Anexo:Imprimir/Tratado da Terra do Brasil

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Sumário[editar]

Tratado Primeiro[editar]

Tratado Segundo[editar]

TRATADO DA TERRA DO BRASIL, NO QUAL SE CONTEM A INFORMAÇÃO DAS COUSAS QUE HÁ NESTAS PARTES, FEITO POR PERO DE MAGALHÃES
Ao muito alto e Sereníssimo Príncipe dom Henrique, Cardeal, Infante de Portugal.

Posto que os dias passados apresentei outro sumário da terra do Brasil a el-Rei nosso Senhor, foi por cumprir primeiro com esta obrigação de vassalo que todos devemos a nosso rei: e por esta razão me pareceu cousa muito necessária (muito Alto e Sereníssimo Senhor) oferecer também este a V. A. a quem se devam referir os louvores e acrescentamento das terras que nestes reinos florescem: pois sempre desejou tanto aumentá-las, e conservar seus súditos e vassalos em perpétua paz. Como eu isto entenda, e conheça quão aceitos são os bons serviços a V. A. que ao reino se fazem imaginei comigo que podia trazer destas partes com que desse testemunho de minha pura tenção: e achei que não se podia de um fraco homem esperar maior serviço (ainda que tal não pareça) que lançar mão desta informação da terra do Brasil (cousa que até agora não empreendeu pessoa alguma) para que nestes reinos se divulgue sua fertilidade e provoque as muitas pessoas pobres que se vão viver a esta

Pero de Magalhães

Humilde Vassalo de S. A.

Minha atenção não foi outra neste sumário (discreto e curioso leitor) senão denunciar em breves palavras a fertilidade e abundância da terra do Brasil, para que esta fama venha à notícia de muitas pessoas que nestes reinos vivem com pobreza, e não duvidem escolhê-la para seu remédio por pobres e desamparados que sejam. E assim cada vez se vai fazendo mais próspera, e depois que as terras viçosas se forem povoando (que agora estão desertas por falta de gente) hão de se fazer nelas grossas fazendas como já são feitas nas que possuem os moradores da terra, e também se espera desta província que por muito tempo floresça tanto na riqueza como as Antilhas de Castela por que é certo ser em si a terra muito rica e haver nela muitos metais, os quais até agora se não descobrem ou por não haver gente na terra para cometer esta empresa, ou também por negligência dos moradores que se não querem dispor a esse trabalho: qual seja a causa por que o deixam de fazer não sei. Mas permitirá nosso Senhor que ainda em nossos dias se descubram nela grandes tesouros, assim para serviço a aumento de S. A., como pelo proveito de seus vassalos que o desejam servir.

Esta costa do Brasil está pera a parte do Ocidente, corre-se de norte e sul. Da primeira povoação até derradeira há trezentas e cinquenta léguas. São oito capitanias, todas têm portos muito seguros onde podem entrar quaisquer naus por grandes que sejam. Não há pela terra dentro povoações de portugueses por causa dos índios que não no consentem, e também pelo socorro e tratos do reino lhes é necessário estarem junto ao mar por terem comunicação de mercadorias. E por este respeito vivem todos junto da costa.

A povoação da primeira capitania, e mais antiga está numa ilha que se chama Tamaracá pegada com a terra firme; tem três léguas de comprido e duas de largura. Tem trinta e cinco léguas de terra pela costa pelo o norte. É de dona Jerônima de Albuquerque, mulher que foi de Pero Lopes de Sousa, na qual tem posto capitão de sua mão. Há nela um engenho de açúcar e agora se faz dois novamente e muito pau do Brasil e algodão. Pode ter até cem vizinhos. Há nesta capitania muitas e boas terras para se povoarem e fazerem nelas fazendas.

A Capitania de Pernambuco está cinco léguas de Tamaracá, pelo o sul em altura de oito graus, da qual é capitão e governador Duarte Coelho de Albuquerque. Tem duas povoações, a principal se chama Olinda, a outra Guaraçu, que está quatro léguas pela terra dentro. Haverá nesta capitania mil vizinhos. Tem vinte e três engenhos de açúcar posto que destes três ou quatro não são ainda acabados.

Alguns moem com bois, a estes chamam trapiches, fazem menos açúcar que os outros: mas a maior parte dos engenhos do Brasil moem com água. Cada engenho destes um por outro, faz três mil4 arrobas cada ano, nesta capitania se fazem mais açúcares que nas outras, por que houve ano que passaram de cinquenta mil arrobas, ainda que o rendimento deles não é certo, são segundo as novidades e os tempos que se oferecem. Esta se acha uma das ricas terras do Brasil, tem muitos escravos índios que é a principal fazenda da terra. Daqui os levam e compram para todas as outras capitanias, por que há nesta muitos, e mais baratos que em toda a costa: há muito pau do Brasil e algodão de que enriquecem os moradores desta capitania. o porto onde os navios entram5 está uma légua da povoação Olinda; servem-se pela praia e também por um rio pequeno que vai dar junto da mesma povoação. A esta capitania vão cada ano mais navios do reino que a nenhuma das outras. Há nela um mosteiro de padres da Companhia de Jesus.

Rios[editar]

Há dous rios caudais até a Bahia de Todos os Santos; um se chama São Francisco, está em dez graus e meio, o qual entra no mar com tanta fúria que vinte léguas pelo mesmo mar correm suas águas. Outro rio está em onze graus e dois terços que se chama o rio Real, também é muito grande e correm suas águas pelo mar.

A capitania da Bahia de Todos os Santos está a cem léguas de Pernambuco em altura de treze graus. Terra d’el-Rei nosso Senhor, onde residem os governadores e bispo e ouvidor-geral de toda a costa. Esta é a terra mais povoada de portugueses que há no Brasil. tem três povoações, a principal é a Cidade de Salvador. A outra se chama vila velha que está junto da barra. Esta povoação foi a primeira que houve nesta capitania: depois tomé de Sousa, sendo governador, edificou esta Cidade de Salvador mais adiante meia légua ao longo da Bahia por ser lugar mais conveniente e proveitoso para os moradores da terra. Quatro léguas pela terra dentro está outra que se chama Paripe. pode haver nesta capitania mil e cem vizinhos. tem dezoito engenhos, alguns se fazem novamente. Também se tira deles, muito açúcar, ainda que os moradores se lançam mais ao algodão que a canas-de-açúcar por que se dá melhor na terra.

Dentro da cidade está um mosteiro de padres da Companhia de Jesus, na qual têm colégio onde ensinam latim e casos de consciência. Afora este há cinco igrejas pela terra dentro entre os índios forros, onde residem alguns padres para fazerem cristãos e casarem os mesmos índios por não estarem amancebados.

Esta capitania tem uma baía muito grande e formosa, há três léguas de largura, e navega-se quinze por ela dentro, tem muitas ilhas de terras muito viçosas que dão infinito algodão; divide-se em muitas partes esta baía: e tem muitos braços e enseadas dentro. os moradores da terra todos se servem por ela com barcos pelas suas fazendas.

Rios[editar]

Doze léguas desta Bahia de todos os Santos está um rio que se chama Tinharé, onde se recolhem muitas embarcações que passam pera as outras capitanias. Três léguas por ele dentro está um engenho de um Bastião de ponte, junto do qual estão muitas terras perdidas por falta de moradores, das quais se conseguiria muito proveito se as povoassem. Mais avante, seis léguas está um rio que se chama Camamu em treze graus e meio6 no qual podem entrar quaisquer naus seguramente quatro, cinco léguas por ele dentro.

Ao longo deste rio há terras muito viçosas e muitas águas para se poder fazer engenhos de açúcar, as quais também se perdem por não haver gente que as vá povoar. têm dentro algumas ilhas de terras mui grossas e acomodadas para se fazerem nelas muita fazenda. nesse mesmo rio há muito peixe em extremo, e junto dele muita infinita caça de porcos e veados. Aqui se pode fazer uma povoação, onde os homens vivam muito abastados e façam muitas fazendas. Há outro que se chama o rio das Contas, está em quatorze graus e meio, mas não é tão grande, ainda que também entram nele algumas embarcações. Em todos estes rios há muita abundância de peixes e de caça.

A capitania dos Ilhéus está a trinta léguas da Bahia de Todos os Santos em quatorze graus e dous terços; é de Francisco Giraldes, na qual tem posto capitão de sua mão. Pode haver nela duzentos vizinhos. Tem um rio onde os navios entram, o qual está junto da povoação, divide-se em muitas partes pela terra dentro, servem-se os moradores por ele pera suas fazendas em almadias. Há nesta capitania oito engenhos de açúcar. Dentro da povoação está um mosteiro de padres da Companhia de Jesus que agora se faz novamente.

Sete léguas da mesma povoação pela terra dentro está uma lagoa doce que tem três léguas de comprido e três de largo e tem dez, quinze braças de fundo e daí pera cima. Sai dela um rio pequeno pelo qual vão lá ter barcos. Tem esta lagoa um local neste rio, tão estreito,7 que apenas cabe um barco por ele, e depois que anda dentro quase não sabe determinar por onde entrou. Tem tanta abundância d’água que podem andar nela quaisquer naus, por grandes que sejam, à vela; e assim quando venta muito, alevantam-se ali ondas tão furiosas como se fosse no meio do mar com tormenta. Tem muita infinidade de peixes grandes e pequenos. Criam-se nela muitos peixes-bois, os quais têm o focinho como o de boi e dois cotos com que nadam à maneira de braços; não têm nenhuma escama nem outra feição de peixe senão o rabo. Matam-nos com arpões, são tão gordos e tamanhos que alguns pesam trinta, quarenta arrobas. É um peixe muito saboroso e totalmente parece carne e assim tem o gosto dela; assado parece lombo de porco ou de veado, coze-se com couves, e guisa-se como carne, nem pessoa alguma o come que o tenha por peixe, salvo se o conhecer primeiro. As fêmeas têm duas mamas pelas quais mamam os filhos, criam-se com leite (cousa que se não acha noutro peixe algum): também há destes em algumas baías e rios desta costa e posto que se criem no mar costumam beber água doce, por isso acodem muitos a esta lagoa ou a parte onde algum ribeiro se meta no mar. Também há muitos tubarões nesta lagoa, e lagartos e muitas cobras. E acham-se nela outros monstros marinhos de diversas maneiras. Há muitas terras e mui viçosas ao redor dela, e muita caça; e neste rio que sai da lagoa muita fertilidade de peixe. Finalmente que uma das abastadas terras de mantimentos que há no Brasil é esta Capitania dos Ilhéus.

Pelas terras desta capitania até junto do Espírito Santo, se acha uma certa nação de gentio que veio do sertão há cinco ou seis anos, e dizem que outros índios contrários destes, vieram sobre eles a suas terras, e os destruíram todos e os que fugiram são estes que andam pela costa. Chamam-se aimorés, a língua deles é diferente dos outros índios, ninguém os entende, são eles tão altos e tão largos de corpo que quase parecem gigantes; são mui alvos, não têm parecer dos outros índios na terra nem têm casas nem povoações onde morem, vivem entre os matos como brutos animais; são mui forçosos em extremo, trazem uns arcos mui compridos e grossos conforme a suas forças e as frechas da mesma maneira. Estes índios têm feito muito dano aos moradores depois que vieram a esta costa e mortos alguns portugueses e escravos, porque são inimigos de toda gente. Não pelejam em campo nem têm ânimo para isso, põem-se entre o mato junto de algum caminho e tanto que passa alguém atiram-lhe ao coração ou a parte onde o matem e não despendem frecha que não na empreguem. Finalmente, que não têm rosto direito a ninguém, senão a traição fazem a sua. As mulheres trazem uns paus tostados com que pelejam. Estes índios não vivem senão pela frecha, seu mantimento é caça, bichos e carne humana, fazem fogo debaixo do chão por não serem sentidos nem saberem onde andam. Muitas terras viçosas estão perdidas junto desta capitania, as quais não são possuídas dos portugueses por causa destes índios. Não se pode achar remédio para os destruírem porque não têm morada certa, nem saem nunca dentre o mato: e assim quando cuidamos que vão fugindo ante quem os persegue, então ficam atrás escondidos e atiram aos que passam descuidados. Desta maneira matam alguma gente. Todos quantos índios há no Brasil são seus inimigos e temem-nos muito, porque há gente atraiçoada. E assim onde os há nenhum morador vai a sua fazenda por terra que não leve quinze vinte escravos consigo de arcos e flechas. Estes aimorés são mui feroz e cruéis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente. Não andam todos juntos, derramam-se por muitas partes, e quando se querem ajuntar assobiam como pássaros ou como bugios, de maneira que uns aos outros se entendem e se conhecem. Também os portugueses matam alguns deles, e têm muitos destruídos, principalmente nesta Capitania dos Ilhéus, e guardam-se muito deles, porque já sabem suas manhas e conhecem mui bem sua malícia.

A Capitania de Porto Seguro está trinta léguas dos Ilhéus em dezasseis graus e meio. É do Duque d’Aveiro, na qual tem posto capitão de sua mão. Tem três povoações, a principal é Porto Seguro, que está junto do porto onde os navios entram. Outra está daí uma légua que se chama Santo Amaro; outra Santa Cruz, que está daí quatro léguas pera o norte. Pode haver nesta capitania duzentos e vinte vizinhos. Tem cinco engenhos de açúcar. Há nela um mosteiro de padres da Companhia de Jesus. Também chegam a esta capitania os aimorés e fazem nela dano aos moradores como nos Ilhéus. É terra mui abastada de caça, e de peixes que matam no rio que está junto da povoação.

A Capitania do Espírito Santo está cinquenta léguas de Porto Seguro em vinte graus, da qual é Capitão e governador Vasco Fernandes Coutinho. Tem um engenho somente, tira-se dele o melhor açúcar que há em todo o Brasil. Pode ter até cento e oitenta vizinhos. Há dentro da povoação um mosteiro de padres da Companhia de Jesus. Tem um rio mui grande onde os navios entram, no qual se acham mais peixes-bois que noutro nenhum rio desta costa. No mar junto desta Capitania matam grande cópia de peixes grandes e de toda maneira, e também no mesmo rio há muita abundância deles. Nesta capitania há muitas terras e mui largas onde moradores vivem mui abastados assim de mantimentos da terra, como de fazendas. E quando se tomou a fortaleza do Rio de Janeiro desta mesma Capitania do Espírito Santo sustentaram toda a gente e proveram sempre de mantimentos necessários enquanto estiveram na terra os que defendiam.

Rios[editar]

Avante desta capitania em altura de vinte e um graus está o frio de Paraíba, este é mui grande e formoso e tem infinito peixe. Junto do Cabo Frio em altura de vinte e dois graus está a Baía formosa, na qual se pode fazer uma capitania de muitos vizinhos, onde também se perdem muitas terras por falta de gente. Outros muitos rios há nestas partes que deixo de escrever por serem pequenos e não se fazer tanto caso deles, nem minha tensão foi outra senão tratar destes mais notáveis, onde se podem fazer algumas povoações e conseguir proveito das terras viçosas que por esta costa estão desertas.

A Capitania do Rio de Janeiro, Cidade de São Sebastião, está sessenta léguas do Espírito Santo em vinte e três graus e um terço, terra d’el-Rei Nosso Senhor. Pode ter pouco mais ou menos cento e quarenta vizinhos, agora se começa de povoar novamente. Esta é a mais fértil e viçosa terra que há no Brasil. Tem terras mui singulares e muitas águas para engenhos de açúcar. Há nela muito infinito pau do brasil, de que os moradores da terra fazem muito proveito.

Esta capitania tem um rio mui largo e formoso; divide-se dentro em muitas partes, e quantas terras estão ao longo dele se podem aproveitar, assim pera roças de mantimentos como pera canas-de-açúcar e algodões, porque são mui viçosas e melhores de quantas há por toda esta costa. Há nesta cidade um mosteiro de padres da Companhia de Jesus, os quais também aumentaram muito esta terra e desejam muito vê-la povoada de muitos moradores, porque são como digo as terras desta capitania mui largas, e sabem quão proveitosas são para toda gente pobre que as for possuir. E por tempo hão de se fazer nelas grandes fazendas: e os que lá forem viver com esta esperança não se acharão enganados.

A Capitania de São Vicente está sessenta léguas do Rio de Janeiro em vinte e quatro graus, é de Pero Lopes de Sousa, na qual tem posto capitão de sua mão: esta e o Rio de Janeiro são as mais frias terras que há no Brasil, géia nelas em tempo de inverno quase como neste Reino.

Nesta capitania se deu já trigo, mas não no querem semear por haver na terra outros mantimentos de menos custo. Tem três povoações, e uma fortaleza que está numa ilha junto da terra firme quatro léguas para o Norte que se chama Britioga; daqui defendem esta capitania dos índios, e franceses com artilharia que há na mesma fortaleza. A principal povoação se chama Santos, onde está um mosteiro de padres da Companhia de Jesus. A outra mais avante ao longo do rio uma légua é São Vicente; também há nela outro mosteiro de padres da Companhia. Pela terra dentro dez léguas edificarão os mesmos padres uma povoação entre os índios que se chama – o Campo, na qual vivem muitos moradores, a maior parte deles são mamelucos filhos de portugueses e de índias da terra. Aqui e nas mais capitanias têm feito estes padres da Companhia grande fruto e fazem com que a terra vá em muito crescimento, trabalham por fazer cristãos a muitos índios e metem muitas pazes entre os homens; também fazem restituir as liberdades de muitos índios que alguns moradores da terra têm mal resgatados: assim que sempre acodem aos que se desviam do serviço de Deus e de S.A.

Haverá nesta capitania quinhentos vizinhos, tem quatro engenhos de açúcar e muitas terras viçosas de que os moradores tiram muitos mantimentos e fazenda e vivem todos mui abastados. Esta é a última capitania que há nestas partes do Brasil...

TRATADO SEGUNDO
DAS COISAS QUE SÃO GERAIS POR TODA COSTA DO BRASIL

Os moradores desta costa do Brasil todos têm terras de sesmarias dadas e repartidas pelos Capitães da terra, e a primeira cousa que pretendem alcançar, são escravos para lhes fazerem e granjearem suas roças e fazendas, porque sem eles não se podem sustentar na terra: e uma das cousas por que o Brasil não floresce muito mais, é pelos escravos que se alevantaram e fugiram para suas terras e fogem cada dia: e se estes índios não foram tão fugitivos e mudáveis, não tivera comparação a riqueza do Brasil. As fazendas donde se consegue mais proveito são açúcares, algodões e pau do Brasil, com isto fazem pagamentos aos mercadores que deste Reino lhes levam fazenda porque o dinheiro é pouco na terra, e assim vendem e trocam uma mercadoria por outra em seu justo preço. Quantos moradores há na terra têm roças de mantimentos e vendem muitas farinhas de pau uns aos outros, de que também tiram muito proveito.

O mais gado que há nesta costa são bois e vacas, deste há muita abundância em todas as capitanias, porque são as ervas muitas, e sempre a terra está coberta de verdura, ainda que em Porto Seguro não se querem dar nenhumas vacas senão o primeiro ano, no qual engordam tanto que do muito viço dizem que morrem todas. Cabras e ovelhas há muito poucas até agora, começam de multiplicar novamente; as cabras se dão melhor que as ovelhas e parem dous, três filhos de cada vez. Fazem os moradores da terra muito por esta criação. Também há éguas e cavalos, mas ainda são caros por não haver muitos na terra, levamnos de Cabo Verde pera lá e dão-se muito bem na terra.

Acha-se também por esta costa muito âmbar que o mar de si lança fora as mais das vezes quando faz tormenta e são águas vivas, então há muitas pessoas que mandam seus escravos pela praia buscá-la nos lugares onde costuma sair mais vezes, e muitas vezes acontece enriquecerem alguns assim do que acham seus escravos como do que resgatam aos índios forros. Segundo a dita e ventura de cada um. Os panos que nesta terra se fazem são de algodão, todo o mais vai deste Reino. E assim há também muitos escravos de Guiné: estes são mais seguros que os índios da terra porque nunca fogem nem têm pera onde. Há também muita criação de porcos e muitas galinhas, adens e patos da terra. Estas são as fazendas que possuem os moradores do Brasil.

As pessoas que no Brasil querem viver, tanto que se fazem moradores da terra, por pobres que sejam, se cada um alcançar dous pares ou meia dúzia de escravos (que pode um por outro custar pouco mais ou menos até dez cruzados) logo tem remédio para sua sustentação; porque uns lhe pescam e caçam, outros lhe fazem mantimentos e fazenda e assim pouco a pouco enriquecem os homens e vivem honradamente na terra com mais descanso que neste Reino, porque os mesmos escravos índios da terra buscam de comer pera si e pera os senhores, e desta maneira não fazem os homens despesa com seus escravos em mantimentos nem com suas pessoas.

A maior parte das camas do Brasil são redes, as quais armam numa casa com duas cordas e lançam-se nelas a dormir. Este costume tomaram os índios da terra.

Os moradores destas capitanias tratam-se muito bem e são mais largos que a gente deste Reino, assim no comer como no vestir de suas pessoas, e folgam de ajudar uns aos outros com seus escravos e favorecem muito os pobres que começam a viver na terra. Isto se costuma nestas partes: e fazem outras muitas obras por onde todos têm remédio de vida e nenhum pobre anda pelas portas a pedir como neste Reino.

Há nestas partes do Brasil seis meses de verão e seis de inverno: os de verão são de setembro até fevereiro, os de inverno de março até agosto. Assim que quando nesta província do Brasil é inverno cá nestes Reinos é verão, e os dias quase sempre são tamanhos como as noites, uma hora somente crescem e minguam. Cursam sempre ventos gerais, no inverno seis meses sul e sueste, no verão nordeste. Sempre correm as águas com o vento por costa, e por isso se não pode navegar de umas capitanias pera outras se não esperarem por monções para irem com as águas e com o vento, porque cursam como digo seis meses duma parte e seis doutra, e portanto são muitas vezes as viagens vagarosas, e quando vão contra tempo as embarcações correm muito risco, arribam as mais das vezes ao porto donde saíram. Mete-se no meio e na força deste verão, oito dias ante os Santos, uma tormenta de vento sul que dura uma semana, este é mui certo e geral, nunca se acha que naqueles dias faltasse. Muitas embarcações esperam por este vento e fazem com ele suas viagens. Esta terra sempre é quente quase tanto no inverno como no verão. A viração do vento geral entra ao meio-dia pouco mais ou menos, é tão fresco este vento e tão frio que não se sente mais calma, e ficam recreados os corpos das pessoas.

Dura este vento do mar até de madrugada, torna dali a calmar outra vez por causa dos vapores da terra que o apagam e quando amanhece está o céu todo coberto de nuvens e as mais das manhãs chove nestas partes e a terra fica toda coberta de névoa, porque tem muitos arvoredos e chama a si todos estes humores. E tanto que este geral acalma começa a ventar da terra um vento brando que nela se gera, até que o Sol com sua quentura o torna apagar e alimpa tudo outra vez e faz ficar o dia claro e sereno, entra logo o vento do mar acostumado. Este vento da terra é mui perigoso e doentio; e se acerta de permanecer alguns dias, morre muita gente assim portugueses como índios da terra; mas quer Nosso Senhor que aconteça isto poucas vezes; e tirado este mal, é esta terra mui salutífera e de bons ares, onde as pessoas se acham bem dispostas e vivem muitos anos, principalmente os velhos têm melhor disposição e parecem que tornam a renovar, e por isso alguns se não querem tornar às suas pátrias, temendo que nelas se lhes ofereça a morte mais cedo. Os ares de pela manhã são mui frescos e sadios; muitas pessoas se costumam alevantar cedo por que se aproveitem deles enquanto têm esta virtude. A terra em si é lassa e desleixada; acham-se nela os homens algum tanto fracos e minguados das forças que possuem cá neste Reino por respeito da quentura e dos mantimentos que nela usam, isto é, enquanto as pessoas são novas na terra, mas depois que por tempo se acostumam ficam tão rijos e bem dispostos como se aquela terra fora sua mesma pátria. Manda-se dar nesta terra aos enfermos carne de porco, pera qualquer doença é proveitosa, e não faz mal a nenhuma pessoa; o peixe também tem a mesma qualidade e põe muita sustância aos doentes. Esta terra é mui fértil e viçosa, toda coberta de altíssimos e frondosos arvoredos, permanece sempre a verdura nela inverno e verão; isto causa chover-lhe muitas vezes e não haver frio que ofenda ao que produz a terra. Há por baixo destes arvoredos grande mato e mui basto e de tal maneira está escuro e cerrado em partes que nunca participa o chão da quentura nem da claridade do sol, e assim está sempre úmido e minando água de si. As águas que na terra se bebem são mui sadias e saborosas, por muita que se beba não prejudica a saúde da pessoa, a mais dela se torna logo a suar e fica o corpo desalivado e são. Finalmente que esta terra tão deleitosa e temperada que nunca nela se sente frio nem quentura sobeja.

Nestas partes do Brasil não semeiam trigo nem se dá outro mantimento algum deste reino, o que lá se come em lugar de pão é farinha de pau: esta se faz da raiz duma planta que se chama mandioca, a qual é como inhame. E tanto que se tira de baixo da terra, está curtindo-se em água três, quatro dias, e depois de curtida pisam-na ou relam-na muito bem e espremem-na daquele sumo de tal maneira que fique bem escorrida, porque é aquela água que sai dela tão peçonhenta, que qualquer pessoa ou animal que a beber logo naquele instante morre: assim que depois de a terem deste modo curada, põem um alguidar grande sobre o fogo e como se aquenta, botam aquela mandioca nele e por espaço de meia hora está naquela quentura cozendo-se, dali a tiram, e fica temperada pera se comer. Há todavia farinha de duas maneiras: uma se chama de guerra, e outra fresca, a de guerra é muito seca, fazem-na desta maneira para durar muito e não se danar; a fresca é mais branda e tem mais sustância; finalmente que não é tão áspera como a outra, mas não dura mais que dois, três dias; como passa daqui logo se dana. Desta mesma mandioca fazem outra maneira de mantimentos, que se chamam beijus, são mui alvos e mais grossos que obréias, destes usam muito os moradores da terra porque são mais saborosos e de melhor digestão que a farinha. Outra raiz há duma planta que se chama aipim, da qual fazem uns bolos que parecem pão fresco deste reino e também se come assada como batata, de toda maneira se acha nela muito gosto. Também há na terra muito milho-zaburro, este se dá em todas as capitanias, e faz um pão muito alvo. Há nesta terra muita cópia de leite de vacas, muito arroz, fava, feijões, muitos inhames e batatas, e outros legumes que fartam muito a terra. Há muita abundância de marisco e de peixe por toda esta costa; com estes mantimentos se sustentam os moradores do Brasil sem fazerem gastos nem diminuírem nada em suas fazendas.

Uma das cousas que sustenta e abasta muito os moradores desta terra do Brasil, é a muita caça que há nestes matos de muitos gêneros e de diversas maneiras, a qual os mesmos índios da terra matam assim com frechas como por indústria de seus laços e fojos, onde costumam tomar a maior parte dela.

Há muitos veados e muita soma de porcos-monteses de muitas castas. Uns pequenos há na terra que têm as cerdas mui grossas, ásperas e crespas; estes têm o umbigo nas costas, matam-se muitos deles, e doutros grandes que não são desta qualidade. Há muitas antas que quase são tamanhas como vacas e pastam ervas como outro gado qualquer; sua carne tem o sabor como da vaca: a pele deste animal é muito grossa e rígida. Há também coelhos, mas têm as orelhas doutra maneira mais pequenas e redondas. Há outros animais maiores que lebres que se chamam pacas, também têm carne muito saborosa. Uns bichos há nesta terra que também se comem e se têm pela melhor caça que há no mato.

Chamam-lhes tatus, são tamanhos como coelhos e têm um casco à maneira da lagosta como de cágado, mas é repartido em muitas juntas como lâminas; parecem totalmente um cavalo armado, têm um rabo do mesmo casco comprido, o focinho é como de leitão, e não botam mais fora do casco que a cabeça, têm as pernas baixas e criam-se em covas, a carne deles tem o sabor quase como de galinha. Esta caça é muito estimada na terra. Há também muitas galinhas de mato que os índios matam com frechas, e outras muitas aves mui gordas e saborosas melhores que perdizes. Desta e de outra muita caça há no Brasil muita abundância.

Uma fruta se dá nesta terra do Brasil muito saborosa, e mais prezada de quantas há. Cria-se uma planta humilde junto do chão, a qual tem umas pencas como cardo, a fruta dela nasce como alcachofras e parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho, chamam-lhes ananases, e depois de maduros têm um cheiro muito excelente, colhem-nos como são de vez, e com uma faca tiram-lhes aquela casca grossa e fazem-nos em talhadas e desta maneira se comem, excedem no gosto a quantas frutas há neste reino e fazem todos tanto por esta fruta, que mandam plantar roças dela, como de cardais: a este nosso reino trazem muitos destes ananases em conserva. Outra fruta se cria numas árvores grandes, estas se não plantam, nascem pelo mato muitas; esta fruta depois de madura é muito amarela: são como pêros repinaldos compridos, chamam-lhes cajus, têm muito sumo, e cria-se na ponta desta fruta de fora um caroço como castanha, e nasce diante da mesma fruta, o qual tem a casca mais amargosa que fel, e se tocarem com ela nos beiços dura muito aquele amargor e faz empolar toda a boca; pelo contrário este caroço assado, é muito mais gostoso que amêndoa; são de sua natureza muito quentes em extremo. Há na terra tantos destes caroços que os medem aos alqueires. Também há uma fruta que lhe chamam bananas, e pela língua dos índios pacovas: há na terra muita abundância delas: perecem-se na feição com pepinos, nascem numas árvores muito tenras e não são muito altas, nem têm ramos senão folhas muito compridas e largas. Estas bananas criam-se em cachos, algum se acha que tem de cento e cinqüenta para cima, e muitas vezes é tão grande o peso delas que faz quebrar a árvore pelo meio; como são de vez colhem estes cachos, e depois de colhidos amadurecem, e tanto que estas árvores dão uma fruta, logo as cortam porque não frutificam mais que a primeira vez, e tornam a rebentar pelos pés outras novas. Esta é uma fruta muito saborosa e das boas que há na terra, tem uma pele como de figo, a qual lhes lançam fora quando as querem comer e se come muitas delas fazem dano à saúde e causam febre a quem se desmanda nelas. E assadas maduras são muito sadias e mandam-se dar aos enfermos. Com esta fruta se mantém a maior parte dos escravos desta terra, porque assadas verdes passam por mantimento, e quase têm sustância de pão. Há duas qualidades desta fruta, umas são pequenas como figos berjaçotes, as outras são maiores e mais compridas. Estas pequenas têm dentro em si uma cousa estranha, a qual é que quando as cortam pelo meio com uma faca ou por qualquer parte que seja acha-se nelas um sinal à maneira de crucifixo, e assim totalmente o parecem. Também há uma fruta que se chama bracases,12 são como nêsperas posto que comam muita não fazem mal à saúde. Há muita pimenta da terra, come-se verde, queima muito em grande maneira. Outras muitas frutas há pelo mato dentro de diversas qualidades, e são tantas que se já acharam pela terra dentro algumas pessoas e sustentaram-se com elas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo são as que os portugueses têm entre si em mais estima e as melhores da terra. Algumas frutas deste reino se dão nestas partes, scilicet, muitos melões, pepinos e figos de muitas castas, romãs, muitas parreiras que dão uvas duas, três vezes no ano, e tanto que umas se acabam, começam logo outras novamente. E desta maneira nunca está o Brasil sem frutas.

De limões e laranjas há muita infinidade; dão-se muito na terra estas árvores de espinho e multiplicam mais que as outras.

Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não acha povoações de índios armados contra todas as nações humanas, e assim como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente.

Havia muitos destes índios pela costa junto das capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos índios se alevantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram pera o sertão, e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses.

A língua deste gentio toda pela costa é, uma: carece de três letras – scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.

Estes índios andam nus sem cobertura alguma, assim machos como fêmeas, não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu. Vivem todos em aldeias, pode haver em cada uma sete, oito casas, as quais são compridas feitas à maneira de cordoarias; e cada uma delas está cheia de gente duma parte e doutra, e cada um por si tem sua estância e sua rede armada em que dorme, e assim estão todos juntos uns dos outros por ordem, e pelo meio da casa fica um caminho aberto para se servirem. Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e conselhá-los como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram cousa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida.

Estes índios são mui belicosos e têm sempre grandes guerras uns contra os outros; nunca se acha neles paz nem é possível haver entre eles amizade; porque umas nações pelejam contra outras e matam-se muitos deles, e assim vai crescendo o ódio cada vez mais e ficam imigos verdadeiros perpetuamente. As armas com que pelejam são arcos e frechas; a cousa que apontarem não na erram, são mui certos com esta arma e mui temidos na guerra, andam sempre nela exercitados. E são mui inclinados a pelejar, e mui valentes e esforçados contra seus adversários, e assim parece cousa estranha ver dous, três mil homens nus duma parte e doutra com grandes assobios e grita frechando uns aos outros; e enquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos meneando-se duma parte pera outra com muita ligeireza pera que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumam apanhar-lhes as frechas pelo chão e servi-los enquanto pelejam. Gente é esta mui atrevida e que teme muito pouco a morte, e quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória e que nenhum de sua companhia há de Tratado da Terra do Brasil – História da Província Santa Cruz morrer. E quando partem dizem, vamos matar: sem mais considerações, e não cuidam que também podem ser vencidos. Não dão vida a nenhum cativo, todos matam e comem, enfim que suas guerras são mui perigosas, e devem-se ter em muita conta porque uma das cousas que desbaratou muitos portugueses foi a pouca estima em que tinham a guerra dos índios, e o pouco caso que faziam deles, e assim morreram muitos miseravelmente por não se aperceberem como convinha; destes houve muitas mortes desastradas: e isto acontece cada passo nestas partes.

Quando estes índios tomam alguns contrários, se logo com aquele ímpeto os não matam, levam-nos vivos para suas aldeias (ou sejam portugueses ou quaisquer outros índios seus imigos), e tanto que chegam a suas casas lançam uma corda mui grossa ao pescoço do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que durma e dão-lhe uma índia moça, a mais formosa e honrada que há na aldeia, pera que durma com ele, e também tenha cuidado de o guardar, e não vai pera parte que não no acompanhe. Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que querem, determinam de o matar; e fazem grandes cerimônias e festas aqueles dias, e aparelham muitos vinhos para se embebedarem, e fazem-nos da raiz duma erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida mastigam-na umas moças virgens, e espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o bebem. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto da aldeia levam-no a banhar nela com grandes cantares e folias, e tanto que chegam com ele à aldeia, atamno pela cinta com quatro cordas cada uma pera sua parte e três, quatro índios pegados e cada ponta destas e assim o levam ao meio dum terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa bolir por uma parte nem por outra, as mãos lhe deixam soltas porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar empena-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais honrado. Traz na mão uma espada dum pau muito duro e pesado com que costumam de matar, e chega-se ao padecente dizendo-lhe muitas cousas e ameaçando-lhe sua geração que o mesmo há de fazer a seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras injuriosas dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com um cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito depressa com ele a meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue: tudo enfim cozem e assam, e não fica dele cousa que não comam. Isto é mais por vingança e por ódio que por se fartarem. Depois que comem a carne destes contrários ficam nos ódios confirmados, e sentem muito esta injúria, e por isso andam sempre a vingarem-se uns contra os outros. E se a moça que dormia com o cativo fica prenhe, aquela criança que pare depois de criada, matam-na e comem-na e dizem que aquela menina ou menino era seu contrário verdadeiro, e por isso estimam muito comer-lhe a carne e vingar-se dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quando se sente prenhe mata-a dentro da barriga e faz com que morra. E acontece algumas vezes afeiçoar-se tanto a este cativo e toma-lhe tanto amor que foge com ele pera sua terra pera o livrar da morte. E assim alguns portugueses há que desta maneira escaparam e estão hoje em dia vivos; e muitos índios que do mesmo modo se salvaram, ainda que são alguns tão brutos que não querem fugir depois de os terem presos; porque houve algum que estava já no terreno atado para padecer e davam-lhe a vida e não quis senão que o matassem, dizendo que seus parentes o não teriam por valente, e que todos correriam com ele; e daqui vem não estimarem a morte; e quando chega aquela hora não na terem em conta nem mostrarem nenhuma tristeza naquele passo.

Finalmente que são estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos, ainda que, todavia sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mostram ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem ele tem paz se não dos contrários. Têm esta qualidade estes índios que de qualquer cousa que comam por pequena que seja hão de convidar com ela quantos estiverem presentes, só esta proximidade se acha entre eles. Comem de quantos bichos se criam na terra, outro nenhum enjeitam por peçonhento que seja, somente aranha.

Têm estes índios machos por costume arrancar toda a barba e não consentem nenhum cabelo em parte alguma de seu corpo, salvo na cabeça, ainda que arredor dela por baixo tudo arrancam. As fêmeas presamse muito de seus cabelos e trazem-nos muito compridos e penteados e as mais delas enastrados. Os machos costumam trazer o beiço furado e uma pedra no buraco metida por galantaria; outros há que trazem o rosto todo cheio de buracos e assim parecem muito feios e disformes: isto lhes fazem quando são meninos. Também alguns índios andam pintados por todo o corpo, pelo qual fazem uns riscos escritos na carne: isto não traz senão quem tem feito alguma valentia. E assim também machos como fêmeas costumam tingir-se como sumo duma fruta que se chama jenipapo, que é verde quando se pisa e depois que põe no corpo e se enxuga fica muito negro e por muito que se lave não se tira senão aos nove dias: isto tudo fazem por galantaria.

Estas índias guardam castidade a seus maridos e são muito suas amigas, porque também eles sofrem mal adultérios; casam os mais deles com suas sobrinhas, filhas de seus irmãos ou irmãs, estas são suas mulheres verdadeiras, e não lhas podem negar seus pais.

Algumas índias se acham nestas partes que juram e prometem castidade, e assim não casam nem conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem no consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem mulheres, e cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem, e vão à guerra com seu arco e frechas e à caça: enfim que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem casados.

Estes índios vivem mui descansados, não têm cuidado de cousa alguma senão de comer e beber e matar gente; e por isso são muito gordos em extremo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer cousa comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente. Todos seguem muito o conselho das velhas, tudo o que elas lhes dizem fazem e têm-no por muito certo: daqui vem muitos moradores não comprarem nenhumas por lhes não fazerem fugir seus escravos. Quando estas índias parem a primeira cousa que fazem depois do parto levam-se todas num ribeiro e ficam tão bem dispostas como se não pariram; em lugar delas se deitam seus maridos nas redes, e assim os visitam e curam como se eles fossem os paridos.

Quando algum destes índios morre costumam enterrá-lo numa cova assentado sobre os pés, com sua rede às costas em que ele dormia, e logo pelos primeiros dias põem-lhe de comer em cima da cova. Outras muitas bestialidades usam estes índios que aqui não escrevo, porque minha tenção foi não ser comprido, e passar por tudo isso com brevidade.

Do resgates[editar]

Estes índios não possuem nenhuma fazenda, nem procuram adquiri- la como os outros homens, somente cobiçam muito algumas cousas que são deste Reino – scilicet, camisas, pelotes, ferramentas e outras cousas que eles têm em muita estima e desejam muito alcançar dos portugueses. A troco disto se vendiam uns aos outros, e os portugueses resgatavam muitos deles e salteavam quantos queriam sem ninguém lhes ir à mão, mas já agora não há isto na terra nem resgates como soía, porque depois que os padres da Companhia vieram a estas partes proveram neste negócio e vedaram muitos saltos que faziam os portugueses por esta costa, os quais encarregavam muito suas consciências com cativarem muitos índios contra direito e moverem-lhes guerras injustas. E por isso ordenaram os padres e fizeram com os capitães da terra que não houvesse mais resgates nem consentissem que fosse nenhum português e suas aldeias sem licença do mesmo capitão. E quantos escravos agora vêm novamente do sertão ou das outras capitanias todos levam primeiro à Alfândega e ali os examinam e lhes fazem perguntas quem os vendeu, ou como foram resgatados, porque ninguém os pode vender senão seus pais ou aqueles que em justa guerra os cativam, e os que acham mal adquiridos põem-nos em sua liberdade, e desta maneira quantos índios se compram são bem resgatados, e os moradores da terra não deixam por isso de ir muito avante com suas fazendas.

Não me pareceu cousa fora de propósito tratar também neste Sumário de alguns bichos que nestas partes se criam, pois tudo há nesta mesma terra, dado que daqui se não compreenda mais que a diferença e a variedade das criaturas que há dumas terras para outras.

Há nestas partes muitos bichos ferozes e peçonhentos, principalmente cobras de muitas castas e de nomes diversos. Umas há tão grandes e tão disformes que engolem um veado todo inteiro, e afirmam que tem esta cobra tal qualidade que depois de o ter comido arrebenta pela barriga e apodrece com a cabeça e a ponta do rabo sãs; e tanto que desta maneira fica torna pouco a pouco a criar carne nova até que se cobre outra vez da mesma carne tão perfeitamente como a de antes: isto viram e experimentaram muitos índios e moradores da terra, a estas chamam pela língua dos índios jiboioçu. Outras há muito maiores e peçonhentas, de outra casta diferente, são tão grandes em tanto extremo que apenas dezesseis índios podiam levar uma que mataram junto da costa entre os portugueses; a esta cobra chamam surucucu. Outra geração há delas que lhe chamam boiteninga, tem na ponta do rabo uma cousa que soa propriamente como cascavel, e por onde esta cobra vai sempre anda rugindo, é uma das feras bichas que há na terra. Outras há na terra que lhe chamam hebijaras, têm duas bocas uma na cabeça outra no rabo, mordem com ambas: esta cobra é branca e muito curta, o mais do tempo está debaixo da terra, é peçonhentíssima sobre todas; quem desta for mordido não terá vida muitas horas, e assim qualquer destas outras que mordem alguma pessoa o mais que dura são vinte e quatro horas. Há outra qualidade delas que não têm dentes nem mordem. Estas não são peçonhentas nem tampouco muito grandes, chamam-lhes japaranas. Também afirmam alguns homens que viram serpentes nesta terra com asas muito grandes e espantosas, mas acham-se raramente.

Há muitos lagartos e grandes pelos rios d’água doce e pelos matos, cujos testículos cheiram melhor que almiscre. E a qualquer roupa que o chegam fica o cheiro pegado por muitos dias.

Os bichos mais ferozes e mais danosos que há na terra são tigres, e estes animais são deles tamanhos como bezerros, vão-se aos currais do gado dos moradores e matam muito dele e são tão ferozes e forçosos que uma mão que lançam a uma vitela ou novilho lhe fazem botar os miolos fora e levam-no arrasto pera o mato. Também pela terra dentro matam e comem alguns índios quando se acham famintos. Sobem pelas árvores como gatos, e dali espreitam a caça que por baixo passa e remetem de salto a ela, e desta maneira não lhes escapa nada: alguns destes animais matam em fojos os moradores da terra.

Toda esta terra do Brasil é coberta de formigas pequenas e grandes, estas fazem algum dano às parreiras dos moradores, e às laranjeiras que têm nos quintais; e se não foram estas formigas houvera porventura muitas vinhas no Brasil ainda que lá são pouco necessárias porque deste Reino vai tanto vinho que sempre a terra dele está provida. Também há muita infinidade de mosquitos, principalmente ao longo de algum rio entre umas árvores que se chamam mangues, não pode nenhuma pessoa esperá-los; e pelo mato quando não há viração são muito sobejos e perseguem muito a gente.

Também há uma geração de ratos que trazem os filhinhos pendurados na barriga, e ali se criam e andam assim pegados até serem grandes. Bugios há muito e de muitas castas, como já se sabe. Tanto que as fêmeas parem pegam-se os filhos nas suas costas e sempre andam cavalgados nas mais até serem bem criados. E posto que as persigam e as matem não se querem desapegar delas. Há também muitos lobos-mari- Tratado da Terra do Brasil – História da Província Santa Cruz nhos e porcos-marinhos que se criam no mar e na terra. Outros muitos bichos há nestas partes pela terra dentro que será impossível poderem se conhecer nem escrever tanta multidão, porque assim como a terra é grandíssima, assim são muitas as qualidades e feições das criaturas que Deus nela criou.

Posto que minha tenção não era tratar neste Sumário senão das cousas que são gerais por toda a costa do Brasil, de que os moradores da terra participam, pareceu-me também necessário e conveniente aos louvores da terra denunciar neste capítulo a riqueza dos metais que afirmam haver por ela dentro, provado tudo isto com pessoas que o acharam, viram, e experimentaram: e a maneira como se descobriu foi esta que se segue.

A esta Capitania de Porto Seguro chegaram certos índios do sertão a dar novas dumas pedras verdes que havia numa serra muitas léguas pela terra dentro, e traziam algumas delas por amostra, as quais eram esmeraldas, mas não de muito preço. E os mesmos índios diziam que daquelas havia muitas, e que esta serra era muito formosa e resplandecente. Tanto que os moradores desta capitania disto foram certificados, fizeram-se prestes cinqüenta ou sessenta portugueses com alguns índios da terra e partiram pelo sertão dentro com determinação de chegar a esta serra onde estas pedras estavam. Ia por capitão desta gente um Martim Carvalho, que agora é morador da Bahia de Todos os Santos; entraram pela terra algumas duzentas e vinte léguas, onde as mais das serras que acharam e viram eram de muito fino cristal e toda a terra em si muito fragosa, e outras muitas serras de uma terra azulada, nas quais afirmaram haver muito ouro, porque indo eles por15 entre duas serras, desta maneira foram dar num ribeiro que pelo pé duma delas descia, no qual acharam entre a areia uns grãos miúdos amarelos, os quais alguns homens apalparam com os dentes e acharam-nos brandos, mas não se desfaziam. Finalmente que todos assentaram ser aquilo ouro nem podia ser outro metal, pois o mesmo ouro desta maneira nasce nas partes onde o há. Apanharam destes grãos entre a areia do ribeiro quantidade dum punhado, os quais acharam muito pesados, que também era prova de ser ouro: disto não fizeram mais16 experiência por ser aquilo no deserto e haver muitos dias que padeciam grande fome nem comiam outra cousa senão semente de ervas, e alguma cobra que matavam: passaram adiante determinando a vinda tornar por ali apercebidos de mantimentos para buscarem a serra mais devagar, donde aquele ouro descia ao ribeiro. Acharam pelos matos muita canafístula, e por este caminho acharam outros muitos metais que não conheceram, nem podiam esperar pelas guerras dos índios que se alevantaram contra eles. Alguns índios lhes deram notícia segundo a menção que faziam que podiam estar cem léguas da serra das pedras verdes que iam buscar, e que não havia muito dali ao Peru, finalmente que com os amigos que recreciam e pela gente que adoecia tornaram-se outra vez em almadias por um rio que se chama Cricaré, onde se perdeu numa cachoeira a canoa em que vinham os grãos de ouro que traziam pera mostra. Nesta viagem gastaram oito meses, e assim desbaratados chegaram a esta Capitania de Porto Seguro.

Os que deste perigo escaparam afirmaram haver naquelas partes muito ouro, segundo as mostras e os sinais que acharam. E se lá tornar gente apercebida como convém, com toda a provisão necessária, e levarem pessoas que disto conheçam, dizem que se descobrirão nesta terra grandes minas.

Quisera escrever mais miudamente das particularidades desta província do Brasil, mas por que satisfizesse a todos com brevidade guardei-me de ser comprido; posto que os louvores da terra pedissem outro livro mais copioso e de maior volume, onde se compreendessem por extenso as excelências e diversidades das cousas que há nela para remédio e proveito dos homens que lá forem viver. E porque a felicidade e aumento desta província consiste em ser povoada de muita gente, não havia de haver pessoa pobre nestes reinos que não fosse viver a estas partes com favor de S. A. onde os homens vivem todos abastados, e fora das necessidades que cá padecem. E desta maneira permitirá Deus que floresça tanto a terra desta nova Lusitânia, que com ela se aumente muito a Coroa destes reinos, e seja dos outros invejada para que não desejemos terras estranhas; prometendo esta nossa tanta riqueza e prosperidade aos que a forem buscar para seu remédio.