhos na tua fortuna...
— Mas elle possue...
— Não possue nada; está arruinado como tu. Indaguei e soube da verdade. Quer naturalmente continuar a mesma vida dissipada que teve até hoje, e a tua fortuna é um meio...
— Estás certo d’isso?
— Certissimo!...
Vasconcellos ficou aterrado. No meio de todas as suspeitas, ainda lhe restava a esperança de ver a sua honra salva, e realisado aquelle negocio que lhe daria uma excellente situação.
Mas a revelação de Lourenço matou-o.
— Se queres uma prova, manda chamal-o, e dize-lhe que estás pobre, e por isso lhe recusas a filha; observa-o bem, e verás o effeito que as tuas palavras lhe hão de produzir.
Não foi preciso mandar chamar o pretendente. D’ahi a uma hora apresentou-se elle em casa de Vasconcellos.
Vasconcellos mandou-o subir ao gabinete.
Logo depois dos primeiros comprimentos Vasconcellos disse:
— Ia mandar chamar-te.
— Ah! para que? perguntou Gomes.
— Para conversarmos ácerca do... casamento.
— Ah! ha algum obstaculo?
— Conversemos.
Gomes tornou-se mais serio; entrevia alguma dificuldade grande.
Vasconcellos tomou a palavra.
— Ha circumstancias, disse elle, que devem ser bem definidas, para que se possa comprehender bem...
— É a minha opinião.
— Amas minha filha?
— Quantas vezes queres que t’o diga?
— O teu amor está acima de todas as circumstancias?...
— De todas, salvo aquellas que entenderem com a felicidade d’ella.
— Devemos ser francos; além de amigo que sempre foste, és agora quasi meu filho... A discrição entre nós seria indiscreta...
— Sem duvida! respondeu Gomes.
— Vim a saber que os meus negocios parão mal; as despezas que fiz alterárão profundamente a economia da minha vida, de modo que eu não te minto dizendo que estou pobre.
Gomes reprimio uma careta.
— Adelaide, continuou Vasconcellos, não tem fortuna, não terá mesmo dote; é apenas uma mulher que eu te dou. O que te afianço é que é um anjo, e que ha de ser excellente esposa.
Vasconcellos calou-se, e o seu olhar cravado no rapaz parecia querer arrancar-lhe das feições as impressões da alma.
Gomes devia responder; mas durante alguns minutos houve entre ambos um profundo silencio.
Emfim o pretendente tomou a palavra.
— Aprecio, disse elle, a tua franqueza, e usarei de franqueza igual.
— Não peço outra cousa...
— Não foi por certo o dinheiro que me inspirou este amor; creio que me farás a justiça de crer que eu estou acima d’essas considerações. Além de que, no dia em que eu te pedi a querida do meu coração, acreditava estar rico.
— Acreditavas?
— Escuta. Só hontem é que o meu procurador me communicou o estado dos meus negocios.
— Máo?
— Se fosse isso apenas! Mas imagina que ha seis mezes estou vivendo pelos esforços inauditos que o meu procurador fez para apurar algum dinheiro, pois que elle não tinha animo de dizer-me a verdade. Hontem soube tudo!
— Ah!
— Calcula qual é o desespero de um homem que acredita estar bem, e reconhece um dia que não tem nada!
— Imagino por mim!
— Entrei alegre aqui, porque a alegria que eu ainda tenho reside n’esta casa; mas a verdade é que estou à beira de um abysmo. A sorte castigou-nos a um tempo...
Depois d’esta narração, que Vasconcellos ouvio sem pestanejar, Gomes entrou no ponto mais difficil da questão.
— Aprecio a tua franqueza, e aceito tua filha sem fortuna; tambem eu não tenho, mas ainda me restão forças para trabalhar.
— Aceitas?
— Escuta. Aceito D. Adelaide, mediante uma condição; é que ella queira esperar algum tempo, afim de que eu comece a minha vida. Pretendo ir ao governo e pedir um lugar qualquer, se é que ainda me lembro do que aprendi na escola... Apenas tenha começado a vida, cá virei buscal-a. Queres?
— Se ella consentir, disse Vasconcellos abraçando esta taboa de salvação, é cousa decidida.
Gomes continuou:
— Bem, fallarás n’isso amanhã, e mandar-me-has resposta. Ah! se eu tivesse ainda a minha fortuna! Era agora que eu queria provar-te a minha estima!
— Bem, ficamos n’isto
— Espero a tua resposta.
E despedírão-se.
Vasconcellos ficou fazendo esta reflexão:
— De tudo quanto elle disse só acredito que já não tem nada. Mas é inutil esperar: duro com duro não faz bom muro.
Pela sua parte Gomes desceu a escada dizendo comsigo:
— O que acho singular é que estando pobre viesse dizer-m’o assim tão anticipadamente quando eu estava cahido. Mas esperarás debalde: duas metades de cavallo não fazem um cavallo.
Vasconcellos desceu.
A sua intenção era communicar a Augusta o resultado da conversa com o pretendente. Uma cousa, porém, o embaraçava: era a insistencia de Augusta em não consentir no casamento de Adelaide, sem dar nenhuma razão da recusa.
Ia pensando n’isto, quando, ao atravessar a sala de espera, ouvio vozes na sala de visitas.
Era Augusta que conversava com Carlota.
Ia entrar quando estas palavras lhe chegárão ao ouvido:
— Mas Adelaide é muito criança.
Era a voz de Augusta.
— Criança! disse Carlota.
— Sim; não está em idade de casar.
— Mas eu no teu caso não punha embargos ao casamento, ainda que fosse d’aqui a alguns mezes, porque o Gomes não me parece máo rapaz...
— Não é; mas emfim eu não quero que Adelaide se case.
Vasconcellos collou o ouvido á fechadura, e temia perder uma só palavra do dialogo.
— O que eu não comprehendo, disse Carlota, é a tua insistencia. Mais tarde ou mais cedo Adelaide ha de vir a casar-se.
— Oh! o mais tarde possivel, disse Augusta.
Houve um silencio.
Vasconcellos estava impaciente.
— Ah! continuou Augusta, se soubesses o terror que me dá a idéa do casamento de Adelaide.
— Porque, meu Deos?
— Porque, Carlota? Tu pensas em tudo, menos n’uma cousa. Eu tenho medo por causa dos filhos d’ella que serão meus netos! A idéa de ser avó é horrivel, Carlota.
Vasconcellos respirou, e abrio a porta.
— Ah! disse Augusta.
Vasconcellos comprimentou Carlota, e apenas esta sahio, voutou-se para a mulher, e disse:
— Ouvi a tua conversa com aquella mulher...
— Não era segredo; mas... que ouviste?
Vasconcellos respondeu sorrindo:
— Ouvi a causa dos teus terrores. Não cuidei nunca que o amor da propria belleza pudesse levar a tamanho egoismo. O casamento com o Gomes não se realisa; mas se Adelaide amar alguem, não sei como lhe recusaremos o nosso consentimento...
— Até lá... esperemos, respondeu Augusta.
A conversa parou n’isto; porque aquelles dous consortes distanciavão-se muito; um tinha a cabeça nos prazeres ruidosos da mocidade, ao passo que a outra meditava exclusivamente em si.
No dia seguinte Gomes recebeu uma carta de Vasconcellos concebida n’estes termos:
« Meu Gomes. — Occorre uma circumstancia inesperada; é que Adelaide não quer casar. Gastei a minha logica, mas não alcancei convencêl-a. — Teu Vasconcellos. »
Gomes dobrou a carta e acendeu com ella um charuto, e começou a fumar fazendo esta reflexão profunda:
— Onde acharei eu uma herdeira que me queira por marido?
Se alguem souber avise-o em tempo.
Depois do que acabamos de contar, Vasconcellos e Gomes encontrão-se ás vezes na rua ou no Alcazar; conversão, fumão, dão o braço um ao outro, exactamente como dous amigos, que nunca forão, ou como dous velhacos que são.