Arte de Amar
ARTE DE AMAR
PARA AGRADAR ÁS DAMAS.
I
Se, lascivos do mundo, amais sem arte,
Lede meus versos, amareis com ella.
Tu, louro Apollo, me tempera a lyra,
Tu, branda Venus, a cantar me ensina.
Quanto nos reinos de Plutão deseja
Tantalo ardente mitigar a sêde;
Quanto suspira Promethêo, que Jove
Os duros ferros, com que o prende, rompa;
Tanto deseja a feminina turba
Ao corpo varonil unir seu corpo;
Tanto suspira por que mão lasciva
Meiga lhe toque nas columnas lisas,
E que mimoso, petulante dedo
Lhe amolgue os tezos seus virgineos peitos.
Em Junho ardente pelo seu consorte
Clama, suspira em verde ramo a rôla;
Em gelado Janeiro clama triste
A domestica tigre por marido:
Brama nos campos em sereno Maio
Mansa novilha por amado touro.
Sabia Natura o debil sexo excita,
Torpes desejos com ardor provoca:
Mas sempre firme, e simulada nega
Carnal impulso geração de Pyrrha.
Busca Diana Endymião nos bosques,
Mas finge ousada perseguir as féras;
Ardente Venus só prazer respira,
Mas seus favores solicíta Marte;
Serrana humilde reclinar deseja
Nos doces braços de um Vaqueiro o collo;
Mas d’elle foge, na montanha, esquiva,
Com elle o baile festival recusa.
II
Tu, próvido Lycurgo, ou quem primeiro
Á vaga turba legislou dos homens,
Severo alçando temeroso ferro
Duro reprimes da natura os gritos;
Á face mulheril, immovel d’antes,
Pudibundo rubor e pejo déstes;
Mas ah! não tema varonil caterva
Femineo pejo, sendo eu o seu mestre.
Corta o duro machado erguido tronco,
Mas vejo sempre pullular vergonteas;
Diques forçosos contra o mar se elevam,
Mas além d’elles delphins mansos nadam.
Pode mais do que as leis a Natureza,
Pratica o mundo só o que ella dicta;
Faz-se escondida em quanto a não descobrem;
Eu subtil mestre a descobril-a ensino.
Ah! não me chamem críticos austeros
Dos bons costumes corruptor profano!
Ah! não me mande Cesar irritado
No frio Euxino a viver c’os Getas.
Outra cousa não faz duro colono
Com liso arado, quando rompe a terra:
Dura codêa o calor nativo impede,
O ferro a rasga, e o calor transpira.
III
Vós, mancebos, correi, correi ligeiros
Do Tibre ás margens ferteis, e mimosas:
Tão immoveis me ouvi; mas não tão surdos;
Direi primeiro como Amor se enlêa,
Depois como se faz propicia Venus.
Tu, oh Jove immortal, tu pae dos deuses,
Sabio me inspira, que não basta Apollo.
É verde louro fugitivo Daphne,
Amor ingrato do queixoso Phebo:
Tu, selvatico filho de Saturno,
Só tu não temes desdenhosas iras:
Ou chuva d’ouro a bella Danae molhas,
Ou touro manso linda Europa roubas.
A face mulheril formosa, e pura
Cobrem de pejo avermelhadas rosas;
Ou dedo juvenil destro as desfolhe,
Ou calido vapor soprando as murche:
Então lasciva, sem rebuço exposta
Facil se entrega, sem temor se arroja:
Então tu, louro Apollo, serás Daphne,
A nympha fugitiva será Phebo.
Apoz o bruto filho de Neptuno
Correrá Galathéa os verdes mares;
Assim foge de Cyrce o grego Ulysses,
Assim foge de Dido o pio Enéas.
Porém, primeiro, subtilmente a inflamma;
Se acaso ardente, devorante fogo
Torrar os bofes, consumir entranhas,
Natura acode com forçoso impulso,
E mais depressa se afugenta o pejo:
Mais depressa o calor do sol derrete
Pallida massa de esfregada cêra;
Mais cedo rompe ariete forçoso
Torres antigas, ruinosos muros.
IV
Se branco rosto, que formoso esmaltam
Preciosos rubís, azues saphiras,
Face morena, que engraçados ornam
Dous pretos olhos, com que as Graças brincam;
Se airoso gesto, movimento lindo,
Se honesto modo, se sisudo termo
Feriu teus olhos no theatro, ou templo,
Eia, mancebo, tens amores, corre!…
Em pé ligeiro te sublima, e ergue;
Da vasta chusma simulado escapa,
Ou destro finjas cerebro revolto,
Ou falso mostres abafado o peito;
Logo modesto dirigindo os olhos
Á branda Tyrse, para os seus repara;
Vê se innocentes ao acaso vagam.
Ou se inquietos com destino giram;
Se por ventura teu rival encontras,
Animo forte, desmaiar não deves;
Mais honrosa será tua victoria,
Tens para o carro triumphal captivo.
V
Era consorte de vulcano Venus,
Mas dos favores seus é digno Marte;
Com vergonha do sordido ferreiro
Preso nas rêdes fica o deus da guerra;
Quaes no prado mellifluas abelhas
Correm voando d’uma flor em outra,
Nem sobre o casto rosmaninho pousam,
Nem sobre o thymo matinal descançam:
Taes, oh mancebos, mulheris desejos
Correndo vôam de um amor em outro.
Nem destro Ulysses seu correr impede,
Nem rico Midas suas azas prende;
Oh tu cerulea, cristallina Thetis,
Quando revolta não serás tão vaga?
Oh tu suberbo, furioso Noto,
Quando liberto não serás tão doudo?
São mais constantes de um carvalho altivo
As livres folhas, quando Bóreas sopra,
Tremulam menos nos extensos mares
Flamulas soltas, que menêa o vento.
Se tu, mancebo, por acaso agradas,
Vive seguro, em teu rival não cuides;
É velho amante, tu amante novo:
Pode mais do que amor a novidade;
De novo ardia por Helena Paris,
Por isso foi de Meneláo contrario.
VI
Mas é preciso que subtil e hardido
Primeiro excites a attenção de Tyrse.
Com gesto alegre teu amor exprime,
Falem teus olhos, todo o corpo fale;
Mudo lhe dize que te assombra, e pasmam
Do seu semblante a formosura, e a graça.
Ora de espanto se amorteça a face,
Ora se accenda com venereo fogo:
O mesmo effeito teus contrarios fazem,
Todos o orgulho mulheril incensam:
O forte sexo para si reserva
De Phebo os louros, de Mavorte as palmas.
Em carros triumphaes nunca viu Roma
Matrona illustre de Cesarea casa;
Sós d’entre a chusma mulheril as Musas
Á sombra dormem de Apollineos louros;
Ao sexo lindo só agradam myrthos,
Verdes arbustos, que cultiva Venus.
Só d’entre a chusma varonil Cupido
Da Cypria deusa pode entrar no templo:
A porta guardam Furias irritadas,
Que em vez de lanças arrepellam serpes,
Com dente venenoso rasgam, mordem
Alheio sexo, que arrostal-as ousa.
Posto que fosse lindo o amor de Venus,
Morreu da sua mordedura Adonis;
Provando a furia da raivosa Alecto,
Foi convertido em tenra flor Narciso.
VII
Mas onde corre meu batel ligeiro!
Ferrando a vela para traz voltemos.
Mancebos, que me ouvis, sabei sómente
Que n’este laço se surprehendem todas.
Se acaso entrasse n’esta rêde de ouro
Lucrecia mesma ficaria presa;
Não seria Penelope tão casta,
Se os seus amantes lhe chamassem bella.
Esta gloria sómente querem todas,
Com fervoroso ardor todas a buscam:
Nem sobre as margens do Euphrates Cesar
Mais pela gloria marcial suspira.
Apraz a Venus variar de forma,
Tambem Cupido de ser vario gosta;
Um gesto sempre doce se abhorrece,
Ás vezes vale muito um desagrado.
VIII
De teu rival, mancebo, nota o modo,
E tu sempre diverso modo segue:
Não basta ser sómente amante novo,
É tambem necessaria nova forma.
Se elle inquieto namora, tu sisudo,
Se indecente se mostra, tu modesto;
Se triste se apresenta, tu alegre;
Se acanhado se mostra, tu mais livre;
Mas toma sempre virtuoso gesto,
Só lhe pareça teu amor franqueza.
Não ha no mundo tão lascivo monstro
Que a virtude não preze mais que o vicio;
E julga sempre a feminina turba
D’elles alheio quem se mostra casto:
A flamma do Ciume tambem queima,
E torra brandas mulherís entranhas;
Nem vibora raivosa, que pisada
Do vago caminhante se exaspera,
Nem besta furiosa, em cujas fauces
O nú selvagem crava a setta aguda,
Mais iradas se accendem, do que a turba,
Quando ciosa se exaspera, e arde.
O ciume foi ferro, a cujo golpe
Banhou teu sangue, oh forte Pyrrho, as aras,
Foi elle a chamma, que abrasou Semele:
Em feroz urso transformou Calixto;
(Eu mesmo, eu mesmo... Mas a dôr me impede,
Tu, suberbo rapaz da Idalia, o dize!
Ah! formosa Corinna! Não te engano,
Só me abraso por ti, só por ti morro!...)
Porém sulquemos novos mares, fuja
Nosso veloz batel longe da praia.
IX
Mancebo, deixa o teu rival; só cuida
Em combater da bella Tyrse o peito.
Do theatro se corre o largo panno,
Aberta a scena principia o drama.
Temerario, não deves ver tranquillo
Da peça theatral o sabio jogo:
É Cupido rapaz, não tem socego,
Não perde a occasião o que amor busca;
Para os olhos de Tyrse te encaminha,
N’elles a scena figurada nota;
Se por acaso lagrimas derrama
Tu de pranto tambem as faces banha;
Finge ao menos secar com alvo lenço
O terno pranto, que verter não podes;
Se irritada parece, toma fogo,
Se com assombro pasma, tu te assombra.
X
Mas que novo segredo Amor me inspira!
Que sabias regras, que preceitos novos!
Filho de Venus, e de Marte filho,
De teus altos mysterios serei vate!
Forma novos oraculos em Cypro;
Por elles tenha esquecimento Delphos.
Namorado mancebo, Amor te fala,
Ouve com filial respeito as vozes.
Posto que tu na scena Doris ouças,
Altos prodigios, maravilhas novas,
A voz soltando bella, e sonorosa
Com que suspenda sybillantes ventos,
Não pasmes, nunca chores, ser não queiras
Réo desditoso de tão negro crime;
Cheia Tyrse de inveja, não perdoa,
Mais depressa seria o mar estavel.
A nação feminil sustenta sempre
Entre si crua sanguinosa guerra:
Inda no berço brandamente dorme,
Inda c’o leite maternal se nutre,
Já da cova sombria o negro monstro
Que come verdes enroscadas serpes,
Salta com Venenosa lingua, e lambe
Seu terno peito, seu formoso rosto;
Na bocca lhe vomita cru veneno,
Que para o brando coração lhe corre,
E nas vêas subtis introduzido,
C’o rubro sangue lhe circula, e pulsa;
Não só familias com familias rompem
A paz benigna, que na terra expira;
Entre as mesmas irmãs se accende a guerra,
Por isso é hoje negro seixo Aglaura.
Até nos céos o vago monstro gira,
Minerva, e Juno fez rivaes de Venus;
Não caíram troyanos altos muros,
Só porque Paris foi roubar Helena!
Mil adulteros tinham sem castigo
Furtado esposas, maculado leitos:
No pomo da Discordia veiu envolta
A faisca fatal, que abrasou Troya.
XI
Com tudo, posto que raivosas todas
Entre si mutuamente se enfureçam,
Mancebo, não presumas que sem pena
Vejam de amor qualquer irmã queixosa.
Não houve nympha nos Thessalios campos
Que não movessem tristes queixas d’Eccho;
Só Lyriope vê com dôr Narciso,
Em branca flor Narciso as nymphas gostam:
Quando o monstro voraz, que sae dos mares
Só contra o filho de Theseo famoso,
Quando os frisões medrosos se perturbam,
Ligeiros se embaraçam, quebram redeas,
Hyppolito gentil por terra lançam,
Raivosos seu formoso corpo pizam;
A crua turba mulheril de Athenas
Festivos gritos para o céo levanta,
As tranças orna de jasmins, e rosas,
Vae dar a Venus no seu templo as graças.
XII
Oh vós, monstros crueis, geração dura!
Malignas Furias com formoso aspecto!
Sacerdote de Amor, agora o digo,
Hoje se saiba como sois geradas.
Supremo Jove, que tirou do cahos
A bruta massa, de que o mundo é feito,
Quando os homens formou, disse-lhes logo:
«De nova especie produzi sementes;
«Exista um novo sexo, em cujo seio
«O nativo calor as desenvolva:
«Formosa que a prazeres vos excite,
«Maligno, que a um cego amor vos leve;
«Os membros todos de seu corpo forme
«Formosa Venus em Cythera, ou Cypro,
«Ás Furias fique reservado o peito»
Mancebos!... Eis aqui por quem Cupido
Em subtis rêdes vos enleia todos:
Mas não vos tinja rubro pejo as faces;
Até por ellas foi novilho Jove.
Se é tecido seu peito nos infernos
É formada no céo sua cintura:
Hyppolito, Narciso lições sejam,
Com elles aprendei a não ser duros.
Posto que incestuosa chamma queime,
Devore o falso coração de Phedra,
Mostrae por ella que sentís ternura:
Acompanhe seu pranto o pranto vosso.
Tão felices agouros vendo Tyrse,
De vosso peito cego amor espera.
XIII
Longo tempo Tritão ardeu nos mares
Por Thysbe, de Nereo cerulea filha;
Dos seus amores rindo a esquiva nympha
Melhor ouvia o murmurar das ondas:
Bem como de voraz golfinho foge
Turba medrosa de miudos peixes,
Do mancebo Tritão cruel fugia
Assim nos reinos de Neptuno Thysbe.
Eis que um dia Protheo, pastor que guarda
Das aguas o maritimo rebanho,
Cuja molhada fronte cingem molles
E verdenegros juncos, que o mar cria;
Em tremulo penhasco, e ondeando enfeitam
A leve coma palludosos ramos,
Atraz do gado nadador cantava:
«Ah! misero Tritão, se queres Thysbe,
«Em leve pó mudada Troya vinga.»
Os eternos oraculos não mentem,
Deixou de ser esquiva a loura Thysbe.
Quando Circe nas praias se queixava
Do fugitivo, do perjuro Ulysses;
Tritão da sua dôr enternecido
Vingança lhe promette, chama os ventos,
Do sagrado Oceano agita as ondas,
No fundo seio as gregas náus soçobra.
Mais preciso não foi, Thysbe se rende,
Do louco amante para os braços corre,
Mil beijos lhe recebe, e mil lhe imprime...
Deveis, mancebos, presumir o resto;
Em breve tempo todo o mar povoam
Filhinhos de Tritão, de Nerêo netos.
XIV
Eis em resumo as regras necessarias,
Afim de conseguir femineo affecto:
D’ellas aprendereis, destros mancebos,
A serdes cautos, prevenindo os laços
Armados por Amor á inexp’riencia;
Pendurando assim trophéos innumeros
Ao carro triumphal da vossa gloria.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.