Dicionário de Cultura Básica/Hermes

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HERMES ("Mercúrio" em Roma, deus do Comércio, da Comunicação e da Interpretação)

Sob as asas de Mercúrio, o homem rouba, oculta, vende e desvenda

Conforme a versão do mito mais conhecida, Hermes é filho de Júpiter e de Maia, filha do gigante Atlas e da deusa Plêione, uma das sete plêiades ou atlântidas. Desde a mais tenra idade, Mercúrio deu mostras de grande astúcia e habilidade para fazer trapaças: saiu das faixas que o envolviam quando bebê e foi roubar os rebanhos de Apolo. Ajudou o pai Júpiter na luta contra os Gigantes; tirou vários deuses de situações embaraçosas; conseguiu o amor de Vênus (com quem gerou Hermafrodito, ser bissexuado → Andrógino), de outras deusas e de mulheres mortais. Por essas suas qualidades, Júpiter o escolheu como mensageiro dos deuses do Olimpo. Representado com asas nos pés e com uma bolsa na mão, foi venerado como protetor do comércio, do lucro e das viagens. É o deus da prosperidade econômica, dos viajantes e dos esportistas. Na poesia épica, Mercúrio exerce a função de transmissor das ordens de Júpiter e dos recados dos outros deuses, viajando constantemente do Olimpo para a Terra e vice-versa. Mas, paralelamente a esta faceta "clássica" do mito de Hermes-Mercúrio, surgiram inúmeras variantes que ligam a figura do deus à alquimia, às artes mágicas, ao poder da exegese. O imaginário culto e popular, através das representações folclóricas mais variadas, atribui a Mercúrio qualidades relacionadas entre si: ele perscruta, trapaça, rouba, transporta, vende, revela o sentido oculto das coisas. No mito de Pandora (→ Prometeu), conforme a narração do poeta Hesíodo, é este Mensageiro divino que coloca no seio da primeira mulher o sêmen da mentira e do engano para atormentar a vida do homem. O filósofo Platão, no diálogo Crátilo, diz que o nome de Hermes está ligado etimologicamente ao nome grego hermeneus ("intérprete"), origem das palavras românicas "hermenêutica" e "hermético". Literalmente:

" (o nome Hermes) parece relacionar-se com o discurso (logos);
as características de intérprete (hermeneus), de mensageiro,
de desenvolto no furto, de enganador com palavras e de hábil comerciante,
todas essas atividades relacionam-se com o poder do discurso."

Os gregos da entrada da nossa era identificaram Mercúrio com o deus egípcio Thot, denominado "Hermes Trimegisto" (três vezes grande), representado com corpo humano e cabeça de íbis ou de cão (cinocéfalo), considerado o inventor da escrita, o juiz que pesava as almas dos mortos, o deus da magia. A este Thot-Mercúrio são atribuídos vários livros que tratam de astrologia, alquimia, teosofia, esoterismo, datados a partir do II séc. d..C. e agrupados sob o título geral de Corpus hermeticum. Para esta simbiose da mitologia grega com a egípcia e da divindade com a humanidade (o "deus escritor") contribuiu muito o advento do "evemerismo". Quase contemporâneo de Platão, o filósofo grego Evêmero (340–260) expunha a tese de que os deuses são apenas homens importantes que o temor e a ignorância colocaram num pedestal, atribuindo-lhes onipotência, ao longo de uma tradição cultural. Na Idade Média cristã, o mito de Hermes se encontra citado nos maiores artistas italianos. O poeta Dante Alighieri (Divina Comédia), tecendo um paralelo entre os planetas e as sete artes liberais, coloca a "dialética" na esfera de Mercúrio; Boccaccio (Genealogia dos Deuses) vê nele o intérprete dos segredos, aquele que dissipa as nuvens do espírito; Petrarca fala do mensageiro divino no seu poema épico África; o pintor Botticelli retrata o deus pagão no seu famoso quadro La Primavera, abrindo as nuvens para clarear a atmosfera. A figura de Hermes serve também como ligação entre a cultura greco-romana e a consciência muçulmana. No começo da "hégira" (a era maometana), historiadores e hagiógrafos identificam o deus grego com Idris do Corão. Idris-Hermes é chamado de "Triplo Sábio", como o Trimegisto egípcio, mas sua identidade é inapreensível, sendo um "profeta sem rosto". Enfim, mais do que grego, Hermes é uma configuração semítica: fenício, egípcio, judeu ou árabe, ele é um deus "intermediário", ligado a povos inclinados para o comércio e a mobilidade.