Anexo:Imprimir/A escrava Isaura
Índice
[editar]- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
- Capítulo XXI
- Capítulo XXII
Era nos primeiros annos do reinado do Sr D. Pedro 2º.
No fertil e opulento municipio de Campos de Goitacases, á margem do Parahyba, a pouca distancia da villa de Campos, havia uma linda e magnifica fazenda.
Era um edificio de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em aprazivel vargedo ao sopé de elevadas collinas cobertas de mata em parte devastada pelo machado do lavrador. Longe em derredor a natureza ostentava-se ainda em toda a sua primitiva e selvatica rudeza; mas por perto, em torno da deliciosa vivenda, a mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o solo, em jardins e pomares deleitosos, em viçosos gramáes e pingues pastagens, sombreados aqui e acolá por gameleiras gigantescas, peróbas, cedros e copahybas, que attestavão o vigor da antiga floresta. Quasi não se via ahi muro, cerca, nem vallado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circumvisinhos erão divididos por viçosas e verdejantes sebes de bambús, piteiras, espinheiros e gravatás, que davão ao todo o aspecto do mais aprazivel e delicioso vergél.
A casa apresentava a frente ás collinas. Entrava-se nella por um lindo alpendre todo enredado de flores trepadeiras, ao qual subia-se por uma escada de cantaria de seis a sete degráos. Os fundos erão occupados por outros edificios accessorios, senzalas, pateos, curraes e celeiros, por trás dos quaes se estendia o jardim, a horta, e um immenso pomar, que ia perder-se na barranca do grande rio.
Era por uma linda e calmosa tarde de outubro. O sol não era ainda posto, e parecia boiar no horizonte suspenso sobre rolos de espuma de cores cambiantes orlados de fevras de ouro. A viração saturada de balsamicos effluvios se espreguiçava ao longo das ribanceiras accordando apenas frouxos rumores pela copa dos arvoredos, e fazendo farfalhar de leve o tope dos coqueiros, que miravão-se garbosos nas lucidas e tranquillas agoas da ribeira.
Corria um bello tempo; a vegetação reanimada por moderadas chuvas ostentava-se fresca, viçosa e luxuriante; a agoa do rio ainda não turvada pelas grandes inchentes, rolando com magestosa lentidão, reflectia em toda a pureza os esplendidos coloridos do horizonte, e o nitido verdor das selvosas ribanceiras. As aves, dando repouso ás azas fatigadas do continuo voejar pelos pomares, prados e balsedos visinhos, começavão a preludiar seos cantos vespertinos.
O clarão do sol poente por tal sorte abraseava as vidraças do edificio, que este parecia estar sendo devorado pelas chammas de um incendio interior. Entretanto quer no interior quer em derredor reinava fundo silencio, e perfeita tranquillidade. Bois truculentos, e nedias novilhas deitadas pelo gramal, ruminavão tranquillamente á sombra de altos troncos. As aves domesticas grasinavão em torno da casa, balavão as ovelhas, e mugião algumas vacas, que vinhão por si mesmas procurando os curraes; mas não se ouvia, nem se divisava vóz nem figura humana. Parecia que ali não se achava morador algum. Sómente as vidraças arregaçadas de um grande salão da frente e os batentes da porta da entrada abertos de par em par denunciavão, que nem todos os habitantes daquella sumptuosa propriedade se achavão ausentes.
A favor desse quasi silencio harmonioso da natureza ouvia-se distinctamente o harpejo de um piano casando-se a uma voz de mulher, voz melodiosa, suave, apaixonada, e do timbre o mais puro e fresco que se pode imaginar.
Posto que um tanto abafado, o canto tinha uma vibração sonora, ampla e volumosa, que revelava excellente e vigorosa organisação vocal. O tom velado e melancolico da cantiga, parecia gemido suffocado de uma alma solitaria e soffredora.
Era essa a unica voz, que quebrava o silencio da vasta e tranquilla vivenda. Por fora tudo parecia escutal-a em mistico e profundo recolhimento.
As coplas, que cantava, dizião assim?
Desd’o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição.
Os meos braços estão presos,
A ninguem posso abraçar,
Nem meos labios, nem meos olhos
Não podem de amor fallar;
Deo-me Deus um coração
Sómente para penar.
Ao ar livre das campinas
Seo perfume exhala a flor;
Canta a aura em liberdade
Do bosque o alado cantor;
Só para a pobre captiva
Não ha canções, nem amor.
Cala-te, pobre captiva;
Teos queixumes crimes são;
E’ uma affronta esse canto,
Que exprime tua afflicção.
A vida não te pertence,
Não é teo teo coração.
As notas sentidas e maviosas daquelle cantar escapando pelas janellas abertas e echoando ao longe em derredor, dão vontade de conhecer a sereia, que tão lindamente canta. Se não é sereia, sómente um anjo pode cantar assim.
Subamos os degráos, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado de viçosos festões e lindas flores, que serve de vestibulo ao edificio. Entremos sem cerimonia. Logo á direita do corredor encontramos aberta uma larga porta, que dá entrada á sala de recepção, vasta e luxuosamente mobiliada. Acha-se ali sósinha e sentada ao piano uma bella e nobre figura de moça. As linhas do perfil desenhão-se distinctamente entre o ébano da caixa do piano, e as bastas madeixas ainda mais negras do que elle. São tão puras e suaves essas linhas, que fascinão os olhos, enlevão a mente, e paralisão toda analyse. A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não saberieis dizer se é leve palidez ou cor de rosa desmaiada. O collo donoso e do mais puro lavor sustenta com graça ineffavel o busto maravilhoso. Os cabellos soltos e fortemente ondulados se despenhão caracolando pelos hombros em espessos e luzidios rolos, e como franjas negras escondião quasi completamente o dorso da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como marmore polido, a luz do occaso esbatia um roseo e suave reflexo; dil-a-hieis mysteriosa lampada de alabastro guardando no seio diaphano o fogo celeste da inspiração. Tinha a face voltada para as janellas, e o olhar vago pairava-lhe pelo espaço.
Os encantos da gentil cantora erão ainda realçados pela singeleza, e diremos quasi pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinaria azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a cintura delicada, e desdobrando-se-lhe em roda em amplas ondulações parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Venus nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgindo d’entre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituia o seu unico ornamento.
Apenas terminado o canto, a moça ficou um momento a cismar com os dedos sobre o teclado como escutando os derradeiros echos da sua canção.
Entretanto abre-se subtilmente a cortina de cassa de uma das portas interiores, e uma nova personagem penetra no salão. Era tambem uma formosa dama ainda no viço da mocidade, bonita, bem feita e elegante. A riqueza e o primoroso esmero do trajar, o porte altivo e senhoril, certo balanceio affectado e languoroso dos movimentos davão-lhe esse ar pretencioso, que acompanha toda a moça bonita e rica, ainda mesmo quando está sozinha. Mas com todo esse luxo e donaire de grande senhora nem por isso sua grande belleza deixava de ficar algum tanto eclypsada em presença das formas puras e correctas, da nobre singeleza, e dos tão naturaes e modestos ademanes da cantora. Todavia Malvina era linda, encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura e alta posição, transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azues toda a nativa bondade de seo coração.
Malvina approximou-se de manso e sem ser presentida para junto da cantora, collocando-se por detrás della esperou que terminasse a ultima copla.
— Isaura!... disse ella pousando de leve a delicada mãosinha sobre o hombro da cantora.
— Ah! é a senhora?! — respondeo Isaura voltando-se sobressaltada. — Não sabia, que estava ahi me escutando.
— Pois que tem isso?... continúa a cantar;... tens a voz tão bonita!... mas eu antes quizéra que cantasses outra cousa; por que é, que você gosta tanto dessa cantiga tão triste, que você aprendeo não sei onde?...
— Gosto della, porque acho-a bonita, e porque... ah! não devo fallar...
— Falla, Isaura. Já não te disse, que nada me deves esconder, e nada recear de mim?...
— Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci, coitada!... Mas se a senhora não gosta dessa cantiga, não a cantarei mais.
— Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és maltratada, que és uma escrava infeliz, victima de senhores barbaros e crueis. Entretanto passas aqui uma vida, que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teos senhores. Derão-te uma educação, como não tiverão muitas ricas e illustres damas, que eu conheço. És formosa, e tens uma cor tão linda, que ninguem dirá que gyra em tuas veias uma só gota de sangue africano. Bem sabes, quanto minha boa sogra antes de expirar te recommendava a mim e a meo marido. Hei-de respeitar sempre as recommendações daquella santa mulher, e tu bem vês, sou mais tua amiga, do que tua senhora. Oh! não; não cabe em tua boca essa cantiga lastimosa, que tanto gostas de cantar. — Não quero, — continuou em tom de branda reprehensão, — não quero que a cantes mais, ouviste, Isaura?... senão, fecho-te o meo piano.
— Mas, senhora, apezar de tudo isso que sou eu mais do que uma simples escrava? Essa educação, que me derão, e essa belleza, que tanto me gabão, de que me servem?... são trastes de luxo collocados na senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é; uma senzala.
— Queixas-te da tua sorte, Isaura?...
— Eu, não senhora; não tenho motivo;... o que quero dizer com isto é que apezar de todos esses dotes e vantagens, que me attribuem, sei conhecer o meo lugar.
— Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz. Bonita como és, não podes deixar de ter algum namorado.
— Eu, senhora!... por quem é, não pense nisso.
— Tu mesma; pois que tem isso?... não te vexes; pois é alguma cousa do outro mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é por isso, que lamentas não teres nascido livre para poder amar aquelle que te agradou, e a quem cahiste em graça, não é assim?...
— Perdôe-me, sinhá Malvina; — replicou a escrava com um candido sorriso. — Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!
— Qual longe!... não me enganas, minha rapariguinha!... tu amas, e és mui linda e bem prendada para te inclinares a um escravo; só se fosse um escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo. Uma menina como tu, bem pode conquistar o amor de algum guapo mocetão, e eis ahi a causa da choradeira de tua canção. Mas não te afflijas, minha Isaura; eu te protesto, que ámanhã mesmo terás a tua liberdade; deixa Leoncio chegar; é uma vergonha, que uma rapariga como tu se veja ainda na condição de escrava.
— Deixe-se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menos em liberdade; ás vezes fico triste á toa, sem motivo nenhum...
— Não importa. Sou eu, quem quero que sejas livre, e has-de sel-o.
Neste ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavalleiros, que chegavão e apeavão-se á porta da fazenda.
Malvina e Isaura correrão á janella a ver quem erão.
Os cavalleiros, que acabavão de apear-se, erão dous bellos e elegantes mancebos, que chegavão da villa de Campos. Do modo familiar, por que forão entrando, logo se deprehendia que era gente de casa.
De feito um era Leoncio, marido de Malvina; e outro Henrique, irmão da mesma.
Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais intimo com os dous jovens cavalheiros.
Leoncio era filho unico do rico e magnifico commendador Almeida, proprietario da bella e sumptuosa fazenda, em que nos achamos. O commendador já bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento de seo filho, que tivera lugar um anno antes da época, em que começa esta historia, havia-lhe abandonado a administração e uso-fructo da fazenda, e vivia na côrte, onde procurava allivio ou distracção aos achaques, que o atormentavão.
Leoncio achára desde a infancia nas larguezas e facilidades de seos paes amplos meios de corromper o coração e extraviar a intelligencia. Máo alumno e creança incorrigivel, turbulento e insubordinado, andou de collegio em collegio, e passou como gato por brasas por cima de todos os preparatorios, cujos exames todavia sempre salvára á sombra do patronato. Os mestres não se atrevião a dar ao nobre e munifico commendador o desgosto de ver seo filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiro anno enjoou-se daquella disciplina, e como seos paes não sabião contrarial-o, foi-se para Olinda afim de frequentar o curso juridico. Ali depois de ter dissipado não pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seos vicios e loucas fantasias, tomou tedio tambem aos estudos juridicos, e ficou entendendo, que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua intelligencia, e saciar a sua sêde de saber, em puros e abundantes mananciaes. Assim escreveo ao pae, que deo-lhe credito e o enviou a Paris, donde esperava vel-o voltar feito um novo Humboldt. Installado naquelle vasto pandemonium do luxo e dos prazeres, Leoncio raras vezes, e só por desfastio, ia ouvir as eloquentes prelecções dos eximios professores da época, e nem tão pouco era visto nos museos, institutos e bibliothecas. Em compensação era assiduo frequentador do Jardim Mabile, assim como de todos os cafés e theatros mais em voga, e tornára-se um dos mais afamados e elegantes leões dos boulevards. No fim de alguns annos, ora de residencia em Paris, ora de gyros recreativos pelas agoas e pelas principaes capitaes da Europa, tinha elle tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que o commendador, a despeito de toda a sua condescendencia e ternura para com seo unico e querido filho, vio-se na necessidade de revocal-o á sombra dos patrios lares a fim de evitar uma completa ruina. Mas mesmo assim para não magoal-o colhendo-lhe subita e rudemente as redeas na carreira dos desvaríos e dissipações, assentou de attrahil-o suavemente acenando-lhe com a perspectiva de um rico e vantajosissimo casamento.
Leoncio pegou na isca e voltou á pátria um perfeito dandy, gentil e elegante como ninguem, trazendo de suas viagens em vez de conhecimentos e experiencia, enorme dose de fatuidade e petulancia, e um tão perfeito traquejo da alta sociedade, que o tomarieis por um principe. Mas o peor era, que se trazia o cerebro vazio, voltava com a alma corrompida e o coração estragado por habitos de devassidão e libertinagem. Alguns bons e generosos instinctos, de que o dotára a natureza, havião-se apagado em seo coração ao roçar de pessimas doutrinas confirmadas por exemplos ainda peores.
De volta da Europa, Leoncio contava vinte e cinco annos. O pae advertio-lhe com palavras insinuantes e geitosas, que já era tempo de empregar-se em alguma cousa, de abraçar alguma carreira; que já se tinha aproveitado da bolsa paterna mais do que era preciso para sua educação, e que era mister ir aprendendo senão a augmentar, ao menos a conservar uma fortuna, á testa da qual teria de achar-se mais tarde ou mais cedo. Depois de muita hesitação, Leoncio optou emfim pela carreira do commercio, que lhe pareceo ser a mais independente e segura de todas; mas as suas idéas largas e audaciosas a este respeito aterrárão o bom do commendador. O commercio de importação e exportação de generos, mesmo em larga escala, o proprio trafego de africanos, lhe parecião especulações degradantes e improprias de sua alta posição e esmerada educação. O negocio de balcão e a retalho, esse inspirava-lhe asco e compaixão. Só lhe convinhão as altas especulações cambiaes, as operações bancarias, e transacções, em que jogasse com avultados capitaes. Só assim poderia duplicar, triplicar em pouco tempo a fortuna paterna. Com o que tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças europeas, presumia-se com habilitação bastante para dirigir as operações do mais importante estabelecimento bancario, ou as mais grandiosas emprezas industriaes.
O pae porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares especulativos daquelle financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provas de grande talento para consumir, em pouco tempo e em pura perda, sommas consideraveis. Resolveo portanto a não tocar-lhe mais naquelle assumpto, esperando que o mancebo creasse mais algum juizo.
Vendo que seo pae esquecia-se completamente dos planos de crear-lhe um peculio proprio, Leoncio olhou para o casamento como o meio suave e natural de adquirir fortuna, como a unica carreira, que se lhe offerecia para ter dinheiro a esbanjar a seo bel-prazer.
Malvina, a formosa filha de um riquissimo negociante da côrte, amigo do commendador, já estava destinada a Leoncio por commum accordo e acquiescencia dos paes de ambos. A familia do commendador foi á côrte; os moços virão-se amárão-se e casárão; foi cousa de poucos dias. Pouco tempo depois de seo casamento Leoncio passou pelo desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa e respeitavel senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida intima com seo marido, que como homem de coração arido e frio, desconhecia as santas e puras delicias da affeição conjugal, e com suas libertinagens e devassidões dilacerava quotidianamente o coração de sua esposa. Para cumulo de males tinha ella perdido ainda na infancia todos os seos filhos, ficando-lhe só Leoncio. Lastimava-se principalmente por não ter-lhe deixado o céo ao menos uma filha, que lhe servisse de companhia e consolação em sua desolada velhice. Quiz entretanto a sorte deparar-lhe em sua propria casa uma tal ou qual compensação a seos infortunios em uma fragil creatura, que veio de alguma sorte encher o vacuo, que sentia em seo bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitario o lar, em que passava os dias tão monotonos e enfadonhos.
Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço attrahio por sua graça, gentileza e vivacidade toda a attenção e sollicitude da boa velha.
Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama favorita e a creada fiel da esposa do commendador. Este, que como homem libidinoso e sem escrupulos olhava as escravas como um serralho á sua disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascivia sobre a gentil mocama. Por muito tempo resistio ella ás suas brutaes sollicitações; mas por fim teve de ceder ás ameaças e violencias. Tão torpe e barbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar occulto aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeo mortal desgosto.
Acabrunhado por ella das mais violentas e amargas exprobrações, o commendador não ousou mais empregar a violencia contra a pobre escrava, e nem tão pouco conseguio jámais por outro qualquer meio superar a invencivel repugnancia, que lhe inspirava. Enfureceo-se com tanta resistencia, e deliberou em seo coração perverso vingar-se da maneira a mais barbara e ignobil, acabrunhando-a de trabalhos e castigos. Exilou-a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recommendando bem ao feitor, que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor porém, que era um bom portuguez ainda no vigor dos annos, e que não tinha as entranhas tão empedernidas como o seo patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava caricias e presentes, de maneira que dahi a algum tempo a mulata deo á luz da vida a gentil escravinha, de que fallámos. Este facto veio exacerbar ainda mais a sanha do commendador contra a misera escrava. Expellio com improperios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no tumulo, antes que pudesse acabar de crear sua tenra e mimosa filhinha.
Eis ahi debaixo de que tristes auspicios nasceo a linda e infeliz Isaura. Todavia como para indemnisal-a de tamanha desventura, uma santa mulher, um anjo de bondade, curvou-se sobre o berço da pobre creança e veio amparal-a á sombra de suas azas caridosas. A mulher do commendador considerou aquella tenra e formosa cria como um mimo, que o céo lhe enviava para consolal-a das angustias e dissabores, que tragava em consequencia dos torpes desmandos de seo devasso marido. Levantou ao céo os olhos banhados em lagrimas, e jurou pela alma da infeliz mulata encarregar-se do futuro de Isaura, creal-a e educal-a, como se fosse uma filha.
Assim o cumprio com o mais religioso escrupulo. A’ medida, que a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ella mesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe tambem mestres de musica, de dança, de italiano, de francez, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se emfim em dar á menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha querida. Isaura por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e attractivos corporaes, como pelos rapidos progressos de sua viva e robusta intelligencia, foi muito além das mais exageradas esperanças da excellente velha, a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em lapidar e polir aquella joia, que ella dizia ser a perola entrançada em seos cabellos brancos. — O céo não quiz dar-me uma filha de minhas entranhas, — costumava ella dizer, — mas em compensação deo-me uma filha de minha alma.
O que porém mais era de admirar na interessante menina, é que aquella predilecção e extremosa sollicitude de que era objecto, não a tornava impertinente, vaidosa ou arrogante nem mesmo para com seos parceiros de captiveiro. O mimo, com que era tratada, em nada lhe alterava a natural bondade e candura do coração. Era sempre alegre e boa com os escravos, docil e submissa com os senhores.
O commendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa para com a mulatinha, capricho, que qualificava de caduquice.
— Forte loucura! — costumava exclamar com accento de commiseração. — Está ahi se esmerando em crear uma formidavel tafulona, que lá pelo tempo adiante ha-de-lhe dar agoa pela barba. As velhas umas dão para rezar, outras para ralhar desde a manhã até á noute, outras para lavar cachorrinhos ou para crear pintos; esta deo para criar mulatinhas princezas. É um divertimento um pouco mais dispendioso na verdade; mas... que lhe faça bom proveito; ao menos emquanto se entretêm por lá com o seo embelego, poupa-me uma boa duzia de impertinentes e rabugentos sermões... Lá se avenha!...
Poucos dias depois do casamento de Leoncio, o commendador, com toda a familia, inclusive os dous novos desposados, transportou-se de novo para a sua fazenda de Campos. Foi então, que o commendador entregou a seo filho toda a administração e uso-fructo daquella propriedade, com toda a escravatura e mais acessorios nella existentes, declarando-lhe que achando-se já bastante velho, enfermo e cansado queria passar tranquilamente o resto de seos dias, livre de afazeres e preoccupações, para o que bastavão-lhe com sobegidão as rendas, que para si reservava. Feita em vida esta magnifica dotação a seo filho, retirou-se para a côrte. Sua esposa porém preferio ficar em companhia do filho, o que foi muito do gosto e approvação do marido.
Malvina, que apezar da sua vaidade aristocratica tinha alma candida e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo desde o principio o mais vivo interesse e terna affeição pela captiva Isaura. Era esta com effeito de indole tão bondosa e fagueira, tão docil, modesta e submissa, que apezar de sua grande belleza e incontestaveis dotes de espirito, conquistava logo ao primeiro encontro a benevolencia de todos.
Isaura tornou-se immediatamente não direi a mucama favorita, mas a fiel companheira, a amiga de Malvina, que affeita aos prazeres e passatempos da côrte, muito folgou de encontrar tão boa e amavel companhia na solidão, que ia habitar.
— Por que razão não libertão esta menina? — dizia ella um dia á sua sogra. — Uma tão boa e interessante creatura não nasceo para ser escrava.
— Tem razão, minha filha, — respondeo bondosamente a velha; — mas que quer você?... não tenho animo de soltar este passarinho, que o céo me deo para me consolar e tornar mais supportaveis as pesadas e compridas horas da velhice.
E tambem libertal-a para que? Ella aqui é livre, mais livre do que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ella transviar-se por ahi, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?... Não, não, minha filha; emquanto eu for viva, quero têl-a sempre bem pertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você ha-de estar dizendo lá comsigo — forte egoismo de velha! — mas tambem eu já poucos dias terei de vida; o sacrificio não será grande. Por minha morte ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar-lhe um bom legado.
De feito a boa velha tentou por diversas vezes escrever seo testamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupilla; mas o commendador, auxiliado por seo filho com delongas e futeis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvavel e santo desejo de sua esposa, até o dia, em que fulminada por um ataque de paralysia geral, ella succumbio em poucas horas sem ter tido um só momento de lucidez e reanimação para expressar sua ultima vontade.
Malvina jurou sobre o cadaver de sua sogra continuar para com a infeliz escrava a mesma protecção e sollicitude, que a defunta lhe havia prodigalizado. Isaura pranteou por muito tempo a morte daquella, que havia sido para ella mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escrava não já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos, devassos e crueis.
Falta-nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de Leoncio. Era elle um elegante e bonito rapaz de vinte annos, frivolo, estouvado e vaidoso, como são quasi todos os jovens, mórmente quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pae rico. Não obstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e bastante dignidade e nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como estava-se em ferias, Leoncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns dias em sua fazenda.
Os dous mancebos chegavam de Campos, onde Leoncio desde a vespera tinha ido ao encontro do cunhado.
Só depois de casado Leoncio, que antes disso poucas e breves estadas fizera na casa paterna, começou a restar attenção á extrema belleza e ás graças incomparaveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em sorte uma linda e excellente mulher, elle não se havia casado por amor, sentimento esse, a que seo coração até ali parecia absolutamente estranho. Casára-se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita, sentira apenas por ella essa paixão, que se ceva no gozo dos prazeres sensuaes, e com elles se extingue. Estava reservado á infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquelle coração libertino as fibras, que ainda não estavão de todo estragadas pelo attrito da devassidão. Concebeo por ella o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo na razão directa dos serios e poderosos obstaculos, que encontrava, obstaculos, a que não estava affeito, e que em vão se esforçava para superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada empreza, por que em fim de contas, — pensava elle, — Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse efficaz, restava-lhe o emprego da violencia. Leoncio era um digno herdeiro de todos os máos instinctos e da brutal devassidão do commendador.
Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem de Isaura, Leoncio conversára longamente com seo cunhado a respeito della, exaltando-lhe a belleza, e deixando transluzir com revoltante cynismo as lascivas intenções, que abrigava no coração. Esta conversação não agradava muito a Henrique, que ás vezes córava de pejo e de indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar-lhe viva curiosidade de conhecer uma escrava de tão extraordinaria belleza.
No dia seguinte ao da chegada dos mancebos ás oito horas da manhã, Isaura, que acabava de espanejar os moveis e arranjar o salão, achava-se sentada junto a uma janella e entretinha-se a bordar á espera, que seos senhores se levantassem para servir-lhes o café. Leoncio e Henrique não tardárão em apparecer, e parando á porta do salão puzerão-se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da presença delles continuava a bordar distrahidamente.
— Então, que te parece? segredava Leoncio a seo cunhado. — Uma escrava desta ordem não é um thesouro inapreciavel? Quem não diria, que é uma andaluza de Cadix, ou uma napolitana?...
— Não é nada disso; mas é cousa melhor, respondeo Henrique maravilhado; é uma perfeita brazileira.
— Qual brazileira! é superior a tudo quanto ha. Aquelles encantos e aquellas dezesete primaveras em uma moça livre, terião feito virar o juizo a muita gente boa. Tua irmã pretende com instancia, que eu a liberte allegando que essa era a vontade de minha defunta mãe; mas nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem menos de uma joia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de creal-a com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi de certo para abandonal-a ao mundo, não achas?... Tambem meo pae parece, que cedeo ás instancias do pae della, que é um pobre gallego, que por ahi anda, e que pretende libertal-a; mas o velho pede por ella tão exorbitante somma, que julgo nada dever recear por esse lado. Vê lá, Henrique, se ha nada que pague uma escrava assim?...
— E’ com effeito encantadora; replicou o moço, — se estivesse no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar-te, Leoncio, — continuou, cravando no cunhado um olhar cheio de maliciosa penetração, — como teo amigo e como irmão de tua mulher, que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma escrava tão linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez perigoso para a tranquillidade domestica...
— Bravo! — atalhou Leoncio galhofando, para a idade que tens, já estás un moralista de polpa!... mas não te dê isso cuidado, meo menino; tua irmã não tem dessas velleidades, e é ella mesma quem mais gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E tem razão; Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão. Querias, que eu mandasse para a cosinha os meos espelhos de Veneza?...
Malvina, que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre como uma manhã de abril, veio interromper-lhes a conversação.
— Bom dia, senhores preguiçosos! — disse ella com voz argentina e festiva como o trino da andorinha. — Até que em fim sempre se levantárão!
— Estás hoje muito alegre, minha querida, — retorquio-lhe sorrindo o marido; — viste algum passarinho verde de bico dourado?...
— Não vi, mas hei-de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje aqui em casa seja um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leoncio, e estava afflicta por te ver de pé; quero dizer-te uma cousa; já devia tel-a dito hontem, mas o prazer de ver este ingrato de irmão, que ha tanto tempo não vejo, me fez esquecer...
— Maz o que é?... falla, Malvina.
— Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes, promessa sagrada, que ha muito tempo devia ter sido cumprida?... hoje quero absolutamente, exijo, o seo cumprimento.
— Devéras!?... mas que promessa?... não me lembro.
— Ah! como te fazes de esquecido!... não te lembras, que me prometteste dar liberdade a.....
— Ah! já sei, já sei; — atalhou Leoncio com impaciencia. — Mas tratar disso aqui agora? em presença della?... que necessidade ha de que nos ouça? —
— E que mal faz isso? mas seja como quizeres, — replicou a moça tomando a mão de Leoncio e levando-o para o interior da casa; — vamos cá para dentro. Henrique, espera ahi um momento, emquanto eu vou mandar preparar-nos o café.
Só depois da chegada de Malvina Isaura deo pela presença dos dous mancebos, que a certa distancia a contemplavão cochichando a respeito della. Tambem pouco ouvio ella e nada comprehendeo do rapido dialogo, que tivera lugar entre Malvina e seo marido. Apenas estes se retirárão, ella tambem se levantou e ia sahir, mas Henrique, que ficara só, a deteve com um gesto.
— Que me quer, senhor? — disse ella baixando os olhos com humildade.
— Espera ahi, menina; tenho alguma cousa a dizer-te, — replicou o moço, e sem dizer mais nada collocou-se diante della devorando-a com os olhos, e como estatico contemplando-lhe a maravilhosa belleza. Henrique sentia-se acanhado diante daquella nobre figura radiante de belleza, e de angelica serenidade. Por seo lado Isaura tambem olhava para o moço, atonita e tolhida, esperando em vão, que lhe dissesse o que queria. Por fim Henrique, affouto, e estouvado como era, lembrando-se que Isaura, a despeito de toda a sua formosura, não passava de uma escrava, entendeo que fazia um ridiculo papel, deixando-se ali ficar diante della em muda e estatica contemplação, e chegando-se a ella com todo o desembaraço e petulancia travou-lhe da mão, e.
— Mulatinha, disse, — tu não fazes idéa de quanto és feiticeira. Minha irmã tem razão; é pena que uma menina assim tão linda não seja mais que uma escrava. Se tivesses nascido livre, serias incontestavelmente a rainha dos salões.
— Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando-se da mão de Henrique; se é só isso o que tinha a dizer-me, deixe-me ir embora.
— Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não te quero fazer mal algum. Oh! quanto eu daria para obter a tua liberdade, se com ella pudesse obter também o teo amor!... És muito mimosa e muito linda para ficares por muito tempo no captiveiro; alguém impreterivelmente virá arrancar-te delle, e se has-de cahir nas mãos de algum desconhecido, que não saberá dar-te o devido apreço, seja eu, minha Isaura, seja o irmã de tua senhora, que de escrava te haja de fazer uma princeza...
— Ah! senhor Henrique! retorquio a menina com enfado; — o senhor não se peja de dirigir esses galanteios a uma escrava de sua irmã? isso não lhe fica bem; há por ahi tanta moça bonita, a quem o senhor pode fazer a côrte...
— Não; ainda não vi nenhuma, que te iguale, Isaura, eu te juro. Olha, Isaura; ninguem mais do que eu está nas circumstancias de conseguir a tua liberdade; sou capaz de obrigar Leoncio a te libertar, por que, se me não engano, já lhe adivinhei os planos e as intenções, e protesto-te que hei-de burlal-os todos; é uma infamia, em que não posso consentir. Além da liberdade terás tudo o que desejares, sedas, joias, carros, escravos para te servirem, e acharás em mim um amante extremoso, que sempre te ha-de querer, e nunca te trocará por quanta moça ha por esse mundo, por bonita e rica que seja, porque tu só vales mais que todas ellas juntas.
— Meu Deos! — exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; — tanta grandeza me attérra; isso faria virar-me o juizo. Nada, meo senhor; guarde suas grandezas para quem melhor as merecer; eu por ora estou contente com a minha sorte.
— Isaura!... para que tanta crueldade!... escuta, — disse o moço lançando o braço ao pescoço de Isaura.
— Senhor Henrique! — gritou ella esquivando-se ao abraço, — por quem é, deixe-me em paz!
— Por piedade, Isaura! — insistio o rapaz continuando a querer abraçal-a; — oh!... não falles tão alto!... um beijo... um beijo só, e já te deixo...
— Se o senhor continúa, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar um momento, que não me venhão perturbar com declarações, que não devo escutar...
— Oh! como está altaneira! — exclamou Henrique, já um tanto agastado com tanta resistencia. — Não lhe falta nada!... tem até os ares desdenhosos de uma grande senhora!... não te arrufes assim, minha princeza...
— Arre lá, senhor! — bradou a escrava já no auge da impaciencia. — Já não bastava o senhor Leoncio!... agora vem o senhor tambem.....
— Como?... que estás dizendo?... também Leoncio?... oh!... oh! bem o coração me estava adivinhando!... que infamia!... mas de certo tu o escutas com menos impaciencia, não é assim?
— Tanto, como escuto ao senhor.
— Não duvido, Isaura; a lealdade, que deves á tua senhora, que tanto te estima, não te permitte que dês ouvidos áquelle perverso. Mas commigo o caso é differente; que motivo ha para seres cruel assim.
— Eu cruel para com meos senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de Deos!... Não esteja assim a escarnecer de uma pobre captiva.
— Não! não escarneço;... Isaura!... escuta, — exclamava Henrique forcejando para abraçal-a e furtar-lhe um beijo.
— Bravo!... bravissimo! — retumbou pelo salão uma voz acompanhada de sardonica e estrepitosa gargalhada.
Henrique voltou-se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação tinha-se-lhe gelado de subito no amago do coração.
Leoncio estava em pé no meio da porta, de braços cruzados e olhando para elle com sorriso do mais insultante escarneo.
— Bravo! muito bem, senhor meo cunhado! — continuou Leoncio no mesmo tom de mofa. — Está pondo em pratica bellissimamente as suas lições de moral!... requestando-me as escravas!... está galante!... sabe respeitar divinamente a casa de sua irmã!...
— Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os dentes de colera, e seo primeiro impulso foi investir de punho fechado, e responder com cachações aos insolentes sarcasmos do cunhado. Reflectindo porém um momento, sentio que lhe seria mais vantajoso empregar contra o seo aggressor a mesma arma, de que se servira contra elle, o sarcasmo, que as circumstancias lhe permittião vibrar de modo victorioso e decisivo. Acalmou-se pois, e com sorriso de soberano desdem:
— Ah! perdão, meo cunhado! — disse elle — não sabia que a peregrina joia do seo salão lhe merecesse tanto cuidado, que o levasse a ponto de andal-a espionando; creio, que tem mais zelo por ella, do que mesmo pelo respeito, que se deve á sua casa e a sua mulher. Pobre de minha irmã!... é bem simples, e admira, que ha mais tempo não tenha conhecido o bello marido, que possue!...
— O que estás dizendo, rapaz? — bradou Leoncio com gesto ameaçador; — repete; que estás dizendo?
— O mesmo, que o senhor acaba de ouvir, — redarguio Henrique com firmeza, — e fique certo, que o seo indigno procedimento não ha-de ficar por muito tempo occulto a minha irmã.
— Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?...
— Faça-se de esquerdo!... pensa que não sei tudo?... emfim, adeos, senhor Leoncio; eu me retiro, por que seria altamente inconveniente, indigno e ridiculo da minha parte estar a disputar com o senhor por amor de uma escrava.
— Espera, Henrique... escuta...
— Não, não; não tenho negocio nenhum com o senhor. Adeos! — disse e retirou-se precipitadamente.
Leoncio sentio-se esmagado, e arrependeo-se mil e uma vezes de ter provocado tão imprudentemente aquelle leviano e estouvado rapaz. Ignorava, que seo cunhado estivesse ao facto da paixão, que sentia por Isaura, e dos esforços, que empregava para vencer-lhe a isenção e lograr seos favores. E’ verdade que lhe havia fallado sem muito rebuço a esse respeito; mas algumas palavras ditas entre rapazes, em tom de mera chocarrice, não constituião base sufficiente, para que sobre ella Henrique podesse articular uma accusação séria contra elle em face de sua mulher. De certo a rapariga lhe havia revelado alguma cousa, e isto o fazia espumar de despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe importava a perturbação da paz domestica, o que o enfurecia era o perigo, em que se collocára de ver desconcertados os seos perversos designios sobre a gentil escrava.
— Maldição! — rugia elle lá comsigo. — Aquelle maluco é bem capaz de desconcertar todos os meos planos. Se sabe alguma cousa, como parece, não porá duvida em levar tudo aos ouvidos de Malvina...
Leoncio ficou por alguns momentos em pé, imovel, sombrio, carrancudo, com o espirito entregue á cruel inquietação, que o fustigava. Depois, pairando as vistas em derredor, deo com os olhos em Isaura, a qual, desde que Leoncio se apresentára, corrida, trémula e anhelante, fôra sumir-se em um canto da sala; dali presenciára em silenciosa anciedade a altercação dos dous moços, como corsa mal ferida escutando o rugir de dous tigres, que disputão entre si o direito de devoral-a. Por seo lado tambem se arrependia do intimo d’alma, e raivava contra si mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo de impaciencia deixára escapar de seos labios. Sua imprudencia ia ser causa da mais deploravel discordia no seio daquella familia, discordia, de que por fim de contas ella viria a ser a principal victima. A desavença entre os dous mancebos era como o choque de duas nuvens, que se encontrão e continuão a pairar tranquillamente no céo; mas o raio desprendido de seo seio teria de vir cahir certeiro sobre a fronte da infeliz captiva.
— Ah! estás ainda ahi?... fizeste bem, — disse Leoncio mal avistou Isaura, que trémula e confusa não ousára sahir do cantinho, a que se abrigára, e onde fazia mil votos ao céo, para que seo senhor não a visse, nem se lembrasse della naquelle momento. — Isaura, continuou elle, — pelo que vejo, andas bem adiantada em amores!... estavas a ouvir finezas daquelle rapazóla...
— Tanto como ouço as suas, meo senhor; por não ter outro remedio. Uma escrava, que ousasse olhar com amor para seos senhores, merecia ser severamente castigada.
— Mas tu disseste alguma cousa áquelle estouvado, Isaura?...
— Eu!? — respondeo a escrava perturbando-se; — eu nada, que possa offender nem ao senhor, nem a elle...
— Pesa bem as tuas palavras, Isaura; olha não procures enganar-me. Nada lhe disseste a meo respeito?
— Nada.
— Juras?
— Juro, — balbuciou Isaura.
— Ah! Isaura, Isaura!... tem cuidado. Se até aqui tenho soffrido com paciencia as tuas repulsas e desdens, não estou disposto a supportar, que em minha casa, e quasi em minha presença, estejas a escutar galanteios, de quem quer que seja, e muito menos revelar o que aqui se passa. Se não queres o meo amor, evita ao menos de incorrer no meo odio.
— Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir-me?
— Tens alguma razão; estou vendo, que me verei forçado a desterrar-te desta casa, e a esconder-te em algum canto, onde não sejas tão vista e cobiçada...
— Para que, senhor.....
— Basta; não te posso ouvir agora, Isaura. Não convem que nos encontrem aqui conversando a sós. Em outra occasião te escutarei. — E’ preciso estorvar, que aquelle estonteado vá intrigar-me com Malvina, — murmurava Leoncio retirando-se. — Ah! cão! maldita a hora, em que te trouxe a minha casa!
— Permitta Deos que tal occasião nunca chegue — exclamou tristemente dentro da alma a rapariga, vendo seo senhor retirar-se. Ella via com angustia e mortal desassocego as continuas e cada vez mais encarniçadas sollicitações de Leoncio, e não atinava com um meio de oppor-lhes um paradeiro. Resolvida a resistir até á morte, lembrava-se da sorte de sua infeliz mãe, cuja triste historia bem conhecia, pois a tinha ouvido, segredada a medo e mysteriosamente, da boca de alguns velhos escravos da casa, e o futuro se lhe antolhava carregado das mais negras e sinistras cores.
Revelar tudo a Malvina era o unico meio, que se lhe apresentava ao espirito para pôr termo ás ousadias do seo marido, e atalhar futuras desgraças. Mas Isaura amava muito sua jovem senhora para ousar dar semelhante passo, que iria derramar-lhe no seio um pégo de desgostos e amarguras, quebrando-lhe para sempre a risonha e doce illusão, em que vivia?
Preferia antes morrer como sua mãe, victima das mais crueis sevicias, do que ir por suas mãos lançar uma nuvem sinistra no ceo até ali tão sereno e bonançoso de sua querida senhora.
O pae de Isaura, o unico ente no mundo, que á excepção de Malvina se interessava por ella, pobre e simples jornaleiro não se achava em estado de poder protegel-a contra as perseguições e violencias, de que se achava ameaçada. Em tão cruel situação Isaura não sabia senão chorar em segredo a sua desventura, e implorar o ceo, do qual sómente podia esperar remedio a seos males.
Bem se comprehende pois agora aquelle accento tão dorido, tão repassado de angustia, com que cantava a sua canção favorita. Malvina enganava-se attribuindo sua tristeza a alguma paixão amorosa. Isaura conservava ainda o coração no mais puro estado de isenção. Com quanto mais dó não a teria lastimado sua boa e sensivel senhora, se podesse adivinhar a verdadeira causa dos pezares, que a ralavão.
Isaura despertando de suas pungentes e amargas preoccupações, tomou seo balainho de costura e ia deixar o salão, resolvida a sumir-se no mais escondido recanto da casa, ou amoitar-se em algum escondrijo do pomar. Esperava assim esquivar-se á repetição de scenas indecentes e vergonhosas, como essas por que acabava de passar. Apenas dera os primeiros passos foi detida por uma extravagante e grotesca figura, que penetrando no salão veio postar-se diante de seos olhos.
Era um monstrengo affectando formas humanas, um homunculo em tudo mal construido, de cabeça enorme, tronco rachitico, pernas curtas e arqueadas para fora, cabelludo como um urso, e feio como um mono. Era como um desses truões disformes, que formavão parte indispensavel do sequito de um grande rei da media idade, para divertimento delle e de seos cortezãos. A natureza esquecera de lhe formar o pescoço, e a cabeça disforme nascia-lhe de dentro de uma formidavel corcova, que a resguardava quasi como um capuz. Bem reparado todavia o rosto não era muito irregular, nem repugnante, e exprimia muita cordura, submissão e bonhomia.
Isaura teria soltado um grito de pavor, se ha muito não estivesse familiarizada com aquella estranha figura, pois era elle, sem mais nem menos, o senhor Belchior, fiel e excellente ilhéo, que ha muitos annos exercia naquella fazenda mui digna e conscienciosamente, apezar de sua deformidade e idiotismo, o cargo de jardineiro. Parece que as flores, que são o symbolo natural de tudo quanto é bello, puro e delicado, devião ter um cultor menos disforme e repulsivo. Mas quiz a sorte ou o capricho do dono da casa estabelecer aquelle contraste, talvez para fazer sobresahir a belleza de umas á custa da fealdade do outro.
Belchior tinha em uma das mãos o vasto chapéo de palha, que arrastava pelo chão, e com a outra empunhava, não um ramalhete, mas um enorme feixe de flores de todas as qualidades, á sombra das quaes procurava eclipsar sua disgraciosa e extravagante figura. Parecia um desses vasos de louça, de formas phantasticas e grotescas, que se enchem de flores para enfeitar bufetes e aparadores.
— Valha-me Deus! — pensou Isaura ao dar com os olhos no jardineiro. — Que sorte é a minha! ainda mais este!... este ao menos é de todos o mais supportavel: os outros me amofinão, e atormentão; este ás vezes me faz rir.
— Muito bem apparecido, senhor Belchior! então, o que deseja?
— Senhora Isaura, eu... eu... vinha,.., — resmungou embaraçado o jardineiro.
— Senhora!... eu senhora!... também o senhor pretende caçoar commigo, senhor Belchior?...
— Eu caçoar com a senhora!... não sou capaz... minha lingoa seja comida de bichos, se eu faltar com o respeito devido á senhora... Vinha trazer-lhe estas froles, se bem que a senhora mesma é uma frol...
— Arre lá, senhor Belchior!... sempre a dar-me de senhora!... se continúa por essa forma, ficamos mal, e não acceito as suas froles... Eu sou Isaura, escrava da senhora D. Malvina; ouvio, senhor Belchior!
— Embora lá isso; é sóverana cá deste coração, e eu, menina, dou-me por feliz se puder beijar-te os pés. Olha, Isaura...
— Ainda bem! Agora sim; trate-me desse modo.
— Olha, Isaura, eu sou um pobre jardineiro, lá isso é verdade; mas sei trabalhar, e não has-de achar vazio o meo mealheiro, onde já tenho mais de meio mil cruzados. Se me quizeres, como eu te quero, arranjo-te a liberdade, e caso-me contigo, que tambem não és para andar ahi assim como escrava de ninguem.
— Muito obrigada pelos seus bons desejos; mas perde seu tempo, senhor Belchior. Meos senhores não me libertão por dinheiro nenhum.
— Ah! devéras!... que malbados!... ter assim no catibeiro a rainha da fermosura!... mas não importa, Isaura; terei mais gosto em ser escravo de uma escrava como tu, do que em ser senhor dos senhores de cem mil captivos. Isaura!... não fazes idéa de como te quero. Quando vou molhar as minhas froles, estou a lembrar-me de ti com uma soidade!...
— Devéras! ora vio-se que amor!...
— Isaura! — continuou Belchior, curvando os joelhos, — tem piedade deste teo infeliz captivo...
— Levante-se, levante-se, — interrompeo Isaura com impaciencia. — Seria bonito que meos senhores viessem aqui encontral-o fazendo esses papeis!... que estou-lhe dizendo?... eil-os ahi!... ah! senhor Belchior!
De feito, de um lado Leoncio, e de outro Henrique e Malvina, os estavão observando.
Henrique, tendo-se retirado do salão, despeitado e furioso contra seo cunhado, assomado e leviano como era, foi encontrar a irmã na sala de jantar, onde se achava preparando o café e ali em presença della não hesitou em desabafar sua colera, soltando palavras imprudentes, que lançárão no espirito da moça o germen da desconfiança e da inquietação.
— Este teo marido, Malvina, não passa de um miseravel patife, — disse bufando de raiva.
— Que estás dizendo, Henrique?!... que te fez elle?... — perguntou a moça, espantada com aquelle rompante.
— Tenho pena de ti, minha irmã... se soubesses... que infamia!...
— Estás doudo, Henrique!... o que ha então?
— Permita Deos que nunca o saibas!... que vilania!...
— O que houve então, Henrique?... falla, explica-te por quem és, — exclamou Malvina, palida e offegante no cumulo da afflicção.
— Oh! que tens?... não te afflijas assim, minha irmã, — respondeu Henrique, já arrependido das loucas palavras que havia soltado. Tarde comprehendeo que fazia um triste e deploravel papel, servindo de mensageiro da discordia e da desconfiança entre dois esposos, que até ali vivião na mais perfeita harmonia e tranquillidade. Tarde e em vão procurou attenuar o terrivel effeito de sua fatal indiscrição.
— Não te inquietes, Malvina, continuou elle procurando sorrir-se; — teo marido é um formidavel turrão, eis ahi tudo; não vás pensar, que nos queremos bater em duello...
— Não; mas vieste espumando de raiva, com os olhos em fogo, e com um ar...
— Qual!... pois não me conheces?... sempre fui assim; por — dá cá aquella palha — pego fogo, mas tambem é fogo de palha.
— Mas pregaste-me um susto!...
— Coitada!... toma isto, — disse-lhe Henrique, offerecendo-lhe uma chicara de café, — é a melhor cousa que ha para aplacar sustos e ataques de nervos.
Malvina procurou acalmar-se, mas as palavras do irmão tinham-lhe penetrado no amago do coração, como a dentada de uma vibora, ahi deixando o veneno da desconfiança.
O aparecimento de Leoncio, que vinha do salão; pôz termo a este incidente. Os tres tomárão café á pressa e sem trocarem palavras; estavão já resabiados uns com outros, olhavão-se com desconfiança, e de um momento para outro a discordia insinuára-se no seio daquella pequena familia, ainda ha pouco tão feliz, unanime e tranquilla. Tomado o café retirárão-se, mas todos por um impulso instinctivo, dirigírão seos passos para o salão, Henrique e Malvina de braços dados pelo grande corredor da entrada, e Leoncio sósinho por compartimentos interiores, que comunicavão com o salão. Era ali com effeito, que se achava o pomo fatal, mas innocente, que devia servir de instrumento da desunião e descalabro daquella nascente familia.
Chegárão ainda a tempo de presenciar o final da scena ridicula, que Belchior representava aos pés de Isaura. Leoncio porém, que os espiava através das sanéfas entre-abertas de uma alcôva, não avistava Henrique e Malvina, que havião parado no corredor junto á porta da entrada.
— Oh! oh! — exclamou elle no momento em que Belchior prostrava-se aos pés de Isaura. Creio que tenho dentro de casa um idolo, diante do qual todos vem ajoelhar-se e render adorações!... até o meo jardineiro!... O’lá, senhor Belchior, está bonito!... Continue com a farça, que não está má... mas para tratar dessa flor não precisamos de seos cuidados, não; tem entendido, senhor Belchior!...
— Perdão, senhor meo, — balbuciou o jardineiro erguendo-se trémulo e confuso; — eu vinha trazer estas froles para os basos da sala...
— E apresentál-as de joelhos!... essa é galante!... Se continúa nesse papel de galant, declaro-lhe que o ponho pela porta fora com dous pontapés nessa corcóva.
Corrido, confuso e azoinado, Belchior, cambaleando e esbarrando pelas cadeiras, lá se foi ás cegas em busca da porta da rua.
— Isaura! ó minha Isaura! — exclamou Leoncio sahindo da alcôva, avançando com os braços abertos para a rapariga, e dando á voz até ali aspera a rude, a mais suave e terna inflexão.
Um ai agudo e pungente, que echoou pelo salão, o fez parar mudo, gelido e petrificado. Tinha avistado no meio da porta Malvina, que palida e desfallecida occultava a fronte no hombro de seo irmão, que a amparava nos braços.
— Ah! meo irmão! — exclamou ella voltando de seo deliquio, — agora comprehendo tudo que ainda ha pouco me dizias.
E com uma das mãos comprimindo o coração, que parecia querer-lhe estalar de dor, e com a outra escondendo no lenço as lagrimas, que dos formosos olhos lhe brotavão aos paser, correo a encerrar-se em seo aposento.
Leoncio desconcertado pelo terrivel contratempo, de que acabava de ser victima, ficou largo tempo a passear, frenetico e agitado, de um a outro lado ao longo do salão, furioso contra o cunhado, a cuja impertinente leviandade attribuía as fataes occurrencias daquella manhã, que ameaçavão burlar todos os seos planos sobre Isaura, e excogitando meios de safar-se das difficuldades em que se via empenhado.
Isaura, tendo resistido em menos de uma hora a tres abordagens consecutivas, dirigidas contra o seo pudor e isenção, aturdida, cheia de susto, confusão e vergonha, correo a esconder-se entre os laranjaes como lebre medrosa, que ouve ladrarem pelos prados os galgos encarniçados a seguirem-lhe a pista.
Henrique altamente indignado contra o cunhado, não lhe queria ver a cara; tomou sua espingarda e sahio disposto a passar o dia inteiro passarinhando pelos matos, e a retirar-se impreterivelmente para a côrte ao romper do dia seguinte.
Os escravos ficárão pasmos, quando á hora do almoço Leoncio achou-se sósinho á mesa. Leoncio mandou chamar Malvina, mas esta, pretextando uma indisposição, não quiz sahir de seo quarto. Seo primeiro movimento foi um impeto de colera brutal; esteve a ponto de atirar toalha, pratos, talheres e tudo pelos ares, e ir esbofetear o desassisado e insolente rapaz, que em má hora viera á sua casa para perturbar a tranquillidade do seo viver domestico. Mas conteve-se a tempo, e acalmando-se entendeo, que melhor era não se dar por achado, e encarar com ares da maior indiferença e mesmo de desdem, os arrufos da esposa, e o máo humor do cunhado. Estava bem persuadido que lhe seria difficil se não impossivel dissimular mais aos olhos da esposa o seo torpe procedimento; incapaz porém de retratar-se e implorar perdão, resolveo amparar-se da tempestade, que ia despenhar-se sobre sua cabeça, com o escudo da mais cynica indifferença. Inspiravão-lhe este alvitre o orgulho, e o máo conceito em que tinha todas as mulheres, nas quaes não reconhecia pundonor nem dignidade.
Depois do almoço Leoncio montou a cavallo, percorreo as roças e cafesaes, cousa que bem raras vezes fazia, e ao descambar do sol voltou para casa, jantou com o maior socego e appetite, e depois foi para o salão, onde repoltreando-se em macio e fresco sofá, pôz-se a fumar tranquillamente o seo havana.
Nesse comenos chega Henrique de suas excursões venatorias, e depois de procurar em vão a irmã por todos os cantos da casa, vae en fim encontral-a encerrada em seo quarto de dormir desfigurada, palida, e com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar.
— Por onde andaste, Henrique?... estava afflicta por te ver, — exclamou a moça ao avistar o irmão. — Que má moda é essa de deixar a gente assim sósinha!...
— Sósinha?!... pois até aqui não vivias sem mim na companhia de teo belo marido?...
— Não me falles nesse homem... eu andava illudida; agora vejo que andava peor do que sósinha, na companhia de um perverso.
— Ainda bem, que presenciaste com teos proprios olhos o que eu não tinha animo de dizer-te. Mas, vamos! que pretendes fazer?...
— O que pretendo?... vás ver neste mesmo instante... Onde está elle?... viste-o por ahi?...
— Se me não engano, vi-o no salão; havia lá um vulto sobre um sofá.
— Pois bem, Henrique; acompanha-me até lá.
— Por que razão não vás só? poupa-me o desgosto de encarar aquelle homem...
— Não, não; é preciso, que vás commigo; estava á tua espera mesmo para esse fim. Preciso de uma pessoa, que me ampare e me alente. Agora até tenho medo delle.
— Ah! comprehendo; queres que eu seja teo guarda-costa, para poderes descompor a teo geito aquelle birbante. Pois bem; presto-me de boa vontade, e veremos se o patife tem o atrevimento de te desrespeitar. Vamos! —
— Senhor Leoncio, — disse Malvina com voz alterada approximando-se do sofá, em que se achava o marido, — desejo dizer-lhe duas palavras, se isso não o incommoda.
— Estou sempre ás tuas ordens, querida Malvina, — respondeo levantando-se lesto e risonho, e como quem nenhum repáro fizera no tom ceremonioso, com que Malvina o tratava. — Que me queres?...
— Quero dizer-lhe, — exclamou a moça em tom severo, e fazendo vãos esforços para dar ao seo lindo e mavioso semblante um ar feroz, — quero dizer-lhe, que o senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa, da maneira a mais indigna e desleal...
— Santo Deos!... que estás ahi a dizer, minha querida?... explica-te melhor, que não comprehendo nem uma palavra do que dizes...
— E’ debalde, que o senhor se finge sorprehendido; bem sabe a causa do meo desgosto. Eu já devia ter presentido esse seo vergonhoso procedimento; ha muito que o senhor não é o mesmo para commigo, e me trata com tal frieza e indifferença...
— Oh! meo coração, pois querias que durasse eternamente a lua de mel?... isso seria horrivelmente monotono e prosaico.
— Ainda escarneces, infame! — bradou a moça, e desta vez as faces se lhe afogueárão de extraordinario rubor, e fuzilárão-lhe nos olhos lampejos de colera terrivel.
— Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando, — disse Leoncio procurando tomar-lhe a mão.
— Boa occasião para gracejos!... deixe-me, senhor!... que infamia!... que vergonha para nós ambos?...
— Mas emfim não te explicarás?
— Não tenho que explicar; o senhor bem me entende. Só tenho que exigir...
— Pois exige, Malvina.
— Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor costuma vilmente prostrar-se: liberte-a, venda-a, faça o que quizer. Ou eu ou ella havemos de abandonar para sempre esta casa; e isto hoje mesmo. Escolha entre nos.
— Hoje!?
— E já!
— És muito exigente e injusta para commigo, Malvina, — disse Leoncio depois de um momento de pasmo e hesitação. — Bem sabes que é meo desejo libertar Isaura; mas acaso depende isso de mim sómente? é a meo pae, que compete fazer o que de mim exiges.
— Que miseravel desculpa, senhor! seo pae já lhe entregou escravos e fazenda, e dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer. Mas se acaso o senhor a prefere a mim....
— Malvina!... não digas tal blasphemia!...
— Blasphemia!... quem sabe!... mas em fim dê um destino qualquer a essa rapariga, se não quer expellir-me para sempre de sua casa. Quanto a mim não a quero mais nem um momento em meo serviço; é bonita demais para mucama.
— O que lhe dizia eu, senhor Leoncio? acudio Henrique, que já cançado e envergonhado do papel de mudo guarda-costas, entendeu que devia intervir tambem na querella. — Está vendo?... eis-ahi o fructo que se colhe d’esses belos trastes de luxo, que quer por força ter em seo salão...
— Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem vis mexeriqueiros, que não hesitam em perturbar o socego da casa dos outros para conseguir seos fins perversos...
— Alto lá, senhor!.., para impedir, que o senhor não transportasse o seu traste de luxo do salão para a alcova, percebe?... o escandalo cedo ou tarde seria notorio, e nenhum dever tenho eu de ver de braços cruzados minha irmã indignamente ultrajada.
— Senhor Henrique! bradou Leoncio avançando para elle, hirto de colera e com gesto ameaçador.
— Basta, senhores! — gritou Malvina interpondo-se aos dois mancebos. — Toda a disputa por tal motivo é inutil e vergonhosa para nós todos. Eu já disse a Leoncio o que tinha de dizer; elle que se decida; faça o que entender. Se quizer ser homem de brio e pundonor, ainda é tempo. Se não, deixe-me, que eu o entregarei ao desprezo, que merece.
— Oh! Malvina! estou prompto a fazer todo o possivel para te tranquillizar e contentar; mas deves saber que não posso satisfazer o teo desejo sem primeiro entender-me com meo pae, que está na côrte. É preciso mais que saibas, que meo pae nenhuma vontade tem de libertar Isaura, tanto assim, que para se ver livre das importunações do pae della, que tambem quer a todo custo libertal-a; exigio uma somma por tal forma exorbitante, que é quase impossivel o pobre homem arranjal-a.
— Ó de casa!... dá licença? — bradou neste momento com voz forte e sonora uma pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.
— Quem quer que é, pode entrar, — gritou Leoncio dando graças ao céo, que tão a proposito mandava-lhe uma visita para interromper aquella importuna e detestavel questão e livral-o dos apuros, em que se via entalado.
Entretanto, como se verá, não tinha muito de que congratular-se. O visitante era Miguel, o antigo feitor da fazenda, o pae de Isaura, que havia sido outrora grosseiramente despedido pelo pae de Leoncio.
Este, que ainda o não conhecia, recebeo-o com affabilidade.
— Queira sentar-se, — disse-lhe, — e dizer-nos o motivo por que nos faz a honra de procurar.
— Obrigado! — disse o recemchegado, depois de cumprimentar respeitosamente Henrique e Malvina. — Vª. Sª. sem duvida é o senhor Leoncio?...
— Para o servir.
— Muito bem!... é com Vª. S.ª, que tenho de tratar na falta do senhor seo pae. O meo negocio é simples, e julgo que o posso declarar em presença aqui do senhor e da senhora, que me parecem ser pessoas de casa.
— Sem duvida! entre nós não há segredo, nem reservas.
— Eis aqui ao que vim, senhor meo, — disse Miguel, tirando da algibeira de seo largo sobretudo uma carteira, que apresentou a Leoncio; — faça o favor de abrir esta carteira; aqui encontrará Vª. Sª. a quantia exigida pelo senhor seo pae, para a liberdade de uma escrava desta casa por nome Isaura.
Leoncio enfiou, e tomando machinalmente a carteira, ficou alguns instantes com os olhos pregados no teto.
— Pelo que vejo, — disse por fim, — o senhor deve ser o pae.... aquelle que dizem ser o pae da dita escrava;... — é o senhor.... — não me lembra o nome....
— Miguel, um criado de Vª. Sª.
— É verdade; o senhor Miguel. Folgo muito que tenha arranjado meios de libertar a menina; ella bem merece esse sacrificio.
Enquanto Leoncio abre a carteira, e conta e reconta mui pausadamente nota por nota o dinheiro, mais para ganhar tempo a reflectir sobre o que deveria fazer naquellas conjuncturas, do que para verificar se estava exacta a somma, aproveitemo-nos do ensejo para contemplar a figura do bom e honrado portuguez, pae da nossa heroina, de quem ainda não nos occupámos senão de passagem.
Era um homem de mais de cincoenta annos; em sua physionomia nobre e aberta transpirava a franqueza, a bonhomia, e a lealdade.
Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras e conversação conhecia-se, que aquelle homem não viéra ao Brazil, como quasi todos os seos patricios, dominado pela ganancia de riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de accurada educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada familia de Miguelistas, que havia emigrado para o Brazil. Seos paes, victimas de perseguições politicas, morrerão sem ter nada que legar ao filho, que deixárão na idade de dezoito a vinte annos. Sósinho, sem meios e sem protecção, vio-se forçado a viver do trabalho de seos braços, mettendo-se a jardineiro e horticultor, mister este, que como filho de lavrador, robusto, activo e intelligente desempenhava com summa pericia e perfeição.
O pae de Leoncio, tendo tido occasião de conhecel-o, e apreciando o seo merecimento, o engajou para feitor de sua fazenda com vantajosas condições. Ali servio muitos annos sempre mui respeitado e querido de todos, até que aconteceo-lhe a fatal, mas muito desculpavel fraqueza, que sabemos, e em consequencia da qual foi grosseiramente despedido por seo patrão. Miguel concebeo amargo resentimento e magoa profunda, não tanto por si, como por amor das duas infelizes creaturas, que não podia proteger contra a sanha de um senhor perverso e brutal. Mas forçoso lhe foi resignar-se. Não lhe faltava serviço nem acolhimento pelas fazendas vizinhas. Conhecedores de seo merito, os lavradores em redór o aceitarião de braços abertos; a difficuldade estava na escolha. Optou pelo mais vizinho, para ficar o mais perto possivel de sua querida filhinha.
Como o commendador quase sempre achava-se na côrte ou em Campos, Miguel tinha muita occasião e facilidade de ir ver a menina, á qual cada vez ia criando mais entranhado affecto. A esposa do commendador, na ausencia deste, dava ao portuguez franca entrada em sua casa, e facilitava-lhe os meios de ver e affagar a filhinha, com o que vivia elle mui consolado e contente. De feito o céo tinha dado á sua filha na pessoa de sua senhora uma segunda mãe tão boa e desvelada, como poderia ser a primeira, e que mais do que esta lhe podia servir de amparo e protecção. A morte inesperada daquella virtuosa senhora veio despedaçar-lhe o coração, quebrando-lhe todas as suas lisonjeiras esperanças.
Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensivel!... Miguel sobrepujando todo o odio, repugnancia e asco, que lhe inspirava a pessoa do commendador, não hesitou em ir humilhar-se diante delle, importunal-o com suas supplicas, rogar-lhe com as lagrimas nos olhos, que abrisse preço á liberdade de Isaura.
— Não ha dinheiro que a pague; ha-de ser sempre minha, — respondia com orgulhoso cynismo o inexoravel senhor ao infeliz e afflicto pae.
Um dia enfim para se ver livre das importunações e supplicas de Miguel, disse-lhe com máo modo.
— Homem de Deos, traga-me dentro de um anno dez contos de réis, e lhe entrego livre a sua filha e... deixe-me por caridade. Se não vier nesse prazo, perca as esperanças.
— Dez contos de réis! é somma demasiado forte para mim;.. — mas não importa!... ella vale muito mais do que isso. Senhor commendador, vou fazer o impossivel para trazer-lhe essa somma dentro do prazo marcado. Espero em Deos, que me ha-de ajudar.
O pobre homem, á força de trabalho e economia, impondo-se privações, vendendo todo o superfluo, e limitando-se ao que era estrictamente necessario, no fim do anno apenas tinha arranjado metade da quantia exigida. Foi-lhe mister recorrer á generosidade de seo novo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se propunha seo feitor, e do vexame e extorsão, de que era victima, não hesitou em fornecer-lhe a somma necessaria, a titulo de emprestimo ou adiantamento de salarios.
Leoncio, que como seo pae julgava impossivel que Miguel em um anno pudesse arranjar tão consideravel somma, ficou atonito e altamente contrariado, quando este se apresentou para lh’a metter nas mãos.
— Dez contos, — disse por fim Leoncio acabando de contar o dinheiro. — E’ justamente a somma exigida por meo pae. — Bem estólido e avaro é este meo pae, murmurou elle comsigo, — eu nem por cem contos a daria. — Senhor Miguel, — continuou em voz alta, entregando-lhe a carteira, — guarde por ora o seo dinheiro; Isaura não me pertence ainda; só meo pae póde dispor della. Meo pae acha-se na côrte, e não deixou-me autorisação alguma para tratar de semelhante negocio. Arranje-se com elle.
— Mas Vª. Sª. é seo filho e herdeiro unico, e bem podia por si mesmo...
— Alto lá, senhor Miguel! meo pae felizmente é vivo ainda, e não me é permitido desde já dispor de seos bens, como minha herança.
— Embora, senhor; tenha a bondade de guardar esse dinheiro e envial-o ao senhor seo pae, rogando-lhe da minha parte o favor de cumprir a promessa, que me fez de dar liberdade a Isaura mediante essa quantia.
— Ainda pões duvida, Leoncio?! — exclamou Malvina impaciente e indignada com as tergiversações do marido. — Escreve, escreve quanto antes a teo pae; não te podes esquivar sem desonra a cooperar para a liberdade dessa rapariga.
Leoncio, subjugado pelo olhar imperioso da mulher, e pela força das circumstancias, que contra elle conspiravão, não poude mais escusar-se. Pálido, sombrio e pensativo, foi sentar-se junto a uma mesa, onde havia papel e tinta, e de penna em punho pôz-se a meditar em attitude, de quem ia escrever. Malvina e Henrique, debruçados a uma janella, conversavão entre si em voz baixa. Miguel, sentado a um canto na outra extremidade da sala, esperava pacientemente, quando Isaura, que do quintal, onde se achava escondida, o tinha visto chegar, entrando no salão sem ser sentida, se lhe apresentou diante dos olhos. Entre pai e filha travou-se a meia voz o seguinte diálogo:
— Meo pae!... que novidade o traz por aqui?... a modo que lhe estou vendo um ar mais alegre que de costume.
— Caludo! — murmurou Miguel, levando o dedo á boca e apontando para Leoncio. — Trata-se da tua liberdade.
— Devéras meo pae!... mas como poude arranjar isso?
— Ora como?!... a peso de ouro. Comprei-te, minha filha, e em breve vás ser minha.
— Ah! meo querido pae!... como vmce. é bom para sua filha!... se soubesse, quantos hoje já me vieram offerecer a liberdade!... mas por que preço! meo Deos!... nem me atrevo a lhe contar. Meo coração adivinhava, continuou beijando com terna efusão as mãos de Miguel; — eu não devia receber a liberdade senão das mãos daquelle, que me deo a vida!...
— Sim, querida Isaura! — disse o velho apertando-a contra o coração. — O céo nos favoreceo, e em breve vás ser minha, minha só, minha para sempre!...
— Mas elle consente?.. perguntou Isaura apontando para Leoncio.
— O negocio não é com elle, é com seo pae, a quem agora escreve.
— Nesse caso tenho alguma esperança; mas se minha sorte depender sómente daquelle homem, serei para sempre escrava.
— Arre! com mil diabos!... resmungou comsigo Leoncio levantando-se, e dando sobre a mesa um furioso murro com o punho fechado. — Não sei que volta hei-de dar para desmanchar esta inqualificavel loucura de meo pae!
— Já escreveste, Leoncio? — perguntou Malvina voltando-se para dentro.
Antes que Leoncio pudesse responder a esta pergunta, um pajem, entrando rapidamente pela sala, entrega-lhe uma carta tarjada de preto.
— De luto!... meo Deos!... que será! — exclamou Leoncio, pálido e trémulo, abrindo a carta, e depois de a ter percorrido rapidamente com os olhos lançou-se sobre uma cadeira, soluçando e levando o lenço aos olhos.
— Leoncio! Leoncio!.. que tem?.. exclamou Malvina pálida de susto; e tomando a carta que Leoncio atirára sobre a mesa, começou a ler com voz entre-cortada:
«Leoncio, tenho a dar-te uma dolorosa noticia, para a qual teo coração não podia estar preparado. E’ um golpe, pelo qual todos nós temos de passar inevitavelmente, e que deves suportar com resignação. Teo pae já não existe; sucumbio ante-hontem subitamente, victima de uma congestão cerebral...»
Malvina não poude continuar; e nesse momento esquecendo-se das injurias e de tudo que lhe havia acontecido naquelle nefasto dia, lançou-se sobre seo marido, e abraçando-se com elle estreitamente, misturáva suas lagrimas com as delle.
— Ah! meo pae! meo pae!... tudo está perdido! — exclamou Isaura, pendendo a linda e pura fronte sobre o peito de Miguel. — Já nenhuma esperança nos resta!...
— Quem sabe, minha filha! — replicou gravemente o pai. — Não desanimemos; grande é o poder de Deus!...
Na fazenda de Leoncio havia um grande salão toscamente construido, sem forro nem soalho, destinado ao trabalho das escravas, que se occupavão em fiar e tecer lã e algodão.
Os moveis deste lugar consistião em tripeças, tamboretes, bancos, rodas de fiar, dobadouras, e um grande tear collocado a um canto.
Ao longo do salão defronte de largas janellas guarnecidas de balaústres, que davão para um vasto pateo interior, via-se postada uma fila de fiandeiras. Erão de vinte a trinta negras, creoulas e mulatas, com suas tenras crias ao collo ou pelo chão a brincarem em derredor dellas. Umas conversavão, outras cantarolavão para encurtarem as longas horas de seo fastidioso trabalho. Vião-se ali caras de todas as idades, cores e feitios, desde a velha africana, trombuda e macilenta, até á roliça e luzidia crioula, desde a negra brunida como azeviche até á mulata quasi branca.
Entre estas ultimas distinguia-se uma rapariguinha a mais faceira e gentil que se pode imaginar nesse genero. Esbelta e flexivel de corpo, tinha o rostinho mimoso, labios um tanto grossos, mas bem modelados, voluptuosos, humidos, e vermelhos como boninas, que acabão de desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não erão muito grandes, mas tinhão uma viveza e travessura encantadora. Os cabellos negros e annelados, podião estar bem na cabeça da mais branca fidalga de além-mar. Ella porém os trazia curtos e mui bem frisados á maneira dos homens. Isto longe de tirar-lhe a graça, dava á sua physionomia zombeteira e espevitada um chiste original e encantador. Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe tremião nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos e offegantes seios que como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavão por baixo de transparente camisa, tomal-a-hieis por um rapazete maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era esta creança, que tinha o bonito nome de Rosa.
No meio do sussurro das rodas, que giravão, das monotonas cantarólas das fiandeiras, do compassado estrepito do tear, que trabalhava incessantemente, dos guinchos e alaridos das creanças, quem prestasse attento ouvido, escutaria a seguinte conversação, travada timidamente e a meia voz em um grupo de fiandeiras, entre as quaes se achava Rosa.
— Minhas camaradas, — dizia a suas vizinhas uma creoula idosa, matreira e sabida em todos os mysterios da casa desde os tempos dos senhores velhos, — agora que sinhô velho morreo, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de seo pae della, é que nós vamos ver o que é rigor de captiveiro.
— Como assim, tia Joaquina?!...
— Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado = atrás de mim virá quem bom me fará =. Este sinhô moço Leoncio... hum!... Deos queira que me engane... quer-me parecer que vae-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho...
— Cruz! ave Maria!... não falla assim, tia Joaquina!... então é melhor matar a gente uma vez...
— Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós tudo vae p’ra roça puxar enxada de sol a sol, ou p’ra o cafezal apanhar café, e o pirahy do feitor ahi rente atrás de nós. Vocês verão. Elle o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.
— Também a dizer a verdade, não sei o que será melhor, — observou outra escrava, — se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda, desde que amanhece até nove, dez horas da noite. Quer-me parecer, que lá ao menos a gente fica mais á vontade.
— Mais á vontade?!.. que esperança! — exclamou uma terceira — Antes aqui mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre do maldito feitor.
— Qual, minha gente! — ponderou a velha creoula, — tudo é captiveiro. Quem teve a desgraça de nascer captivo de um máo senhor, dê por aqui, dê por acolá, há-de penar sempre. Captiveiro é má sina; não foi Deos que botou no mundo semelhante cousa, não; foi invenção do diabo. Não vê o que aconteceo co’a pobre Juliana, mãe de Isaura?...
— Por fallar nisso, — atalhou uma das fiandeiras, — o que fica fazendo agora a Isaura?... em quanto sinhá Malvina estava ahi, ella andava de estadão na sala, agora...
— Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, — acudio Rosa com seo sorriso maligno e zombeteiro.
— Cala a boca, menina! — bradou com voz severa a velha creoula. — Deixa dessas fallas. Coitada da Isaura! Deos te livre a você de estar na pelle daquella pobresinha! se vocês soubessem, quanto penou a pobre da mãe della! ah! aquelle sinhô velho foi um home judeo mesmo, Deos te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leoncio a cousa vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor desta Rosa, mas inda mais bonita e mais bem feita....
Rosa deo um muchocho, e fêz um momo desdenhoso.
— Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! — continuou a creoula velha. — O ponto foi sinhô velho gostar della... eu já contei a vocês o que é que aconteceo. Juliana era uma rapariga de brio, e por isso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel, que anda ahi, e que é pai de Isaura. Isso é que era feitor bom!.. todo mundo queria elle bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco, que ahi anda agora, cruz nelle!.. é a peor peste que tem botado os pés nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito de Juliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar ella. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o feitor para fora.
Também Juliana pouco durou; perahy e serviço deo co’ela na cova em pouco tempo. Ficou ahi a pobre menina ainda de mama, e se não fosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deos sabe o que seria della!... também, coitada!... antes Deos a tivesse levado!...
— Por que, tia Joaquina?...
— Por que está-me parecendo, que ella vae ter a mesma sina da mãe...
— E o que mais merece aquella impostora? — murmurou a invejosa e malevola Rosa. — Pensa, que por estar servindo na sala é melhor do que as outras, e não faz caso de ninguem. Deo agora em namorar os moços brancos, e como o pae diz que ha-de forrar ella, pensa que e uma grande senhora. Pobre do senhor Miguel!.. não tem onde cahir morto, e ha-de ter para forrar a filha!
— Que má lingua é esta Rosa! — murmurou enfadada a velha creoula, relanceando um olhar de reprehensão sobre a mulata. — Que mal te fêz a pobre Isaura, aquella pomba sem fel, que com ser o que é, bonita e civilisada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguem?.. Se você se pilhasse no lugar della, pachóla e attrevida como és, havias de ser mil vezes peór.
Rosa mordeo os beiços de despeito, e ia responder com todo o atrevimento e desgarre, que lhe era proprio, quando uma voz áspera e atroadora, que partindo da porta do salão retumbou por todo elle, veio pôr termo á conversação das fiandeiras.
— Silencio! — bradava aquella voz. — Arre! que tagarelice!.. parece que aqui só se trabalha de lingua!..
Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de physionomia dura e repulsiva, apresenta-se á porta do salão, e vae entrando. Era o feitor. Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto e aperaltado, trajando uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de fiar. Logo após elles entrou Isaura.
As escravas todas levantárão-se e tomárão a benção ao feitor. Este mandou collocar a roda em um espaço desoccupado, que infelizmente para Isaura ficava ao pé de Rosa.
— Anda cá, rapariga; — disse o feitor voltando-se para Isaura. — De hoje em diante é aqui o teo lugar; esta roda te pertence, e tuas parceiras que te dêm tarefa para hoje. Bem vejo, que te não ha-de agradar muito a mudança; mas que volta se lhe ha-de dar?... teo senhor assim o quer. Anda lá; olha, que isto não é piano, não; é acabar depressa com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar...
Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova occupação, que lhe davão, Isaura foi sentar-se junto á roda, e pôz-se a preparal-a para dar começo ao trabalho. Posto que creada na sala, e empregada quasi sempre em trabalhos delicados, todavia era ella habil em todo o genero de serviço domestico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cosinhar tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois collocar-se com toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas notava-se no sorriso, que lhe adejava nos labios, certa expressão de melancolica resignação; mas isso era o reflexo das inquietações e angustias, que lhe opprimião o coração, que não desgosto por se ver degradada do posto que ocupára toda sua vida junto de suas senhoras. Conscia de sua condição Isaura procurava ser humilde como qualquer outra escrava, por que a despeito de sua rara belleza e dos dotes de seo espirito, os fumos da vaidade não lhe entumecião o coração, nem turvavão-lhe a luz de seo natural bom senso. Não obstante porém toda essa modestia e humildade transluzia-lhe, mesmo a despeito della, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo, proveniente talvez da consciencia de sua superioridade, e ella sem o querer sobresahia entre as outras, bella e donosa, pela correcção e nobreza dos traços physionomicos e por certa distincção nos gestos e ademanes. Ninguem diria que era uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que por desenfado fiava entre as escravas. Parecia a garça real, alçando o collo garboso e altaneiro, entre uma chusma de passaros vulgares.
As outras escravas a contemplavão todas com certo interesse e comiseração, por que de todas era querida, menos de Rosa, que lhe tinha inveja e aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado do motivo desta malevolencia de Rosa. Não era só pura inveja; havia ahi alguma cousa de mais positivo, que convertia essa inveja em odio mortal. Rosa havia sido de ha muito a amasia de Leoncio, para quem fôra facil conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que porém inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida. A gentil mulatinha sentio-se cruelmente ferida em seo coração com esse desdem, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seo senhor, jurou descarregar todo o peso de seo rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.
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— Um raio que te parta, maldito! — Má lepra te consuma, cousa ruim! — Uma cascavel que te morda a lingoa, cão danado? — Estas e outras pragas vomitavão as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos odios. E’ abominado mais do que o senhor cruel, que o munio do azorrague desapiedado para açoital-os e acabrunhal-os de trabalhos. E’ assim, que o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz, que a executa.
Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar-se perto de Rosa. Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de dicterios e remoques sarcasticos e irritantes.
— Tenho bastante pena de você, Isaura, disse Rosa para dar começo ás operações.
— Devéras! — respondeo Isaura, disposta a opor ás provocações de Rosa toda a sua natural brandura e paciencia. — Pois por que, Rosa?...
— Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofá de damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa roda? Por que te enxotárão de lá Isaura?
— Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina foi-se embora em companhia de seo irmão para a casa do pae della. Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui trabalhar com vocês.
— E por que é, que ella não te levou, você, que era o ai! Jesus della?... Ah! Isaura, você cuida que me embaça, mas está muito enganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada, e por isso veio aqui para conhecer o seo lugar.
— Como és maliciosa! — replicou Isaura sorrindo tristemente, mas sem se alterar; — pensas então que eu andava muito contente e cheia de mim por estar lá na sala no meio dos brancos?... como te enganas!... se me não perseguires com a tua má lingua, como principias a fazer, creio que hei-de ficar mais satisfeita e socegada aqui.
— Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui, se não acha moços para namorar?
— Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me com essas fallas?...
— Olhe a sinhá não se zangue!... perdão, dona Isaura; eu pensei, que a senhora tinha esquecido os seos melindres lá no salão.
— Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala ou na cosinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Tambem deves-te lembrar, que se hoje te achas aqui, ámanhã sabe Deos onde estarás. Trabalhemos, que é nossa obrigação, e deixemos dessas conversas que não tem graça nenhuma.
Neste momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; erão tres para quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As escravas suspendem seos trabalhos, e levantão-se; Isaura porém não se move, e continúa a fiar.
— Então? — diz-lhe Rosa com o seo ar escarninho, — você não ouve, Isaura? são horas; vamos ao feijão.
— Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma. Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.
— Tem razão; tambem uma rapariga civilisadona e mimosa como você não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mande um caldinho, um chocolate?...
— Cala essa boca, tagarella! — bradou a creoula velha, que parecia ser a priora daquelle rancho de fiandeiras. — Forte linguinha de vibora!... deixa a outra socegar. Vamos, minha gente.
As escravas retirárão-se todas do salão, ficando só Isaura, entregue ao seo trabalho e mais ainda ás suas tristes e inquietadoras reflexões. O fio se estendia como que machinalmente entre seos dedos mimosos, emquanto o pésinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho de marroquim, pousava sobre o pedal da roda, a que dava automatico impulso. A fronte lhe pendia para um lado como assucena esmorecida, e as palpebras meio cerradas eram como véos melancolicos, que encobrião um pégo insondavel de tristura e desconforto. Estava deslumbrante de belleza naquella encantadora e singela attitude.
— Ah! meo Deos! — pensava ella; nem aqui posso achar um pouco de socego!... em toda parte jurárão martyrizar-me!... Na sala os brancos me perseguem, e armão mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranquilla, ha uma, que por inveja ou seja lá pelo que fôr, me olha de revés e só trata de achincalhar-me. Meo Deos! meo Deos!... já que tive a desgraça de nascer captiva, não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras, do que ter recebido do céo estes dotes, que só servem para amargurar-me a existencia?
Isaura não teve muito tempo para dar larga expansão ás suas angustiosas reflexões. Ouvio rumor na porta, e levantando os olhos vio que alguem se encaminhava para ella.
— Ai! meo Deos! — murmurou comsigo. — Ahi temos nova importunação! nem ao menos me deixão ficar sósinha um instante.
Quem entrava, era sem mais nem menos, o pajem André, que já vimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e petulante se foi collocar defronte de Isaura.
— Boa tarde, linda Isaura. Então, como vae essa flor? — saudou o pachola do pajem com toda a faceirice.
— Bem, respondeo secamente Isaura.
— Estás amuada?... tens razão, mas é preciso ir-se accomodando com este novo modo de vida. Devéras que para quem estava acostumada lá na sala, no meio de sedas e flores e agoas de cheiro, ha-de ser bem triste ficar aqui mettida entre estas paredes enfumaçadas que só tresandão a sarro de pito e murrão de candeia.
— Tambem tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da occasião para me atirar lama na cara?...
— Não, não, Isaura; Deos me livre de te offender; pelo contrario, dóe-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco. Este senhor Leoncio tem mesmo um coração de fera.
— E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.
— Qual!... não acredito; não é aqui teo lugar. Mas tambem por outra banda estimo bem isso.
— Por que?
— Por que, emfim, Isaura, a fallar-te a verdade gosto muito de você, e aqui ao menos podemos conversar mais em liberdade...
— Devéras!... declaro-te desde já, que não estou disposta a ouvir tuas liberdades.
— Ah! é assim! — exclamou André todo enfunado com este brusco desengano. — Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura, do que este seo criado. Ando sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais é, — acrescentou batendo com a mão na algibeira, — com as algibeiras sempre a tinir. A Rosa, que tambem é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares por mim; mas coitada!... o que é ella ao pé de você?... Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de fazer tão pouco caso de mim. Se tu quizesses, olha... escuta.
E dizendo isto o maroto do pajem, avisinhando-se de Isaura, foi-lhe lançando desembaraçadamente o braço em torno do collo, como quem queria fallar-lhe em segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.
— Alto lá! — exclamou Isaura repellindo-o com enfado. — Está ficando bastante adiantado e atrevido. Retire-se daqui, senão irei dizer tudo ao senhor Leoncio.
— Oh! perdoa, Isaura; não ha motivo para você se arrufar assim. E’s muito má, para quem nunca te ofendeo, e te quer tanto bem. Mas deixa estar, que o tempo ha-de-te amaciar esse coraçãosinho de pedra. Adeos; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deos, não vá dizer nada a ninguem. Deos me livre que senhô moço saiba do que aqui se passou; era capaz de me enforcar. O que vale, — continuou André comsigo e retirando-se, — o que vale é que neste negocio parece-me que elle anda tão adiantado como eu.
Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta continua importunação de senhores e de escravos, que não a deixão socegar um só momento! Como não devia viver afflicto e attribulado aquelle coração! Dentro de casa contava ella quatro inimigos, cada qual mais porfiado em roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: tres amantes, Leoncio, Belchior, e André, e uma emula terrivel e desapiedada, Rosa. Facil lhe fôra repellir as importunações e insolencias dos escravos e creados; mas que seria della, quando viesse o senhor!?...
De feito, poucos instantes depois Leoncio, acompanhado pelo feitor, entrava no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera o seo trabalho, e com o rosto escondido entre as mãos se embevecia em amargas reflexões, não se apercebera da presença delles.
— Onde estão as raparigas que aqui costumão trabalhar?... perguntou Leoncio ao feitor, ao entrar no salão.
— Forão jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.
— Mas uma cá se deixou ficar... ah! é a Isaura... Ainda bem! — reflectio comsigo Leoncio, — a occasião não pode ser mais favoravel; tentemos os ultimos esforços para reduzir aquella empedernida creatura. Logo que acabem de comer, — continuou elle dirigindo-se ao feitor, — leve-as para a colheita do café. Ha muito que eu pretendia recomendar-lhe isto e tenho-me esquecido. Não as quero aqui mais nem um instante; isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem proveito algum, em continuas palestras. Não falta por ahi tecidos de algodão para se comprar.
Mal o feitor se retirou, Leoncio dirigio-se para junto de Isaura.
— Isaura! murmurou com voz meiga e commovida.
— Senhor! — respondeo a escrava erguendo-se sobresaltada; depois murmurou tristemente dentro d’alma: — meo Deos! é elle!... é chegada a hora do supplicio.
Agora nos é indispensavel abandonar por alguns instantes Isaura em sua penivel situação diante de seo dissoluto e barbaro senhor para informarmos o leitor sobre o que occorrera no seio daquella pequena familia, e em que pé ficárão os negocios da casa, depois que a noticia da morte do commendador, estalando como uma bomba no meio das intrigas domesticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no momento, em que ellas refervendo no mais alto gráo de ebullição, reclamavão forçosamente um desenlace qualquer.
Aquella morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deploravel situação, pondo nas mãos de Leoncio toda a fortuna paterna, e desatando as ultimas peias, que ainda o tolhião na expansão de seos abominaveis instinctos.
Leoncio e Malvina estivérão de nojo encerrados em casa por alguns dias, durante os quaes parece que derão tregoas aos arrufos e despeitos reciprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo emfim aos rogos e instancias de Malvina, consentio em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.
— Conforme fôr o procedimento de meo marido, disse-lhe ella, — iremos juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura, não ficarei mais nem um momento em sua casa.
Leoncio encerrado em seo quarto a ninguem falou, nem apareceo durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolavel e profundo pesar. Entretanto, não era assim. E’ verdade que Leoncio não deixou de soffrer certo choque, certa sorpresa, que não golpe doloroso, com a noticia do fallecimento de seo pae; mas no fundo d’alma, — força é dizel-o, — passado o primeiro momento de abalo e consternação chegou até a estimar aquelle acontecimento, que tanto a proposito vinha livral-o dos apuros, em que se achava enleado em face de Malvina e de Miguel. Portanto durante a sua reclusão em vez de entregar-se á dor que lhe deveria causar tão sensivel golpe, Leoncio, que por maneira nenhuma podia resignar-se a desfazer-se de Isaura, só meditava os meios de safar-se das difficuldades, em que se achava envolvido, e urdia planos para assegurar-se a posse da gentil captiva. As difficuldades erão grandes, e constituião um nó, que poderia ser cortado, mas nunca desatado. Leoncio havia reconhecido a promessa que seo pae fizéra a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de réis. Miguel tinha pronta essa quantia, e lh’a tinha vindo meter nas mãos, reclamando a liberdade de sua filha. Leoncio reconhecia tambem, e nem podia contestar, que sempre fôra voto de sua fallecida mãe deixar livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão e de seos sinistros intentos sobre a captiva, justamente irritada, exigia com imperio a immediata alforria da mesma. Não restava ao mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas difficuldades senão libertando Isaura. Mas Leoncio não podia se conformar com semelhante idéa. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado, o incitava a saltar por cima de todos os obstaculos, a arrostar todas as leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seos freneticos desejos. Resolveo pois cortar o nó, usando de sua prepotencia, e protelando indefinidamente o cumprimento de seo dever, assentou de afrontar com cynica indifferença e brutal sobranceria as justas exigencias e exprobrações de Malvina.
Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito á dor de que julgava seo marido acabrunhado, lhe tocou naquelle melindroso negocio:
— Temos tempo, Malvina, — respondeo-lhe o marido com toda a calma. — E’-me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventario da casa de meo pae. Tenho de ir á côrte arrecadar os seos papeis e tomar conhecimento do estado de seos negocios. Na volta e com mais vagar trataremos de Isaura.
Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobrio-se de palidez mortal; ella sentio esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado castello de suas venturas conjugaes. Ella esperava que o marido fulminado por tão doloroso golpe naquelles dias de amarga meditação e abatimento, retrahindo-se no santuario da consciencia, reconhecesse seos erros e desvarios, implorasse o perdão delles, e se propuzesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas e futeis evasivas do marido vierão submergil-a de chofre no mais amargo e profundo desalento.
— Como?! — exclamou ella com um accento que exprimia a um tempo altiva indignação e o mais entranhado desgosto. — Pois ainda hesitas em cumprir tão sagrado dever?... se tivesses alma, Leoncio, terias considerado Isaura como tua irmã, pois bem sabes que tua mãe a amava e idolatrava como a uma filha querida, e que era seo mais ardente desejo libertal-a por sua morte e deixar-lhe um legado consideravel, que lhe assegurasse o futuro. Sabes tambem, que teo pae havia feito promessa solemne ao pae de Isaura de dar-lhe alforria pela quantia de dez contos de réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa exorbitante quantia. Sabes tudo isto, e ainda vens com duvidas e demoras!... Oh! isto é muito!... não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de um dever, de que ha muito tempo já devias ter-te desempenhado.
— Mas para que, semelhante pressa?... não me dirás, Malvina? — replicou Leoncio com a maior brandura e tranquillidade. — De que proveito pode ser agora a liberdade para Isaura? por ventura não está ella aqui bem? é maltratada?... soffre alguma privação?... não continúa a ser considerada antes como uma filha da familia, do que como uma escrava? queres que desde já a soltemos á tôa por esse mundo?... assim de certo não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão sollicita se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não devemos por ora entregar Isaura a si mesma. E’ preciso primeiro assegurar-lhe uma posição decente, honesta e digna de sua belleza e educação, procurando-lhe um bom marido, e isso não se arranja assim de um dia para outro.
— Que miseravel desculpa, meo amigo!... Isaura por ora não precisa de marido para protegel-a; tem o pae, que é homem muito de bem, e acaba de dar provas de quanto adora sua filha. Entreguemol-a ao senhor Miguel, que ficará em muito boas mãos, e debaixo de muito boa sombra.
— Pobre do senhor Miguel! — replicou Leoncio com sorriso desdenhoso. — Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios, de que dispõe, para fazer a felicidade de Isaura, principalmente agora em que de certo empenhou os cabellos da cabeça para arranjar a alforria da filha, se é que isso não proveio de esmolas, que lhe fizerão, como me parece mais certo.
Por unica resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou. Todavia quiz ainda acreditar na sinceridade das palavras de seo marido, fingio-se satisfeita e retirou-se sem dar mostras de agastamento. Não podia porém prolongar por mais tempo aquella situação para ella tão humilhante, tão cheia de anciedade e desgosto, e no outro dia insistio ainda com mais força sobre o mesmo objecto. Teve em resposta as mesmas evasivas e moratorias. Leoncio affectava mesmo tratar desse negocio com certa indifferença desdenhosa, como quem estava definitivamente resolvido a fazer o que quizesse. Malvina desta vez não pôde conter-se, e rompeo com seo marido. Este, como já friamente havia deliberado, aparou os raios da colera feminina no escudo de uma imprudencia cynica e galhofeira, o que levou ao ultimo gráo de exacerbação a colera e o despeito de Malvina.
No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que fosse, deixava precipitadamente a casa de Leoncio, e partia em companhia de seo irmão Henrique caminho do Rio de Janeiro, jurando no auge da indignação nunca mais pôr os pés naquella casa, onde era tão vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança a imagem de seo desleal e devasso marido. No assomo do despeito não calculava se teria forças bastantes para levar a effeito aquelles freneticos juramentos, inspirados pela febre do ciume e da indignação; ignorava, que nas almas ternas e bondosas como a sua o odio se desvanece muito mais depressa do que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leoncio, a despeito de seos desmandos e devassidões, era muito mais forte do que o seo resentimento, por mais justo que este fosse.
Leoncio por seo lado, levando por diante o seo plano de oppôr aos assomos da esposa a mais inerte e cynica indifferença, vio de braços cruzados e sem fazer a minima observação, os preparativos daquella rapida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seo charuto, assistio á partida de sua mulher, como se fôra o mais indifferente dos hospedes.
Entretanto essa indifferença de Leoncio nada tinha de natural e sincera; não que elle sentisse pezar algum pela brusca partida de sua mulher; pelo contrario era jubilo, que sentia com a realização daquella caprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava o campo inteiramente livre de embaraços, para proseguir em seos nefandos projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquelle fingido pouco caso, conseguia disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; e como era aphorismo adoptado e sempre posto em pratica por elle, posto que em circumstancias menos graves, — que contra as coleras e caprichos femininos não ha arma mais poderosa do que muito sangue frio e pouco caso, Malvina não pôde descobrir no fundo daquella affectada indifferença o jubilo intenso, em que nadava a alma de seo marido.
O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses longos dias de lucto, de consternação, de anciedades e dissabores?
Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do commendador, Isaura perdeo todas as lisongeiras esperanças, que um momento antes Miguel fizera desabrochar em seo coração. Transida de horror comprehendeo, que um destino implacavel a entregava victima indefesa entre as mãos de seo tenaz e desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava em sua imaginação abalada outro remedio a tão cruel situação senão resignar-se e preparar-se para o mais atroz dos martyrios. Um cruel desalento, um pavor mortal apoderou-se de seo espirito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como que hallucinada, ora vagava á tôa pelos campos, ora escondida nas mais espessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas, passava horas e horas entre sustos e angustias, como a timida lebre, que vê pairando no céo a aza sinistra do gavião de garras sangrentas. Quem poderia amparal-a? onde poderia encontrar protecção contra as tyranicas vontades de seo libertino e execravel senhor? Só duas pessoas poderião ter por ella commiseração e interesse; seo pae e Malvina. Seo pae, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa de Leoncio, e só podendo communicar-se com ella a custo e furtivamente, em pouco ou nada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tanta bondade e carinho, ai! a propria Malvina, depois da scena escandalosa em que colhera seo marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas, começou a olhal-a com certa desconfiança e afastamento, terrivel effeito do ciume, que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais candidas e benevolentes. A senhora, com o correr dos dias, tornava-se cada vez menos tratavel e benigna para com a escrava, que antes havia tratado com carinho e intimidade quasi fraternal.
Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da innocencia de Isaura, se não fosse Rosa, sua terrivel emula e figadal inimiga. Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa innocente, Rosa ficou sendo a mucama ou criada da camara de Malvina, e esta ás vezes desabafava em presença da maligna mulata os ciumes e desgostos, que lhe fervião e transvasavão do coração.
— Sinhá está-se fiando muito naquella sonsa... — dizia-lhe a maliciosa rapariga. — Pois fique certa, que não são de hoje esses namoricos; ha muito tempo, que eu estou vendo essa impostora, que diante da sinhá se faz toda simploria, andar-se derretendo diante de sinhô moço. Ella mesmo é que tem a culpa d’elle andar assim com a cabeça virada.
Estes e outros muitos quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente insinuar nos ouvidos de sua senhora, erão bastantes para desvairar o espirito de uma candida e inexperiente moça como Malvina, e forão produzindo o resultado, que desejava a perversa mulatinha.
Acabrunhada com aquelle novo infortunio, Isaura fez algumas tentativas para achegar-se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe retirava a affeição e confiança, que sempre lhe mostrára, e a fim de poder manifestar sua innocencia. Mas era recebida com tal frieza e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir mergulhar-se mais fundo ainda no pégo de suas angustias e desalentos.
Todavia emquanto Malvina se conservava em casa, era sempre uma salva-guarda, uma sombra protectora, que amparava Isaura contra as importunações e brutaes tentativas de Leoncio. Por menor que fosse o respeito, que lhe tinha o marido, ella não deixava de ser um poderoso estorvo ao menos contra os actos de violencia, que quizesse pôr em pratica para conseguir seos execrandos fins. Isaura ponderava isso tudo, e é custoso fazer-se idéa do estado de terror e desfallecimento em que ficou aquella pobre alma quando vio partir sua senhora, deixando-a inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e barbaros caprichos daquelle, que era seo senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.
De feito Leoncio mal vio sumir-se a esposa por trás da ultima collina, não podendo conter mais a expansão de seo satanico jubilo, tratou logo de pôr o tempo em proveito, e pôz-se a percorrer toda a casa em procura de Isaura. Foi emfim deparar com ella no escuro recanto de uma alcova, estendida por terra quasi exanime, banhada em pranto, e arrancando do peito soluços convulsivos.
Poupemos ao leitor a narração da scena vergonhosa, que ahi se deo. Contentemo-nos com dizer, que Leoncio esgotou todos os meios brandos e suasivos ao seo alcance para convencer a rapariga, que era do interesse e dever della render-se a seos desejos. Fez as mais esplendidas promessas, e os mais solemnes protestos; abaixou-se até ás mais humildes supplicas, e arrastou-se vilmente aos pés da escrava, de cuja boca não ouvio senão palavras amargas, e terriveis exprobrações; e vendo emfim que eram infructiferos todos esses meios, retirou-se cheio de colera, vomitando as mais tremendas ameaças.
Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia mandou pôl-a trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixámos no capitulo antecedente. Dalli teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco, do tronco para o pelourinho, e deste certamente para o tumulo, se teimasse em sua resistencia ás ordens de seo senhor.
Leoncio impaciente e com o coração ardendo nas chammas de uma paixão febril e delirante, não podia resignar-se a adiar por mais tempo a satisfação de seos libidinosos desejos. Vagando daqui para ali por toda a casa, como quem dava ordens para reformar o serviço domestico, que dahi em diante ia correr todo por sua conta, não fazia mais do que espreitar todos os movimentos de Isaura, procurando occasião de achal-a a sós para insistir de novo e com mais força em suas abominaveis pretenções. De uma janella vio as escravas fiandeiras atravessarem o pateo para irem jantar, e notou a ausencia de Isaura.
— Bom!... vae tudo ás mil maravilhas! murmurou Leoncio com satisfação; nesse momento passava-lhe pela mente a feliz lembrança de mandar um feitor levar as outras escravas para o cafesal, ficando elle quasi a sós com Isaura no meio daquelles vastos e desertos edificios.
Dir-me-hão, que sendo Isaura uma escrava, Leoncio, para achar-se a sós com ella não precisava de semelhantes subterfugios, e nada mais tinha a fazer do que mandal-a trazer á sua presença por bem ou por mal. De certo elle assim podia proceder, mas não sei que prestigio tem, mesmo em uma escrava, a belleza unida á nobreza da alma, e á superioridade da inteligencia, que impõe respeito aos entes ainda os mais perversos e corrompidos. Por isso Leoncio, a despeito de todo o seo cynismo e obcecação, não podia eximir-se de render no fundo d’alma certa homenagem á belleza e virtudes daquella escrava excepcional, e de tratal-a com mais alguma delicadeza do que ás outras.
— Isaura, — disse Leoncio, continuando o dialogo que deixámos apenas encetado, — fica sabendo, que agora a tua sorte está inteiramente entre as minhas mãos.
— Sempre esteve, senhor, — respondeo humildemente Isaura.
— Agora mais que nunca. Meo pae é fallecido, e não ignoras que sou eu o seo unico herdeiro. Malvina por motivos, que sem duvida terás adivinhado, acaba de abandonar-me, e retirou-se para a casa de seo pae. Sou eu pois, que hoje unicamente governo nesta casa, e disponho do destino. Mas tambem, Isaura, de tua vontade unicamente depende a tua felicidade ou a tua perdição.
— De minha vontade!... oh! não, senhor; minha sorte depende unicamente da vontade de meo senhor.
— E eu bem desejo — replicou Leoncio com a mais terna inflexão de voz, — com todas as forças de minha alma, tornar-te a mais feliz das creaturas; mas como, se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu, só tu me poderias dar?....
— Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seo lugar; lembre-se da senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão boa, e que tanto lhe quer bem. E’ em nome della que lhe peço, meo senhor; deixe de abaixar seos olhos para uma pobre captiva, que em tudo está prompta para lhe obedecer, menos nisso, que o senhor exige...
— Escuta, Isaura; és muito creança, e não sabes dar ás cousas o devido peso. Um dia, e talvez já tarde, te arrependerás de ter rejeitado o meu amor.
— Nunca! — exclamou Isaura. — Eu cometteria uma traição infame para com minha senhora, se désse ouvidos ás palavras amorosas de meo senhor.
— Escrupulos de creança!... escuta ainda, Isaura. Minha mãe vendo a tua linda figura e a viveza de teo espirito, — talvez por não ter filha alguma, — desvelou-se em dar-te uma educação, como teria dado a uma filha querida. Ella amava-te extremosamente, e se não deo-te a liberdade foi com o receio de perder-te; foi para conservar-te sempre junto de si. Se ella assim procedia por amor, como posso eu largar-te de mão, eu que te amo com outra sorte de amor muito mais ardente e exaltado, um amor sem limites, um amor que me levará á loucura ou ao suicidio, se não... mas que estou a dizer!... Meo pae, — Deos lhe perdoe, — levado por uma sordida avareza, queria vender tua liberdade por um punhado de ouro, como se houvesse ouro no mundo que valesse os inestimaveis encantos, de que os céos te dotárão. Profanação!... eu repelliria como quem repelle um insulto, todo aquelle que ousasse vir offerecer-me dinheiro pela tua liberdade. Livre és tu, por que Deos não podia formar um ente tão perfeito para votal-o á escravidão.
Livre és tu, por que assim o queria minha mãe, e assim o quero eu. Mas, Isaura, o meo amor por ti é immenso; eu não posso, eu não devo abandonar-te ao mundo. Eu morreria de dôr, se me visse forçado a largar mão da joia inestimavel, que o céo parece ter-me destinado, e que eu ha tanto tempo rodeio dos mais ardentes anhélos de minha alma...
— Perdão, senhor; eu não posso comprehendel-o; diz-me que sou livre, e não permite que eu vá para onde quizer, e nem ao menos que eu disponha livremente de meu coração?!
— Isaura, se o quizeres, não serás sómente livre; serás a senhora, a deosa desta casa. Tuas ordens, quaesquer que sejão, os teos menores caprichos serão ponctualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o mais terno e o mais leal dos amantes, te cercarei de todos os cuidados e carinhos, de todas as adorações, que sabe inspirar o mais ardente e inextinguivel amor. Malvina me abandona!... tanto melhor! em que dependo eu della e de seo amor, se te possuo! Quebrem-se de uma vez para sempre esses laços urdidos pelo interesse! esqueça-se para sempre de mim, que eu nos braços de minha Isaura encontrarei sobeja ventura para poder lembrar-me della.
— O que o senhor acaba de dizer, me horroriza. Como se pode esquecer e abandonar ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa, tão cheia de encantos e virtudes, como sinhá Malvina? Meo senhor, perdoe-me se lhe fallo com franqueza; abandonar uma mulher bonita, fiel e virtuosa por amor de uma pobre escrava, seria a mais feia das ingratidões...
A tão severa e esmagadora exprobração, Leoncio sentio revoltar-se o seo orgulho.
— Cala-te, escrava insolente! — bradou cheio de colera. — Que eu supporte sem irritar-me os teos desdens e repulsas, ainda vá; mas reprehensões!... com quem pensas tu, que fallas?...
— Perdão! senhor!... exclamou Isaura atterrada e arrependida das palavras que lhe tinhão escapado.
— E entretanto, se te mostrasses mais branda commigo... mas não, é muito aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de pedir aquillo, que de direito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais ninguem. És propriedade minha; um vaso, que tenho entre as minhas mãos, e que posso usar delle ou despedaçal-o a meo sabor.
— Pode despedaçal-o, meo senhor; bem o sei; mas por piedade não queira usar delle para fins impuros e vergonhosos. A escrava tambem tem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seos affectos.
— Affectos!... quem falla aqui em affectos?! Podes acaso dispor delles?...
— Não por certo, meo senhor; o coração é livre; ninguem póde escravizal-o, nem o próprio dono.
— Todo o teo ser é escravo; teo coração obedecerá, e se não cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas para que? para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos. Os instinctos do teo coração são rasteiros e abjectos como a tua condição; para te satisfazer far-te-hei mulher do mais vil, do mais hediondo de meus negros.
— Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seo pae fez morrer de desgostos e máos tratos a minha pobre mãe; já vejo que me é destinada a mesma sorte. Mas fique certo, de que não me faltarão nem os meios nem a coragem para ficar para sempre livre do senhor e do mundo.
— Oh! — exclamou Leoncio com satanico sorriso, — já chegaste a tão subido gráo de exaltação e romantismo!... isto em uma escrava não deixa de ser curioso. Eis o proveito, que se tira de dar educação a taes creaturas! bem mostras, que és uma escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me preveniste; eu saberei gelar a ebullição desse cerebro escaldado. Escrava rebelde e insensata, não terás mãos nem pés para pôr em pratica teos sinistros intentos. Ó lá, André, — bradou elle e apitou com força no cabo do seo chicote.
— Senhor! — bradou de longe o pajem, e um instante depois estava em presença de Leôncio.
— André, — disse-lhe este com voz secca e breve — traze-me já aqui um tronco de pés e algemas com cadeado.
— Virgem santa! — murmurou comsigo André espantado. — Para que será tudo isto?... ah! pobre Isaura!...
— Ah! meo senhor, por piedade! — exclamou Isaura, caindo de joelhos aos pés de Leoncio, e levantando as mãos ao céo em contorções de angustia; pelas cinzas ainda quentes de seo pae, ha poucos dias fallecido, pela alma de sua mãe, que tanto lhe queria, não martyrize a sua infeliz escrava. Acabrunhe-me de trabalhos, condene-me ao serviço o mais grosseiro e pesado, que a tudo me sujeitarei sem murmurar; mas o que o senhor exige de mim, não posso, não devo fazel-o, embora deva morrer.
— Bem me custa tratar-te assim, mas tu mesma me obrigas a este excesso. Bem vês, que me não convem por modo nenhum perder uma escrava como tu és.
Talvez ainda um dia me serás grata por ter-te impedido de matar-te a ti mesma.
— Será o mesmo! — bradou Isaura levantando-se altiva, e com o accento rouco e trémulo da desesperação, — não me matarei por minhas proprias mãos, mas morrerei ás mãos de um carrasco.
Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que deposita sobre um banco, e retira-se imediatamente.
Ao ver aquelles barbaros e aviltantes instrumentos de supplicio turvárão-se os olhos a Isaura, o coração se lhe enregelou de pavor, as pernas lhe desfallecerão, cahio de joelhos e debruçando-se sobre o tamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lagrimas.
— Alma de minha sinhá velha! — exclamou com voz entrecortada de soluços, — valei-me nestes apuros; valei-me lá do céo, onde estais, como me valieis cá na terra.
— Isaura, — disse Leoncio com voz aspera apontando para os instrumentos de supplicio, — eis ali o que te espera, se persistes em teo louco emperramento. Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, e fica-te o resto do dia para reflectires. Tens de escolher entre o meo amor e o meo odio. Qualquer dos dous, tu bem sabes, são violentos e poderosos. Adeos!...
Quando Isaura sentio, que seo senhor se havia ausentado, ergueo o rosto, e levantando ao céo os olhos e as mãos juntas, dirigio á Rainha dos anjos a seguinte fervorosa prece, exalada entre soluços do mais intimo de sua alma:
— Virgem senhora da Piedade, Santissima Mãe de Deos!... vós sabeis se eu sou innocente, e se mereço tão cruel tratamento. Soccorrei-me neste transe afflictivo, por que neste mundo ningem pode valer-me. Livrae-me das garras de um algôz, que ameaça não só a minha vida, como a minha innocencia e honestidade. Illuminai-lhe o espirito, e infundi-lhe no coração brandura e misericordia, para que se compadeça de sua infeliz captiva. E’ uma humilde escrava, que com as lagrimas nos olhos, e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrosantas, pelas chagas de vosso Divino Filho: valei-me por piedade.
Quanto Isaura era formosa naquella supplicante e angustiosa attitude! oh! muito mais bella do que em seos momentos de serenidade e prazer!.., se a visse então Leoncio talvez sentisse abrandar-se o ferreo e obcecado coração. Com os olhos arrasados em lagrimas, que em fio lhe escorregavão pelas faces desbotadas, entreaberta a boca melancolica, que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre soluços, atiradas em desordem pelas espaduas as negras e opulentas madeixas, voltando para o céo o busto mavioso plantado sobre um collo escultural, offereceria ao artista inspirado o mais bello e sublime modelo para a effigie da Mãe Dolorosa, a quem nesse momento dirigia suas ardentes supplicas. Os anjos do céo, que por certo naquelle instante adejavão em torno della agitando as azas de ouro e carmim, não podião deixar de levar tão fervida e dolorosa prece aos pés do throno da Consoladora dos afflictos.
Absorvida em suas magoas Isaura não vio seo pae, que entrando pelo salão a passos subtis e cautelosos, encaminhava-se para ella.
— Oh! felizmente ella ali está, — murmurava o velho, — o algôz aqui tambem andava! oh! pobre Isaura!... que será de ti!...
— Meo pae por aqui!... — exclamou a infeliz ao avistar Miguel. — Venha, venha ver a que estado reduzem sua filha.
— Que tens, filha?... que nova desgraça te succede?
— Não está vendo, meo pae?... eis ali a sorte, que me espera, — respondeu ella apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam ao pé della.
— Que monstro, meo Deos!... mas eu já esperava por tudo isto...
— E’ esta a liberdade que pretende dar áquella, que a mãe delle creou com tanto amor e carinho. O mais cruel e aviltante captiveiro, um martyrio continuado da alma e do corpo, eis o que resta á sua desventurada filha... Meo pae, não posso resistir a tanto soffrimento!... restava-me um recurso extremo; esse mesmo vai-me ser negado. Presa, algemada, amarrada de pés e mãos!... oh!... meo pae! meo pae!... isto é horrível!... Meu pai, a sua faca, — acrescentou depois de ligeira pausa com voz rouca e olhar sombrio, — preciso de sua faca.
— Que pretendes fazer com ella, Isaura? que louco pensamento é o teo?...
— Dê-me essa faca, meo pae; eu não usarei della senão em caso extremo; quando o infame vier lançar-me as mãos para deitar-me esses ferros, farei saltar meo sangue ao rosto vil do algôz.
— Não, minha filha; não serão necessarios taes extremos. Meo coração já adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não servio para alcançar a tua liberdade, vae agora prestar-nos para arrancar-te ás garras desse monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.
— Sim, meo pae, fujamos; mas como? para onde?
— Para longe daqui, seja para onde fôr; e já, minha filha, emquanto não suspeitão cousa alguma, e não te carregão de ferros.
— Ah! meo pae, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a minha sorte!...
— A empreza é arriscada, não posso negar-te; mas animo, Isaura; é nossa unica taboa de salvação; agarremo-nos a ella com fé, e encommendemo-nos á divina providencia. Os escravos estão na roça; o feitor levou para o cafesal tuas companheiras, teo senhor sahio a cavallo com o André; não ha talvez em toda a casa senão alguma negra lá pelos cantos da cosinha. Aproveitemos a occasião, que parece mesmo nos vir das mãos de Deos no momento, em que aqui estou chegando. Eu já preveni tudo. Lá no fundo do quintal á beira do rio está amarrada uma canoa; é quanto nos basta. Tu sahirás primeiro e irás lá ter por dentro do quintal; eu sahirei por fora alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos em Campos, onde nos espera um navio, de que é capitão um amigo meo, e que tem de seguir viagem para o norte nesta madrugada. Quando romper o dia, estaremos longe do algôz, que te persegue. Vamo-nos, Isaura; talvez por esse mundo encontremos alguma alma piedosa, que melhor do que eu te possa proteger.
— Vamo-nos, meo pae; que posso eu recear?... posso acaso ser mais desgraçada do que já sou?...
Isaura cosendo-se com a sombra do muro, que rodeava o pateo, abrio o portão, que dava para o quintal, e desappareceo. Momentos depois Miguel rodeando por fora os edificios costeava o quintal, e achava-se com ella á margem do rio.
A canoa vogando subtilmente bem junto á barranca, impellida pelo braço vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeo de vista a fazenda.
Já são passados mais de dous mezes depois da fuga de Isaura, e agora, leitores, em quanto Leoncio emprega diligencias extraordinarias e meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em actividade a policia e uma multidão de agentes particulares para empolgar de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe escapára, façamo-nos de véla para as provincias do norte, onde talvez primeiro que elle deparemos com a nossa fugitiva heroina.
Estamos no Recife. E’ noite e a formosa Veneza da America do Sul, coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano, que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. E’ uma noite festiva: em uma das principaes ruas nota-se um edificio esplendidamente illuminado, para onde concorre grande numero de cavalheiros e damas das mais distinctas e opulentas classes. E’ um lindo prédio onde uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saráos. Alguns estudantes dos mais ricos e elegantes, tambem costumão descer da velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos meigos olhares e angelicos sorrisos das bellas e espirituosas pernambucanas, esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos praxistas.
Supponhamos que tambem somos adeptos daquelle templo de Terpsicore, entremos por elle a dentro, e observemos o que por ahi vai de curioso e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos, que conversam com alguma animação. Escutemol-os.
— E’ mais uma estrella, que vem brilhar nos salões do Recife, — dizia Alvaro, — e dar lustre a nossos saráos. Não ha ainda tres mezes, que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais de um, que a conheço. Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ella a creatura mais nobre e encantadora que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é uma deosa!...
— Caspite! — exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deosa!... são portanto tres entidades distinctas, mas por fim de contas verás que não passa de uma mulher verdadeira. Mas dize-me cá, meo Alvaro; esse anjo, fada, deosa, mulher ou o que quer que seja, não te disse d’onde veio, de que familia é, se tem fortuna, etc., etc., etc.?
— Pouco me importo com essas cousas, e poderia responder-te que veio do céo, que é da familia dos anjos, e que tem uma fortuna superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e intelligente, e uma belleza incomparavel. Mas sempre te direi que o que sei de positivo a respeito della é que veio do Rio-Grande do Sul em companhia de seo pae, de quem é ella a unica familia; que seos meios são bastantemente escassos, mas que em compensação ella é linda como os anjos, e tem o nome de Elvira.
— Elvira! — observou o terceiro cavalheiro — bonito nome na verdade!... mas não poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...
— Não faço mysterio disso; mora com seo pae em uma pequena chacara no bairro de Santo Antonio, onde vivem modestamente, evitando relações, e apparecendo mui raras vezes em publico. Nessa chacara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive ella como a violeta entre a folhagem, ou como fada mysteriosa em uma gruta encantada.
— E’ celebre! — retorquio o doutor — mas como chegaste a descobrir essa nympha encantada, e a ter entrada em sua gruta mysteriosa?
— Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavallo por sua chacara, avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Sorprehendeo-me sua maravilhosa belleza. Como vio que eu a contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou-se como uma borboleta entre os arbustos floridos e desappareceo. Formei o firme proposito de vel-a e de falar-lhe, custasse o que custasse. Por mais porém, que indagasse por toda a visinhança, não encontrei uma só pessoa, que se relacionasse com ella, e que pudesse apresentar-me. Indaguei por fim quem era o proprietario da chacara, e fui ter com elle. Nem esse podia dar-me informações, nem servir-me em cousa alguma. O seo inquilino vinha todos os meses pontualmente adiantar o aluguel da chacara; eis tudo quanto a respeito delle sabia. Todavia continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim, mas a pé para melhor poder sorprehendel-a e admiral-a; quasi sempre porém sem resultado. Quando acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre ás minhas vistas como da primeira vez. Um dia porém quando eu passava, cahio-lhe o lenço ao levantar-se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar-lho, quando já ella punha o pé na soleira de sua casa. Agradeceo-me com um sorriso tão encantador, que estive em termos de cahir de joelhos a seos pés; mas não mandou-me entrar, nem fez-me offerecimento algum.
— Esse lenço, Alvaro, — atalhou um cavalheiro, — de certo ella o deixou cahir de proposito, para que pudesses vel-a de perto e fallar-lhe. E’ um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.
— Não creio; não ha naquelle ente nem sombra de coquetterie; tudo nella respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar meos pés daquelle lugar, onde uma força magnetica me retinha, e que parecia rescender um mysterioso effluvio de amor, de pureza e de ventura...
Alvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão suaves recordações.
— E ficaste nisso, Alvaro! — perguntava outro cavalheiro; — o teo romance está-nos interessando; vamos por diante, que estou afflicto por ver a peripecia...
— A peripecia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei qual será. Esgotei em fim os estratagemas possiveis para ter entrada no sanctuario daquella deosa; mas foi tudo baldado. O acaso em fim veio em meo socorro, e servio-me melhor do que toda a minha habilidade e diligencia. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo Antonio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornára para mim uma devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo panno em um pequeno bote.
Instantes depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia. Apeei-me imediatamente, e tomando um escalér na praia, fui em soccorro dos dois navegantes que em vão forcejavão por safar a pequena embarcação. Não podem fazer idéa da deliciosa surpresa que senti, ao reconhecer nas duas pessoas do bote a minha mysteriosa da chacara e seo pae...
— Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser dramatico; a historia de teos amores com a tal fada mysteriosa vae tomando visos de um poema phantastico.
— Entretanto é a pura realidade. Como estavão molhados e enxovalhados, convidei-os a entrarem no meo carro. Acceitárão depois de muita reluctancia, e dirigimo-nos para a casa delles. E’ escusado contar-vos o resto desde então, se bem que com algum acanhamento foi-me franqueado o umbral da gruta mysteriosa.
— E pelo que vejo, — interrogou o doutor, — amas muito essa mulher?
— Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho rasões para acreditar, que ella... pelo menos não me olha com indifferença.
— Deos queira que não andes embaido por alguma Circe de bordel, por alguma dessas aventureiras, de que ha tantas pelo mundo, e que sabendo que és rico, arma laços ao teo dinheiro! Esse afastamento da sociedade, esse mysterio, em que procurão tão cuidadosamente envolver a sua vida, não abonão muito em favor delles.
— Quem sabe, se são criminosos que procurão subtrahir-se ás pesquizas da policia? — observou um cavalheiro.
— Talvez moedeiros falsos, — accrescentou outro.
— Tenho má fé, — continuou o doutor — todas as vezes, que vejo uma mulher bonita viajando em paizes estranhos em companhia de um homem, que de ordinario se diz pae ou irmão della. O pae de tua fada, Alvaro, se é que é pae, é talvez algum cigano, ou cavalheiro de industria, que especula com a formosura de sua filha.
— Santo Deos!.. misericordia! — exclamou Alvaro. — Se eu adivinhasse que veria a pessoa daquella creatura angelica apreciada com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria antes ser atacado de mudez, do que trazel-a á conversação. Creião, que são demasiado injustos para com aquella pobre moça, meos amigos. Eu a julgaria antes uma princeza desthronizada, se não soubesse que é um anjo cahido do céo. Mas vocês em breve vão vel-a, e eu e ella estaremos vingados; pois estou certo, que todos a uma voz a proclamarão uma divindade. Mas o peór é, que desde já posso contar com um rival em cada um de vocês.
— Por minha parte, — disse um dos cavalheiros, — pode ficar tranquillo, pois sempre tive horror ás moças mysteriosas.
— E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo de fadas, — accrescentou o outro.
— E como é, — perguntou o Dr. Geraldo, — que vivendo ella assim arredada da sociedade, poude resolver-se a deixar a sua mysteriosa solidão, para vir a este baile tão publico e concorrido?...
— E quanto não me custou isso, meo amigo! — respondeo Alvaro. — Veio quasi violentada. Ha muito tempo, que procuro convencel-a por todos os modos, que uma senhora joven e formosa, como é ella, escondendo seos encantos na solidão, commette um crime, contrario ás vistas do creador, que formou a belleza para ser vista, admirada e adorada; pois sou o contrario desses amantes ciumentos e atrabiliarios, que desejarião ter suas amadas escondidas no amago da terra. Argumentos, instancias, supplicas, tudo foi perdido; pae e filha recusavão-se constantemente a aparecerem em publico, allegando mil diversos pretextos. Vali-me por fim de um ardil; fiz-lhes acreditar que aquelle modo de viver retrahido e sem contacto com a sociedade em um paiz, onde erão desconhecidos, já começava a dar que fallar ao publico e a attrahir suspeitas sobre elles, e que até a policia começava a olhal-os com desconfiança; mentiras, que não deixavão de ter sua plausibilidade...
— E tanta, — interrompeo o doutor, — que talvez não andem muito longe da verdade.
— Fiz-lhes ver, — continuou Alvaro, — que por infundadas e futeis, que fossem taes suspeitas, era necessario arredal-as de si, e para isso cumpria-lhes absolutamente frequentar a sociedade. Este embuste produzio o desejado effeito.
— Tanto peór para elles, — retorquio o doutor; — eis ahi um indicio bem máo, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem elles innocentes, e bem pouco se importarião com as suspeitas do publico ou da policia, e continuarião a viver como d’antes.
— Tuas suspeitas não tem o menor fundamento, meo doutor. Elles tem poucos meios, e por isso evitão a sociedade, que realmente impõe duros sacrificios ás pessoas desfavorecidas da fortuna, e elles... mas eil-os, que chegão... Vejão e convenção-se com seos proprios olhos.
Entrava nesse momento na ante-sala uma joven e formosa dama pelo braço de um homem de idade madura e de respeitavel presença.
— Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente eil-os aqui! — isto dizia Alvaro aos recemchegados, separando-se de seos amigos, e apressurando-se para cumprimentar a aquelles com toda a amabilidade e cortezia. Depois offerecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo, os vae conduzindo para as salas interiores, por onde já turbilhona a mais numerosa e brilhante sociedade. Os tres interlocutores de Alvaro, bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavão, puserão-se em ala para verem passar Elvira, cuja presença causava sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavão prevenidos.
— Com effeito!... é de uma belleza deslumbrante!
— Que porte de rainha!...
— Que olhos de andaluza!...
— Que magnificos cabellos!
— E o collo!... que collo!... não reparaste?...
— E como se traja com tão elegante simplicidade! — assim murmuravão entre si os tres cavalheiros como impressionados por uma apparição celeste.
— E não reparaste, — accrescentou o Dr. Geraldo, — naquelle feiticeiro sinalsinho, que tem na face direita?... Alvaro tem razão; a sua fada vae eclipsar todas as bellezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem da novidade, e esse prestigio do mysterio, que a envolve. Estou ardendo de impaciencia por lhe ser apresentado; desejo admiral-a mais de espaço.
Neste tom continuárão a conversar, até que passados alguns minutos, Álvaro, tendo cumprido a grata commissão de apresentador daquella nova perola dos salões, estava de novo entre elles.
— Meos amigos, — disse-lhes elle com ar triumphante. — convido-os para o salão. Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para sempre as injustas e injuriosas apprehensões, que ainda ha pouco nutrião a respeito do ente o mais bello e mais puro, que existe debaixo do sol, se bem que estou certo que só com a simples vista ficarão penetrados de assombro até a medulla dos ossos.
Os quatro cavalheiros se retirárão e desapparecêrão no meio do turbilhão das salas interiores. Forão porém immediatamente substituidos por um grupo de lindas e elegantes moças, que scintillantes de sedas e pedrarias como um bando de aves do paraizo, passeavão conversando. O assumpto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos rapazes. Nenhum mal nos fará escutal-as por alguns instantes.
— Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquella moça, que ainda ha pouco entrou na sala pelo braço do senhor Alvaro?
— Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não é desta terra.
— De certo; que ar espantado tem ella!.. parece uma matuta, que nunca pisou em um salão de baile; não acha, D. Rozalina?
— Sem duvida!.., e você não reparou na toilette della?... meo Deos!.. que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar. Aqui a D. Emilia é que talvez saiba quem ella é.
— Eu? porque? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Alvaro já me tinha dado noticias dela, dizendo que era um assombro de belleza. Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.
— Aquelle senhor Alvaro sempre é um excentrico, um exquisito; tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria elle excavar aquella pérola, que tanto o traz embasbacado?...
— Veio de arribação lá dos mares do sul, minha amiga, e a julgar pelas apparencias não é de todo má.
— Se não fosse aquella pinta negra, que tem na face, seria mais supportavel.
— Pelo contrario, D. Laura; aquelle signal é que ainda lhe dá certa graça particular...
— Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava, que você tambem tem na face um signalsinho semelhante; esse devéras fica-te muito bem, e dá-te muita graça; mas o della, se bem reparei, é grande de mais; não parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou na face.
— A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão; é preciso vel-a mais de perto, estudal-a com mais vagar para podermos dar com segurança a nossa opinião.
E dito isto lá se forão ellas com os braços enlaçados, formando como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando perder-se entre a multidão.
Alvaro era um desses entes privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem querido despejar á porfia todo o cofre de seos favores. Filho unico de uma distincta e opulenta familia, na idade de vinte e cinco annos, era orphão de pae e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dous mil contos.
Era de estatura regular, esbelto, bem feito e bello, mais pela nobre e sympathica expressão da physionomia, do que pelos traços physicos, que entretanto não erão irregulares. Posto que não tivesse o espirito muito cultivado, era dotado de entendimento lucido e robusto, proprio a elevar-se á esphera das mais transcendentes concepções. Tendo concluido os preparatorios, como era philosopho, que pesava gravemente as cousas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quiz para ter uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro anno, em quanto pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos académicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labyrintho dessa arida e enfadonha casuistica do direito positivo, seo espirito eminentemente synthetico recuou enfastiado, e não teve animo de proseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões politicas e sociaes, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião só tinhão por base erros e preconceitos os mais absurdos.
Tinha odio a todos os privilegios e distincções sociaes, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quasi socialista.
Com taes idéas Alvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seos paes, tratou logo de emancipal-os todos. Como porém Alvaro tinha um espirito nimiamente philantropico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seos libertos em uma de suas fazendas uma especie de colonia, cuja direcção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podião resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o proprio Alvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar, a titulo de arrendamento, e elles sujeitando-se a uma especie de disciplina commum, não só preservavão-se de entregar-se á ociosidade, ao vicio e ao crime, tinhão segura a subsistencia e podião adquirir algum peculio, como tambem poderião indemnizar a Alvaro do sacrificio, que fizéra com a sua emancipação. Original e excentrico como um rico lord inglez, professava em seos costumes a pureza e severidade de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionavel, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegancia, e sobre tudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, proprios das almas elevadas e dos corações bem formados. Entretanto Alvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher, que lhe devia tocar o coração, a encarnação do typo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua poetica imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Alvaro por certo devia ser objeto de grande preoccupação no mundo elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma illustre e formosa donzella. Elle porém, igualmente cortez e amavel para com todas, por nenhuma dellas ainda havia dado o minimo signal de predilecção.
Pode-se fazer idéa do desencanto, do assombro, da terrivel decepção que reinou nos circulos das bellas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude, de que Alvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a defferencia com que a tratava, e os enthusiasticos elogios, que sem rebuço lhe prodigalisava. Juno e Pallas não ficárão tão despeitadas, quando o formoso Paris conferio a Venus o premio da formosura. Já antes daquelle saráo, Alvaro em alguns circulos de senhoras havia fallado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquencia apaixonada, que a todas sorprehendeo e inquietou. As moças ardião por ver aquelle prototypo de belleza, e já de antemão chovião sobre a desconhecida e o seo campeão mil chascos e malignos apodos. Quando porém a virão, apezar dos contrafeitos e desdenhosos sorrisos, que apenas lhes roçavão a flor dos labios, sentirão uma desagradavel impressão pungir-lhes no intimo do coração. Peço perdão ás bellas, de minha rude franqueza; a vaidade é com bem raras excepções, companheira inseparavel da belleza; e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo. A belleza da desconhecida era incontestavel; sua modestia e timidez em nada prejudicavão a singela e nativa elegancia de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo sumptuoso, que a rodeava, assentava-lhe maravilhosamente, e realçavão-lhe ainda mais os encantos naturaes. O effeito deslumbrante, que Elvira produzio logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Alvaro procurava fazer sobresahir os seductores attractivos de Elvira, como de proposito para eclipsar as outras bellezas do salão, erão de sobejo para irritar-lhes a vaidade e o amor proprio. Uma e outro devião ser naquella noite o alvo de mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados epigrammas.
Alvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade, com que elle e a sua protegida, — podemos dar-lhe esse nome, — erão acolhidos naquella reunião; mas a timida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade, achava-se mal naquella atmosphera de fingida amabilidade e cortezania, e em cada olhar via um escarneo desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.
Já sabemos quem era Alvaro; agora travemos conhecimento com o seo amigo, o Dr. Geraldo.
Era um homem de trinta annos, bacharel em direito, e advogado altamente conceituado no foro do Recife. Entre as relações de Alvaro era a que cultivava com mais affecto e intimidade; uma intelligencia de bom quilate, firme e esclarecida, um caracter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predilecção da parte de Alvaro. Seo espirito pratico e positivo, como deve ser o de um consummado jurisconsulto, prestando o maior respeito ás instituições e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéas excentricas e reformistas de seo amigo; mas esse antagonismo longe de perturbar ou arrefecer a reciproca estima e affeição, que entre eles reinava, servia antes para alimental-as e fortalecel-as, quebrando a monotonia, que deve reinar nas relações de duas almas sempre accordes e unisonas em tudo. Estas taes por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra tambem pensa, o que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada tem a se communicarem, enjoadas de tanto se dizerem — amen, — ver-se-hão forçadas a recolherem-se ao silencio e a dormitarem uma em face da outra; placida, commoda e somnolenta amisade!... De mais, a contrariedade de tendencias e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras. E’ assim, que muitas vezes o positivismo e o senso pratico do Dr. Geraldo servião de correctivo ás utopias e exaltações de Alvaro, e vice-versa.
Da boca do proprio Alvaro já ouvimos por que acaso veio elle a conhecer D. Elvira, e como conseguio leval-a ao saráo, a que ainda continuamos a assistir.
— Meo pae, — dizia uma jovem senhora a um homem respeitavel, em cujo braço se arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos de observação. — Meo pae, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, em quanto está deserta. Ah! meo Deos! — continuou ella com voz abafada, depois de se terem sentado junto um do outro; — que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio dos saráos dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens, que me rodeião, me perturbão os sentidos e causão-me vertigem. E’ um crime que cometo, envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição, meo pae; eu o conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras adivinhassem, que ao lado dellas diverte-se e dança uma miseravel escrava fugida a seos senhores!... Escrava! — exclamou levantando-se — escrava!... affigura-se-me que todos estão lendo, gravada em letras negras em minha fronte, esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade parece estar escarnecendo de mim; este ar me suffoca... fujamos.
Fallando assim a moça pálida e offegante, lançava a cada phrase olhares inquietos em roda de si, e empuchava o braço de seo pae, repetindo sempre com anciosa soffreguidão: — Vamo-nos, meo pae; fujamos daqui.
— Socega teo coração, minha filha, respondia o velho procurando acalmal-a. — Aqui ninguem absolutamente pode suspeitar quem tu és.
Como poderão desconfiar, que és uma escrava, se de todas essas lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas do espirito, nenhuma pode levar-te a palma?
— Tanto peor, meo pae; sou alvo de todas as attenções, e esses olhares curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante estremecer; desejaria até, que a terra se abrisse debaixo de meos pés, e me sumisse em seo seio.
— Deixa-te dessas idéas; esse teo medo e acanhamento é que poderião nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio. Ostenta com desembaraço todos os seos encantos e habilidades, dança, canta, conversa, mostra-te alegre e satisfeita, que longe de te supporem uma escrava, são capazes de pensar que és uma princeza. Toma animo, minha filha, ao menos por hoje; esta tambem, assim como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este constrangimento; não nos é possivel ficar por mais tempo nesta terra, onde começamos a despertar suspeitas.
— E’ verdade, meo pae!.. que fatalidade!.. — respondeo a moça com uma triste oscillação de cabeça. — Assim pois estamos condenados a vagar de paiz em paiz, sequestrados da sociedade, vivendo no mysterio, e estremecendo a todo instante, como se o céo nos tivesse marcado com um ferrete de maldição!... ah! esta partida ha-de-me doer bem no coração!... não sei que encanto me prende a este lugar. Entretanto terei de dizer adeos eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias de prazer e tranquillidade! Ah! meo Deos!... quem sabe, se não teria sido melhor morrer entre os tormentos da escravidão!...
Neste momento entrava Alvaro na ante-sala percorrendo-a com os olhos, como quem procurava alguem.
— Onde se sumirião? — vinha elle murmurando; — terião tido a triste lembrança de se irem embóra?... oh! não; felizmente ei-los ali! — exclamou alegremente, dando com os olhos nos dous personagens, que acabamos de ouvir conversar. — D. Elvira, Vª. Exª. é modesta de mais; vem esconder-se neste recanto, quando devia estar brilhando no salão, onde todos suspirão pela sua presença. Deixe isso para as timidas e fanadas violetas; á rosa compete alardear em plena luz todos os seos encantos.
— Desculpe-me, — murmurou Isaura — uma pobre moça creada como eu na solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplendidas reuniões, sente-se abafada e constrangida...
— Oh! não;... ha-de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor, as harmonias, os perfumes, constituem a atmosphera em que deve brilhar a belleza, que Deos creou para ser vista e admirada. Vim buscal-a a pedido de alguns cavalheiros, que já são admiradores de Vª. Exª. Para interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumão aqui as senhoras encantar-nos os ouvidos com alguma canção, aria, modinha, ou seja o que fôr. Algumas pessoas, a quem eu disse, — perdoe-me a indiscrição, filha do enthusiasmo, — que Vª. Exª. possue a mais linda voz, e canta com maestria, mostrão o mais vivo desejo de ouvil-a.
— Eu, senhor Alvaro!.. eu cantar diante de uma tão luzida reunião!.. por favor queira dispensar-me dessa nova prova. E’ em seo proprio interesse, que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei solemnemente desmentil-o. Poupe-nos a nós ambos essa vergonha.
— São desculpas, que não posso acceitar, por que já a ouvi cantar, e creia-me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza, de que a senhora canta admiravelmente, não seria capaz de expôl-a a um fiasco. Quem canta como Vª. Exª. não deve acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe encarecidamente, que não cante outra cousa, senão aquella maviosa canção da escrava, que outro dia a sorprehendi cantando, e affianço a Vª. Exª, que arrebatará os ouvintes.
— Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão tristes...
— E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos labios de Vª. Exª.
— Ai! triste de mim! — suspirou dentro da alma D. Elvira: — aquelles mesmos que mais me amão, tornão-se, sem o saber, os meos algozes!...
Elvira bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquella ocasião era para ella o mais penoso dos sacrificios. Mas não lhe era mais possivel reluctar, e lembrando-se do judicioso conselho de seo pae, não quis mais ver-se rogada, e acceitando o braço que Alvaro lhe offerecia, foi por elle conduzida ao piano, onde sentou-se com a graça e elegancia, de quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.
Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na mais anciosa expectação, se apinhárão em volta do piano; os cavalheiros estavão anciosos por saberem, se a voz daquella mulher correspondia á sua extraordinaria belleza; se a fada seria tambem uma sereia; as moças esperavão, que ao menos naquelle terreno, terião o prazer de ver derrotada a sua formidavel émula, e já contavão comparal-a com o pavão da fabula, queixando-se a Juno, que o tendo formado a mais bella das aves, não lhe déra outra voz mais que um guincho aspero e desagradavel.
A conjunctura era delicada e solemne; a moça achava-se na difficil situação de uma prima dona, que precedida de uma grande reputação, faz a sua estréa perante um publico exigente e illustrado. Em torno della fazia-se profundo silencio; as respirações estavão como que suspensas, ao passo que parecia ouvir-se o palpitar de todos os corações no offego da expectação. Alvaro, apezar de conhecer já a excellencia da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se inquieto e commovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e a mais tola daquella reunião, com tanto que a deixassem a um canto esquecida e socegada. Dir-se-hia, que estava debaixo do imperio de algum terrivel presentimento. Mas Elvira amava a Alvaro, e grata ao delicado empenho, com que este, cheio de solicitude e enthusiasmo, se esforçava por apresental-a como um prototypo de belleza e de talento aos olhos daquella brilhante sociedade, para satisfazel-o, e não desmentir a lisonjeira opinião, que propalára a respeito della, desejava cantar o melhor que lhe fosse possivel. Era ao triumpho de Alvaro, que aspirava mais do que ao seo proprio.
Uma vez sentada ao piano, logo que seos dedos mimosos e flexiveis, pousando sobre o teclado, preludiárão alguns singelos accordes, a moça sentio-se outra, revelando aos circumstantes maravilhados um novo e original aspecto de sua formosura. A physionomia, cuja expressão habitual era toda modestia, ingenuidade e candura, animou-se de luz insolita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueo-se altaneiro e magestoso; os olhos estaticos alçavão-se cheios de esplendor e serenidade; os seios, que até ali apenas arfavão como as ondas de um lago em tranquilla noite de luar, começárão de offegar, turgidos e agitados, como oceano encapellado; seo collo distendeo-se alvo e esbelto como o do cysne, que se aprésta a desprender os divinais gorgeios. Era o sopro da inspiração artistica, que roçando-lhe pela fronte, a transformava em sacerdotiza do bello, em interprete inspirada das harmonias do céo. Ali sentia-se ella rainha sobre seo throno ideal; ali era Caliope sentada sobre a tripode sagrada, avassalando o mundo ao som de enlevadoras e ineffaveis harmonias. Das proprias inquietações e angustias da alma soube ella tirar alento e inspiração para vencer as difficuldades da ardua situação, em que se achava empenhada. Banhou os labios com as lagrimas do coração, e a voz lhe rompeo do peito com tão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras e suaves, tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lagrima vio-se rolar pelas faces dos frequentadores daquelle templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!
Elvira acabava de alcançar um triumpho collossal. Mal terminára o canto, o salão restrugio entre os mais estrondosos applausos, e parecia que vinha desabando ao ruido atordoardor das palmas e dos vivas!
— A fada de Alvaro é tambem uma sereia; — dizia o Dr. Geraldo a um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. — Resume tudo em si!.. que timbre de voz tão puro e tão suave! julguei-me arrebatado ao septimo céo, ouvindo as harmonias dos chóros angelicos.
— E’ uma consummada artista... no theatro faria esquecer a Malibran, e conquistaria reputação européa. Alvaro tem razão; uma creatura assim não pode ser uma mulher ordinaria, e muito menos uma aventureira... A musica dando o signal para a quadrilha, interrompe a conversação ou não nol-a deixa ouvir.
— D. Elvira, — diz Alvaro dirigindo-se á sua protegida, que já se achava sentada ao pé de seo pae, — lembre-se, que me fez a honra de conceder-me esta quadrilha.
Elvira esforçou-se por sorrir e combater o terrivel abatimento, que ao deixar o piano de novo se apoderára de seo espirito.
Tomou o braço de Alvaro, e ambos forão occupar o seo lugar na quadrilha.
Agora os leitores já sabem, se é que ha mais tempo não adivinhárão, que a supposta Elvira não é mais do que a escrava Isaura, assim como Anselmo não passa do feitor Daniel[1], ambos os quaes são já nossos conhecidos antigos. Como tambem sabem, que Isaura não só era dotada de espirito superior, como tambem recebera a mais fina e esmerada educação, não lhe estranharão a distincção das maneiras, a elegancia e elevação da linguagem, e outros dotes, que fazião, com que essa escrava excepcional pudesse apparecer e mesmo brilhar no meio da mais luzida e aristocratica sociedade.
Foi a situação desesperada, em que via sua querida filha, que inspirou a Daniel[1] o expediente extremo de uma fuga precipitada, exposta a mil azares, e perigos. Lembrava-se elle com horror do miserando destino, de que em iguaes circumstancias fôra victima a mãe de Isaura, e bem sabia, que Leoncio, tão desalmado como o pae, e ainda mais corrupto e libertino, era capaz de excessos e attentados ainda maiores. Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeo que podia utilizar-se da somma, que para esse fim tinha agenciado, empregando-a em arrancar a pobre victima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse. Bem via, que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seos senhores, e proteger-lhe a fuga, além de ser um crime, era um acto desairoso e indigno de um homem de bem; mas a escrava era uma filha idolatrada, e uma pérola de pureza, prestes a ser polluida ou esmagada pela mão de um senhor verdugo, e esta consideração o justificava aos olhos da propria consciencia.
Bem se lembrára o infeliz pae de dar denuncia do facto ás autoridades, implorando a protecção das leis em favor de sua filha, para que não fosse victima das violencias e sevicias de seo dissoluto e brutal senhor. Mas todos a quem consultava, respondião-lhe a uma voz: — Não se metta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada tem que ver com o que se passa no interior da casa dos ricos. Não caia nessa; muito feliz será, se sómente tiver de pagar as custas, e não lhe arrumarem por cima algum processo, com que tenha de ir dar com os costados na cadeia. — Onde se vio o pobre ter razão contra o rico, o fraco contra o forte?...
Daniel[1] entretinha relações occultas com alguns dos antigos escravos da fazenda de Leoncio, os quaes, lembrando-se ainda com saudades do tempo de sua boa administração, conservavão-lhe o mesmo respeito e affeição, e por meio delles tinha exacta informação do que se passava na fazenda. Sabendo dos crueis apuros, a que sua filha se achava reduzida depois da morte do commendador, não hesitou mais um instante, e tratou de tomar todas as providencias e medidas de segurança para roubar a filha, e pôl-a fóra do alcance de seo barbaro senhor. Na mesma madrugada, que seguio-se á tarde, em que a raptou, fazia-se de véla com Isaura para as provincias do norte em um navio negreiro, de que era capitão um portuguez, antigo e dedicado amigo seo. Este chegando ás alturas de Pernambuco, como dahi tinha de singrar para a costa da Africa, largou-os no Recife, promettendo-lhes, que dentro em tres ou quatro mezes estaria de volta e pronto a conduzil-os para onde quizessem. Daniel[1], que em sua profissão de jardineiro ou de feitor havia passado a vida desde a infancia, dentro de um horizonte acanhado e em circulo mui limitado de relações, tinha pouco conhecimento e nenhuma experiencia do mundo, e portanto não podia calcular todas as consequencias da difficil posição, em que ia collocar a si e a sua filha. Durante os longos annos, que esteve feitorando a fazenda do commendador e de outros, não se déra senão uma ou outra fuga insignificante de escravos, por poucos dias e para alguma fazenda vizinha, e portanto não é para admirar, que elle quasi completamente ignorasse a amplitude dos direitos, que tem um senhor sobre o escravo, e os infinitos meios e recursos de que pode lançar mão para captural-os em caso de fuga. Entendeo pois, que em Pernambuco poderia viver com sua filha em plena seguridade, ao menos por tres ou quatro mezes, uma vez que se afastassem da sociedade o mais que pudessem, e procurassem esconder sua vida na mais completa obscuridade.
Isaura tambem, se bem que tivesse o espirito mais atilado e esclarecido, longe do objecto principal de seo terror e aversão, não deixava de sentir-se tranquilla, e até certo ponto descuidosa dos perigos a que vivia exposta. Mas essa tal ou qual tranquillidade só durou até o dia, em que pela primeira vez vio Alvaro. Amou-o com esse amor exaltado das almas elevadas, que amão pela primeira e unica vez, e esse amor, como bem se comprehende, veio tornar ainda mais critica e angustiosa a sua já tão precaria e misera situação.
Alvaro tinha na physionomia, nas maneiras, na voz e no gesto, um não sei quê de nobre, de amavel e profundamente sympathico, que avassalava todos os corações. O que não seria elle para aquella, que unica até ali lhe soubera conquistar o amor. Isaura não poude resistir a tão prestigiosa seducção; amou-o com o ardor e enthusiasmo de um coração virgem; e com a inprevidencia e cegueira de uma alma de artista, embora não visse nesse amor mais do que uma nova fonte de lagrimas e torturas para seo coração.
Medindo o abysmo, que a separava de Alvaro, bem sabia que de nenhuma esperança podia alimentar-se aquella paixão funesta, que deveria ficar para sempre sepultada no intimo do coração, como um cancro a devoral-o eternamente.
No seo calix de amarguras, já quasi a transbordar, tinha de receber da mão do destino mais aquelle travo cruel, que lhe devia queimar os labios e envenenar-lhe a existencia.
Já bastante lhe pezava andar enganando a sociedade a respeito de sua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se comsigo mesma de impor ás poucas pessoas, que com ella tratavão de perto, um respeito e consideração a que nenhum direito podia ter. Mas considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar á sociedade, conformava-se com sua sorte. Deveria porém ella, ou poderia sem inconveniente manter o seo amante na mesma illusão? Com seo silencio, conservando-o na ignorancia de sua condição de escrava, deveria deixar alimentar-se e crescer profunda e energica paixão, que o moço por ella concebera?.. não seria isto um vil embuste, uma indignidade, uma traição infame? não teria elle o direito, ao saber da verdade, de acabrunhal-a de amargas exprobrações, de desprezal-a, de calcal-a aos pés, de tratal-a emfim como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo?
— Oh! isto para mim seria mais horrivel que mil mortes! — exclamava ella no meio do angustioso embate de idéas, que se lhe agitavão no espirito. — Não, não devo illudil-o; isto seria uma infamia... vou-lhe descobrir tudo; é esse o meo dever, e hei-de cumpril-o. Ficará sabendo, que não pode, que não deve amar-me; porém ao menos não ficará com o direito de desprezar-me.. uma escrava, que procede com lisura e lealdade, pode ao menos ser estimada.
Não; não devo enganal-o; hei de revelar-lhe tudo.
Esta era a resolução que lhe inspiravão seo natural pundonor e lealdade, e os dictames de uma consciencia recta e delicada, mas quando chegava o momento de pôl-a em pratica fraqueava-lhe o coração, e Isaura ia differindo de dia para dia a execução de seo proposito.
Fallecia-lhe de todo a coragem para quebrar por suas proprias mãos a doce chiméra, que tão deliciosamente a embalava, e em que ás vezes conseguia esquecer por longo tempo sua misera condição, para lembrar-se sómente que amava e era amada.
— Deixemos durar mais um dia — reflectia ella comsigo, — esta illusoria, mas ineffavel ventura. Sou uma condenada, que arrancão da masmorra para subir ao palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz e poderosa; quando descer, serei de novo sepultada em minha masmorra para nunca mais sahir. Prolonguemos estes instantes; não será licito deixar passar ao menos em sonhos uma hora de felicidade sobre a fronte do infeliz condenado?... sempre será tempo de quebrar esta fragil cadeia de ouro, que me prende ao céo, e baquear de novo no inferno de meos soffrimentos.
Nesta indecisão, nesta lucta interna, em que sempre a voz da paixão abafava os dictames da razão e da consciencia, passarão-se alguns dias até áquelle, em que Alvaro os induzio por meios quasi violentos a acceitarem convite para um baile. Desde então Isaura entendeo que seria uma deslealdade, uma infamia inqualificavel, conservar por mais tempo o seo amante na illusão a respeito de sua condição, e que não havia mais meio de prolongar, sem desdouro para elles, tão falsa e precaria situação.
Era muito abusar da ignorancia do nobre e generoso mancebo! uma escrava fugida apresentar-se em um baile, e apavonar-se em seo braço á face da mais brilhante e distincta classe de uma importante capital!.. era pagar com a mais feia ingratidão e a mais degradante deslealdade os serviços, que com tanta delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto repugnava absolutamente aos escrupulos, da melindrosa consciencia de Isaura. E’ verdade, que Miguel atterrado pelas considerações, que Alvaro lhe fizéra, vio-se forçado a annuir ao seo gracioso convite; Isaura porém guardára absoluto silencio, o que ambos tomárão por um signal de aquiescencia.
Enganavão-se. Isaura recolhida ao silencio não fazia mais do que tentar esforços supremos para sacudir o fardo daquelle disfarce, que tanto lhe pesava sobre a consciencia, rasgando resolutamente o véo, que encobria aos olhos do amante sua verdadeira condição. Por mais porém que invocasse toda a sua energia e resolução, no momento decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava pelos labios entre-abertos, já tinha o passo formado para ir prostrar-se aos pés de Alvaro, mas encontrando pousado sobre ella o olhar meigo e apaixonado do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não ousava romper os labios paralysados e refluia ao coração, e os pés recusavão-se ao movimento como se estivessem pregados no chão. Isaura estava como o desgraçado a quem circunstancias fataes arrastão ao suicidio, mas que ao chegar á borda do precipicio medonho em que deseja arrojar-se, recua espavorido.
— Fraca e covarde creatura que eu sou! — pensou ella por fim esmorecida: — que miseria! nem tenho coragem para cumprir um dever! não importa; para tudo ha remedio; cumpre que elle ouça da boca de meo pae, o que eu não tenho animo de dizer-lhe.
Esta idéa luzio-lhe no espirito como uma taboa salvadora; agarrou-se a ella com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o animo, tratou de pôl-a em execução.
— Meo pae, — disse ella resolutamente, apenas Alvaro transpoz o portão do pequeno jardim, — declaro-lhe, que não vou a esse baile; não quero, nem devo por forma nenhuma lá me apresentar.
— Não váis?! — exclamou Miguel attonito. — E por que não disseste isto ha mais tempo, quando o senhor Alvaro ainda aqui se achava? agora que já démos nossa palavra...
— Para tudo ha remedio, meo pae, — atalhou a filha com febril vivacidade — e para este caso elle é bem simples. Vá meo pae depressa á casa desse moço, e diga-lhe o que eu não tive animo de dizer-lhe; declare-lhe quem eu sou, e está tudo acabado.
Dizendo isto, Isaura estava palida, fallava com precipitação, os labios descorados lhe tremião, e as palavras proferidas com voz convulsa e estridente, parecia que lhe erão arrancadas a custo do coração. Era o resultado do extremo esforço que fazia, para levar a effeito tão penivel resolução. O pai olhava para ella com assombro e consternação.
— Que estás a dizer, minha filha! — replicou-lhe elle — estás tão palida e alterada!.. parece-me que tens febre... soffres alguma cousa?
— Nada soffro, meo pae; não se inquiete pela minha saúde. O que eu estou lhe dizendo é que é absolutamente necessario, que meo pae vá procurar esse moço e confessar-lhe tudo...
— Isso nunca!.. estás louca, menina?.. queres que eu te veja encerrada em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua provincia, entregue a teo senhor, e por fim ver-te morrer entre tormentos nas garras daquelle monstro! oh! Isaura, por quem és, não me falles mais nisso. Emquanto o sangue me girar nestas veias, emquanto me restar o mais pequenino recurso, hei-de lançar mão delle para te salvar....
— Salvar-me por meio de uma indignidade, de uma infamia, meo pae!.. retorquio a moça com exaltação. — Como posso eu, sem commetter a mais vil deslealdade, apparecer apresentada por elle como uma senhora livre em uma sala de baile?... Quando esse senhor e tantas outras illustres pessoas souberem que hombreou com ellas, e a par dellas dançou uma miseravel escrava fugida...
— Cala-te, menina! — interrompeo o velho, incommodado com a exaltação da filha. — Não falles assim tão alto... tranquilliza-te; elles nunca saberão de nada. O mais breve que puder ser deixaremos esta terra; ámanhã mesmo, se for possivel. Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem longe, para os Estados-Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar fóra do alcance de qualquer perseguição. Eu com o meo trabalho, e tu com as tuas prendas e habilitações, podemos viver sem soffrer necessidades em qualquer canto do mundo.
— Ah! meo pae! essa idéa de irmos para tão longe, sem esperança de um dia podermos voltar, me opprime o coração.
— Que remedio, minha filha!.. já agora, ainda que tenhamos de ir parar ao fim do mundo, nos é forçoso fugir ás garras do monstro.
— Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Alvaro, nobre e generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, e das terriveis circumstancias que nos obrigão a andar assim fugitivos e disfarçados pelo mundo, talvez queira e possa nos amparar e valer contra as perseguições..
— E quem nos affiança isso?... o mais certo é elle entregar-te ao desprezo, logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se despeitado com o logro que levou, não for o primeiro a denunciar-te á policia. No transe em que nos achamos, é de absoluta necessidade enganar a elle e a todos; se revelarmos a quem quer que seja o segredo de nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e vamos ao baile, minha filha; é um sacrificio cruel, mas passageiro, a que devemos nos sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e se algum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos verão o rosto, nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciencia escrupulosa em demasia. Se ignorão quem tu és, a tua companhia em nada os pode infamar. Com isso não fazes mal a ninguem; é uma medida de salvação, que todos te perdoarião.
— Meo pae parece que tem razão; mas não sei por que, repugna-me absolutamente ao coração dar esse passo.
— Mas é preciso dal-o, minha filha, se não queres para nós ambos a desgraça e a morte. Se não formos a esse baile, e desapparecermos de um dia para outro, como nos é forçoso, então as suspeitas que começamos a despertar, tomarão muito maior vulto, e a policia pôr-se-há á nossa pista, e nos perseguirá por toda parte. E’ um sacrificio na verdade, mas não será elle muito mais suave do que as perseguições da policia, a prisão, as torturas e a morte, que é o que podes esperar em casa de teo senhor?...
Isaura não respondeo; seo espirito agitava-se entre as mais pungentes e amargas reflexões.
As palavras de seo pae a tinhão abismado em glacial e profundo desalento. Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia-se em um mar de duvidas e perplexidades, como fragil barca em meio de um oceano irritado, sacudida aos boléos por vagalhões desencontrados.
O grito de sua consciencia escrupulosa e delicada, a lisura e sinceridade de seo coração, que não podia accomodar-se com o embuste e a mentira, e uma especie de vago presentimento que lhe pesava sobre o espirito, a desviavão daquelle baile, e por momentos parecião fixar definitivamente a sua resolução; e firme neste proposito dizia comsigo mesma: — não, não irei.
Por outro lado as considerações de seo pae, que parecião tão razoaveis e sensatas, bem como o desejo de ver Alvaro ainda uma vez, de gozar por algumas horas a sua presença, fazião-lhe de novo fluctuar o espirito no mar das irresoluções. A lembrança de que em breve, talvez no dia seguinte, tinha de deixar aquella terra e separar-se de Alvaro, sem esperança alguma de jámais tornar a vel-o, sem poder dizer-lhe um adeos, sem que elle pudesse saber quem ella era, nem para onde ia, dilacerava-lhe o coração. Partir sem ter um ente a quem apertar nos braços na hora da despedida, nem ter um seio onde verter as lagrimas da mais pungente saudade; partir para levar uma vida errante e fugitiva, sem esperança nem consolação alguma, atravéz de mil trabalhos e perigos, para terminal-a talvez entre os tormentos da mais atroz escravidão, oh!.. isto era pavoroso! — e, entretanto, era esse o unico futuro, que a pobre Isaura tinha diante dos olhos. Mas não; tinha ainda diante de si uma noite inteira de prazer e de ventura, uma noite esplendida de baile e regozijo de seo amante, respirando o mesmo ar, inebriando-se de sua voz, bebendo o seo halito, recolhendo dentro d’alma seos olhares apaixonados, sentindo na sua a pressão daquella mão adorada, contando as pulsações daquelle coração, que só por ella palpitava. Oh! uma noite assim valia bem uma eternidade, viessem depois embora as angustias e perigos, a escravidão e a morte!
Candida e modesta como era, nem por isso Isaura deixava de ter consciencia do quanto valia. Vendo-se o objeto do amor de um jovem de espirito elevado, e dotado de tão nobres e brilhantes qualidades como Alvaro, ainda mais se confirmou na idéa que de si mesma fazia.
Com sua natural perspicacia e penetração, bem depressa convenceo-se, de que o affecto que o mancebo lhe consagrava, não era simples e superficial homenagem rendida a seos encantos e talentos, nem tão pouco passageiro capricho de mocidade, mas verdadeira paixão, sincera, energica e profunda. Era isto para ella motivo de um orgulho intimo, que a elevava a seos proprios olhos, e por momentos a fazia esquecer-se que era uma escrava.
— Estou convencida de que sou digna do amor de Alvaro, se não, elle não me amaria; e se sou digna de seo amor, por que não o serei de me apresentar no seio da mais brilhante sociedade? A perversidade dos homens pode acaso destruir o que ha de bom e de bello na feitura do creador? Assim reflectia Isaura, e exaltada com estas ideas e com a seductora perspectiva de algumas horas de ineffavel ventura em companhia do amante, exclamava dentro d’alma. — Hei de ir, hei de ir ao baile! —
Emquanto Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em suas cismas, procurando firmar-se em uma resolução, o pae não menos inquieto e preoccupado, passeava distrahido entre os canteiros do jardim, aguardando com anciedade uma resposta definitiva de sua filha.
— Irei, meo pae, irei ao baile, — disse ella por fim levantando-se, mas vou preparar-me para elle como a victima que tem de ser conduzida ao sacrificio entre canticos e flores. Tenho um cruel presentimento, que me acabrunha...
— Presentimento de que, Isaura?..
— Não sei, meo pae; de alguma desgraça.
— Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está-me adivinhando, que de ir a esse baile resultará a nossa salvação.
Não pense o leitor, que já se acha terminado o baile, a que estavamos assistindo. A pequena digressão, que por fóra delle fizemos no capitulo antecedente, nos pareceo necessaria para explicar por que conjuncto de circumstancias fataes a nossa heroina, sendo uma escrava, foi impellida a tomar a audaciosa resolução de apresentar-se em um esplendido e aristocratico saráo, — fraqueza de coração, ou timidez de caracter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em uma pessoa de consciencia tão delicada e de tão esclarecido entendimento.
O baile continúa, mas já não tão animado e festivo como ao principio. Os applausos freneticos, a admiração geral, de que Isaura se havia tornado objecto da parte dos cavalheiros, tinhão produzido um completo resfriamento entre as mais bellas e espirituosas damas da reunião. Arrufadas com seos cavalheiros predilectos, em razão das enthusiasticas homenagens, que francamente ião render aos pés daquella, que implicitamente estavão proclamando a rainha do salão, já nem ao menos querião dançar, e em vez de risos folgazões, e de uma conversação franca e jovial, só se ouvião pelos cantos entre diversos grupos, expansões mysteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre amarellas e sarcasticas risotas.
Propagava-se entre as moças como que um sussurro geral de descontentamento. Era como esses rumores surdos e profundos, que restrugem ao longe pelo espaço, precedendo uma grande tempestade. Dir-se-hia, que já estavão adivinhando que aquella mulher, que por seos encantos e dotes incomparaveis as estava supplantando a todas, não era mais do que — uma escrava. Muitas mesmo se forão retirando, e nomeadamente aquellas que affagavão alguma esperança, ou se julgavão com algum direito sobre o coração de Alvaro. Aniquiladas sob o peso dos esmagadores triumphos de Isaura, não se achando com animo de manterem-se por mais tempo na liça, tomárão o prudente partido de irem esconder no mysterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha de tão cruel e solemne derrota.
Não diremos todavia, que no meio de tantas e tão nobres damas, distinctas pelos encantos do espirito e do corpo, não houvessem muitas, que com toda a isenção e sem a menor sombra de inveja, admirassem a belleza de Isaura, e applaudissem de coração e com sincero prazer os seos triumphos, e forão essas, que conseguirão ir dando alguma vida ao saráo, que sem ellas teria esmorecido inteiramente. Todavia não é menos certo que do bello sexo, sem distincção de classes, ao menos a metade é ludibrio dessas invejas, ciumes e rivalidades mesquinhas.
Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Alvaro por seo par. Emquanto danção, entremos em uma saleta, onde ha mesas de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanhe. Esta saleta communica immediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta. Achão-se ahi uma meia duzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estroinas e excentricos á Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumão dizer que não trocarião uma fumaça de charuto, ou um copo de champanhe, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzella; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já tem o coração mirrado pelo sopro do scepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misanthropos emfim, cheios de spleen, que se achão sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda especie, alardeando o seo afastamento e desdem pelos prazeres da sociedade e frivolidades da vida.
Entre elles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a attenção, visto que tem de tomar parte um tanto activa nos acontecimentos desta historia. Este nada tem de spleenitico nem de byroniano; pelo contrario o seo todo respira o mais chato e ignobil prosaismo. Mostra ser mais velho que os seos comparsas, uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberancias, o que, na opinião de Lavater, é indicio de espirito lerdo e acanhado, a roçar pela estupidez. O todo da physionomia tosca e quase grotesca revéla instinctos ignobeis, muito egoismo e baixeza de caracter. O que porém mais o caracteriza é certo espirito de cobiça, e de sordida ganancia, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os actos, e principalmente no fundo de seos olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria. E’ estudante, mas pelo desalinho do trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegancia, parece mais um vendilhão. Estudava ha quinze anos á sua propria custa, mantendo-se do rendimento de uma taverna, de que era socio capitalista. Chama-se Martinho.
— Rapaziada, — disse um dos mancebos, — vamos nós aqui a uma partida de lansquenet, emquanto esses basbaques ali estão a arrastar os pés e a fazer mesuras.
— Justo! — exclamou outro, sentando-se a uma mesa e tomando baralhos. — Já que não temos cousa melhor a fazer, vamos ás cartas. Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sóta me faz ás vezes estremecer o coração em emoções mais vivas, do que as sentiria Romeo a um olhar de Julieta... Affonso, Alberto, Martinho, andem para cá; vamos ao lansquenet... duas ou tres corridas sómente...
— De boa vontade acceitaria o convite, — respondeo Martinho, — se não andasse occupado com um outro jogo, que de um momento para outro, e sem nada arriscar, pode meter-me na algibeira não menos de cinco contos de réis limpinhos.
— De que diabo de jogo estás ahi a fallar?.. nunca deixarás de ser maluco?.. deixa-te de asneiras, e vamos ao lansquenet.
— Quem tem um jogo seguro como eu tenho, ha-de ir meter-se nos azares do lansquenet, que já me tem engolido bem boas patacas?.. Nem tão tolo serei eu.
— Com mil diabos, Martinho!.. então não te explicarás?.. que maldito jogo é esse?...
— Ora adivinhem lá... Não são capazes. E’ uma bisca de estrondo. Se adivinharem, dou-lhes uma ceia esplendida no melhor hotel desta cidade; bem entendido, se encartar a minha bisca.
— Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalháo ardido, e por que não é possivel haver quem adivinhe as asneiras que passam lá por esses teos miolos extravagantes. O que queremos é o teo dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenet.
— Ora deixem-me em paz, — disse Martinho, com os olhos attentamente dirigidos para o salão de dança. — Estou calculando o meo jogo... supponhão que é o xadrez, e que eu vou dar cheque-mate á rainha... dito e feito, e os cinco contos são meos...
— Não ha duvida, o rapaz está doudo varrido... Anda lá, Martinho; descobre o teo jogo, ou vae-te embora, e não nos estejas a massar a paciencia com tuas maluquices.
— Malucos são vocês. O meo jogo é este... mas quanto me dão para descobril-o? olhem que é cousa curiosa.
— Queres-nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres, não é assim?.. pois desta vez affianço-te da minha parte, que não arranjas nada. Vae-te aos diabos com o teo jogo, e deixa-nos cá com o nosso. Ás cartas, meos amigos, e deixemos o Martinho com suas maluquices.
— Com suas velhacarias, dirás tu... não me pilha.
— Ah! toleirões! — exclamou o Martinho, — vocês ainda estão com os beiços com que mamárão.
Andem cá, andem, e verão se é maluquice, nem velhacaria. Emfim quero mostrar-lhes o meo jogo, porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não de accordo com a minha.
Eis aqui a minha bisca. — concluio Martinho mostrando um papel, que sacou da algibeira; — não é nada mais que um annuncio de escravo fugido.
— Ah! ah! ah! esta não é má!..
— Que disparate!.. decididamente estás louco, meo Martinho.
— A que proposito vem agora annuncio de escravo fugido?...
— Foste acaso nomeado official de justiça ou capitão do mato?
Estas e outras phrases escapavão aos mancebos de envolta, em um choro de interminaveis gargalhadas, que competião com a orchestra do baile.
— Não sei de que tanto se espantão, — replicou frescamente o Martinho; — o que admira é que ainda não vissem este grande annuncio em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuido por toda a cidade com o Jornal do Commercio.
— Por ventura somos esbirros ou officiaes de justiça, para nos embaraçarmos com semelhantes annuncios?
— Mas olhem que o negocio é dos mais curiosos, e as alviçaras não são para se desprezarem.
— Pobre Martinho! quanto pode em teo espirito a ganancia de ouro, que faz-te andar á cata de escravos fugidos em uma sala de baile! — pois é aqui, que poderás encontrar semelhante gente?...
— Olé!.. quem sabe?!.. tenho cá meos motivos para desconfiar que por aqui mesmo hei-de achal-a, assim como os cinco continhos, que, aqui entre nós, vem agora mesmo ao pintar, pois que o armazem de meo socio bem pouco tem rendido nestes ultimos tempos.
Martinho chamava armazem a pequena taverna, de que era socio. Ditas aquellas palavras foi postar-se junto á porta, que dava para o salão, e ali ficou por largo tempo a olhar, ora para os que dansavão, ora para o annuncio, que tinha desdobrado na mão, como quem averigua e confronta os signaes.
— Que diabo faz ali o Martinho? — exclamou um dos mancebos, que entretidos com as mimicas do Martinho, tomando-as por palhaçada, tinhã-se esquecido de jogar.
— Está doudo, não resta a menor duvida. — observou outro. — Procurar escravo fugido em uma sala de baile!.. Ora não faltava mais nada! Se andasse á cata de alguma princeza, de certo a iria procurar nos quilombos.
— Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ahi anda.
— Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dansando, e elle não tira os olhos dos que dansão.
— Deixál-o; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi um maniaco de primeira força.
— E’ ella! — disse o Martinho, deixando a porta, e voltando-se para seos companheiros; — é ella; já não tenho a menor duvida; é ella, e está segura.
— Ella quem, Martinho?...
— Ora! pois quem mais ha-de ser?...
— A escrava fugida?!....
— A escrava fugida, sim, senhores!.. e ella está ali dansando.
— Ah! ah! ah! ora vamos ver mais esta, Martinho!.. até onde queres levar a tua farça? deve ser galante o desfecho. Isto é impagavel, e vale mais que quantos bailes ha no mundo.
— Se todos elles tivessem um episodio assim, eu não perdia nem um. — Assim clamavão os moços entre estrondosas gargalhadas.
— Vocês zombão? — olhem que a farça cheira um pouco a tragedia.
— Melhor! Melhor! — vamos com isso, Martinho!
— Não acreditão?... pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farça.
Dizendo isto, Martinho sentou-se em uma cadeira, e desdobrando o annuncio, pôz-se em attitude de lêl-o. Os outros se agrupárão curiosos em torno delle.
— Escutem bem, — continuou Martinho — Cinco contos! — eis o titulo pomposo, que em eloquentes e graúdos algarismos se acha no frontispicio desta obra immortal, que vale mais que a Iliada de Camões...
— E que os Luziadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te de preambulos asnaticos, e vamos ao annuncio.
— Eu já lhes satisfaço, — disse Martinho, e continuou lendo:
— Fugio da fazenda do Sr. Leoncio Gomes da Fonseca, no municipio de Campos, provincia do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura, cujos signaes são os seguintes:
Côr clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma côr, compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno signal preto, e acima do seio direito um signal de queimadura, mui semelhante a uma aza de borboleta. Traja-se com gosto e elegancia; canta e toca piano com perfeição. Como teve excellente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugio em companhia de um portuguez, por nome Miguel, que se diz seo pae. E’ natural, que tenhão mudado o nome. Quem a appreender, e levar ao dito seo senhor, além de se lhe satisfazerem todas as despezas, receberá a gratificação de 5:000:000 de réis —.
— Devéras, Martinho? — exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Venus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida!!....
— Se não querem acreditar ainda, leião com seos proprios olhos: aqui está o papel....
— Com effeito! — accrescentou outro — uma escrava assim vale a pena apprehendel-a, mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos. Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregal-a ao seo senhor.
— Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma creatura tão perfeita só se pode encontrar nos palacios dos principes.
— Ou no reino das fadas; e pelos signaes e indicios estou vendo, que não pode ser outra senão essa nova divindade que hoje appareceo....
— Sem mais nem menos; deo no vinte, — atalhou Martinho, e chamando-os para junto da porta:
— Agora venhão cá, — continuou, — e reparem naquella bonita moça, que dansa de par com Alvaro. Pobre Alvaro, como está cheio de si! se soubesse com quem dansa, cahia-lhe a cara aos pés. Reparem bem, meos senhores, e vejão se não combinão perfeitamente os signaes?..
— Perfeitamente! — acudio um dos moços, — é extraordinario! lá vejo o signalsinho na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver a tal aza de borboleta sobre o seio, não pode haver mais duvida. O’ céos! é possivel que uma moça tão linda seja uma escrava!
— E que tenha a audacia de apresentar-se em um bailes destes? — accrescentou outro. — Ainda não posso capacitar-me.
— Pois cá para mim, — disse o Martinho — o negocio é liquido, assim como os cinco contos, que me parece estarem já me cantando na algibeira; e até logo, meos caros.
E dizendo isto dobrou cuidadosamente o annuncio, meteo-o na algibeira, e esfregando as mãos com cynico contentamento, tomou o chapéo, e retirou-se.
— Forte miseravel!.. — disse um dos comparsas — que vil ganancia de ouro a deste Martinho! estou vendo, que é capaz de fazer prender aquella moça aqui mesmo em pleno baile.
— Por cinco contos é capaz de todas as infamias do mundo. Tão vil creatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para expellil-o da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquella rara formosura.
— E’ assombroso! Quem diria, que debaixo daquella figura de anjo estaria occulta uma escrava fugida!
— E tambem quem nos diz, que no corpo da escrava não se acha asylada uma alma de anjo?..
Havia terminado a quadrilha. Alvaro ufano e cheio de jubilo, conduzia o seo formoso par atravéz da multidão, atravéz de uma viva fusilaria de olhares de inveja e de admiração, que se cruzavão em sua passagem; a pretexto de offerecer-lhe algum refresco, a foi levando para uma sala dos fundos, que se achava quasi deserta. Até ali ainda elle não havia feito a Elvira uma declaração de amor em termos positivos, se bem que esse amor se estivesse revelando a cada instante, e cada vez mais ardente e apaixonado, em seos olhos, em suas palavras, em todos os seos movimentos e acções. Alvaro julgava já ter adquirido completo conhecimento do coração de sua amada, e nos dous mezes durante os quaes a havia estudado, não havia descoberto nella senão novos encantos e perfeições. Estava plenamente convencido, que de todas as formosuras que até ali tinha conhecido, Elvira era em tudo a mais digna de seo amor, e já nem por sombras duvidava da pureza de sua alma, da sinceridade do seo affecto. Pensava portanto, que sem receio algum de comprometter o seo futuro, podia abandonar o coração ao imperio daquella paixão, que já não podia dominar. Quanto á origem e procedencia de Elvira, era cousa de que nem de leve se preoccupava, e nunca se lembrou de indagar. A distincção de classes repugnava a seos principios e sentimentos philantropicos. Fosse ella uma princeza que o destino obrigava a andar foragida, ou tivesse o berço na palhoça de algum pobre pescador, isso lhe era indifferente. Conhecia-a em si mesma, sabia que era uma das creaturas mais perfeitas e adoraveis que se pode encontrar sobre a terra, e era quanto lhe bastava.
Observava Alvaro em seos costumes, como já sabemos, a severidade de um quaker, e seria incapaz de abusar do amor que havia inspirado á formosa desconhecida, aninhando em seo espirito um pensamento de seducção.
Naquella noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado mais que nunca pelos novos encantos e attractivos, que Elvira alardeava entre os esplendores do baile, não poude e nem quiz dilatar por mais tempo a declaração, que a cada instante lhe ardia nos olhos, e esvoaçava pelos labios, e apenas achou-se em lugar onde pudesse não ser ouvido senão de Elvira:
— D. Elvira, — lhe disse com voz grave e commovida, — se a senhora é um anjo em sua casa, nos salões do baile é uma deosa. O meo coração ha muito já lhe pertence; sinto que o meo destino de hoje em diante depende só da senhora. Funesta ou propicia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos da vida. Creio que me conhece bastante para acreditar na sinceridade de minhas palavras. Sou senhor de uma fortuna consideravel; tenho posição honrosa e respeitavel na sociedade; mas não poderei jamais ser feliz, se a senhora não consentir em partilhar commigo esses bens, que a fortuna prodigalizou-me.
Estas palavras de Alvaro, tão meigas, tão repassadas do mais sincera e profundo amor, que em outras condições terião cahido como balsamo celeste sobre o coração de Isaura a banhal-o em ineffaveis effluvios de ventura, erão agora para ella como um atroz e pungente sarcasmo do destino, um hymno do céo ouvido entre as torturas do inferno. Via de um lado um anjo, que tomando-a pela mão com um suave sorriso mostrava-lhe um eden de delicias, ao qual se esforçava por conduzil-a, emquanto de outro lado a hedionda figura de um demonio atava-lhe ao pé um pesado grilhão, e com todo o seo peso a arrastava para um golphão de eternos soffrimentos.
E’ que a pobre Isaura, cheia de sustos e desconfianças, durante uma pausa tinha notado os movimentos do infame Martinho, quando encostado ao umbral da saleta com um papel na mão, parecia examinal-a com a mais minuciosa attenção. Aquella vista produzio nella o effeito de um raio; não duvidou mais que estava descoberta, e irremissivelmente perdida para sempre. Subita vertigem lhe escureceo os olhos, pareceo-lhe que o chão lhe faltava debaixo dos pés, e que ia sendo tragada pelas fauces de um abysmo immensuravel. Para não cahir foi-lhe preciso agarrar-se fortemente com ambas as mãos ao braço de Alvaro arrimando-se em seo peito.
— Que tem, minha senhora? — perguntára-lhe este, assustado. — Está incommodada?...
— Algum tanto, — respondeo Elvira com voz desfallecida e arquejante, e reanimando-se pouco a pouco. — Foi uma dor aguda... uma pontada deste lado... mas vae passando.... não estou acostumada com este aperto... o remoinhar da dansa me fez mal.
— Mas ha-de acostumar-se em pouco tempo, — replicou-lhe Alvaro, segurando-lhe uma das mãos e sustendo-a com um braço pela cintura. — A senhora nasceo para brilhar nos salões;... mas, se quer retirar-se....
— Não, senhor; continuemos; já agora estamos na final...
Com estas respostas evasivas Alvaro tranquillizou-se, e em razão dos movimentos rapidos da quadrilha na marca final, que immediatamente seguio-se, não poude notar a extrema palidez e profundo transtorno das feições de Elvira. A infeliz já não dansava, arrastava-se automaticamente pela sala; seo espirito não estava ali, não ouvia nem via outra cousa senão a figura repugnante do Martinho, postada como esphinge ameaçadora junto á porta da saleta, para a qual ella volvia de quando em quando olhos cheios de anciedade e pavor. E o sangue todo lhe refluia ao coração, que lhe tremia como o da pomba que sente estendida sobre o collo a garra desapiedada do gavião.
Em tal estado de susto e perturbação, Isaura não atinava com o que devia responder áquella tão sincera e apaixonada declaração do mancebo. Guardou silencio por alguns instantes, o que Alvaro interpretou por timidez ou emoção.
— Não me quer responder? — continuou com voz meiga, — uma só palavra é bastante....
— Ah! senhor, — murmurou ella suspirando, o que posso eu responder ás doces palavras, que acabo de ouvir de sua boca. Ellas me encantão, mas....
Elvira interrompeo-se bruscamente; um subito estremecimento agitando o braço de Alvaro o fez olhar para ella com sobresalto e inquietação.
— E’ elle!.. — este som sussurrou-lhe pelos labios como um gemido rouco e convulsivo; acabava de avistar Martinho, entrando na sala em que se achavão, e sentio mortal calafrio percorrer-lhe todo o corpo.
— Desculpe-me, senhor; — continuou ella; — não é possível por hoje ouvir suas doces palavras; sinto-me mal; preciso retirar-me. Se o senhor tivesse a bondade de levar-me onde está meo pae...
— Por que não, D. Elvira?... mas oh!.. como está palida!... está soffrendo muito, não é assim?.. quer que eu a acompanhe?.. que lhe chame um medico?... aqui mesmo os há....
— Obrigada, senhor Alvaro; não se inquiete; isto é um mal passageiro, cansaço talvez; em chegando a casa ficarei boa.
— E quer então retirar-se sem me deixar uma só palavra de consolação e de esperança?..
— De consolação talvez, mas de esperança.....
— Por que não?
— Se nem eu mesma posso tel-a...
— Então não me ama....
— Amo-o muito.
— Então será minha...
— Isso é impossivel...
— Impossivel!.. que obstaculo pode haver?..
— Não sei dizer-lhe, senhor; minha desgraça.
Esta amorosa confidencia no momento, em que se achava no ponto mais interessante, foi bruscamente interrompida pela presença de Martinho, que se lhes atravessou pela frente, fazendo uma profunda reverencia. Alvaro indignado carregou o sobrôlho, e esteve a ponto de enchotar o importuno, como quem enchota um cão. Elvira estacou como que petrificada de pavor.
— Senhor Alvaro, disse-lhe respeitosamente o Martinho, — com a permissão de Vª. Sª., preciso dizer duas palavras a esta senhora, a quem Vª. Sª. dá o braço.
— A esta senhora! — exclamou maravilhado o cavalheiro. — Que tem o senhor que ver com esta senhora?
— Negocio de summa importancia; ella bem o sabe, melhor do que eu e o senhor.
Alvaro, que bem conhecia o Martinho, e sabia quanto era abjecto e desprezivel, julgando ser aquillo manobra de algum rival invejoso, e covarde, que se servia daquelle miseravel para ultrajal-o ou expôl-o ao ridiculo, teve um assomo de indignação, mas contendo-se por um momento:
— Tem a senhora algum negocio com este homem? — perguntou a Elvira.
— Eu?!.. nenhum, por certo; nem mesmo o conheço,— balbuciou a moça, palida e a tremer.
— Mas, meo Deus! D. Elvira, por que treme assim? como está palida!... maldito importuno, que assim a faz soffrer!... oh! pelo céo, D. Elvira, não se assuste assim. Aqui estou eu a seu lado, e ai daquelle, que ousar ultrajar-nos!
— Ninguem quer ultrajal-os, senhor Alvaro; — replicou o Martinho; mas o negocio é mais serio do que o senhor pensa.
— Emfim, senhor Martinho, deixe-se de rodeios e diga-nos aqui mesmo o que quer com esta senhora.
— Posso dizel-o; mas seria melhor que Vª. Sª. o ignorasse.
— Oh! temos mysterio!... pois nesse caso declaro-lhe, que não abandonarei esta senhora um só instante, e se o senhor não quer dizer ao que veio, póde retirar-se.
— Nessa não caio eu, que não hei-de perder o meo tempo, e o meo trabalho, e nem os meos cinco contos. — Estas ultimas palavras resmungou-as elle entre os dentes.
— Senhor Martinho, por favor queira não abusar mais da minha paciencia. Se não quer dizer ao que veio, ponha-se já longe da minha presença....
— Oh! senhor! — retorquio Martinho, sem se perturbar; — já que a isso me força, pouco me custa fazer-lhe a vontade, e com bastante pezar tenho de declarar-lhe, que essa senhora a quem dá o braço, é uma escrava fugida!...
Alvaro, se bem que conhecesse a vilania e impudencia do caracter de Martinho, no primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquella subita e imprevista delação. Não podia dar-lhe credito, e reflectindo um instante confirmou-se mais na idéa, de que tudo aquillo não passava de uma farça posta em jogo por algum indigno rival, com o fim de desgostal-o ou insultal-o. A pessoa do Martinho, que não poucas vezes, na qualidade de truão ou palhaço, servia de instrumento ás vinganças e paixões mesquinhas de entes tão ignobeis como elle, servia para justificar a desconfiança de Alvaro, que acabou por não sentir senão asco e indignação por tão infame procedimento.
— Senhor Martinho, — bradou elle com voz severa, — se alguem pagou-lhe para vir achincalhar-me a mim e a esta senhora, diga quanto ganha, que estou prompto a dar-lhe o dobro para nos deixar em paz.
A esta sanguinolenta affronta, a larga e impudente cara do Martinho nem de leve se alterou, e por unica resposta:
— Torno a repetir, — bradou com todo o descaramento, — e em voz bem alta, para que todos oição: esta senhora que aqui se acha, é uma escrava fugida, e eu estou encarregado de apprehendel-a e entregal-a a seo senhor.
Entretanto Isaura avistando seo pae, que tambem a procurava por toda a parte com os olhos, largando o braço de Alvaro correo a elle, lançou-se-le nos braços, e escondendo o rosto em seo hombro:
— Que opprobrio, meo pae! — exclamou com voz sumida e a soluçar. — Eu bem estava presentindo!...
— Este homem, se não é um insolente, ou está louco ou bebado, — bradava Alvaro palido de colera. — Em todo o caso deve ser enchotado como indigno desta sociedade.
Já alguns amigos de Alvaro agarrando o Martinho pelo braço, se dispunhão a pôl-o pela porta a fora, como a um ebrio ou alienado.
— De vagar meos amigos, de vagar!.. disse-lhes elle com toda a calma. — Não me condenem sem primeiro ouvirem-me. Escutem primeiro este annuncio que lhes vou ler, e se não fôr verdade o que eu digo, dou-lhes licença para me cuspirem na cara, e me atirarem da janella abaixo.
Entretanto esta pequena altercação começava a attrair a attenção geral, e numerosos grupos movidos de curiosidade se apinhavão em torno dos contendores. A frase fatal — esta senhora é uma escrava! — proferida em voz alta por Martinho, transmittida de grupo em grupo, de ouvido em ouvido, já havia circulado com incrivel celeridade por todas as salas e recantos do espaçoso edificio. Um sussurro geral se propagára por todo elle, e damas e cavalheiros, e tudo o que ali se achava, inclusivè musicos, porteiros e famulos, atropellando-se uns aos outros, arrojavão-se afanosos para a sala, onde se dava o singular incidente que estamos relatando. A sala estava litteralmente apinhada de gente, que nem se podia mexer, e que offegante de anciosa curiosidade erguia a cabeça, afiava o ouvido e alongava o pescoço o mais que podia para ver e ouvir o que se passava.
Foi no meio desta multidão silenciosa, immovel, estupefacta e anhelante, que Martinho sacando tranquillamente da algibeira o annuncio, que nós já conhecemos, desdobrou-o ante seos olhos, e em voz bem alta e sonóra o leo de principio a fim.
— Bem se vê, — continuou elle concluida a leitura, — que os signaes combinão perfeitamente, e só um cego não verá naquella senhora a escrava do annuncio. Mas para tirar toda a duvida, só resta examinar, se ella tem o tal signal de queimadura acima do seio, e é cousa que desde já se póde averiguar com licença da senhora.
Dizendo isto, Martinho com impudente desembaraço se encaminhava para Isaura.
— Alto lá, vil esbirro!... bradou Alvaro com força, e agarrando o Martinho pelo braço, o arrojou para longe de Isaura, e o teria lançado em terra, se elle não fosse esbarrar de encontro ao grupo, que cada vez mais se apertava em torno delles. — Alto lá! nem tanto desembaraço! escrava, ou não, tu não lhe deitarás as mãos immundas.
Aniquilada de dôr e de vergonha, Isaura erguendo emfim o rosto, que até ali tivéra sempre debruçado e escondido sobre o seio de seo pae, voltou-se para os circumstantes, e ajuntando as mãos convulsas no gesto da mais violenta agitação:
— Não é preciso que me toquem, — exclamou com voz angustiada. — Meos senhores, e senhoras, perdão! commetti uma infamia, uma indignidade imperdoavel!... mas Deos me é testemunha, que uma cruel fatalidade a isso me levou. Senhores, o que esse homem diz, é verdade. Eu sou... uma escrava!...
O rosto da captiva cobrio-se de lividêz cadaverica, como lyrio ceifado pendeo-lhe a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como bella estatua de marmore, que o furacão arranca do pedestal, e teria rojado pela terra, se os braços de Alvaro e de Miguel não tivessem promptamente acudido para amparar-lhe a queda.
Uma escrava!... estas palavras, soluçadas no peito de Isaura como o estertor do arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidão estupefacta, echoárão largo tempo pelos vastos salões, como o rugir sinistro das lufadas da noite pela grenha de funebre arvoredo.
Este estranho incidente produzio no saráo o mesmo effeito, que faria em um acampamento a explosão de um paiol de polvora; nos primeiros momentos susto, pasmo, e uma especie de estertor de angustia; depois agitação, alarma, movimento e alarido.
Alvaro e Miguel conduzirão Isaura desfallecida ao boudoir das damas, e ahi ajudados por algumas senhoras compassivas, prestárão-lhe os socorros que o caso reclamava, e não a abandonárão em quanto não recobrou completamente os sentidos. Martinho, inquieto e resabiado, os seguia e espiava o mais de perto que lhe era possivel, com receio de que lhe roubassem a presa.
E’ impossivel descrever a celeuma, que se levantou, a agitação, que sublevou todos os espiritos, e as diversas e oppostas impressões, que produzio nos animos aquella inesperada revelação. Com que cara ficarião tantas bellezas de primeira ordem, tantas damas das mais distinctas jerarquias sociaes, ao saberem que aquella que as havia supplantado a todas, em formosura, donaire, talentos e graças do espirito, não era mais que uma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores que fação idéa. Entretanto em muitas dellas o cruel desapontamento por que acabavão de passar, não deixava de ser mesclado de um certo contentamento intimo, mórmente naquellas que se sentião enfadadas pelas defferencias e homenagens que certos cavalheiros, tomados de enthusiasmo, havião francamente rendido á gentil desconhecida. Estavão humilhadas, mas tambem vingadas. Quanto ás que tinham esperanças ou pretensões ao amor de Alvaro, — e não erão poucas, — essas exultárão de jubilo ao saberem do caso, e o nobre mancebo tornou-se o alvo de mil desapiedados apodos e pilhérias.
— O que me diz do escravo da escrava? — dizião ellas — com que cara não ficaria o pobre homem!...
— Com a mesma. De certo vae forral-a e casar-se com ella. Aquillo é um maluco capaz de todas as asneiras.
— E que máo! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa cosinheira.
Triste consolação! o estigma do captiveiro não podia apagar da bella fronte de Isaura, antes mais realçava o cunho de superioridade que o sopro divino nella havia gravado em caracteres indeleveis.
Entre os mancebos a impressão era bem differente. Poucos, bem poucos, deixávão de tomar vivo interesse e compaixão pela sorte da infeliz e formosa escrava. Por todos os cantos fallava-se e discutia-se com calor a respeito do caso. Alguns, a despeito da evidencia dos indicios e da confissão de Isaura, ainda duvidavão da verdade que tinham diante dos olhos.
— Não; aquella mulher não pode ser uma escrava, — dizião elles, — aqui ha algum mysterio, que algum dia se desvendará.
— Qual mysterio? o caso é muito factivel, e ella mesma o confessou. Mas quem será esse bruto e desalmado fazendeiro, que conserva no captiveiro uma tão linda creatura?
— Deve ser algum lorpa de alma bem estupida e sordida.
— Se não fôr algum sultãosinho de bom gosto, que a quer para o seo serralho.
— Seja como fôr, esse bruto deve ser constrangido a dar-lhe a liberdade. Na senzala uma mulher que merecia sentar-se n’um throno!...
— Tambem só o infame do Martinho, com o seo satanico instincto de cobiça, poderia farejar uma escrava na pessoa daquelle anjo! que impudencia! se o visse agora aqui, era capaz de estrangulal-o!
Entretanto Martinho, que se havia previamente munido de um mandado de apprehensão, e se fazia acompanhar de um official de justiça, exigia terminantemente, que se lhe fizesse entrega de Isaura. Alvaro porém interpondo o valimento e prestigio de que gozava, oppôz-se decididamente a essa exigencia, e tomando por testemunhas as pessoas que ali se achavão, constituio-se fiador da escrava, compromettendo-se a entregal-a a seo senhor, ou a quem por ordem delle a reclamasse. Em vão Martinho quiz insistir; uma multidão de vozes, que o apupavão e cobrião de injurias, forçárão-no a calar-se e desistir de sua pretensão.
— Ah! malditos! querem-me roubar! — bradava Martinho como um possesso. — Meos cinco contos! ai! meos cinco contos! lá se vão pela agoa abaixo.
E dizendo isto procurou a escada, e saltando-a aos dois e tres degráos, lá se foi bramindo pela porta a fóra.
Já é passado cerca de um mez depois dos acontecimentos, que acabamos de narrar. Isaura e Miguel, graças á valiosa intervenção de Alvaro, continuão a habitar a mesma pequena chácara no bairro de Santo Antonio. Já não lhes sendo mais possivel pensar em fugir para mais longe nem occultarem-se, ali se conservão por conselho de seo protector, esperando o resultado dos passos que este se compromettera a dar em favor d’elles, porém sempre na mais angustiosa inquietação, como Damocles tendo sobre a cabeça, aguda espada suspensa por um fio.
Alvaro vae quasi todos os dias a casa dos dous foragidos, e ahi passa longas horas entretendo-os sobre os meios de conseguir a liberdade de sua protegida, e procurando confortal-os na esperança de melhor destino.
Para nos inteirarmos do que tem occorrido desde a fatal noite do baile, ouçamos a conversação que teve lugar em casa de Isaura entre Alvaro e o seo amigo D.r Geraldo.
Este na mesma manhã que seguio-se á noite do baile, deixára o Recife e partira para uma villa do interior, onde tinha sido chamado a fim de encarregar-se de uma causa importante. De volta á capital no fim de um mez, um de seos primeiros cuidados foi procurar Alvaro, não só pelo impulso da amisade, como também estimulado pela curiosidade de saber do desenlace que tivéra a singular aventura do baile. Não o tendo achado em casa por duas ou tres vezes que ahi o procurou, presumio que o meio mais provavel de encontral-o seria procural-o em casa de Isaura, caso ella ainda se achasse no Recife residindo na mesma chácara; não se illudio.
Alvaro, tendo reconhecido a voz de seo amigo, que da porta do jardim perguntava por elle, sahio ao seo encontro; mas antes disso, tendo assegurado aos donos da casa que a pessoa que o procurava, era um amigo intimo, em quem depositava toda confiança, pedio-lhes licença para o fazer entrar.
Geraldo foi introduzido em uma pequena sala da frente. Posto que pouco espaçosa e mobiliada com a maior simplicidade, era esta salinha tão fresca, sombria e perfumada, tão cheia de flores desde a porta da entrada, a qual bem como as janellas estava toda entrelaçada de ramos e festões de flores, que mais parecia um caramanchão ou gruta de verdura, do que mesmo uma sala. Quasi toda a luz lhe vinha pelos fundos atravez de uma larga porta dando para uma varanda aberta, que olhava para o mar. Dali a vista enfiando-se por entre troncos de coqueiros, que derramavão sombra e fresquidão em torno da casa, deslizava pela superficie do oceano, e ia embeber-se na profundidade de um céo limpido e cheio de fulgores.
Miguel e Isaura depois de terem cumprimentado o visitante e trocado com elle algumas palavras de mera civilidade, presumindo que quererião estar sós, retirárão-se discretamente para o interior da casa.
— Na verdade, Alvaro, — disse o doutor sorrindo-se, — é uma deliciosa morada esta, e não admira que gostes de passar aqui grande parte do teo tempo. Parece mesmo a gruta mysteriosa de uma fada. E’ pena, que um maldito nigromante quebrasse de repente o encanto de tua fada, transformando-a em uma simples escrava!
— Ah! não gracejes, meo doutor; aquella scena extraordinaria produzio em meo espirito a mais estranha e dolorosa impressão; porém, francamente te confesso, não mudou senão por instantes a natureza de meos sentimentos para com essa mulher.
— Que me dizes?... a tal ponto chegará a tua excentricidade?!...
— Que queres? a natureza assim me fez. Nos primeiros momentos a vergonha e mesmo uma especie de raiva me cegárão; vi quasi com prazer o transe cruel, porque ella passou. Que triste e pungente decepção! Vi em um momento desmoronar-se e desfazer-se em lama o brilhante castello, que minha imaginação com tanto amor tinha erigido!... uma escrava illudir-me por tanto tempo, e por fim ludibriar-me, expondo-me em face da sociedade á mais humilhante irrisão! faze idéa de quanto eu ficaria confuso e corrido diante daquellas illustres damas, com as quaes tinha feito ombrear uma escrava em pleno baile, perante a mais distincta e brilhante sociedade!...
— E o que mais é, — accrescentou Geraldo, — uma escrava, que as offuscava a todas por sua rara formosura e brilhantes talentos. Nem de proposito poderias preparar-lhes mais tremenda humilhação. E’ um crime, que nunca te perdoarão, posto que saibão que tambem andavas illudido.
— Pois bem, Geraldo; eu, que naquella occasião, desairado e confuso, não sabia onde esconder a cara, hoje rio e me applaudo por ter dado occasião a semelhante aventura. Parece que Deos de proposito tinha preparado aquella interessante scena, para mostrar de um modo palpitante quanto é van e ridicula toda a distincção, que provém do nascimento e da riqueza, e para humilhar até o pó da terra o orgulho e fatuidade dos grandes, e exaltar e ennobrecer os humildes de nascimento, mostrando que uma escrava pode valer mais que uma duqueza.
Pouco durou aquella primeira e desagradavel impressão. Bem depressa a compaixão, a curiosidade, o interesse, que inspira o infortunio em uma pessoa daquella ordem, e talvez tambem o amor, que nem com aquelle estrondoso escandalo pudéra extinguir-se em meo coração, fizerão-me esquecer tudo, e resolvi-me a proteger francamente e a todo o transe a formosa captiva. Apenas consegui que Isaura recobrasse os sentidos, e a vi fora de perigo, corri á casa do chefe de policia, e expondo-lhe o caso, graças ás relações de amisade, que com elle tenho, obtive permissão, para que Isaura e seo pae, — fica sabendo que é realmente seo pae, — podessem recolher-se livremente á sua casa, ficando eu por garante de que não desapparecerião; e assim se effectuou, a despeito dos bramidos do Martinho, que teimava em não querer largar a presa. Todavia no dia seguinte pela manhã, o mesmo chefe, pesando a gravidade e importancia do negocio, quiz que ella fosse conduzida á sua presença para interrogal-a e verificar a identidade de pessoa. Encarreguei-me de conduzil-a. Oh! se a visses então!... atravéz das lagrimas, que lhe arrancava sua cruel situação, transparecia em todo o seo brilho, a dignidade humana. Nada havia nella, que denunciasse a abjecção do escravo, ou que não revelasse a candura e nobreza de sua alma. Era o anjo da dôr exilado do céo e arrastado perante os tribunaes humanos. Cheguei a duvidar ainda da cruel realidade. O chefe de policia possuido de respeito e admiração diante de tão gentil e nobre figura, tratou-a com toda a amabilidade, e interrogou-a com brandura e polidez. Coberta de rubor e pejo confessou tudo com a ingenuidade de uma alma pura. Fugira em companhia de seo pae, para escapar ao amor de um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de violencias e tormentos tentava forçal-a a satisfazer seos brutaes desejos. Mas Isaura, a quem uma natureza privilegiada secundada pela mais fina e esmerada educação, inspirára desde a infancia o sentimento da dignidade e do pudor, repellio com energia heroica todas as seducções e ameaças de seo indigno senhor. Emfim ameaçada dos mais aviltantes e barbaros tratamentos, que já começavão a traduzir-se em vias de facto, tomou o partido extremo de fugir, o unico que lhe restava.
— O motivo da fuga, Alvaro, a ser verdadeiro é o mais honroso possivel para ella, e a torna uma heroina; mas... emfim de contas ella não deixa de ser uma escrava fugida.
— E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura tem-me contado toda a sua vida, e segundo creio, pode allegar, e talvez provar direito á liberdade. Sua senhora velha, mãe do actual senhor, a qual creou-a com todo o mimo, e a quem ella deve a excelente educação que tem, tinha declarado por vezes diante de testemunhas, que por sua morte a deixaria livre; a morte subita e inesperada desta senhora, que falleceo sem testamento, é a causa de Isaura achar-se ainda entre as garras do mais devasso e infame dos senhores.
— E agora o que pretendes fazer?...
— Pretendo requerer, que Isaura seja mantida em liberdade, e que lhe seja nomeado um curador a fim de tratar do seo direito.
— E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as allegações que fazes?
— Não sei, Geraldo; desejava consultar-te, e esperava-te com impaciencia precisamente para esse fim. Quero que com a tua sciencia juridica me esclareças e inspires neste negocio. Já lancei mão do primeiro e mais obvio expediente que se me offerecia, e logo no dia seguinte ao do baile escrevi ao senhor de Isaura com as palavras as mais comedidas e suasivas, de que pude usar, convidando-o a abrir preço para a liberdade della. Foi péor; o libidinoso e ciumento Rajáh enfureceo-se e mandou-me em resposta esta carta insolente, que acabo de receber, em que me trata de seductor e acoutador de escravas alheias, e protesta lançar mão dos meios legaes para que lhe seja entregue a escrava.
— E’ bem parvo e descortêz o tal sultanete, — disse Geraldo depois de ter percorrido rapidamente a carta, que Alvaro lhe apresentou; — mas o certo é que, pondo de parte a insolencia...
— Pela qual ha-de me dar completa e solemne satisfação, eu o protesto.
— Pondo de parte a insolencia, se nada tens de valioso a apresentar em favor da liberdade da tua protegida, elle tem o incontestavel direito de reclamar e apprehender a sua escrava onde quer que se ache.
— Infame e cruel direito é esse, meo caro Geraldo. E’ já um escarneo dar-se o nome de direito a uma instituição barbara, contra a qual protestão altamente a civilisação, a moral e a religião. Porém tolerar a sociedade que um senhor tyrano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito de torturar uma fragil e innocente creatura, só por que teve a desdita de nascer escrava, é o requinte da sceleratez e da abominação.
— Não é tanto assim, meo caro Alvaro; esses excessos e abusos devem ser cohibidos; mas como poderá a justiça ou o poder publico devassar o interior do lar domestico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão? que abominaveis e hediondos mysterios, a que a escravidão dá lugar, não se passão por esses engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos, delles tenhão conhecimento?... Em quanto houver escravidão, hão-de se dar esses exemplos. Uma instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser extinctos cortando-se o mal pela raiz.
— E’ desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona deshumanamente essas victimas ao furor de seos algozes, ainda ha no mundo almas generosas, que se incumbem de protegel-as ou vingal-as. Quanto a mim protesto, Geraldo, emquanto no meo peito pulsar um coração, hei-de disputar Isaura á escravidão com todas as minhas forças, e espero que Deos me favorecerá em tão justa e santa causa.
— Pelo que vejo, meo Alvaro, não procedes assim só por espirito de philantropia, e ainda amas muito a essa escrava.
— Tu o disseste, Geraldo; amo-a muito, e hei-de amal-a sempre; nem disso faço mysterio algum. E será cousa estranha ou vergonhosa amar-se uma escrava? O patriarcha Abraham amou sua escrava Agar, e por ella abandonou Sara, sua mulher. A humildade de sua condição não póde despojar Isaura da candida e brilhante aureola, de que a via e até hoje a vejo circumdada. A belleza e a innocencia são astros que mais refulgem quando engolphados na profunda escuridão do infortunio.
— E’ bella a tua philosophia, e digna de teo nobre coração; mas que queres? as leis civis, as convenções sociaes, são obras do homem, imperfeitas, injustas, e muitas vezes crueis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão, e o demonio exalça-se ao fastigio da fortuna e do poder.
— E assim pois, — reflectio Alvaro com desanimo, — nessas desastradas leis nenhum meio encontras de disputar ao algôz essa innocente victima?
— Nenhum, Alvaro, em quanto nenhuma prova puderes adduzir em pro do direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e quasi que prescinde nelle inteiramente da natureza humana. O senhor tem direito absoluto de propriedade sobre o escravo, e só pode perdel-o manumittindo-o ou albreando-o por qualquer maneira, ou por litigio provando-se a liberdade, mas não por sevicias que commetta ou outro qualquer motivo analogo.
— Miseravel e estupida papelada que são essas vossas leis. Para illaquear a boa fé, proteger a fraude, illudir a ignorancia, defraudar o pobre e favorecer a usura e rapacidade dos ricos, são ellas fecundas em recursos e estratagemas de toda a especie. Mas quando se tem em vista um fim humanitario, quando se trata de proteger a innocencia desvalida contra a prepotencia, de amparar o infortunio contra uma injusta perseguição, então ou são mudas, ou são crueis.
Mas não obstante ellas hei-de empregar todos os esforços ao meo alcance para libertar a infeliz do affrontoso jugo que a opprime. Para tal empreza alenta-me não já sómente um impulso de generosidade, como tambem o mais puro e ardente amor, sem pejo o confesso.
O amigo de Alvaro arripiou-se com esta deliberação tão franca e enthusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe pareceo um deploravel desvario da imaginação.
— Nunca pensei, — replicou com gravidade, — que a tal ponto chegasse a exaltação desse teo excentrico e malfadado amor. Que por um impulso de humanidade procures proteger uma escrava desvalida, nada mais digno e mais natural. O mais não passa de delirio de uma imaginação exaltada e romanesca. Será airoso e digno da posição que occupas na sociedade, deixares-te dominar de uma paixão violenta por uma escrava?...
— Escrava! — exclamou Alvaro cada vez mais exaltado, — isso não passa de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma mentira. Pureza de anjo, formosura de fada, eis a realidade! Pode um homem ou a sociedade inteira contrariar as vistas do creador, e transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a terra cahio das mãos de Deos?...
— Mas por uma triste fatalidade o anjo cahio do céo no lodaçal da escravidão, e ninguem aos olhos do mundo o poderá purificar dessa nodoa, que lhe mancha as azas. Alvaro, a vida social está toda juncada de forcas caudinas, por debaixo das quaes nos é forçoso curvar-nos, sob pena de abalroarmos a fronte em algum obstaculo, que nos faça cahir. Quem não respeita as conveniencias e até os preconceitos sociaes, arrisca-se a cahir no descredito ou no ridiculo.
— A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma ulcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso, que nos deshonra aos olhos do mundo civilisado. Seja eu embora o primeiro a dar esse nobre exemplo, que talvez será imitado. Sirva elle ao menos de um protesto energico e solemne contra uma barbara e vergonhosa instituição.
— E’s rico, Alvaro, e a riqueza te dá bastante independencia, para poderes satisfazer os teos sonhos philantropicos e os caprichos de tua imaginação romanesca. Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca poderia reformar os prejuizos do mundo, nem fazer com que essa escrava, a quem segundo todas as apparencias quererias ligar o teo destino, fosse considerada, e nem mesmo admittida nos circulos da alta sociedade...
— E que me importão os circulos da alta sociedade, uma vez que sejamos bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração bem formado? Demais enganas-te completamente, meo Geraldo. O mundo corteja sempre o dinheiro, onde quer que elle se ache. O ouro tem um brilho, que deslumbra, e apaga completamente essas pretendidas nodoas de nascimento. Não nos faltarão nunca, eu te affianço, o respeito, nem a consideração social, em quanto nos não faltar o dinheiro.
— Mas, Alvaro, esqueces-te de uma cousa muito essencial; e se te não fôr possivel obter a liberdade de tua protegida?...
A esta pergunta Alvaro empalideceo, e opprimido pela idéa de tão cruel como possivel alternativa, sem responder palavra olhava tristemente para o horizonte, quando o boleeiro de Alvaro, que se achava postado com sua caleça junto á porta do jardim, veio anunciar-lhe que algumas pessoas o procuravão e desejavão fallar-lhe, ou ao dono da casa.
— A mim! — resmungou Alvaro; por ventura estou eu em minha casa?... mas como tambem procurão o dono desta... faça-os entrar.
— Alvaro, disse Geraldo espreitando por uma janella, — se me não engano, é gente da policia; parece-me que lá vejo um official de justiça. Teremos outra scena igual á do baile?...
— Impossivel!... com que direito virião tocar-me no deposito sagrado, que a mesma policia me confiou?...
— Não te fies nisso. A justiça é uma deosa muito voluvel e fertil em patranhas. Hoje desmanchará o que fez hontem...
O primeiro cuidado de Martinho logo ao sahir do baile, em que vio mallograda a sua tentativa de apprehender Isaura, foi escrever ao senhor della uma longa e minuciosa carta, communicando-lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a escrava, que tanto procurava.
Contava por miudo as diligencias que fizera para esse fim, até descobril-a em um baile publico, e encarecia o seo proprio merito e perspicacia para esbirro, dizendo que a não ser elle, ninguem seria capaz de farejar uma escrava na pessoa de uma moça tão bonita e tão prendada. Alterando os factos e as circumstancias do modo o mais atroz e calumnioso, dizia-lhe em phrases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder de armar laços á rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido apanhar um patinho bem gordo e facil de depennar. Era este um pernambucano por nome Alvaro, moço duas vezes millionario, e mil vezes desmiolado, que tinha por ella uma paixão louca. Este moço, a quem ella trazia illudido e engodado ao ponto de elle querer desposal-a, cahio na tolice de leval-a a um baile, onde elle Martinho teve a fortuna de descobril-a, e a teria apprehendido, e estaria ella já de marcha para o poder de seo senhor, se não fosse a opposição do tal senhor Alvaro, que apezar de ficar sabendo de que ralé era a sua heroina, teve a pouca vergonha de protegel-a escandalosamente. Prevalecendo-se das valiosas relações, e da influencia de que gozava no paiz em razão de sua riqueza, conseguio impedir a sua apprehensão, e tornando-se fiador della a conservava em seo poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregal-a senão ao seo proprio senhor. Julga que a intenção de Alvaro é tentar meios de libertal-a, a fim de fazel-a sua mulher ou sua amasia. Julgava de seo dever communicar-lhe tudo isso para seo governo.
Era este em summa o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguio para o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Alvaro, fazendo proposições para a liberdade de Isaura. Leoncio contente com a descoberta, mas cheio de ciume e inquietação em vista das informações de Martinho, apressou-se em responder a ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e insultuosa que dirigio a Alvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual o autorisava a apprehender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para maior segurança remettia-lhe tambem procuração especial para esse fim, e mais algumas cartas de recommendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o auxiliasse naquella diligencia.
Martinho mais que depressa dirigio-se á casa da policia, e apresentando ao chefe todos esses papeis, requereo-lhe que mandasse entregar-lhe a escrava. O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeo que não lhe era possivel denegar-lhe o que pedia, e expedio ordem por escripto, para que lhe fosse entregue a escrava em questão, e deo-lhe um official de justiça e dous guardas para effectuarem a diligencia.
Foi portanto o Martinho, que munido de todos os poderes e competentemente autorisado pela policia apresentou-se com sua escolta á porta da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cubiçada presa.
— Ainda este infame! — murmurou Alvaro entre os dentes ao ver entrar o Martinho. — Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo arrancára do intimo da alma.
— Que deseja de mim o senhor? — perguntou Alvaro em tom secco e altivo.
— Vª. Sª., que bem me conhece, — respondeo Martinho, — já pode presumir pouco mais ou menos o motivo, que aqui me traz.
— Nem por sombras posso adivinhal-o, antes me causa estranheza esse apparato policial, de que vem acompanhado.
— Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava fugida, por nome Isaura, que não ha muito tempo foi por mim apprehendida no meio de um baile, no qual se achava Vª. Sª., e devendo eu envial-a a seo senhor no Rio de Janeiro, Vª. Sª. a isso se oppôz sem motivo algum justificavel, conservando-a até hoje em seo poder contra todo o direito.
— Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente para dar ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe, que eu sou depositario dessa escrava, e que com todo o direito e consentimento da autoridade a tenho debaixo de minha protecção.
— Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade, cessou, desde que Vª. Sª. nada tem allegado em favor da mesma escrava. E demais, — continuou apresentando um papel, — aqui está ordem expressa e terminante do chefe de policia, mandando que me seja entregue a dita escrava. A isto nada se póde oppôr legalmente.
— Pelo que vejo, senhor Martinho, — disse Alvaro depois de examinar rapidamente o papel que Martinho lhe entregára, — ainda não desistio de seo indigno procedimento, tornando-se por um pouco de dinheiro o vil instrumento do algôz de uma infeliz mulher? Reflicta, e verá que essa infame acção só pode inspirar asco e horror a todo o mundo.
Martinho achando-se acostado pela policia, julgou-se com direito de mostrar-se aspero e arrogante, e portanto com imperturbavel sangue frio:
— Senhor Alvaro, — respondeo, — eu vim a esta casa sómente com o fim de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava fugida, que aqui se acha acoutada, e não para ouvir reprehensões, que o senhor não tem direito de dar-me. Trate de fazer o que a lei ordena e a prudencia aconselha, se não quer que use de meo direito...
— Qual direito?!...
— De varejar esta casa e levar á força a escrava.
— Retira-te, miseravel esbirro! — bradou Alvaro com força, não podendo mais sopear a colera. — Desapparece de minha presença, se não queres pagar caro o teo atrevimento!...
— Senhor Alvaro!... veja o que faz!
O D.r Geraldo não achando muita razão em seo amigo, por prudencia até ali se tinha conservado silencioso, mas vendo que a colera e imprudencia de Alvaro ia excedendo os limites, julgou de seo dever intervir na questão, e approximando-se de Alvaro, e punchado-lhe o braço:
— Que fazes, Alvaro? — disse-lhe em voz baixa, — Não vês que com esses arrebatamentos não consegues senão comprometter-te, e aggravar a sorte de Isaura? mais prudencia, meo amigo.
— Mas... que devo eu fazer?... não me dirás?
— Entregal-a.
— Isso nunca!... — replicou Alvaro terminantemente.
Conservárão-se todos silenciosos por alguns momentos. Alvaro parecia reflectir.
— Occorre-me um expediente, — disse elle ao ouvido de Geraldo, — vou tental-o.
E sem esperar resposta approximou-se de Martinho.
— Senhor Martinho, — disse-lhe elle, — desejo dizer-lhe duas palavras em particular, com permissão aqui do doutor.
— Estou ás suas ordens, — replicou Martinho.
— Estou persuadido, senhor Martinho, — disse-lhe Alvaro em voz baixa, tomando-o de parte, — que a gratificação de cinco contos é o motivo principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que nunca o offendeo. Está em seo direito, eu reconheço, e a somma não é para desprezar. Mas se quizer desistir completamente desse negocio, e deixar em paz essa escrava, dou-lhe o dobro dessa quantia.
— O dobro!... dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os olhos.
— Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.
— Mas, senhor Alvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da escrava, dei passos para esse fim, e...
— Que importa!... diga que ella evadio-se de novo, ou dê outra qualquer desculpa...
— Como, se é tão publico que ella se acha em poder de Vª. Sª.?...
— Ora!... isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e atilado como o senhor embaraça-se com tão pouca cousa!...
— Vá feito, — disse Martinho depois de reflectir um instante. — Já que Vª. Sª. tanto se interessa por essa escrava, não quero mais affligil-o com semelhante negocio, que a dizer-lhe a verdade bem me repugna. Acceito a proposta.
— Obrigado; é um importante serviço que vae me prestar.
— Mas que volta darei eu ao negocio para sahir-me bem delle.
— Veja lá; sua imaginação é fertil em recursos, e ha-de inspirar-lhe algum meio de safar-se de difficuldades com a maior limpeza.
Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levando á testa o dedo indice:
— Atinei! — exclamou. — Dizer que a escrava desappareceo de novo, não é conveniente, e iria comprometter a Vª. Sª., que se responsabilizou por ella. Direi sómente, que bem averiguado o caso, reconheci que a moça, que Vª. Sª. tem em seo poder, não é a escrava em questão, e está tudo acabado.
— Essa não é mal achada... mas foi um negocio tão publico...
— Que importa!... não se lembra Vª. Sª. de um signal em forma de queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no annuncio? direi, que não se achou semelhante signal, que é muito caracteristico, e está destruida a identidade de pessoa. Accrescentarei mais que a moça, por quem Vª. Sª. se interessa, vista de noite é uma cousa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda escrava que se acha descripta no annuncio, e que em vez de ter vinte annos mostra ter seos trinta e muitos para quarenta, e que toda aquella mocidade e formosura era effeito dos arrebiques, e da luz vacillante dos lustres e candelabros.
— O senhor é bem engenhoso, — observou Alvaro sorrindo-se; — mas os que a virão, nenhum credito darão a tudo isso. Resta porém ainda uma difficuldade, senhor Martinho; é a confissão que ella fez em publico?... isto ha-de ser custoso de embaçar-se.
— Qual custoso!... allega-se que ella é sujeita a accessos de hysterismo, e é sujeita a hallucinações.
— Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua pericia e habilidade. E depois?
— E depois communico tudo isso ao chefe de policia, declaro-lhe que nada mais tenho com esse negocio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou capitão do mato, que se queira encarregar dessa diligencia, e em acto continuo escrevo ao senhor da escrava communicando-lhe o meo engano, com o que elle por certo desistirá de procural-a mais por aqui, e levará a outras partes as suas pesquizas. Que tal acha o meo plano?...
— Admiravel, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.
— Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de volta, a dar parte do desempenho de minha commissão.
— Aqui não, que não poderei demorar-me muito. Espero-o em minha casa, e lá receberá a somma convencionada.
— Podem-se retirar, — disse Martinho ao official de justiça e aos guardas, que se achavão postados do lado de fora da porta. — Sua presença não é mais necessaria aqui. Não ha duvida! — continuou elle comsigo mesmo; — isto vae a dobrar como no lansquenet. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada.
E retirou-se esfregando as mãos de contentamento.
— Então, que arranjo fizeste com o homem, meo Alvaro? — perguntou Geraldo, apenas Martinho voltou as costas.
— Excellente, — respondeo Alvaro; — a minha lembrança surtio o desejado effeito, e ainda mais do que eu esperava.
Alvaro em poucas palavras deo conta ao seo amigo do mercado que fizera com o Martinho.
— Que caracter desprezivel e abjecto o deste Martinho! — exclamou Geraldo. — De um tal instrumento não se pode esperar obra que preste. E julgas ter conseguido muita cousa, Alvaro, com o passo que acabas de dar?...
— Não muito, porém alguma cousa sempre posso conseguir. Pelo menos consigo deter o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão popular, meo Geraldo, em quanto o páo vae e vem, folgão as costas. Emquanto Leoncio, persuadido que a sua escrava não se acha aqui no Recife, a procura por todo esse mundo, ella aqui fica tranquillamente á minha sombra, livre das perseguições e dos máos tratos de um barbaro senhor; e eu terei tempo para activar os meios de arranjar provas e documentos, que justifiquem o seo direito á liberdade. E’ quanto me basta por agora; quanto ao resto, já que pareces julgar a minha causa irremissivelmente perdida, a justiça divina me inspirará o modo por que devo proceder.
— Como te enganas, meo pobre Alvaro!... cuidas, que arredando o Martinho ficas por emquanto livre de perseguições e pesquisas contra a tua protegida? que cegueira!... não faltarão malsins igualmente esganados por dinheiro, que pelos cinco contos de réis, que para esses miseraveis é uma somma fabulosa, se ponhão á cata de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deo a alarma, e que esse negocio tem attingido a um certo gráo de celebridade, em vez de um, apparecerão cem Martinhos no encalce da bella fugitiva, e não terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro.
— E’s muito meticuloso, Geraldo, e encaras as cousas sempre pelo lado peor. E’ bem provavel que peguem as patranhas inventadas pelo Martinho, e que ninguem mais se lembre de descobrir a captiva Isaura nessa moça, por quem me interesso, e embora mil malsins a procurem por todos os cantos do mundo, pouco me importará. Sempre obtenho uma dilação, que poderá me ser muito vantajosa.
— Pois bem, Alvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não vês que semelhante procedimento não é digno de ti?... que assim incorres realmente nos epithetos affrontosos, com que obsequiou-te o tal Leoncio, e que te tornas verdadeiramente um seductor e acoutador de escravos alheios.?...
— Desculpa-me, meo caro Geraldo; não posso acceitar a tua reprimanda. Ella só pode ter applicação aos casos vulgares, e não ás circumstancias especialissimas em que eu e Isaura nos achamos collocados. Eu não dou couto, nem capeio a uma escrava; protejo um anjo, e amparo uma victima innocente contra a sanha de um algôz. Os motivos que me impellem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes passos, nobilitão o meo procedimento, e são bastantes para justificar-me aos olhos de minha consciencia.
— Pois bem, Alvaro; faze o que quizeres; não sei que mais possa dizer-te para demover-te de um procedimento, que julgo não só imprudente, como, a fallar-te com sinceridade, ridiculo, e indigno da tua pessoa.
Geraldo não podia dissimular o descontentamento que lhe causava aquella cega paixão, que levava o seo amigo a actos que qualificava de burlesco desatino, e loucura inqualificavel. Por isso longe de auxilial-o com seos conselhos, e indicar-lhe os meios de promover a libertação de Isaura, procurava com todo o empenho demovel-o daquelle proposito, pintando o negocio ainda mais difficil do que realmente o era. De bom grado, se lhe fosse possivel, teria entregado Isaura a seo senhor sómente para livrar Alvaro daquella terrivel tentação, que o ia precipitando na senda das mais ridiculas extravagancias.
Achando-se só, Alvaro sentou-se junto a uma mesa, e apoiando nella os cotovelos com a fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.
Isaura porém, presentindo pelo silencio que reinava na sala, que já ali não havião pessoas estranhas, foi ter com elle.
— Senhor Alvaro, — disse ella chegando-se de manso e timidamente; — desculpe-me... eu venho de certo lhe aborrecer... queria talvez estar só...
— Não, minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrario és sempre bem vinda junto de mim...
— Mas vejo-o tão triste!... parece-me que aqui entrou mais gente, e alteravão-se vozes. Derão-lhe algum desgosto, meo senhor?...
— Nada houve de extraordinario, Isaura; forão algumas pessoas, que viérão procurar o doutor Geraldo.
— Mas então por que está assim triste e abatido?
— Não estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de arrancar-te do abysmo da escravidão, meo anjo, e elevar-te á posição para que o céo te creou.
— Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que não merece taes extremos. E’ inutil luctar contra o destino irremediavel, que me persegue.
— Não falles assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha protecção e o meo amor!...
— Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue seo amor em outra mulher que delle seja merecedora, e esqueça-se da pobre captiva, que tornou-se indigna até de sua compaixão occultando-lhe a sua condição, e fazendo-o passar pelo vergonhoso desar de...
— Cala-te, Isaura... até quando pretendes lembrar-te desse maldito incidente?... eu sómente fui o culpado forçando-te a ir a esse baile, e tinhas razão de sobra para não revelar-me a tua desgraça. Esquece-te disso; eu te peço pelo nosso amor, Isaura.
— Não posso esquecer-me, porque os remorsos me avivão sempre n’alma a lembrança dessa fraqueza. A desgraça é má conselheira, e nos perturba e anuvia o espirito. Eu o amava, assim como o amo ainda, e cada vez mais... perdoe-me esta declaração, que é sem duvida uma ousadia na boca de uma escrava.
— Falla, Isaura, falla sempre, que me amas. Pudesse eu ouvir de teos labios essa palavra por toda a eternidade.
— Era um triste amor na verdade, um amor de escrava, um amor sem sorriso nem esperanças. Mas a ventura de ser amada pelo senhor era uma idéa tão consoladora para mim! amando-me o senhor me nobilitava a meos proprios olhos, e quasi me fazia esquecer a realidade de minha humilde condição. Eu tremia ao pensar que descobrindo-lhe a verdade, ia perder para sempre essa doce e unica consolação que me restava na vida. Perdoe, meo senhor, perdoe á escrava infeliz, que teve a louca ousadia de amal-o.
— Isaura, deixa-te de vãos escrupulos, e dessas phrases humildes, que de modo nenhum podem caber em teos labios angelicos. Se me amas, eu tambem te amo, por que em tudo te julgo digna do meo amor; que mais queres tu?.. Se antes de conhecer a condição em que nasceste, eu te amei subjugado por teos raros encantos, hoje que sei que a tantos attractivos reunes o prestigio do infortunio e do martyrio, eu te adoro, eu te idolatro mais que nunca.
— Ama-me, e é essa idéa, que ainda mais me mortifica!... de que nos serve esse amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua escrava, e devo sem remedio morrer entre as mãos de meo algôz...
— Nunca, Isaura! — exclamou Alvaro com exaltação; — minha fortuna, minha tranquillidade, minha vida, tudo sacrificarei para libertar-te do jugo desse vil tyrano. Se a justiça da terra não me auxilia nesta nobre e generosa empreza, a justiça do céo se fará cumprir por minhas mãos.
— Oh! senhor Alvaro!... não vá sacrificar-se por uma pobre escrava, que não merece taes excessos. Abandone-me á minha sina fatal; já não é pouca felicidade para mim ter merecido o amor de um cavalheiro tão nobre e tão amavel, como o senhor; esta lembrança me servirá de alento e consolação em minha desgraça. Não posso porém consentir, que o senhor avilte o seo nome e a sua reputação, amando com tal extremo a uma escrava.
— Por piedade, Isaura, não me martyrizes mais com essa maldita palavra, que constantemente tens nos labios. Escrava tu!.. não o és, nunca o foste, e nunca o serás. Pode acaso a tyrania de um homem ou da sociedade inteira transformar em um ente vil, e votar á escravidão aquella que das mãos de Deos sahio um anjo digno do respeito e adoração de todos? Não, Isaura; eu saberei erguer-te ao nobre e honroso lugar a que o céo te destinou, e conto com a protecção de um Deos justo, por que protejo um dos seos anjos.
Alvaro não obstante ficar sabendo depois da noite do baile, que Isaura era uma simples escrava, nem por isso deixou de tratal-a dahi em diante com o mesmo respeito, defferencia e delicadeza, como a uma donzella da mais distincta jerarquia social. Procedia assim de accordo com os elevados principios que professava, e com os nobres e delicados sentimentos do seo coração. O pudor, a innocencia, o talento, a virtude e o infortunio, erão sempre para elle cousas respeitaveis e sagradas, quer se achassem na pessoa de uma princeza, quer na de uma escrava. Sua affeição era tão casta e pura como a pessoa que della era objecto, e nunca nem de leve lhe passára pelo pensamento abusar da precaria e humilde posição de sua amante, para profanar-lhe a candura immaculada. Nunca de sua parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos casta havião feito assomar ao rosto da captiva o rubor do pejo, e nem tão pouco os labios de Alvaro lhe havião roçado o mais leve beijo pelas virginaes e pudicas faces. Apenas depois de instantes e repetidas supplicas de Isaura, havia tomado a liberdade de tratal-a por tu, e isso mesmo quando se achavão a sós.
Sómente agora pela primeira vez, Alvaro, dominado pela mais suave e vehemente emoção, ao proferir as ultimas palavras, enlaçando o braço em torno ao collo de Isaura a cingia brandamente contra o coração.
Estavão ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de amor, quando o ruido de um carro, que parou á porta do jardim, e logo após um forte e estrondoso — ó de casa! — os fizérão separar-se.
No mesmo momento entrava na sala o boleeiro de Alvaro, e annunciava-lhe que novas pessoas o procuravão.
— Oh, meo Deos!... que será isto hoje!... serão ainda os malditos esbirros?... — refletio Alvaro, e depois dirigindo-se a Isaura:
— E’ prudente que te retires, minha amiga, — disse-lhe; ninguem sabe o que será e não convém que te vejão.
— Ah! que eu não sirva senão para perturbar-lhe o socego! — murmurou Isaura retirando-se.
Um momento depois Alvaro vio entrar na sala um elegante e bello mancebo, trajado com todo o primor, e affectando as mais polidas e aristocraticas maneiras; mas apezar de sua belleza, tinha elle na physionomia, como Luzbel, um não sei quê de torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que incutia pavor e repulsão.
— Este por certo não é um esbirro, — pensou Alvaro, e indicando uma cadeira ao recemchegado: — Queira sentar-se, — disse-lhe, — e tenha a bondade de dizer o que pretende deste seo criado.
— Desculpe-me, — respondeo-lhe o cavalheiro, passeando um olhar escrutador em roda da sala; — não é a Vª. Sª. que eu desejava fallar, mas sim ao morador desta casa ou a sua filha.
Alvaro estremeceo. Estava claro que aquelle mancebo, se bem que nenhuma apparencia tivesse de um esbirro, andava á pista de Isaura. Todavia no intuito de verificar, se era fundada a sua apprehensão, antes de chamar os donos da casa, quiz sondar as intenções do visitante.
— Não obstante, — respondeo elle, — como estou autorisado pelos donos da casa a tratar de todos os seos negocios, pode Vª. Sª. dirigir-se a mim, e dizer o que delles pretende.
— Sim, senhor; não ponho a menor duvida, pois o que pretendo não é nenhum mysterio. Constando-me com certeza, que aqui se acha acoutada uma escrava fugida por nome Isaura, venho apprehendel-a.....
— Nesse caso deve entender-se commigo, que sou o depositario dessa escrava.
— Ah!.. pelo que vejo, Vª. Sª. é o senhor Alvaro!..
— Um criado de Vª. Sª.
— Bem; muito estimo encontral-o por aqui; pois saiba tambem que eu sou Leoncio, o legitimo senhor dessa escrava.
Leoncio!.. o senhor de Isaura!.. Alvaro ficou como esmagado sob o peso desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e attonito, contemplou por alguns instantes aquelle homem de sombria catadura, que se lhe apresentava aos olhos, implacavel e sinistro como Lucifer, prestes a empolgar a victima, que deseja arrastar aos infernos. Suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angustia apertou-lhe o coração.
— E’ elle!.. é o proprio algôz!.. ai pobre Isaura!.. — foi este o écho lugubre, que remurmurou-lhe dentro d’alma enregelada pelo desalento.
O leitor provavelmente não terá ficado menos attonito, do que ficou Alvaro, com o imprevisto apparecimento de Leoncio no Recife, e indo bater certo na casa em que se achava refugiada a sua escrava.
E’ preciso portanto explicar-lhe como isso aconteceo, para que não pense que foi por algum milagre.
Leoncio depois de ter escripto e entregado no correio as duas cartas que conhecemos, uma dirigida a Alvaro, outra a Martinho, nem por isso ficou mais tranquillo. Devorava-lhe a alma uma inquietação mortal, um ciume desesperador. A noticia de que Isaura se achava em poder de um bello e rico mancebo, que a amava loucamente, era para elle um supplicio insupportavel, um cancro, que lhe corroía as entranhas, e o fazia estrebuchar em ancias de desespero, avivando-lhe cada vez mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava. Achava-se elle na côrte, para onde, logo que teve noticias de Isaura, se dirigia immediatamente, a fim de se achar em um centro, donde pudesse tomar medidas promptas e energicas para a captura da mesma. Tendo escripto e entregue as cartas na vespera da partida do vapor pela manhã, levou o resto do dia a cismar. A terrivel anciedade em que se achava, não lhe permittia esperar a resposta e o resultado daquellas cartas, sendo muito mais morosas e espaçadas do que hoje as viagens dos paquetes naquella época, em que apenas se havia inaugurado a navegação a vapor pelas costas do Brazil. Demais ocorria-lhe frequentemente ao espirito o anexim popular — quem quer vae, quem não quer manda. — Não podia fiar-se na diligencia e boa vontade de pessoas desconhecidas, que talvez não pudessem luctar vantajosamente contra a influencia de Alvaro, o qual, segundo lho pintavão, era um potentado em sua terra. O ciume e a vingança não gostão de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seos designios.
— E’ indispensavel que eu mesmo vá, — pensou Leoncio, e firme nesta resolução foi ter com o ministro da justiça, com quem cultivava relações de amizade, e pedio-lhe uma carta de recommendação, — o que equivale a uma ordem, — ao chefe de policia de Pernambuco, para que o auxiliasse afficazmente para o descobrimento e captura de uma escrava. Já de antemão Leoncio tambem se havia munido de uma precatoria e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O sanhudo bachá de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.
No outro dia Leoncio seguia para o norte no mesmo vapor que conduzia suas cartas.
Estas porém chegárão ao seo destino algumas horas antes que o seo autor desembarcasse no Recife.
Leoncio apenas pôz pé em terra, dirigio-se ao chefe de policia, e entregando-lhe a carta do ministro inteirou-o de sua pretensão.
— Tenho a informar-lhe, senhor Leoncio, — respondeo-lhe o chefe, — que haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui sahio uma pessoa autorisada por Vª. Sª. para o mesmo fim de apprehender essa escrava, e ainda ha pouco aqui chegou de volta declarando que tinha-se enganado, e que acabava de reconhecer que a pessoa, de quem desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugio a Vª. Sª.
— Um certo Martinho, não, senhor doutor?..
— Justamente.
— Deveras!... que me diz, senhor doutor?..
— A verdade; ainda ahi estão á porta o official de justiça e os guardas, que o acompanhárão.
— De maneira, que terei perdido o meo tempo e a minha viagem!.... oh! não, não; isto não é possivel. Creia-me, Sr. doutor, aqui ha patranha... o tal senhor Alvaro dizem que é muito rico...
— E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infamias. Tudo pode ser; mas a Vª. Sª. como interessado, compete averiguar essas cousas.
— E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o negocio por meos proprios olhos, e já, se fôr possivel.
— Quando quizer. Ahi estão o official de justiça e os guardas, que ainda agora de lá vierão, e ninguem melhor do que elles pode guiar a Vª. Sª. e effectuar a captura, caso reconheça ser a sua propria escrava.
— Tambem me é preciso que Vª. Sª. ponha o — cumpra-se — nesta precatoria — disse Leoncio apresentando a precatoria contra Miguel — é necessario punir o patife, que teve a audacia de desencaminhar e roubar-me a escrava.
O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leoncio, que acompanhado da pequena escolta, que fez subir ao seo carro, no mesmo momento se dirigio a casa de Isaura, onde o deixámos em face de Alvaro.
A situação deste não era só critica; era desesperada. O seo antagonista ali estava armado de seo incontestavel direito para humilhal-o, esmagal-o, e o que mais é, despedaçar-lhe a alma, roubando-lhe a amante adorada, o idolo de seo coração, que ia-lhe ser arrancada dos braços para ser prostituida ao amor brutal de um senhor devasso, senão sacrificada ao seo furor. Não tinha remedio senão curvar-se sem murmurar, ao golpe do destino, e ver de braços cruzados mettida em ferros, e entregue ao azorrague do algôz a nobre e angelica creatura, que unica entre tantas bellezas, lhe fizera palpitar o coração em emoções do mais extremoso e puro amor.
Deploravel contingencia, a que somos arrastados em consequencia de uma instituição absurda e deshumana!
O devasso, o libertino, o algôz, apresenta-se altivo e arrogante, tendo a seo favor a lei e a autoridade, o direito e a força, lança a garra sobre a presa, que é objecto de sua cobiça ou de seo odio, e pode fruil-a ou esmagal-a a seo talante, emquanto o homem de nobre coração, de impulsos generosos, inerme perante a lei, ahi fica supplantado, tolhido, manietado sem poder estender o braço em soccorro da innocente e nobre victima, que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração, vemos a lei armando o vicio, e decepando os braços á virtude.
Estava pois Alvaro em presença de Leoncio como o condenado em presença do algôz. A mão da fatalidade o socalcava com todo o seo peso esmagador, sem lhe deixar livre o minimo movimento.
Vinha Leoncio ardendo em furias de raiva e de ciume, e prevalecendo-se de sua vantajosa posição, aproveitou a occasião para vingar-se de seo rival, não com a nobreza de cavalheiro, mas procurando humilhal-o á força de improperios.
— Sei que ha muito tempo, — disse Leoncio, continuando o dialogo que deixámos interrompido no capitulo antecedente, — Vª. Sª. retem essa escrava em seo poder contra toda a justiça, illudindo as autoridades com falsas allegações, que nunca poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamal-a e burlar os seos planos, e artificios.
— Artificios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava contra as violencias de um senhor, que quer tornar-se seo algôz; eis ahi tudo.
— Ah!... agora é que sei que qualquer ahi pode subtrahir um escravo ao dominio de seo senhor a pretexto de protegel-o, e que cada qual tem o direito de velar sobre o modo por que são tratados os escravos alheios.
— Vª. Sª. está de disposição a escarnecer, e eu declaro-lhe que nenhuma vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido. Confesso-lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto desejo a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrificios possiveis para conseguil-a. Já lhe offereci dinheiro, e ainda offereço. Dou-lhe o que pedir... dou-lhe uma fortuna por essa escrava. Abra preço...
— Não ha dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não quero vendel-a.
— Mas isso é um capricho barbaro, uma perversidade...
— Seja capricho da qualidade que Vª. Sª. quizer; por ventura não posso ter eu os meos caprichos, comtanto que não offenda direitos de ninguem?.. por ventura Vª. Sª. não tem tambem o seo capricho de querel-a para si?... mas o seo capricho offende os meos direitos, e eis ahi o que não posso tolerar.
— Mas o meo capricho é nobre e bemfazejo, e o seo é uma tyrannia, para não dizer uma vilania. Vª. Sª. mancha a sua vida com uma nodoa indelevel conservando na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e a injuria sobre o tumulo de sua santa mãe, que creou com tanta delicadeza, educou com tanto esmero essa escrava, para tornal-a digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não para satisfazer aos caprichos de Vª. Sª. Ella por certo lá do céo, onde está, o amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem, que retem no mais infamante captiveiro uma creatura cheia de virtudes, prendas e belleza...
— Basta senhor!... agora fico tambem sabendo, que uma escrava, só pelo facto de ser bonita e prendada, tem direitos á liberdade. Fique tambem Vª. Sª. sabendo, que se minha mãe não creou essa rapariga para satisfazer aos meos caprichos, muito menos para satisfazer aos de Vª. Sª., a quem nunca conheceo nesta vida. Senhor Alvaro, se deseja ter alguma linda escrava para sua amasia, procure outra, compre-a, que a respeito desta, pode perder toda a esperança.
— Senhor Leoncio, Vª. Sª. de certo esquece-se do lugar onde está, e da pessoa com quem falla, e julga que se acha em sua fazenda fallando aos seos feitores ou a seos escravos. Advirto-lhe, para que mude de linguagem.
— Basta, senhor; deixemo-nos de vãs disputas, e nem eu vim aqui para ser catechisado por Vª. Sª. O que quero é a entrega da escrava e nada mais. Não me obrigue a usar do meo direito levando-a á força.
Alvaro desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações, perdeo de todo a prudencia e sangue frio.
Entendeo que para sahir-se bem na terrivel conjunctura em que se achava, só havia um caminho, — matar o seo antagonista ou morrer-lhe ás mãos, — e cedendo a essas suggestões da cólera e do desespero, saltou da cadeira em que estava, agarrou Leoncio pela góla e sacudindo-o com força:
— Algôz! — bradou espumando de raiva, — ahi tens a tua escrava! Mas antes de leval-a, has-de responder pelos insultos que me tens dirigido, ouviste?... ou acaso pensas que eu tambem sou teo escravo?...
— Está louco, homem! — disse Leoncio amedrontado. — As leis do nosso paiz não permittem o duello.
— Que me importão as leis!... para o homem de brio a honra é superior ás leis, e se não és um covarde, como penso....
— Soccorro, que querem assassinar-me, — bradou Leoncio desembaraçando-se das mãos de Alvaro, e correndo para a porta.
— Infame! — rugio Alvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes n’um sorrir de cólera e desdem...
No mesmo momento, attrahidos pelo barulho, entravam sa sala de um lado Isaura e Miguel, do outro o official de justiça e os guardas.
Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa ouvira e comprehendera tudo.
Vio que tudo estava perdido, e correo a atalhar o desatino, que por amor della Alvaro ia commetter.
— Aqui estou, senhor! — forão as unicas palavras que pronunciou apresentando-se de braços cruzados diante de seo senhor.
— Eil-os ahi; são estes! — exclamou Leoncio indicando aos guardas Isaura e Miguel. Prendão-os!.. prendão-os!....
— Vae-te, Isaura, vae-te. — murmurou Alvaro com voz trémula e sumida, achegando-se da captiva. — Não desanimes; eu não te abandonarei. Confia em Deos e em meo amor.
. . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma hora depois Alvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha este mui ancho e lampeiro dar conta de sua commissão, e sofrego por embolsar a somma convencionada.
— Dez contos!.. oh! — vinha elle pensando. — E’ uma fortuna! agora sim, posso eu viver independente!... Adeos, surrados bancos de Academia!. adeos, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando á toa!... vou atirar-vos pela janella a fóra; não preciso mais de vós; meo futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, commendador, barão, e verão para quanto presto!...
E á força de multiplicar calculos de usura e agiotagem, já Martinho havia centuplicado aquella somma em sua imaginação.
— Meo caro senhor Alvaro, — veio logo dizendo sem mais preambulos, — está tudo arranjado á medida de nossos desejos. Pode Vª. Sª. viver tranquillo em companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguem mais o importunará. De feito o procedimento de Vª. Sª. nesta questão tem sido muito bello e digno de elogios; é proprio de um coração grande e generoso como o de Vª. Sª. Não se dá maior desaforo! no captiveiro uma menina tão mimosa e tão prendada!... Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãosinho. Prego-lhe meia duzia de carapetões, que o hão-de desorientar completamente.
Assim fallando Martinho desdobrou a carta, e já começava a lel-a, quando Alvaro impacientado o interrompeo.
— Basta, senhor Martinho, — disse-lhe com máo humor; — o negocio está arranjado; não preciso mais de seos serviços.
— Arranjado!.. como?...
— A escrava está em poder de seo senhor.
— De Leoncio!.. impossivel!
— Entretanto, é a pura verdade; se quizer saber mais vá á policia, e indague.
— E os meos dez contos?...
— Creio que não lh’os devo mais.
Martinho soltou um urro de desespero, e sahio da casa de Alvaro com tal precipitação, que parecia ir rolando pelas escadas abaixo.
Descrever o misero estado, em que ficou aquella pobre alma, é empreza em que não me metto; os leitores que fação idéa.
O cão faminto illudido pela sombra, largou a carne que tinha entre os dentes, e ficou sem uma nem outra.
— Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma estouvada; não tem jeito para nada. Bem mostras que não nasceste para a sala; o teo lugar é na cosinha.
— Ora vejão lá a figura de quem quer me dar regras!... quem te chamou aqui, intromettido? O teo lugar tambem não é aqui, é lá na estribaria. Vae lá governar os teos cavallos, André, e não te intromettas no que não te importa.
— Cala-te dahi, toleirona; — replicou André mudando de lugar algumas cadeiras. — O que sabes é só tagarellar. Não é aqui o lugar destas cadeiras... Olha como estão estes jarros!.. ainda nem alimpaste os espelhos!.. forte desajeitada e preguiçosa que és!... No tempo de Isaura andava tudo isto aqui, que era um mimo; fazia gosto entrar-se nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és para estas cousas.
— Essa agora é bem lembrada! — retorquio Rosa, altamente despeitada. — Se tens saudades do tempo de Isaura, vae lá tiral-a do quarto escuro do tronco, onde ella está morando. Esse de certo ella não ha-de ter gosto para enfeital-o de flores.
— Cala a boca, Rosa; olha que tu tambem lá podes ir parar.
— Eu não, que não sou fujona.
— Por que não achas quem te carregue, senão fugirias até com o diabo. Coitada da Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa, tratada como uma negra da cosinha! e não tens pena della, Rosa?
— Pena por quê, agora?.. quem mandou ella fazer das suas?
— Pois olha, Rosa, eu estava prompto a aguentar a metade do castigo que ella está soffrendo, mas na companhia della, está entendido.
— Isso pouco custa, André; é fazer o que ella fez. Vae, como ella, tomar ares em Pernambuco, que infallivelmente vaes para a companhia de Isaura.
— Quem déra!.. se soubesse que me prendião com ella, isso é que era um fugir. Mas o diabo é que a pobre Isaura agora vae deixar a nós todos para sempre. Que falta não vae fazer nesta casa!...
— Deixar como?
— Você verá.
— Foi vendida?..
— Qual vendida!
— Alhegada?
— Nem isso.
— Está forra?..
— Que abelhuda!.. Espera, Rosa; tem paciencia um pouco, que hoje mesmo talvez você venha a saber tudo.
— Ora ponha-se com mysterios... então o que você sabe, os outros não podem saber?..
— Não é mysterio, Rosa; é desconfiança minha. Aqui em casa não tarda a haver novidade grossa; vae escutando.
— Ah! ah! — respondeo Rosa galhofando. — Você mesmo está com cara de novidade.
— Psio!.. bico calado, Rosa!.. ahi vem nhonhô.
Pelo dialogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo na fazenda de Leoncio, no municipio de Campos, e na mesma sala, em que no começo desta historia encontrámos Isaura entoando sua canção favorita.
Cerca de dous mezes são decorridos depois que Leoncio fôra ao Recife apprehender sua escrava. Leoncio e Malvina tinhão-se reconciliado, e vindos da côrte tinham chegado á fazenda na vespera. Alguns escravos, entre os quaes se acham Rosa e André, estão asseando o soalho, arranjando e espanando os moveis daquelle rico salão, testemunha impassivel dos mysterios da familia, de tantas scenas ora tocantes e enlevadoras, ora vergonhosas e sinistras, e que durante a ausencia de Malvina se conservára sempre fechado.
Qual é porém a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixárão Pernambuco? que destino deo Leoncio ou pretende dar áquella?.. por que maneira se reconciliou com sua mulher?
Eis o que passamos a explicar ao leitor, antes de proseguirmos nesta narrativa.
Leoncio tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na mais completa e rigorosa reclusão. Não era isto só com o fim de castigal-a ou de cevar sua feroz vingança sobre a infeliz captiva. Sabia quanto era ardente e capaz de extremos, o amor que o jovem pernambucano concebera por Isaura; tinha ouvido as ultimas palavras que Alvaro lhe dirigira = confia em Deos, e em meo amor; eu não te abandonarei. — Era uma ameaça, e Alvaro, rico e audacioso como era, dispunha de grandes meios para pôl-a em execução, quer por alguma violencia, quer por meio de astucias e insidias. Leoncio portanto não só encarcerava com todo o rigor a sua escrava, como tambem armou todos os seos escravos, que dahi em diante distrahidos quasi completamente dos trabalhos da lavoura, vivião em alerta dia e noite como soldados de guarnição a uma fortaleza.
Mas a alma ardente e feroz do joven fazendeiro não desistia nunca de seo louco amor, e nem perdia a esperança de vencer a isenção de Isaura.
E já não era só o amor ou a sensualidade, que o arrastava, era um capricho tyrannico, um desejo feroz e satanico de vingar-se della e do rival preferido. Queria gozal-a, fosse embora por um só dia, e depois de profanada e polluida, entregal-a desdenhosamente ao seo antagonista, dizendo-lhe: — Venha comprar a sua amante; agora estou disposto a vendel-a, e barato.
Encetou pois contra ella nova campanha de promessas, seducções e protestos, seguidos de ameaças, rigores e tyrannias. Leoncio só recuou diante das torturas e da violencia brutal, não por que lhe faltasse ferocidade para tanto, mas por que conhecendo a tempera heroica da virtude de Isaura, comprehendeo que com taes meios só conseguiria matal-a, e a morte de Isaura não satisfazia o seo sensualismo, e nem tão pouco a sua vingança. Portanto tratou de meditar novos planos, não só para recalcar debaixo dos pés o que elle chamava o orgulho da escrava, como de frustrar e escarnecer completamente as vistas generosas de Alvaro, tomando assim de ambos a mais cabal vingança.
Além de tudo, Leoncio via-se na absoluta necessidade de reconciliar-se com Malvina, não que o pundonor, a moral, e muito menos a affeição conjugal a isso o induzissem, mas por motivos de interesse, que em breve o leitor ficará sabendo. Com esse fim pois, Leoncio foi á côrte e procurou Malvina.
Além de todas as más qualidades que possuia, a mentira, a calumnia, o embuste, erão armas que manejava com a habilidade do mais refinado hypocrita. Mostrou-se envergonhado e arrependido do modo por que a havia tratado, e jurou apagar com o seo futuro comportamento até a lembrança de seos passados desvarios. Confessou com uma sinceridade e candura de anjo, que por algum tempo se deixára enlevar pelos attractivos de Isaura, mas que isso não passára de passageiro desvario, que nenhuma impressão lhe deixára na alma.
Além disso assacou mil aleives e calumnias por conta da pobre Isaura. Allegou que ella, como refinada loureira que era, empregára os mais subtis e ardilosos artificios para seduzil-o e provocal-o, no intuito de obter a liberdade em troco de seos favores. Inventou mil outras cousas, e por fim fez Malvina acreditar que Isaura fugira de casa seduzida por um galan, que ha muito tempo a requestava, sem que elles o soubessem; que fôra este, quem fornecêra ao pae della os meios de alforrial-a, e que não o podendo conseguir combinárão de mãos dadas e effectuárão o plano de rapto; que chegando ao Recife, um moço que tanto tinha de rico, como de extravagante e desmiolado, enamorando-se della a tomára a seo primeiro amante; que Isaura com seos artificios, dando-se por uma senhora livre o tinha enleado e illudido por tal forma, que o pobre moço estava a ponto de casar-se com ella, e mesmo depois de saber que era captiva não queria largal-a, e praticando mil escandalos e disparates estava disposto a tudo para alforrial-a. Fôra das mãos desse moço, que elle a fôra tomar no Recife.
Malvina, moça ingenua e credula, com um coração sempre propenso á ternura e ao perdão, deo pleno credito a tudo quanto aprouve a Leoncio inventar não só para justificar suas faltas passadas, como para predispor o comportamento que dahi em diante pretendia seguir.
Na qualidade de esposa offendida irritára-se outróra contra Isaura, quando surprehendêra seo marido dirigindo-lhe fallas amorosas; mas o seo rancor ia-se amainando, e se desvaneceria de todo, se Leoncio não viesse com falsas e aleivosas informações attribuir-lhe os mais torpes procedimentos. Malvina começou a sentir por Isaura desde esse momento, não odio, mas certo afastamento e desprezo, mesclado de compaixão, tal qual sentiria por outra qualquer escrava atrevida e mal comportada.
Era quanto bastava a Leoncio para associal-a ao plano de castigo e vingança, que projectava contra a desditosa escrava. Bem sabia, que Malvina com a sua alma branda e compassiva jámais consentiria em castigos crueis; o que meditava porém nada tinha de barbaro na apparencia, se bem que fosse o mais humilhante e doloroso flagicio imposto ao coração de uma mulher, que tinha consciencia de sua belleza, e da nobreza e elevação de seo espirito.
— E o que pretendes fazer de Isaura? perguntou Malvina.
— Dar-lhe um marido e carta de liberdade.
— E já achaste esse marido?
— Pois faltão maridos?... para achal-o não precisei sair de casa.
— Algum escravo, Leoncio?... oh!... isso não.
— E que tinha isso, uma vez que eu tambem forrasse o marido? era cré com cré, lé com lé. Bem me lembrei do André, que bebe os ares por ella; mas por isso mesmo não a quero dar áquelle maroto. Tenho para ella peça muito melhor.
— Quem Leoncio?
— Ora quem!... o Belchior.
— O Belchior!... exclamou Malvina rindo-se muito. — Estás cassoando; falla serio, quem é?...
— E’ o Belchior, senhora; fallo serio.
— Mas esperas acaso, que Isaura queira casar-se com aquelle monstrengo?
— Se não quizer peor para ella; não lhe dou a liberdade, e ha-de passar a vida enclausurada e em ferros.
— Oh!.. mas isso é demasiada crueldade, Leoncio. De que serve dar-lhe a liberdade em tudo, se não lhe deixas a de escolher um marido?... Dá-lhe a liberdade, Leoncio, e deixa ella casar-se com quem quizer.
— Ella não se casará com ninguem: irá voando direitinho para Pernambuco, e lá ficará muito lampeira nos braços de seo insolente taful, escarnecendo de mim...
— E que te importa isso, Leoncio? — perguntou Malvina com certo ar desconfiado.
— Que tenho!... — replicou Leoncio um pouco perturbado com a pergunta. — Ora que tenho!... é o mesmo que perguntar-me se tenho brio nas faces. Se soubesses como aquelle papalvo provocou-me atirando-me insultos atrozes!.. como desafiou-me com mil bravatas e ameaças, protestando que havia de arrancar Isaura ao meo poder. Se não fosse por tua causa, e tambem por satisfazer os votos de minha mãe, eu nunca daria a liberdade a essa escrava, embora nenhum serviço me prestasse, e tivesse de tratal-a como uma princeza, só para quebrar a prôa e castigar a audacia e petulancia desse impudente rufião.
— Pois bem, Leoncio; mas eu entendo que Isaura mais facilmente se deixará queimar viva, do que casar-se com Belchior.
— Não te dê isso cuidado, minha querida; havemos de catechizal-a convenientemente. Tenho cá forjado o meo plano, com o qual espero reduzil-a a casar-se com elle de muito boa vontade.
— Se ella consentir, não tenho motivo para me oppor a esse arranjo.
Leoncio de feito havia habilmente preparado o seo plano atroz. Tendo trazido do Recife a Miguel debaixo de prisão, juntamente com Isaura, ao chegar em Campos fêl-o encerrar na cadeia, e condenar a pagar todas as despezas e prejuizos que tivéra com a fuga de Isaura, as quaes fizéra orçar em uma somma exorbitante. Ficou portanto o pobre homem exausto dos ultimos recursos que lhe restavão, e ainda por sobre-carga devendo uma somma enorme, que só longos annos de trabalho poderião pagar. Como Leoncio era rico, amigo dos ministros, e tinha grande influencia no lugar, as autoridades locaes prestárão-se de boa mente a todas estas perseguições.
Depois que Leoncio, desanimado de poder vencer a obstinada reluctancia de Isaura, mudou o seo plano de vingança, foi elle em pessoa procurar a Miguel.
— Senhor Miguel, — disse-lhe em tom formalizado, — tenho commiseração do senhor e de sua filha, apesar dos incommodos e prejuizos que me tem dado, e venho propor-lhe um meio de acabarmos de uma vez para sempre com as desordens, intrigas e transtornos, com que sua filha tem perturbado minha casa e o soсego de minha vida.
— Estou prompto para qualquer arranjo, senhor Leoncio, — respondeo respeitosamente Miguel, — uma vez que seja justo e honesto.
— Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com um homem de bem, e dar-lhe a liberdade; porém para esse fim preciso muito de sua coadjuvação.
— Pois diga em que lhe posso servir.
— Sei que Isaura ha-de sentir alguma repugnancia em casar-se com a pessoa que lhe destino, em razão de tola e extravagante paixão, que parece ainda ter por aquelle infame peralvilho de Pernambuco, que metteo-lhe mil caraminholas na cabeça, e encheo-a de idéas extravagantes e loucas esperanças.
— Creio que ella não deve lembrar-se desse moço senão por gratidão....
— Qual gratidão!.. pensa vm.ce que elle está fazendo muito caso della?.. tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquillo foi um capricho de cabeça estonteada, uma phantasia de fidalgote endinheirado, e a prova aqui está; leia esta carta... O patife tem a sem cerimonia de escrever-me, como se entre nós nada houvesse, assim com ares de amigo velho, participando-me que se acha casado!... que tal lhe parece esta?.. que tenho eu com seo casamento!.. Mas isto ainda não é tudo; aproveitando a occasião, pede-me com todo o desfaçamento que em todo e qualquer tempo, que eu me resolva a dispôr de Isaura, nunca o faça sem participar-lhe, porque muito deseja têl-a para mucama de sua senhora! E’ até onde pode chegar o cynismo e a impudencia!...
— Com effeito, senhor!... isto da parte do senhor Alvaro é custoso de acreditar!
— Pois capacite-se com seos proprios olhos; leia; não conhece esta letra?...
E dizendo isto Leoncio apresentava a Miguel uma carta, cuja letra imitava perfeitamente a de Alvaro.
— A letra é delle; não resta duvida, — disse Miguel pasmado do que acabava de ler. — Ha neste mundo infamias, que custa-se a comprehender.
— E também lições crueis, que é preciso não desprezar, não é assim, senhor Miguel?... Pois bem; guarde essa carta para mostrar á sua filha; é bom que ella saiba de tudo para não contar mais com esse homem, e varrer do espirito as fumaças que por ventura ainda lhe toldão o juizo. Faça também vm.ce o que estiver em seo possivel a fim de predispôr sua filha para esse casamento, que é de muita vantagem, e eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como lhe restituo o que já me deo, para vm.ce abrir um negocio aqui em Campos e viver tranquillamente o resto de seos dias, em companhia de sua filha e de seo genro.
— Mas quem é esse genro? Vª. Sª. me não disse ainda.
— E’ verdade;... esquecia-me. E’ o Belchior, o meo jardineiro; não conhece?...
— Muito!... oh! senhor!... com que miseravel figura quer casar minha filha!.. pobre Isaura!.. duvido muito que ella queira.
— Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e trabalhador?..
— Lá isso é verdade; o ponto é ella querer.
— Estou certo que aconselhada e bem catechisada por vm.ce ha-de se resolver.
— Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.
— E se não quizer, peor para ella e para vm.ce: o dito por não dito; fica tudo como estava, — disse terminantemente Leoncio.
Miguel não era homem de tempera a luctar contra a adversidade. O captiveiro e reclusão perenne de sua filha, a miseria que se lhe antolhava acompanhada de mil angustias, erão para elle phantasmas hediondos, cujo aspecto não podia encarar sem sentir mortal pavor e abatimento. Não achou muito oneroso o preço pelo qual o deshumano senhor, livrando-o da miseria, concedia liberdade á sua filha, e acceitou o convenio.
Emquanto Rosa e André espanejavão os moveis do salão, tagarellando alegremente, uma scena bem triste e compungente se passava em um escuro aposento attinente ás senzalas, onde Isaura sentada sobre um cepo, com um dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada á parede, ha dous mezes se achava encarcerada.
Miguel ahi tinha sido introduzido por ordem de Leoncio, para dar parte á filha do projecto de seo senhor, e exortal-a a acceitar o partido que lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavão aquellas duas miseras creaturas, palidas, extenuadas e abatidas pelo infortunio, encerrados em uma estreita e lobrega espelunca. Ao se encontrarem depois de dous longos mezes, mais opprimidos e desgraçados que nunca, a primeira linguagem com que se saudárão, não foi mais do que um chôro de lagrimas e soluços de indizivel angustia, que abraçados por largo tempo estivérão entornando no seio um do outro.
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— Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que é desgraçadamente o unico recurso que nos deixão. E’ com esta condição, que venho abrir-te as portas desta triste prisão, em que ha dous mezes vives encerrada. E’ sem duvida um cruel sacrificio para teo coração; mas é sem comparação mais supportavel do que esse duro captiveiro, com que pretendem matar-te.
— E’ verdade, meo pae; o meo carrasco dá-me a escolha entre dous jugos; mas eu ainda não sei qual dos dous será mais odioso e insupportavel. Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspirárão-me uma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e da dignidade da mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosa morder-se de inveja; tenho dotes incomparaveis do corpo e do espirito; e tudo isto para que, meo Deos!?... para ser dada de mimo a um misero idiota!... Pode-se dar mais cruel e pungente escarneo?!..
E uma risada convulsiva e sinistra desprendeo-se dos labios descórados de Isaura, e reboou pelo lugubre aposento, como o estridulo ulular do mocho entre os sepulchros.
— Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos soffrimentos. O tempo pode muito, e com paciencia e resignação has-de te acostumar a esse novo viver, sem duvida muito mais suave do que este inferno de martyrios, e poderemos ainda gozar dias senão felizes, ao menos mais tranquillos e serenos.
— Para mim a tranquillidade não pode existir senão na sepultura, meo pae. Entre os dous supplicios que me deixão a escolher, eu vejo ainda alguma cousa, que me sorri como uma idéa consoladora, um recurso extremo, que Deos reserva para os desgraçados, cujos males são sem remedio.
— E’ da resignação sem duvida, que queres fallar, não é, minha filha?...
— Ah! meo pae, quando a resignação não é possivel, só a morte...
— Cala-te, filha!... não digas blasphemias e palavras loucas. Eu quero, eu preciso, que tu vivas. Terás animo de deixar teo pae neste mundo sósinho, velho e entregue á miseria e ao desamparo? Se me faltares, o que será de mim nas tristes conjuncturas em que me deixas?...
— Perdoe-me, meo bom, meo querido pae; só em um caso extremo eu me lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meo pae, e é isso que eu quero; mas para isso será preciso que eu me case com um disforme?.. oh! isto é escarneo e opprobrio demais! Tenhão-me debaixo do mais rigoroso captiveiro, ponhão-me na roça de enxada na mão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me em fim como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me este ignominioso sacrificio!..
— Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo e o costume te farão familiarisar com elle. Ha muito tempo não o vês; com a idade elle vae-se endireitando, que é elle ainda muito creança. Agora o desconhecerás; já não tem aquelle exterior tão grosseiro e desagradavel, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma animo, minha filha; quando sahires deste triste calabouço, o ar da liberdade te restituirá a alegria e a tranquillidade, e mesmo com o marido que te dão poderás viver feliz....
— Feliz! — exclamou Isaura com amargo sorriso; — não me falle em felicidade, meo pae. Se ao menos eu tivesse o coração livre como outróra... se não amasse a ninguem. Oh!.. não era preciso que elle me amasse, não; bastava que me quizesse para escrava, aquelle anjo de bondade, que em vão empregou seos generosos esforços para arrancar-me deste abysmo. Quanto eu seria mais feliz do que sendo mulher desse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de mim! devo eu pensar mais nelle? pode elle, nobre e rico cavalheiro, lembrar-se ainda da pobre e infeliz captiva!...
— Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua idéa esse amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.
— Por que, meo pae?.. como poderei ser ingrata a esse moço?..
— Mas não deves contar mais com elle, e muito menos com o seo amor.
— Por que motivo? por ventura se terá elle esquecido de mim?..
— Tua humilde condição não permitte que olhes com amor para tão alto personagem; um abysmo te separa delle. O amor que lhe inspiraste, não passou de um capricho de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem me peza dizer-te isto, Isaura; mas é a pura verdade.
— Ah! meo pae! que está dizendo!.. se soubesse que mal me fazem essas terriveis palavras!.. deixe-me ao menos a consolação de acreditar que elle me amava, que me ama ainda. Que interesse tinha elle em illudir uma pobre escrava?...
— Eu bem quizéra poupar-te ainda este desgosto; mas é preciso que saibas tudo. Esse moço.... ah! minha filha, prepara teo coração para mais um golpe bem cruel.
— Que tem esse moço?.. perguntou Isaura trémula e agitada. Falle, meo pae; acaso morreo?....
— Não, minha filha, mas... está casado.
— Casado!... Alvaro casado!... oh! não; não é possível!.. quem lhe disse, meo pae?...
— Elle mesmo, Isaura; lê esta carta.
Isaura tomou a carta com mão trémula e convulsa, e a percorreo com olhos desvairados. Lida a carta não articulou uma queixa, não soltou um soluço, não derramou uma lagrima, e ella palida como um cadaver, os olhos estatelados, a boca entre-aberta, muda, immovel, hirta, ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir-se-hia que fôra petrificada como a mulher de Loth, ao encarar as chammas em que ardia a cidade maldita. Emfim por um movimento rapido e convulso atirou-se ao seio de seo pae, e inundou-o de uma torrente de lagrimas.
Este pranto copioso alliviou-a; ergueo a cabeça, enxugou as lagrimas, e pareceo ter recobrado a tranquillidade, mas uma tranquillidade gelida, sinistra, sepulchral. Parecia que sua alma se tinha anniquilado sob a violencia daquelle golpe esmagador, e que de Isaura só restava o phantasma.
— Estou morta, meo pae!... não sou mais que um cadaver;... fação de mim o que quiserem....
Forão estas as ultimas palavras, que com voz funebre e sumida proferio naquelle lobrego recinto.
— Vamos, minha filha, disse Miguel beijando-a na fronte. — Não te entregues assim ao desalento; tenho esperança, de que has-de viver e ser feliz.
Miguel, espirito acanhado e rasteiro, coração bom e sensivel, mas inteiramente estranho ás grandes paixões, não podia comprehender todo o alcance do sacrificio que impunha á sua filha. Encarando a felicidade mais pelo lado dos interesses da vida positiva e material, que não pelos gozos e exigencias do coração, ousava conceber sinceras esperanças de mais felizes e tranquillos dias para sua filha, e não via que, sujeitando-a a semelhante opprobrio, aviltando-lhe a alma, ia esmagar-lhe o coração. Queria que ella vivesse, e não via que aquelle ignominioso consorcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passára, era o golpe de compaixão, que terminando-lhe a existencia, vinha abreviar-lhe os soffrimentos.
Malvina achava-se no salão, e ali esperava o resultado da conferencia, que Miguel fôra ter com sua filha. Rosa e André de braços cruzados junto á porta da entrada, tambem ali se achavão ás suas ordens.
Malvina sentio um doloroso aperto de coração ao ver assomar na porta o vulto de Isaura, arrimada ao braço de Miguel, livida e desfigurada como enferma em agonia, os cabellos em desalinho, e com passos mal seguros penetrar, como um duende evocado do sepulchro, naquelle salão, onde não ha muito tempo a vira tão radiante de belleza e mocidade; naquelle salão, que parecia ainda repetir os ultimos accentos de sua voz suave e melodiosa.
Mesmo assim ainda era bella a misera captiva. A magreza fazendo sobresahirem os contornos e angulos faciaes, realçava a pureza ideal e a severa energia daquelle typo antigo.
Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancolica, erão como cirios funereos sob a arcada sombria de uma capella tumular. Os cabellos entornados em desordem em volta do collo, fazião ondular por elle leves sombras de maravilhoso effeito, como festões de hera a se debruçarem pelo marmore vetusto de estatua empallidecida pelo tempo. Naquella miseranda situação, Isaura offerecia ao esculptor um formoso modelo da Niobe antiga.
— Aquella é Isaura!.. oh! meo Deos! coitada! — murmurou Malvina ao vel-a, e foi-lhe mister enxugar duas lagrimas, que a seo pezar humedecerão-lhe as palpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemencia a seo esposo em favor da pobresinha, mas lembrou-se das perversas inclinações e máo comportamento, que Leoncio aleivosamente attribuira a Isaura, e assentou de revestir-se de toda a impassibilidade, que lhe fosse possivel.
— Então, Isaura, — disse Malvina com brandura, — já tomaste a tua resolução?.. estás decidida a casar com o marido que te queremos dar?
Isaura por unica resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos no chão.
— Sim, senhora, — respondeo Miguel por ella; — Isaura está resolvida a se conformar com a vontade de Vas. Sas.
— Faz muito bem. Não é possivel, que ella esteja a soffrer por mais tempo esse cruel tratamento, em que não posso consentir emquanto estiver nesta casa. Não foi para esse fim, que sua defunta senhora creou-a com tanto mimo, e deo-lhe tão boa educação.
Isaura, apezar de tua descahida, quero-te bem ainda, e não tolerarei mais semelhante escandalo. Vamos dar-te ao mesmo tempo a liberdade e um excellente marido.
— Excellente!.. meo Deos! Que escarneo! — reflectio Isaura.
— Belchior é muito bom moço, inoffensivo, pacifico e trabalhador; creio que has-de dar-te optimamente com elle. Demais para obter a liberdade nenhum sacrificio é grande, não é assim, Isaura?
— Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito-me humildemente ao meo destino. Arrancão-me da marmorra[2] — (continuou Isaura em seo pensamento), — para levarem-me ao supplicio.
— Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga docil e de juizo. André, vae chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o gosto de annunciar-lhe, que vae emfim realizar-se o seo sonho querido de tantos annos.
Creio que o senhor Miguel tambem não ficará mal satisfeito com o arranjo que damos a sua filha; sempre é alguma cousa sahir do captiveiro e casar-se com um homem branco e livre. Antes assim do que fugir, e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova de quanto desejo o teo bem, quero ser madrinha neste casamento, que vae pôr termo a teos soffrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento, que ha muito tempo della andavão arredados.
Ditas estas palavras, Malvina abrio um cofre de joias, que estava sobre uma mesa, e delle tirou um rico collar de ouro, que foi collocar no pescoço de Isaura.
— Acceita isto Isaura, — disse ella, — é o meo presente de noivado.
— Agradecida, minha boa senhora, — disse Isaura, e acrescentou em seo coração; — é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da victima.
Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.
— Eis-me aqui, senhora minha, — diz elle, — o que deseja deste seo menor creado?
— Dar-lhe os parabens, senhor Belchior, — respondeo Malvina.
— Parabens!.... mas eu não sei por que!...
— Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vae ser livre, e.... adivinhe o resto.
— E vae-se embora de certo... oh!.. é uma desgraça!
— Já vejo, que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida a casar-se com o senhor.
— Que me diz, patrôa!... perdão, não posso acreditar. Vm.ce está zombando commigo.
— Digo-lhe a verdade; ahi está ella, que não me deixará mentir. Aprompte-se, senhor Belchior, e quanto antes, que ámanhã mesmo ha-de-se fazer o casamento aqui mesmo em casa.
— Oh! senhora minha! dibindade da terra! — exclamou Belchior indo-se atirar aos pés de Malvina e procurando beijal-os, — deixe-me beijar esses péis....
— Levante-se dahi, senhor Belchior; não é a mim, é a Isaura que deve agradecer.
Belchior levanta-se e corre a prostrar-se aos pés de Isaura.
— Oh! princeza de meo coração! — exclamou elle atracando-se ás pernas da pobre escrava, que fraca como estava, quasi foi a terra com a força daquella furiosa e enthusiastica atracação. Era para fazer rebentar de riso, a quem não soubesse quanto havia de tragico e doloroso no fundo daquella impia e ignobil farça.
— Isaura!.. não olhas para mim? aqui tens a teos péis este teo menor captivo Belchior!.. olha para elle, para este teo adorador, que hoje é mais do que um principe... dá cá essa mãosinha, deixa-me comel-a de beijos...
— Meo Deos! que farça hedionda obrigão-me a representar! — murmurou Isaura comsigo, e voltando a face abandonou a mão a Belchior, que collando a ella a boca no transporte do enthusiasmo, desatou a chorar como uma creança.
— Olha que palerma! — disse André para Rosa, que observavão de parte aquella scena tragi-comica. — E venhão cá dizer-me, que não é o mel para a boca do asno!
— Eu antes queria que me casassem com um jacaré.
— Este meo sinhô moço tem idéas do diabo! quem havia de lembrar-se de casar uma sereia com um bôto.
— Invejoso!.. você é que queria ser o bôto, por isso está ahi a torcer o nariz. Toma!.. bem feito!... agora o que faltava era que o nhonhô te désse de dote á Isaura.
— Isso queria eu!.. aposto que Isaura não vae casar de livre vontade! e depois... nós cá nos arranjariamos... havia de enfiar o bôto pelo fundo de uma agulha.
— Sahe dahi, tolo!... pensa que Isaura faz caso de você?..
— Não te arrebites, minha Rosa; já agora não ha remedio senão contentar-me comtigo, que em fim de contas tambem és bem bonitinha, e... tudo que cahe no jequy, é peixe.
— E’ baixo!... aguente a sua taboa, e vá consolar-se com quem quizer, menos commigo.
— Então, Leoncio, — dizia Malvina a seo esposo no outro dia pela manhã, — déste as providencias necessarias para arranjar-se esse negocio hoje mesmo?
— Creio que é a centesima vez que me fazes essa pergunta, Malvina, — respondeo Leoncio sorrindo-se; — todavia pela centesima vez te responderei tambem, que as providencias que estão da minha parte, já forão todas dadas. Hontem mesmo mandei um proprio a Campos, e não tardarão a chegar por ahi o tabellião para passar escriptura de liberdade a Isaura com toda a solemnidade, e tambem o padre para celebrar o casamento. Bem vês que de nada me esqueci. Tratem de estar todos promptos; e tu, Malvina, manda já preparar a capella para se effectuar esse casamento, que pareces desejar com mais ardor, — accrescentou sorrindo, — do que desejaste o teo proprio.
Malvina sahio do salão, deixando Leoncio em companhia de um terceiro personagem, que tambem ali se achava, por nome Jorge, a quem o leitor ainda não conhece. Dizendo que era um parasita, ainda não temos dito tudo.
Este genero contém muitas variedades, e mesmo cada individuo tem sua côr e feição particular. Era um homem bem apessoado, espirituoso, serviçal, cheio de cortezia e amabilidade, condições indispensaveis a um bom parasita. Jorge não vivia da seiva e da sombra de uma só arvore; saltava de uma a outra, e assim peregrinava por longas distancias, o que era da sua parte um excellente calculo, pois proporcionava-lhe uma vida mais variada e recreativa, ao mesmo tempo que tornava sua companhia menos incommoda e fatigante aos seos numerosos amigos. Conhecia e entretinha relações de amizade com todos os fazendeiros das margens do Parahyba desde S. João da Barra até S. Fidelis. A crer no que dizia, andava sempre cheio de afazeres e dando andamento a mil negocios importantes, mas estava sempre prompto a prescindir delles a convite de qualquer desses amigos para passar uns oito ou quinze dias em sua companhia.
Na solidão em que Leoncio se achou depois de seo rompimento com Malvina, Jorge foi para elle um excellente recurso quando se achava na fazenda. Servia-lhe de companheiro não só á mesa, como ao jogo e á caça; entretinha-o a contar-lhe anecdotas divertidas e escandalosas, applaudia-lhe os desvarios e extravagancias, e lisonjeava-lhe as ruins paixões, emquanto Leoncio, que o acreditava realmente um amigo, fazia delle o seo confidente, e communicava-lhe os seos mais intimos pensamentos, os seos planos de perversidade, e os mais secretos negocios de familia.
Para melhor entrarmos no mysterio dos planos atrozes e ignobeis, das satanicas maquinações de Leoncio, ouçamos a conversação intima, que vão travar estes dous entes dignos um do outro.
— Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de aplanar todas as difficuldades. Desta maneira espero que tudo se vae arranjar ás mil maravilhas.
— Seguramente, e já de ante-mão te dou os parabens pelos teos triumphos, e applaudo-te pela feliz combinação de teos planos.
— Mas escuta ainda para melhor poderes comprehendel-os. Com este casamento ficão satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que Isaura escape de todo ao meo poder. Como o pae della está debaixo de minha restricta dependencia, eu saberei reter junto de mim esse estupido jardineiro com quem caso-a, e depois... tu bem sabes, o tempo e a perseverança amansão as feras mais bravias. Entretanto a atrevida escrava receberá o castigo, que merece sua inqualificavel rebeldia. Era-me absolutamente necessario dar este passo, por que minha mulher recusa-se obstinadamente a reconciliar-se commigo, emquanto eu conservar Isaura captiva em meo poder, capricho de mulher, com que bem pouco me importaria, se não fosse.... — isto aqui entre nós, meo amigo; confio em tua discrição.
— Pode fallar sem susto, que meo coração é como um tumulo para o segredo da amizade.
— Bem; dizia-te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos e caprichos de minha mulher, se não fosse o completo desarranjo em que desgraçadamente vão os meos negocios. Em consequencia de uma infinidade de circunstancias, que é escusado agora explicar-te, a minha fortuna está ameaçada de levar um baque horrendo, do qual não sei se me será possivel levantal-a sem auxilio estranho. Ora meo sogro é o unico, que com o auxilio de seo dinheiro ou de seo credito pode ainda escórar o edificio de minha fortuna prestes a desabar.
— Em verdade procedes com tino e prudencia consummada. Oh! teo sogro!.. conheço-o muito; é uma fortuna solida, e uma das casas mais fortes do Rio de Janeiro; teo sogro não te deixará ficar mal. Quer extremosamente á filha, e não quererá ver arruinado o marido della.
— Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta ainda, Jorge. O meo rival, esse tal senhor Alvaro, que tanto cobiçou a minha Isaura para sua amasia, que não teve pejo de seduzil-a, acoutal-a e protegel-a publica e escandalosamente no Recife, esse grotesco campeão da liberdade das escravas alheias, que protestou me disputar Isaura a todo o risco, ficará de uma vez para sempre desenganado de sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos interesses e vantagens se concilião no simples facto desse casamento.
— Plano admiravel na verdade, Leoncio! — exclamou Jorge emphaticamente. — Tens um tino superior, e uma inteligencia subtil e fertil em recursos!.. se te desses á politica, asseguro-te que farias um papel eminente; serias um estadista consummado. Esse D. Quixote de nova especie, amparo da liberdade das escravas alheias, quando são bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater. Muito havemos de nos rir de seo desapontamento, se lhe der na cabeça continuar sua burlesca aventura.
— Creio que nessa não cahirá elle; mas se por cá apparecesse, muito tinhamos que debical-o.
— Meo senhor, — disse André entrando na sala, — ahi estão na porta uns cavalheiros, que pedem licença para apear e entrar.
— Ah! já sei, — disse Leoncio, — são elles, são as pessoas que mandei chamar; o vigario, o tabellião e mais outros... bom! já não nos falta tudo. Vierão mais depressa do que eu esperava. Manda-os apear e entrar, André.
André sahe, Leoncio toca uma campainha, e apparece Rosa.
— Rosa, — diz-lhe elle, — vae já chamar sinhá Malvina, e Isaura, e o senhor Miguel e Belchior. Já devem estar promptos; precisa-se aqui já da presença de todos elles.
— Estou afflicto por ver o fim a esta farça, — disse Leoncio a seo amigo, — mas quero que ella se represente com certo apparato e solemnidade, para inculcar que tenho grande prazer em satisfazer o capricho de Malvina e melhor illudir a sua credulidade; mas, — fique isto aqui entre nós, — este casamento não passa de uma burla. Tenho toda a certeza, de que Isaura despreza do fundo d’alma esse miseravel idiota, que só em nome será seo marido. Entretanto ficarei me aguardando para melhores tempos, e espero que o meo plano surtirá o desejado effeito.
— Cá por mim não tenho a menor duvida a respeito do resultado de um plano tão maravilhosamente combinado.
Mal Jorge acabava de pronunciar estas palavras, appareceo á porta do salão um bello e joven cavalheiro, em elegantes trajos de viagem, acompanhado de mais tres ou quatro pessoas. Leoncio, que já ia pressuroso recebel-os e comprimental-os, estacou de repente.
— Oh!... não são quem eu esperava!.. murmurou comsigo. — Se me não engano... é Alvaro!....
— Senhor Leoncio! — disse o cavalheiro comprimentando-o.
— Senhor Alvaro, — respondeo Leoncio, — pois creio que é a esse senhor, que tenho a honra de receber em minha casa.
— E’ elle mesmo, senhor; um seo criado.
— Ah! muito estimo... não o esperava.... queira sentar-se.... quiz então vir dar um passeio cá pelas nossas provincias do sul?...
Estas e outras phrases banaes dizia Leoncio, procurando refazer-se da perturbação em que o lançára a subita e inesperada apparição de Alvaro naquelle momento critico e solemne.
No mesmo momento entravão no salão por uma porta interior Malvina, Isaura, Miguel e Belchior. Vinhão já preparados com os competentes trajos para a ceremonia do casamento.
— Meo Deos!... o que estou vendo!.. — murmurou Isaura, sacudindo vivamente o braço de Miguel; — estarei enganada?... nao;... é elle.
— E’ elle mesmo. Deos!.. como é possivel.
— Oh! — exclamou Isaura; e nesta simples interjeição, que exhalou como um suspiro, expressava o desafogo de um pégo de angustias, que lhe pesava sobre o coração. Quem de perto a olhasse com attenção veria um leve rubor naquelle rosto, que a dôr e os soffrimentos parecião ter condenado a uma eterna e marmorea palidez; era a aurora da esperança, cujo primeiro e timido arrebol assomava nas faces daquella, cuja existencia naquelle momento ia sepultar-se nas sombras de um lugubre occaso.
— Não esperava pela honra de recebel-o hoje nesta sua casa, — continuou Leoncio recobrando gradualmente o seo sangue frio e seo ar arrogante. — Entretanto ha-de permittir que me felicite a mim e ao senhor por tão opportuna visita. A chegada de Vª. Sª. hoje nesta casa parece um acontecimento auspicioso, e até providencial.
— Sim!?.. muito folgo com isso... mas não terá Vª. Sª. a bondade de dizer por que?..
— Com muito gosto. Saiba que aquella sua protegida, aquella escrava, por quem fez tantos extremos em Pernambuco, vae ser hoje mesmo libertada e casada com um homem de bem. Chegou Vª. Sª. mesmo a ponto de presenciar com os seos proprios olhos a realização dos philantropicos desejos, que tinha a respeito da dita escrava, e eu da minha parte muito folgarei, se Vª. Sª. quizer assistir a esse acto, que ainda mais solemne se tornará com a sua presença.
— E quem a liberta? — perguntou Alvaro sorrindo-se sardonicamente.
— Quem mais senão eu, que sou seo legitimo senhor, — respondeo Leoncio com altiva seguridade.
— Pois declaro-lhe, que o não pode fazer, senhor; — disse Alvaro com firmeza. — Essa escrava não lhe pertence mais.
— Não me pertence!.. — bradou Leoncio levantando-se de um salto, — o senhor delira ou está escarnecendo?..
— Nem uma, nem outra cousa, — respondeo Alvaro com toda a calma; — repito-lhe; essa escrava não lhe pertence mais.
— E quem se atreve a esbulhar-me do direito que tenho sobre ella?
— Os seos credores, senhor, — replicou Alvaro, sempre com a mesma firmeza e sangue frio. — Esta fazenda com todos os escravos; esta casa com seos ricos moveis, e sua baixella, nada disto lhe pertence mais; de hoje em diante o senhor não pode dispor aqui nem do mais insignificante objecto. Veja, — continuou mostrando-lhe um maço de papeis, — aqui tenho em minhas mãos toda a sua fortuna. O seo passivo excede extraordinariamente a todos os seos haveres; sua ruina é completa e irremediavel, e a execução de todos os seos bens vae lhe ser immediatamente intimada.
A um aceno de Alvaro, o escrivão que o acompanhava, apresentou a Leoncio o mandado de sequestro e execução de seos bens. Leoncio arrebatando o papel com mão trémula, passeou rapidamente por elle os olhos faiscantes de cólera.
— Pois que! — exclamou elle, — é assim violenta e atropelladamente, que se fazem estas cousas! por ventura não posso obter alguma moratoria, e salvar minha honra e meos bens por outro qualquer meio?..
— Seos credores já usárão para com o senhor de todas as condescendencias e contemporisações possiveis. Saiba ainda demais, que hoje sou eu o principal, se não o unico credor seo; pertencem-me, e estão em minhas mãos quasi todos os seos titulos de divida, e eu não estou de animo a admittir transacções nem protelações de natureza alguma. Dar seos bens a inventario eis o que lhe cumpre fazer; toda e qualquer evasiva que tentar será inutil.
— Maldição! — bradou Leoncio, batendo com o pé no chão e arrancando os cabellos.
— Meo Deos!.. meo Deos!.. que desgraça!.. e que.. vergonha!... exclamou Malvina soluçando.
Deixemos por um momento suspensa a scena do capitulo antecedente, e interrompido o dialogo entre os dous mancebos. Elles ahi ficão em face um do outro, como o leão altivo e magnanimo tendo subjugado o tigre daninho e traiçoeiro, que rosna em vão debaixo das possantes garras de seo antagonista. E’-nos preciso explicar, por que serie de circumstancias Alvaro veio apparecer em casa do senhor de Isaura, a ponto de vir burlar os seos planos atrozes, mesmo no momento em que ião ter final execução.
Depois que Isaura lhe fôra arrebatada, Alvaro cahio na mais acerba prostração de animo.
Ferido em seo orgulho, esbulhado do objecto de seo amor, escarnecido e vilipendiado pela arrogancia de um insolente escravocrata, entregou-se ao mais sombrio desespero. Mal soube o seo revez, o Dr. Geraldo correo em soccorro daquella nobre alma tão cruelmente golpeada pelo destino. Graças aos cuidados e conselhos daquelle tão sollicito quão intelligente amigo, a dôr de Alvaro foi-se tornando mais calma e resignada. Por suas exhortações Alvaro chegou mesmo a convencer-se, que o melhor partido que lhe ficava a tomar nas difficeis conjuncturas em que se achava, era procurar esquecer-se de Isaura.
— Todo o esforço que fizeres, — dizia-lhe o amigo, — em favor da liberdade de Isaura, será rematada loucura, que não terá outro resultado senão envolver-te em novas difficuldades, cobrindo-te de ridiculo e de humilhação. Já passaste por duas decepções bem crueis, a do baile, e esta ultima ainda mais triste e humilhante. Quasi te fizeste reo de policia, querendo disputar uma escrava a seo legitimo senhor. Pois bem; as seguintes serão ainda piores, eu te asseguro, e te farão ir rolando de abysmo em abysmo até á tua completa perdição.
Attendendo a estas e mil outras considerações de Geraldo, Alvaro procurou firmar o espirito e a vontade no proposito de renunciar ao seo amor, e a todas as suas pretensões philantropicas sobre Isaura. Foi debalde. Depois de um mez de lucta comsigo mesmo, de sempre frustradas velleidades de revolta contra os impulsos do coração, Alvaro sentio-se fraco, e comprehendeo que semelhante tentativa era uma lucta insensata contra a força omnipotente do destino. Embalde procurou, já nas graves occupações do espirito, já nas distracções frivolas da sociedade, um meio de apagar da lembrança a imagem da gentil captiva. Ella lhe estava sempre presente em todos os sonhos d’alma, ora resplendente de belleza e graça, donosa e seductora como na noite do baile, ora palida e abatida, vergada ao peso de seo infortunio, com os pulsos algemados, cravando nelle os olhos supplicantes como que a dizer-lhe:
— Vem, não me abandones; só tu podes quebrar estes ferros, que me opprimem.
O espirito de Alvaro firmou-se por fim na intima e inabalavel convicção de que o céo, pondo em contacto o seo destino com o daquella encantadora e infeliz escrava, tivéra um designio providencial, e o escolhera para instrumento da nobre e generosa missão de arrebatal-a á escravidão, e dar-lhe na sociedade o elevado lugar que por sua belleza, virtudes e talentos, lhe competia.
Resolveo-se portanto, fosse qual fosse o resultado, a proseguir nessa generosa tentativa, com a cegueira do fanatismo, senão com o arrastamento de uma inspiração providencial.
Alvaro partio para o Rio de Janeiro. Já[3] ao acaso, sem plano nenhum formado, sem bem saber o que devia fazer para chegar aos seos fins; mas tinha como uma intuição vaga de que o céo lhe depararia occasião e meios de levar a cabo a sua empreza. O que queria em primeiro lugar era collocar-se nas visinhanças de Leoncio, a fim de poder colher informações e investigar se por ventura algum recurso haveria, para obrigar o senhor de Isaura a manumittil-a.
Desembarcou na côrte com o fim de dirigir-se brevemente para Campos. Antes porém de partir para seo destino, procurou colher entre as pessoas do commercio algumas informações a respeito de Leoncio.
— Oh! conheço muito esse sujeito, — disse logo o primeiro negociante, a quem Alvaro se dirigio. — Esse moço está fallido, e em completa ruina. Se Vª. Sª. tambem é credor delle, pode pôr as suas barbas de molho, por que as dos visinhos estão a arder. Essa casa bem liquida, mal dará para um rateio, em que toque cincoenta por cento a cada credor.
Esta revelação foi para Alvaro como um relampago que se abre aos olhos do viandante extraviado em noite tormentosa, mostrando-lhe de repente e bem ao perto o albergue hospitaleiro que demanda.
— E Vª. Sª. por ventura é tambem credor desse fazendeiro? — perguntou Alvaro.
— Infelizmente, e um dos principaes...
— E a quanto montará a fortuna do tal Leoncio?
— A menos de nada presentemente, pois como já lhe disse, o seo passivo excede talvez em mais do dobro a todos os seus bens.
— Mas esse passivo mesmo, em que somma é calculado pouco mais ou menos?
— Calcula-se approximadamente em quatrocentos e tantos a quinhentos contos, em quanto que a fazenda de Campos, com escravos e todos os mais accessorios, não excederá talvez a duzentos. Já temos tido com esse fazendeiro todas as attenções possiveis, e lhe temos dado mais moratorias do que a lei concede; não somos obrigados a mais, e agora estamos resolvidos a cahir-lhe em cima com a execução.
— E quaes são os outros credores? Vª. Sª. quererá indicar-m’os.
— E por que não? — respondeo o negociante, e passou a indicar a Alvaro os nomes e moradas dos demais credores.
De feito a casa de Leoncio já desde os ultimos annos da vida de seo pae, ia em continuo regresso e desmantelamento. O velho commendador, entregando-se no ultimo quartel da vida a excessos e devassidões, que nem na mocidade são desculpaveis, vivendo quasi sempre na côrte, e deixando quasi em completo abandono a administração da fazenda, havia já esbanjado não pequena porção de sua fortuna. Por effeito da má administração não só as safras começárão a escassear consideravelmente, como tambem o numero de escravos foi-se reduzindo, pela morte e pelas frequentes fugas, sem que tanto o commendador como seo filho deixassem de substituil-os por outros novos, que ião comprando a prazo, tornando cada vez mais pesado o onus das dividas.
Depois da morte do commendador, as cousas forão de mal a peor. Leoncio, com a educação e a indole que lhe conhecemos, era o homem menos proprio possivel para dirigir e explorar um grande estabelecimento agricola.
Seos desvarios e extravagancias, e por ultimo sua nefasta e insensata paixão por Isaura, fizerão-no perder de todo a cabeça, arrojando-o em um plano inclinado de despezas ruinosas, sem calculo nem previsão alguma. Com os enormes dispendios que teve de fazer em consequencia da fuga de Isaura, mandando procural-a por todos os cantos do imperio, acabou de cavar o abysmo de sua ruina. Em pouco tempo o joven fazendeiro estava de todo insolvavel, sem um real em caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira de seos credores. Quando estes acordárão, e se lembrárão de lhe abrir fallencia e executar os seos bens, comprehendêrão que mal poderião embolsar-se da metade do que lhes era devido, e portanto tratárão com sofreguidão de promover os meios executivos, antes que o mal fosse a mais.
Depois de conferenciar com os credores de Leoncio, propoz-lhes a compra de todos os seos creditos pela metade do seo valor. Para evitar qualquer odiosidade, que semelhante procedimento pudesse acarretar sobre sua pessoa, declarou-lhes que nenhuma intenção tinha de vexar nem opprimir o infeliz fazendeiro, que pelo contrario era seo intuito protegel-o e livral-o do vexame de uma rigorosa execução judicial, e deixal-o ao abrigo da miseria. E realmente, a despeito da aversão e desprezo que Leoncio lhe merecia, Alvaro não pretendia levar ao ultimo extremo os meios de vingança, que por um acaso as circumstancias tinhão posto em suas mãos. Era elle dez vezes mais rico do que o seo adversario, e de muito bom grado, se não houvesse outro recurso, por um contracto amigavel daria uma somma igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de Isaura.
Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna desse adversario caprichoso, arrogante e desalmado, Alvaro, sempre generoso, nem por isso desejava vel-o reduzido á miseria.
Os credores não hesitárão um momento em acceitar a proposta. Com razão preferirão saldar suas contas por um modo facil e expedito, em dinheiro de contado, recebendo a metade, do que sujeitando-se ás despezas, delongas e difficuldades de uma execução em escravos e bens de raiz, quando nenhuma probabilidade havia, de que no rateio pudessem obter mais de metade.
Senhor de todos os titulos de divida de Leoncio, isto é, de toda a sua fortuna, Alvaro partio para Campos a fim de promover por sua conta a execução dos bens do mesmo, e munido de todos os papeis e documentos, acompanhado de um escrivão e dous officiaes de justiça, apresentou-se em pessoa em casa de Leoncio para intimar-lhe em pessoa a sentença de sua perdição.
— Oh! maldição! — exclamára Leoncio, arrancando os cabellos em desespero, depois que ouvira dos labios de Alvaro aquelle arrésto esmagador. Atordoado e quasi louco com a violencia do golpe, ia sahir correndo pela porta a fora.
— Espere ainda, senhor, — disse Alvaro detendo-o pelo braço. — Agora quanto á escrava de que ha pouco se fallava, o que pretendia fazer della?
— Libertal-a, já lhe disse, — respondeo Leoncio com rudeza.
— E mais alguma cousa; creio que tambem me disse que ia casal-a: e, desculpe-me a pergunta, haveria para isso consentimento da parte della?
— Oh! não! não!.. eu era arrastada, senhor! — exclamou Isaura resolutamente.
— E’ verdade, senhor Alvaro, atalhou Miguel, ella ia casar-se por assim dizer forçada. O senhor Leoncio, como condição da liberdade della obrigava-a a casar-se com aquelle pobre homem que Vª. Sª. ali vê.
— Com aquelle homem?! — exclamou Alvaro cheio de pasmo e indignação, olhando para o homunculo que Miguel lhe indicava com o dedo.
— Sim, senhor, — continuou Miguel, — e se ella não se sujeitasse a esse casamento, teria de passar o resto da vida presa em um quarto escuro, incommunicavel, com o pé enfiado em uma grossa corrente, como tem vivido desde que veio do Recife até o dia de hoje...
— Verdugo! — bradou Alvaro, não podendo mais sopear sua indignação. — A mão da justiça divina pesa enfim sobre ti para punir tuas monstruosas atrocidades!
— O’ que vergonha!.. que opprobrio, meo Deos! — exclamou Malvina, debruçando-se a uma mesa, e escondendo o rosto entre as mãos.
— Pobre Isaura! — disse Leoncio[4] com voz commovida, estendendo os braços á captiva. — Chega-te a mim... Eu protestei no fundo de minha alma e por minha honra desaffrontar-te do jugo opressor e aviltante, que te esmagava, por que via em ti a pureza de um anjo, e a nobre e altiva resignação da martyr. Foi uma missão santa, que julgo ter recebido do céo, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado. Deos em fim, por minhas mãos vinga a innocencia e a virtude opprimida, e esmaga o algôz.
— Deixe-se de blasonar, senhor! — gritou Leoncio agitando-se em gesticulações de furor; — isto não passa de uma infamia, uma traição, e ladroeira....
— Isaura! — continuou Alvaro com voz sempre firme e grave; — se esse algôz ainda ha pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não t’ as cedia senão com a condição de desposares um ente disforme e desprezivel, agora tens nas tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas. Isaura, tu és hoje a senhora, e elle o escravo; se não quizer mendigar o pão, ha-de recorrer á nossa generosidade.
— Senhor! — exclamou Isaura correndo a lançar-se aos pés de Alvaro; — oh! quanto sois bom e generoso para com esta infeliz escrava!... mas em nome dessa mesma generosidade, de joelhos eu vos peço, perdão! perdão para elles...
— Levanta-te, mulher generosa e sublime! — disse Alvaro estendo-lhe as mãos para levantar-se. — Levanta-te, Isaura; não é a meos pés, mas sim em meos braços, aqui bem perto do meo coração, que te deves lançar, pois a despeito de todos os preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos mortaes em poder offerecer-te a mão de esposo!...
— Senhor, — bradou Leoncio com os labios espumantes e os olhos desvairados, — ahi tendes tudo quanto possuo; pode saciar sua vingança, mas eu lhe juro, nunca ha-de ter o prazer de ver-me implorar a sua generosidade.
E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova contigua á sala.
— Leoncio! Leoncio!.. onde vaes! exclamou Malvina precipitando-se para elle; mal porém havia ella chegado á porta, ouvio-se a explosão atroadora de um tiro.
— Ai!.. — gritou Malvina, e cahio redondamente em terra.
Leoncio tinha-se rebentado o craneo com um tiro de pistola.