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Dicionário de Cultura Básica/Retórica

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RETÓRICA (Eloqüência, Estilística, Oratória) → Estética

Le style c’est l’homme

Agrupamos, no mesmo verbete, disciplinas mais ou menos semelhantes, voltadas para o estudo da beleza verbal. Do étimo greco-latino, rhetorica significa a arte de falar bonito com o fim de convencer os ouvintes ou leitores; eloquentia, substantivo do verbo latino (e)loqui, falar fluentemente; oratória, outro termo latino, derivado de os, oris (boca, oral, oração), no sentido de suplicar para conseguir a adesão a uma causa; do latim stilus, que era um ponteiro, uma espécie de lápis metálico, utilizado para imprimir os sinais alfabéticos sobre a camada de cera das tábuas, estilística passou a indicar a maneira de falar ou de escrever própria de cada autor, de cada época ou de cada gênero literário. Os franceses costumam dizer "le style c’est l’homme" (a personalidade humana è caracterizada pelo seu estilo de vida). Em geral, o objetivo da oratória e da retórica não é a verdade, mas a persuasão através de um discurso bonito.

A Retórica surgiu com os sofistas, pensadores pré-socráticos, no séc. V a.C, sendo o mais famoso Górgias de Leôncio, que considerava a arte da eloqüência, a capacidade de convencer através do raciocínio, a atividade fundamental do homem. Mais tarde, com o surgimento dos dois grandes sistemas filosóficos de Platão (Idealismo) e de Aristóteles (Realismo), o pensamento reflexivo (→ Filosofia) rejeitou os silogismos formais e vazios dos sofistas sobre assuntos de pouca relevância, preocupando-se mais em tentar responder às inquietações fundamentais do ser humano. Mas a Retórica, como desenvolvimento do aspecto emocional da arte de falar, continuou a ser praticada, especialmente a serviço dos que faziam política ou exerciam a advocacia, aspirando a cargos públicos, defendendo contentas ou pregando credos religiosos. Roma, durante o primeiro século que antecedeu e o que se seguiu à chegada de Cristo, cultivou muito a arte oratória: Cícero, Catilina, Júlio César, Marco Antônio, Sêneca, entre outros. Sem falar do orador latino de origem espanhola, Quintiliano, que abriu na capital do mundo uma escola de retórica e sistematizou em regras rígidas as práticas do falar correto e bonito no Tratado sobre a oratória. Na Idade Média, Renascimento, Barroco e Arcadismo, a arte oratória esteve mais a serviço da religião cristã, sendo de grande utilidade para a pregação divina e a evangelização dos povos descobertos pelas Grandes Navegações. A obra mais ilustre foi Os Sermões, do padre jesuíta Antônio Vieira. Mas é só a partir do séc. XX, que a Retórica adquiriu um novo aspecto, sendo considerada uma disciplina complementar quer para o estudo da Lógica formal, em Filosofia, como "Teoria da Argumentação", quer para a análise e interpretação do texto literário, auxiliando a Estilística e as novas disciplinas da Lingüística e da Teoria da Literatura. Enquanto Lausberg (Manual de retórica literária) e Fontanier (Les figures du discours) retomavam e sistematizavam as figuras de estilo tradicionais, os autores da Retórica Geral, Dubois e outros, conhecidos como o "Grupo de Liège", deram uma roupagem moderna à antiga retórica, tornando-a mais funcional. Considerando qualquer figura de estilo como um "desvio" da norma Lingüística, agrupam as figuras em quatro categorias: metaplasmos, metataxes, metassememas e metalogismos. Os "metaplasmos" são desvios morfológicos, alterações da forma lexical, da palavra isoladamente considerada, que podem ocorrer por acréscimo, supressão ou inversão de fonemas no começo, no meio ou no fim de uma palavra: prótese, epêntese, paragoge, aférese, síncope, metátese. As "metataxes" são desvios de ordem sintática, pois alteram a colocação normal das palavras numa frase ou por acréscimo (pleonasmo, perífrase, polissíndeto, digressão, sinonímia, poliptoto, repetição, em geral, de palavras ou frases), ou por supressão (elipse, zeugma, anacoluto, preterição, assíndeto), ou por substituição (enálage, silepse, hendíadis, antonomásia), ou por inversão (hipérbato, anástrofe, prolepse, quiasma). Os "metassememas" dizem respeito ao desvio do estrato semântico que podemos encontrar num texto literário, as chamadas figuras de sentido. O tropo mais importante desta classe é a Metáfora, a que dedicamos um verbete à parte por ser o elemento fundamental da função poética da linguagem. Ver, também, o verbete Poesia.

A metonímia: Roman Jakobson, operando com os conceitos de "similaridade" e "contigüidade" semântica estabeleceu a diferença entre a metáfora e a metonímia. A primeira figura de estilo é construída por uma operação de seleção ou escolha: o poeta, lançando mão da reserva de termos que a língua possui, transfere, por associação analógica, o sentido de um lexema para outro. Assim, por exemplo, uma choupana é chamada de "toca", substituindo o classema humano pelo classema animal. A metonímia, diferentemente, é um tropo construído não por similaridade, mas por contigüidade semântica: chamar a choupana de "palha" significa apenas denominá-la pelo material de que é construída. Enquanto a metáfora é uma identidade criada por uma transferência de sentido de um lexema para outro, a metonímia, como o étimo indica ("além do nome"), é apenas uma "transnominação" do objeto: uma coisa é designada por outra coisa que tem com a primeira uma relação de causa e efeito ou de continente e conteúdo ou de produtor e produto etc. Ao dizer "apanhei meu fusca", em lugar de meu carro, conferi ao meu automóvel conotações que, segundo o contexto, poderiam ser eufóricas (carro valente) ou disfóricas (carro apertadinho). Como se pode ver, o sentido novo conferido pela conotação metonímica é inerente, co-natural e, portanto, contíguo ao próprio objeto; na metáfora diferentemente, o sentido novo dado a um objeto lhe é externo, estranho, proveniente de um outro objeto com o qual é abusivamente associado. Na metáfora "Maria é uma rosa" não existe nenhuma relação aparente entre os dois termos de comparação. A intersecção sêmica deve ser encontrada num terceiro termo, "beleza", oculto no sintagma, que funciona como elo de ligação entre o termo de partida e o termo de chegada.

A sinédoque (do grego "colocar junto") é outra figura de estilo que, como a metonímia, se constrói a partir de uma contigüidade semântica. A diferença consiste no fato de que, enquanto a metonímia é apenas uma relação de correspondência dos objetos, a sinédoque visa a composição ou compreensão dos objetos (sinédoque generalizante) ou, vice-versa, sua decomposição (sinédoque particularizante). A sinédoque, portanto, é produzida por uma dependência entre dois objetos, de modo que a existência ou a idéia de um se encontra incluída no outro; a metonímia, diferentemente, dá-se quando entre os dois objetos existe uma simples relação de chamamento, pela qual eles se correspondem mutuamente, sem ligar-se um ao outro. O mecanismo sinedóquico pode ser de dois tipos principais: a) a decomposição de um todo em relação a suas partes (na totalidade "árvore", por exemplo, distinguimos seus componentes, que são raízes, tronco, folhas, frutos); b) a decomposição de um gênero em relação a suas espécies (na classe "árvore", distinguimos o carvalho da cerejeira, a bananeira da goiabeira etc.). Considerando as relações todo/parte e gênero/espécie, temos quatro formas básicas de sinédoque: 1) sinédoque particularizante, formada pela acentuação semântica de uma parte com relação ao todo: "havia meia dúzia de saias debaixo da telha", em que saia está para mulher como telha para casa; 2) sinédoque particularizante pela acentuação semântica de uma espécie em relação ao se gênero, figura essa denominada também de "antonomásia", quando se refere a pessoas: "mês das flores", por maio; "uma Penélope", em lugar de esposa fiel; "um Homero", por um grande poeta; 3) sinédoque generalizante, formada pela acentuação semântica de um todo em relação a suas partes: "entregar o ouro", em lugar de moedas cunhadas em ouro; 4) sinédoque generalizante, formada pela acentuação semântica de um gênero em relação às espécies: "mortais", em lugar de homens (mortal, na norma lingüística, engloba também animais e vegetais). O efeito retórico de qualquer tipo de sinédoque prende-se sempre a uma oposição conjunta de acréscimo ou de redução de semas. Assim, na sinédoque "vi umas pernas bonitas" (no lugar de uma mulher bonita), temos que o semema beleza deixa de atuar na totalidade da mulher para concentrar-se apenas numa parte dela. O ouvinte ou o leitor fica com a impressão de que essa parte do corpo da mulher, onde é condensada a beleza, adquire um valor subjetivo, semanticamente marcado, indicador da axiologia amorosa do sujeito da enunciação: a concepção carnal e não espiritual do amor, pois esta última normalmente é indicada pela beleza dos olhos.

Oxímoro, Antítese e Paradoxo

Devido ao estreito parentesco dessas três figuras, consideramos difícil e desnecessário individualizar-lhes a diferença específica, tais termos sendo usados quase indiferentemente. O que há em comum é a categoria de metassememas, caracterizada por uma "oposição" semântica, um enunciado que cria um efeito de estranhamento. O vocábulo que melhora explica essa figura de estilo é paradoxo: em grego doxa significa "opinião comum" e para é o prefixo "além de". Essa forma de linguagem poética associa no plano sintagmático dois sememas contrários no plano paradigmático. Enquanto a metáfora repousa sobre uma predicação "impertinente", o oxímoro é construído por uma predicação "opositiva", pela qual a inadequação é levada até à antítese. A retórica clássica sempre considerou o oxímoro como uma coincidentia oppositorum: a coexistência, num mesmo sintagma de duas palavras de sentido oposto: culpa inocente, a voz do silêncio, covarde valentia. Roman Jakobson, no ensaio Os oxímoros dialéticos de Fernando Pessoa, distingue o oxímoro composto por oposição de termos contrários (O mito é o nada que é tudo) e o oxímoro composto por termos contraditórios (Por não ter vindo foi vindo). O exemplo mais famoso de poema construído sobre a figura do paradoxo é o soneto nº 4 de Camões, em que cada verso contém um oxímoro:

"Amor é fogo que arde sem se ver..."

Ironia, Eufemismo, Litotes, Hipérbole, Redundância

Este outro grupo de figuras de estilo, segundo os autores da Retórica Geral, pertenceria a outra classe que eles chamam de Metalogismos, figuras de pensamento, diferentes dos metassememas, que são figuras de sentido. Segundos os retóricos franceses do Grupo de Liège, os metalogismos exigem o conhecimento da realidade em que o homem vive para contradizer seus dados e pô-la em xeque. Discordamos deste ponto de vista porque, não apenas as figuras alistadas acima, mas qualquer tropo, qualquer sentença vulgar, até uma piada ou um provérbio, para ser compreendido, exige um conhecimento extralingüístico, porque não existe sentido fora de um contexto. Um brasileiro, que não conheça o modo de vida dos novaiorquinos, pode não achar graça nenhuma num chiste americano, mesmo traduzido para o português. Por isso, seria mais coerente abolir a classe dos metalogismos, inserindo suas figuras nos metassememas, pois também estes exigem o conhecimento do contexto cultural para serem compreendidos. O Eufemismo tem a função de amenizar o plano da expressão de uma idéia, substituindo palavras próprias, comuns, por termos mais agradáveis, polidos. Assim, nos Lusíadas, Camões, em vez de dizer "matar Inês", usa esta expressão: Tirar Inês ao mundo determina. Na Litotes, a gentileza de expressão é formada por supressão de semas, dizendo-se a menos do que a circunstância exigiria. Em vez de "é experto", temos "não é nada tolo". A Hipérbole é a figura inversa da litotes por ser formada por um acréscimo de semas, exagerando-se a realidade das coisas: "um terço de barba" perdi em roçar cangote de donzela militante (do romance O Coronel e o lobisomem). A Redundância é uma infração da lei fisiológica do mínimo esforço ou da norma da economia do discurso, usando-se termos semanticamente desnecessários. Quando, por exemplo, Fernando Pessoa escreve Mar salgado, o adjetivo "salgado" não está qualificando o substantivo "mar", que é salgado por natureza. A figura é constituída pela intensificação repetitiva de um sema já existente no substantivo "mar", que passa a adquirir, no poema, uma importância peculiar através da imagem hiperbólica do sal do mar sendo formado pelas lágrimas dos portugueses que choram a partida de seus navegadores. A Ironia é a substituição de termos com a intenção de negar o que se afirma por polidez: é o uso de uma palavra com o sentido do seu antônimo. Um exemplo é o chiste popular: "a loira não é burra, apenas tem preguiça de pensar". Facécia à parte, a ironia, além de uma figura retórica, é um estilo poético de fundamental importância para a compreensão de obras dos melhores autores. Por isso, destinamo-lhe um verbete à parte → Ironia.