Dicionário de Cultura Básica/Andrógino

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ANDRÓGINO (mito do ser bissexuado, Hermafrodito) → HermesVênus

Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino.
Se deus é menino e menina, sou masculino e feminino.
(Baby Consuelo e Pepeu Gomes)

Do grego andrós (macho) + gyné (fêmea), o andrógino é o ser que reúne dentro de si o elemento feminino e masculino. O étimo latino da palavra "sexo" é o radical sec, do verbo secare (separar, cortar): o ato sexual junta o que está dividido em dois pedaços. O poeta Ovídio, em suas Metamorfoses, chama o andrógino de "Hermafrodito", juntando o nome de Hermes (Mercúrio) e Afrodite (Vênus). Conta a lenda que a ninfa Salmácida se apaixonou perdidamente pelo Hermafrodito, conseguindo dos deuses o privilégio de nunca mais se separar do amado, constituindo assim um ser da natureza dupla, contendo o princípio masculino e feminino. Os mitos sobre a androginia encontram-se espalhados em toda a cultura ocidental e nas religiões orientais. Segundo alguns exegetas da Bíblia, Adão e Eva, antes do pecado original, constituíam um único ser, sendo uma combinação harmoniosa do masculino e do feminino. Platão também pensara numa androginia primordial quando expôs sua teoria cosmogônica, centrada num Ovo ou Gigante antropomórfico, como origem do universo. Neste ovo gigantesco não existiriam os contrários: nem luz nem trevas, nem amor nem ódio, nem quente nem frio. O filósofo neoplatônico Leão Hebreu, no famoso livro Diálogos do Amor , publicado em 1536, sustenta a tese de que, em face das contradições existentes na narrativa bíblica sobre a criação do homem, é possível pensar numa interpretação esotérica: Deus teria criado, primeiro, o andrógino, o ser perfeito, bissexuado; depois, como punição pelo pecado de orgulho, teria havido a separação dos sexos, que causou ao ser humano sofrimento e morte. Esta vertente do mito bíblico tem um paralelo com o mito grego do ser bissexuado: Júpiter, o pai dos deuses, temendo que o Andrógino, por somar o princípio masculino com o feminino, pudesse ser uma ameaça para o seu poder, ordenou a Vulcano que, com um machado, cortasse seu corpo pelo meio, dividindo o masculino do feminino. Essa seria a explicação mítica da realidade psicológica da busca incessante da outra metade: o desejo do homem pela mulher, e vice-versa, visa reconstituir a primitiva unidade perdida.

Na cultura grega, o mito do andrógino está ligado às lendas sobre as Divindades Primordiais, à pré-história, por assim dizer, dos deuses do Olimpo (→ Mitologia). O poeta Hesíodo, na sua Teogonia, narra que a Terra, princípio cósmico original, único e andrógino, dá à luz, por partenogênese, a um filho, que é o seu oposto, o Ceú (Urano). A separação do princípio feminino (a Terra) do princípio masculino (o Céu) cria uma instabilidade cósmica, pois os dois sexos separados se desejam mutuamente, tentando restabelecer a primitiva unidade. A mãe Terra casa-se, então, com o filho Céu. Dessa união incestuosa nascem vários filhos, os Titãs, os Ciclopes e os Hecatônquiros, todas divindades poderosas. O Céu começa a sofrer da rivalidade dos filhos e ordena que a mãe Terra sufoque os novos seres ao nascerem. O infanticídio vem sendo consumado contra a vontade da Terra, que se vinga de Urano, instigando e ajudando o filho Cronos (Saturno, o Tempo), o mais jovem dos Titãs, a revoltar-se contra o pai. Traiçoeiramente, Cronos, armado de uma enorme foice, mutila o pai Céu, cortando-lhe os órgãos genitais. Em seguida, ocupa o lugar do pai no trono do universo, dando origem ao reinado do Tempo, até que seu filho Júpiter o destrone pelo mesmo motivo pelo qual Saturno tinha deposto Urano. A foice, instrumento agrícola, simboliza a luta da Terra, princípio feminino, protetor da vida, contra a tirania das forças superiores do Céu. No plano humano, a foice continua sendo o emblema da força dos trabalhadores, em constante luta contra os senhores das terras (questão agrária).

A separação Terra/Céu é a representação mítica da estrutura psicológica do eu/tu que, com o nascimento do filho, se completa na estrutura triádica, própria de qualquer sociedade humana: eu (mãe), tu (pai), ele (filho). A relação de conflito entre esses três elementos é a causa de crimes horríveis, como o infanticídio (o "tu" vê no "ele" um rival e tenta eliminá-lo), a castração e o parricídio (o "ele" mutila ou elimina o "tu") e o incesto (o "ele" substitui o tu no sentimento amoroso do "eu"). Assim, o mito sobre as Divindades Primordiais, inventado pela genialidade da mente grega para explicar as origens do universo, além de ser teogônico e cosmogônico, chega a ser também antropogônico e antropológico, como aparece em várias obras de arte, especialmente no mito de Édipo, transformado em tragédia por Sófocles e em complexo por Freud. O mito do andrógino simboliza a luta entre o corpo e a alma, verdadeiros irmãos inimigos, que pode ser encontrada em todo casal, condenado a viver em estado de guerra permanente.

O mito do andrógino é revivido em todas as formas de arte, ressaltando ora o pecado do orgulho, ora a auto-suficiência afetiva, que leva à assexualidade, ora a tentativa de explicar o distanciamento entre o homem e a mulher, a criatura e o criador, o tempo e a eternidade. Encontra-se, além de nas obras dos autores já citados, nas Metamorfoses de Ovídio, na poesia alegórica de Dante (Divina Comédia), no Orlando Furioso de Ariosto, no Adônis de Marino, no romance ''História cômica dos Estados e Impérios do Sol ,do escritor francês Savinien de Cyrano de Bergerac, no Tratado de Narciso, de André Gide, nos romances de Balzac, em À Procura do Tempo Perdido de Proust, no romance de Michel Tournier, Os Meteoros (1975), onde o narrador, referindo-se ao pensamento de Platão, diz que Zeus ameaçara os homens, já cortados em dois, a cortar mais ainda, se persistissem em seu orgulho: "Se a imprudência continuar, eu cortaria ainda em dois, de maneira a fazê-los andar com uma perna só". Um crítico e ficcionista contemporâneo, Dan Brown (O Código da Vinci), recorda que os antigos egípcios celebravam um ritual erótico para comemorar o poder reprodutivo da mulher. Cerimônia a que os gregos deram o nome de Hieros Gamos, em que o orgasmo era visto como uma oração. A concepção de sexo como pecado é bem posterior, quando as igrejas, todas elas, ao assumirem o poder político, começaram a incutir o sentimento depreciativo do sexo, associando-lo a inspirações demoníacas. A cópula do homem e da mulher, instinto divino, pois natural, e manifestação da mítica androginia, passa a ser permitida apenas para a conservação da espécie, condenando-se o prazer. Afirma Brown: "o uso do sexo pela humanidade para comungar diretamente com Deus representava uma séria ameaça à base de poder católica. Aquilo deixava a Igreja de fora, debilitando o status que ela mesma se atribuíra de único caminho para Deus. Por motivos óbvios, a Igreja fez de tudo para demonizar o sexo e reinterpretá-lo como um ato pecaminoso e repulsivo. Outras religiões importantes fizeram o mesmo". Basta pensar em seitas evangélicas, que proíbem até a dança de salão para evitar a aproximação dos corpos de moças e rapazes, ou nas regiões muçulmanas onde se corta o clitóris das meninas para que não sintam o prazer sexual. Os antigos romanos, para enfraquecerem seus inimigos políticos, usavam o lema divide et impera: é preciso dividir para dominar. A religião faz a mesma coisa: separa o masculino do feminino para ter domínio sobre a humanidade.