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Anexo:Imprimir/Mensagem (Fernando Pessoa, 1934)

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FERNANDO PESSOA

 

MENSAGEM


 

LISBOA 1934

PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA

44 RUA AUGUSTA 54

MENSAGEM

FERNANDO PESSOA


MENSAGEM




LISBOA 1934
PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
44 RUA AUGUSTA 54

BENEDICTUS DOMINUS DEUS
NOSTER QUI DEDIT NOBIS
SIGNUM.

PRIMEIRA PARTE

BRASÃO

BELLUM SINE BELLO.

I.

OS CAMPOS

PRIMEIRO

O DOS CASTELLOS



A Europa jaz, posta nos cotovellos:
De Oriente a Occidente jaz, fitando,
E toldam-lhe romanticos cabellos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovello esquerdo é recuado;
O direito é em angulo disposto.
Aquelle diz Italia onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se appoia o rosto.

Fita, com olhar sphyngico e fatal.
O Occidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.

Vendem os Deuses o que dão.
A gloria compra-se a desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem basta o que lhe basta!
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Christo definiu :
Assim o oppoz à Natureza
E Filho o ungiu

II.

OS CASTELLOS

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memoria em nós do instincto teu.

Nação porque reincarnaste,
Povo porque resuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

Todo começo é involuntario.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vario
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»

Ergueste-a, e fez-se.

As nações todas são mysterios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de imperios,
Vella por nós!

Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por elle resa!

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instincto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não ha o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!

Pae, foste cavalleiro.
Hoje a vigilia é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infieis vençam,
A benção como espada,
A espada como benção!

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silencio murmuro comsigo:
É o rumor dos pinhaes que, como um trigo
De Imperio, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
É o som presente d'esse mar futuro,
É a voz da terra anciando pelo mar.

O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a gloria e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repelle, eterna chamma,
A sombra eterna.

Que enigma havia em teu seio
Que só genios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto serio,
Princeza do Santo Gral,
Humano ventre do Imperio,
Madrinha de Portugal!

III.

AS QUINAS

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.

Deu-me Deus o seu gladio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Poz-me as mãos sobre os hombros [1] e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gladio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

Claro em pensar, e claro no sentir,
E claro no querer;
Indifferente ao que ha em conseguir
Que seja só obter;
Duplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —

Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida.
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à idéa tida.
Tudo mais é com Deus!

QUARTA

D. JOÃO. INFANTE DE PORTUGAL



Não fui alguem. Minha alma estava estreita
Entre tam grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;

Porque é do portuguez, pae de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.

Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;:
Porisso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que ha.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura o que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadaver addiado que procria?

IV.

A COROA

Que aureola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
E' Excalibur, a ungida,
Que o Rei Arthur te deu.

Sperança consummada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!

V.

O TIMBRE

Em seu throno entre o brilho das espheras,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O unico imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.

Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontorio uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.

Seu formidavel vulto solitario
Enche de estar presente o mar e o céu,
E parece temer o mundo vario
Que elle abra os braços e lhe rasgue o véu.

De pé, sobre os paizes conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte,
Tam poderoso que não quer o quanto
Póde, que o querer tanto
Calcára mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Trez imperios do chão lhe a Sorte apanha.
Creou-os como quem desdenha.

SEGUNDA PARTE

MAR PORTUGUEZ

POSSESSIO MARIS.

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quiz que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou creou-te portuguez.
Do mar e nós em ti nos deu signal.
Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

O' mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mysterio,
Abria em flor o Longe, e o Sul siderio
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longinqua costa —
Quando a nau se approxima ergue-se a encosta
Em arvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores;
E, no desembarcar, ha aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as fórmas invisiveis
Da distancia imprecisa, e, com sensiveis
Movimentos da esprança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte—
Os beijos merecidos da Verdade.

O exforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para deante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao immenso e possivel oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é portuguez.

E a Cruz ao alto diz que o que me ha na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou trez vezes,
Voou trez vezes a chiar,
E disse, «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou trez vezes,
Trez vezes rodou immundo e grosso,

«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguem me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»

Trez vezes do leme as mãos ergueu [2]
Trez vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de temer trez vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguem o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu hombro.

Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a elles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz d'elle historia.
E porisso a sua gloria
É uma justa aureola dada
Por uma luz emprestada.

Com duas mãos — o Acto e o Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o facho tremulo e divino
E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Occidente o véu rasgou,
Foi alma a Sciencia e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.

No valle clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras disformes e descompostas
Em clarões negros do valle vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titans, os filhos da Terra,
Que dançam da morte do marinheiro
Que quiz cingir o materno vulto —
Cingil-o, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.

Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda commanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas elles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do valle pelas encostas
Dos mudos montes.

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o odio da sua guerra
E pasmam. Pelo valle onde se ascende aos céus
Surge um silencio, e vae, da nevoa ondeando os véus.
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-o, ao durar, os medos, hombro a hombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cahe-lhe, e em extase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abysmo à alma do Argonauta.

O' mar salgado, quanto do teu sal
São lagrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Imperio,
Foi-se a ultima nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mysterio.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a fórma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlantica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.

Não sei a hora, mas sei que ha a hora.
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mysterio.
Surges ao sol em mim, e a nevoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Imperio.

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silencio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chamma, que a vida em nós creou,
Se — ainda ha vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a occultou:
A mão do vento póde erguel-a ainda.

Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ancia—,
Com que a chamma do exforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distancia—
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

TERCEIRA PARTE

O ENCOBERTO

PAX IN EXCELSIS.

I.

OS SYMBOLOS

Sperae! Cahi no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervallo em que esteja a alma immersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É o que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz —
Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.

Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será theatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grecia, Roma, Christandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vae toda edade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!

Vem, Galaaz com patria, erguer de novo,
Mas ja no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucharistia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,
Excalibur do Fim, em geito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!

Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguem que nos falla,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ella nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter logar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos dispertando,
Cala a voz, e ha só o mar.

Que symbolo fecundo
Vem na aurora anciosa?
Na Cruz morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que symbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Christo.

Que symbolo final
Mostra o sol já disperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

II.

OS AVISOS

Sonhava, anonymo e disperso,
O Imperio por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Christo

Não foi nem santo nem heroe,
Mas Deus sagrou com Seu signal
Este, cujo coração foi
Não portuguez mas Portugal.

O céu strella o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à gloria tem,
Imperador da lingua portugueza,
Foi-nos um céu tambem.

No immenso espaço seu de meditar,
Constellado de fórma e de visão,
Surge, prenuncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do ethereo.
E' um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Imperio
Doira as margens do Tejo.

Screvo meu livro à beira-magua.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de agua.
Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar
Meus dias vacuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Christo
De a quem morreu o falso Deus,
E a dispertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras portuguez,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anceio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da nevoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?

III.

OS TEMPOS

A nau de um d'elles tinha se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a nevoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à patria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.

Como a um captivo, o ouvem a passar
Os servos do solar.
E, quando o vêem, vêem a figura
Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ancia
Pitando a prohibida azul distancia.

Senhor, os dois irmãos do nosso Nome—
O Poder e o Renome —
Ambos se foram pelo mar da edade
À tua eternidade;
E com elles de nós se foi
O que faz a alma poder ser de heroe,

Queremos ir buscal-os, d'esta vil
Nossa prisão servil:
É a busca de quem somos, na distancia
De nós; e, em febre de ancia,
A Deus as mãos alçamos.

Mas Deus não dá licença que partamos.

Que jaz no abysmo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.

Isto, e o mysterio de que a noite é o fausto...
Mas subito, onde o vento ruge,
O relampago, pharol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar scuro struge.

Que costa é que as ondas contam
E se não póde encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?

Ilha próxima e remota,
Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Póde encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se á vista o mar é sósinho?

Haverá rasgões no espaço
Que dêem para outro lado,
E que, um d'elles encontrado,
Aqui, onde ha só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O paiz afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?

O mostrengo que está no rim do mar
Veio das trevas a procurar
A madrugada do novo dia,
Do novo dia sem acabar;
E disse, «Quem é que dorme a lembrar
Que desvendou o Segundo Mundo,
Nem o Terceiro quer desvendar?»

E o som na treva de elle rodar
Faz mau o somno, triste o sonhar.
Rodou e foi-se o mostrengo servo
Que seu senhor veio aqui buscar.
Que veio aqui seu senhor chamar —
Chamar Aquelle que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fatuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!



Valete, Fratres.

INDICE

PRIMEIRA PARTE 
BRASÃO
I. - OS CAMPOS



II. - OS CASTELLOS


PRIMEIRO: 
SEGUNDO: 
QUARTO: 
SEXTO: 
SEPTIMO (I): 


III. - AS QUINAS



IV. — A COROA


V. — O TIMBRE


A CABEÇA DO GRYPHO: 
UMA ASA DO GRYPHO: 
A OUTRA ASA DO GRYPHO: 


SEGUNDA PARTE 
MAR PORTUGUEZ


III. 
XII. 


TERCEIRA PARTE 
O ENCOBERTO
I. - OS SYMBOLOS


PRIMEIRO: 
TERCEIRO: 
QUINTO: 


II. - OS AVISOS


PRIMEIRO: 


III. - OS TEMPOS


PRIMEIRO: 
SEGUNDO: 
TERCEIRO: 
QUARTO: 
QUINTO: 

COMPOSTO E IMPRESSO
EM LISBOA, NAS OFFICINAS
DA EDITORIAL IMPÉRIO,
LTD., 151-153
RUA DO SALITRE, DURANTE
O MÊS DE OUTUBRO
DO ANNO DE
1934, DA ERA DO
CHRISTO DE NAZARETH.

  1. Na impressão original consta ombros; texto corrigido conforme a errata.
  2. Texto corrigido conforme a errata.