Saltar para o conteúdo

Anexo:Imprimir/Da França ao Japão

Wikisource, a biblioteca livre
  • Ao imprimir esta página, selecione a opção de Versão para impressão do menu lateral esquerdo. Notarás que desaparecerão este quadro, os cabeçalhos e elementos de navegação entre páginas que não seriam úteis em uma versão impressa.
  • Clicando primeiro em atualizar esta página estará se assegurando de obter as últimas atualizações feitas no livro antes de o imprimir.
  • Se preferir, podes exportar o texto em um dos formatos a seguir:

DA FRANÇA AO JAPÃO


NARRAÇÃO DE VIAGEM E DESCRIPÇÃO HISTÓRICA
USOS E COSTUMES DOS HABITANTES
DA CHINA, DO JAPÃO E DE OUTROS PAIZES DA ASIA

PELO

Dr. Francisco Antonio de Almeida

ex-addido, a pedido do Governo Imperial, á commissâo do Governo Francez
que observou a passagem de Venus no Japão em 1874

EDICÇÃO ILLUSTRADA

 
 

RIO DE JANEIRO
Typ. do — APOSTOLO — r. Nova do Ouvidor ns. 14 e 16
E
Imperial Lithographia do A. SPELTZ — rua de S. José n. 69
1879

CAPITULO I

 
Marselha. — Seu porto.— Seus habitantes.— Thiers em Marselha. — As suas bellezas. — O fim da nossa viagem ao Oriente. — Venus e o Sol. — Partida do «Ava.» — O outeiro de Nossa Senhora da Guarda. — Uma antiga usança. — Toulon. — O Porto de Nápoles. — O muzão nacional. — Ascensão ao Vesuvio. — Partida de Nápoles. — O Stromboli. — O Etna.
 


Marselha
é sem contestação, uma das mais bellas e importantes cidades do Mediterraneo.

A antiga cidade grega, a rival de Tyro, de Carthago e de Athenas, poude resistir aos desastres das guerras civis e estrangeiras que, durante os ultimos seculos, assolárão a França; e depois de mil alternativas, de grandeza e ruina, sob o impulso da moderna civilisação, Marselha, se mostra hoje como Rainha do Mediterraneo.

O seu vasto porto, mais celebre na antiguidade que o do Pirêo, offerece hospitaleiro abrigo a centenares de navios de todas as nacionalidades, que o communicão com os principaes paizes das cinco grandes divisões da Terra.

Para ahi, affluem todos os productos do oriente e do occidente: ao lado dos ricos estofos da India e da China vêm-se os tecidos de algodão dos Estados-Unidos; ao do excellente chá, o saboroso café do Brazil, chrismado com o falso nome de Moka, pelos especuladores europêos — e as lojas, os armazens de venda, expõem aos olhos do publico, mil artefactos da interessante industria oriental, que pela variedade de suas fórmas e côres, fazem as delicias dos amadores de curiosidades.

Este emporio do commercio continental importa e exporta todos os objectos de que necessita a familia humana; e o seu movimento é tal, que, salvo a marinha mercante da Inglaterra, a maxima parte de todas as outras da Europa visita annualmente Marselha.

A navegação a vapor, que faz o serviço entre esta cidade e os paizes asiaticos, é a mais importante do Globo, não sómente pelo numero dos seos navios, como pela idoneidade dos seus officiaes.

Os filhos de Marselha se distinguem dos outros seus compatriotas pelo seu caracter e temperamento; são, em geral, bravos, emprehendedores e do uma energia, proverbial na França e tão caracteristica que, só esta qualidade, basta para distinguil-os.

Assim é, que os habitantes da antiga cidade grega revoltarão-se, por varias vezes, contra o despotismo dos reis da França, e não raras, o sangue generoso dos Marselhezes regou o solo da patria, para vivificar a arvore da liberdade e fazel-a produzir os fructos que, mais tarde, forão saboreados por todos que desejavão o reconhecimento da soberania popular.

A historia da antiga filha da Phocea contém paginas brilhantes e honrosas para seus filhos; jámais a tyrannia encontrou apoio dentro dos seus muros, e seus homens de estado, que tiverão momentos de fraqueza, só encontrarão indifferença, quando de volta á cidade natal esperavão colher os applausos da multidão.

Thiers, o celebre politico opportunista do nosso seculo, não poude fugir á justiça de seus concidadãos; elle reconheceo, ainda em tempo para reconstituir o seu credito, o inconveniente d’esse systema que sempre nos conduz a apostasia politica; foi, quando por occasião da sua primeira visita á Marselha, como alto funccionario do estado, vio fecharem-se todas as portas á sua passagem. Entretanto, Thiers achava-se revestido com o poder da autoridade, dispunha do cofre das graças; porém, os Marselhezes, independentes e livres, quizerão que, o historiador da revolução de 89, se lembrasse das promessas de toda sua vida.

Thiers confessou, por mais de uma vez, a amarga impressão que lhe causou esta fria recepção, e mais tarde quando heróe conquistou os testemunhos de respeito e de admiração de todos os francezes, quando este ancião mostrou ao mundo admirado o prestigio do seu nome, valendo mais que os exercitos predominantes da Allemanha; os seus concidadãos orgulharão-se de possuil-o como modelo de virtudes civicas. Então, a sua presença na cidade de Marselha, pouco tempo antes de seu fallecimento, embriagou o povo, pela alegria immoderada do caracter meridional.

E estes factos, que nos parece, á primeira vista, de nenhum interesse, quando queremos julgar das virtudes do um povo, são, ao contrario, indicações preciosas sobre a direcção dada á opinião, pela sua moralidade; são estes movimentos expontaneos e desinteressados provas infalliveis com que poudemos ajuizar do estado moral de qualquer corpo collectivo.

Esta sociedade altiva e generosa não podia habitar uma cidade mal edificada e despida das bellezas que ornão suas irmãs. De feito, Marselha contém bellos monumentos e outras edificações de uma architectura imponente, taes como sejão: — o seu Hotel de Ville, o seu Theatro, o Arco do Triumpho e outros muitos edifícios publicos ou particulares, que tornão elegantes e importantes as grandes arterias da cidade.

A seus pés prostrão-se, calmas, as cerúleas vagas do Mediterraneo; uma corôa do granito cinge-lhe a fronte, e o extenso valle, que a rodea, limita-lhe os dominios.

A antiga cidade grega, que a tradicção nos descreve, desappareceu progressivamente diante do engenho humano; o labyrintho de ruas estreitas e immundas, e as acanhadas habitações da idade média, forão substituidas pelos boulevards e os squares aformoseados com os lindos edificios que ahi ostenta a moderna architectura.

Poucas cidades da Europa apresentão um accressimo tão rapido de população como Marselha. Em começo deste seculo apenas contava 90,000 habitantes, e hoje a sua população é superior a 300,000, o que é sem duvida devido, ao desenvolvimento do seu commercio maritimo e á vasta extensão da actual rede de caminhos de ferro que cobre todo territorio francez.

Foi á esta interessante e rica cidade que chegamos em 15 de Agosto de 1874, com o fim de embarcarmo-nos em um dos paquetes francezes, com destino ao Japão.

A nossa viagem, ás longinquas terras do extremo oriente não foi motivada pelo desejo que, havia muito tempo, nutriamos de visitar paizes curiosos, pelos uzos e costumes dos seus habitantes, e, ainda mais, por terem sido, incontestavelmente, a patria dos primeiros philosophos, cujas doutrinas, alguns seculos mais tarde, forão expostas sob outras fórmas, pelos sabios do occidente. O objecto da nossa viagem era outro, e tinhamo-nos compromettido levar ao cabo nossa empreza.

Eis como um gracioso convite assim se transformára em ardua missão.

Venus, a deosa da formusura, devia realizar a solemne promessa feita ao rei dos astros, da sua entrevista secular, o que teria lugar em um dos dias de Dezembro de 1874; e como nossos antepassados, sacerdotes como nós, das divindades celestes, notarão n’estas entrevistas, que suas crenças erão mystificadas pelos caprichos da deosa; cumpria-nos aproveitar o novo ensejo para formularmos juizo a respeito.

Até então, viviamos de crenças, mais ou menos justificadas pelas apparencias, e era de esperar que um seculo mais tarde, quando os direitos dos homens se achavão muito mais regulados e definidos, que estes deoses, a nosso exemplo, justificassem suas relações.

Talvez que, algum leitor, severo em seus juizos, julgue pouco airosa nossa presença a este rendez-vous, entretanto, no caracter de conscienciosos sacerdotes, tinhamos necessidade de justificar o nosso apoio ás modernas innovações sociaes, provando a moralidade dos deoses já venerados pelos antigos povos, e que os poetas chamarão mythologicos.

Ora, a occasião era azada; Venus a mais formosa das deosas, seria o mais fraco baluarte da virtude; e bem determinadas suas relações legitimas com o dardejante Sol, qualquer outra divindade, menos bella, ficaria invulneravel da maledicencia.

Era pois, em busca da verdade, que partiamos; e se estas razões não satisfizerem ao exigente leitor ponderamos finalmente que, devendo ter lugar a entrevista no Japão, e visto sermos todos obrigados a adoptar os costumes dos paizes em que estivermos, não nos ficará mal o papel de terceiro em questão de amor.

Assim frustrada, qualquer accusação que se nos queira fazer, cumpre-nos confessar a satisfação e contentamento de que nos possuimos, entrando a bordo do Ava, um dos melhores paquetes das Messageries Maritimes, que devia suspender ancora, no dia seguinte, 19 de Agosto pela manhã.

Na verdade, estes paizes decantados, pelos poetas portuguezes dos seculos passados, aguçavão nossa impertinente curiosidade, e só um obstaculo de impossivel remoção nos forçaria a modificar nosso primeiro proposito.

Assim, algumas difficuldades, que apparecerão, forão valorosamente aplainadas, e no dia marcado, o Ava punha-se em movimento, levando-nos a seu bordo bem como a outros convivas á festa de Venus.

O Ava fazia então a sua segunda viagem ao Oriente; havia apenas dous annos que acabara de ser construido nos importantes estaleiros da companhia: e a sua fórma e outras condições nauticas chamavão a attenção dos profissionaes, os quaes admiravão o cuidado que presidio o seu fabrico; e sua fortaleza recommendava-o para a navegação difficil dos mares tempestuosos da China e do Japão.

As suas dimensões em comprimento e largura são mais ou menos as mesmas das do Equador e do Gironde, porém a altura acima do nivel d’agua é muito menor; o que diminue consideravelmente a superficie de presa ao vento. Comtudo, esta modificação que satisfaz as boas condições de resistencia durante os temporaes, é realizada com sacrificio das accommodações dos passageiros, já transferindo a sala de jantar para debaixo da coberta, já dispondo as camaras em volta do salão; o que é de pouco conchego para os viajantes que enjoão, quando viajão no mar.

Felizmente somos pouco accessiveis a este incommodo; e por isso, apenas o helice do Ava começou a mover-se, subimos á tolda do navio para gozar da bella vista do vasto porto de Marselha.

Ao lado direito a vista se perde em uma floresta de mastros de grande numero de navios mercantes, alguns amarrados ao longo do cáes, e todos dispostos com pittoresca symetria. Na extremidade das suas arvores vião-se confusamente flamulas de mil côres diversas, e pavilhões indicando as respectivas nacionalidades. Entre estes distinguimos o auri-verde varias vezes representado, e á sua vista o nosso coração recebeo dolorosa impressão, ao lembrarmos da patria e da familia, da qual já havia tres annos, achavamo-nos ausentes; e agora a distancia, que a separava de nós, augmentaria progressivamente e com ella as difficuldades de communicação.

A deslocação do navio, sobre as aguas tranquillas do porto, pela sua marcha, veio distrahir a nossa attenção dos navios brazileiros que nos recordava o que tinhamos de mais caro no mundo; passavamos então em frente de uma montanha onde se eleva a capella de Nossa-Senhora-da-Guarda, objecto de profunda veneração dos marinheiros marselhezes.

Este outeiro é muito concorrido pelos individuos desta occupação, que festejão todos os annos com pompa e esplendor a sua padroeira. É um lugar de verdadeira peregrinação, o monte Sinai de Marselha, onde o infeliz naufrago vai depôr aos pés da Mãe de Christo os seos ex-veto e outras offrendas.

Mais longe, perto da barra deste porto, sobre as muralhas de uma torre, um grande numero de homens e mulheres entoavão canticos ao Altissimo e a Santa Virgem, recommendando á sua guarda os viajantes do Ava. Estas vozes fortes e sonoras tocarão nossos corações, e commovidos e reverentes, descobrimos nossas cabeças a essas demonstrações humanitarias e sublimes que só podem encontrar estimulo na religião do Christo.

Aquelles que assim nos desejavão boa viagem erão homens e mulheres do povo, simples pescadores ou pessoas de suas familias, cujos corações devião occultar nobres virtudes, e honestas quanto desinteressadas intenções.

Este edificante uso, exemplo sublime da caridade christã, está enraizado na população deste lugar; e todas as vezes que um navio sahe de Marselha, os habitantes correm pressurosos ás muralhas para recommendal-o á protecção da sua padroeira.

Uma hora depois apenas viamos, atravez do nevoeiro, as costas da França, onde habita um grande povo, que pela riqueza da sua industria e do seu commercio tem conjurado a ruina da patria, ameaçada tantas vezes pelas desastrosas revoluções e guerras estrangeiras; deixando os inimigos admirados dos seus recursos e da facilidade com que em poucos annos de paz, restaura, como acaba de fazer, as suas forças e eleva-se pelo trabalho mais alto que nunca.

Já o sol declinava no horizonte quando o Ava passou em frente de Toulon, outra cidade da mesma origem que Marselha, e já notavel pela sua industria no tempo de Arcadio, filho de Theodozio o Grande.

Posto que a antiga cidadella do Mediterraneo tenha perdido pela sua situação, proxima de Marselha, que absorve a sua importancia commercial, Toulon, não tem desmentido o seu glorioso passado, e nós que a visitamos, podemos affirmar que só as obras do immortal esculptor Puget, que ahi se vêm, compensam a visita do estrangeiro.

Os seus arsenaes são vastos e muito importantes, e mesmo quem conhece os de Rochefort e de Brest contempla admirado suas officinas e os vastos armazens de munições de guerra; porém são, sobretudo, seus fortes com immensas baterias de fórma circular, que mais attrahem a attenção. Os filhos de Toulon sustentão com orgulho, que estas fortificações não encontrão rivaes nos outros paizes.

No dia seguinte pela manhã o Ava, sulcava as aguas italianas, e as dez horas mais ou menos avistavamos o cone fumante do Vesuvio que, isolado, eleva-se ao oriente da cidade de Napoles.

O Ava, proseguindo em sua marcha, augmentava o lindo panorama que se desdobrava aos nossos olhos: — Napoles edificada no meio de elevadas colinas com suas edificações dispostas em amphitheatro, abraçando o seu golfo em toda a extensão, offerecia uma bella perspectiva de varios planos: — o primeiro, formado pelas suas ilhas de pittoresco relevo, que se elevão no meio das aguas azuladas do golfo; o segundo, pelo Vesuvio e as colinas que rodeão o mar; finalmente, no fundo, o amphitheatro da grande cidade coroada pelos campanarios dos seos templos e pelas muralhas dos seus castellos, recordava-nos que a patria das artes era vizinha da capital do christianismo, e que seus filhos experimentarão, por muitos annos, a influencia do feudalismo allemão, tornado mais vexatorio pelo predominio dos antigos papas sobre a peninsula italiana.

Novas vistas ahi se succedem como os scenarios nos theatros: — de um lado são numerosas aldeias como as de Portici, Resina, Torre del Greco e da Nunziata; do outro, para quem se dirige para o occidente, se mostrão Pouzzoles, Baja e o cabo Missenea. No sul, vimos ao longe, as alvejantes aldeias de Castellamare, Vico, Sorrento e Campanella.

Apenas o Ava aferrou perto do porto militar, descemos a terra anceiosos por visitar, na antiga Parthenope[nota 1], os grandes monumentos d’arte do seu famoso musêo, symbolos indeleveis que resumem a historia da arte de todos os tempos, desde os Imperadores Romanos até o presente.

A nossa visita ao antigo muzêo borbonico foi d’esta vez de corrida; e apenas pudemos admirar no seu conjuncto ás maravilhas que ahi se vêm, e que parecem desprender doces effluvios, em honra dos genios creadores que adejárão para a eternidade, porém, depois de animar o gelado marmore e de estampar em simples telas, verdadeiros poemas de suas ardentes imaginações.

Logo, ao entrar, vêm-se no vestibulo bellas composições pintadas sobre madeira, diversos arabescos e outras pinturas decorativas que só merecem interesse secundario.

Seria impossivel descrever tudo que vimos na extensa galeria de quadros do muzêo de Napoles; nem este livro comportaria tal descripção, nem durante as visitas que fizemos posteriormente ao musêo, o tempo nos sobrou para contemplar, ainda que por instantes, todas as bellezas que ahi se achão expostas.

Apenas diremos o que vimos de mais notavel ou o que mais attrahio nossa attenção por qualquer circumstancia. Dominico Gargiuli, Annibal Carrache, Guido Reni, Miguel Angelo, são os representantes da supposta escola Napolitana bem que nenhum destes grandes artistas tivessem seu berço em Napoles. Suas obras primas encontrão-se em alguns musêos da Europa, porém, o de Napoles possue a maior parte senão as mais celebres.

O Anjo da Guarda uma das mais famosas obras primas de Dominico chama a attenção de todos os visitantes, pela belleza de expressão e suave colorido.

A Virgem de Corregio, mais conhecida pelo nome de la Zingarella, ou del Coniglio, é ambicionada por todos os musêos. Esta obra prima é reputada como uma preciosidade do Musêo Napolitano; e os guardas das galerias de pintura são constantemente interrogados pelos estrangeiros, sobre o local em que se acha este quadro.

O Casamento de Santa Catharina do mesmo artista, ainda que seja um quadro de pequenas dimensões, é muito apreciado pela gradação do colorido que inspira um sentimento grandioso e imponente á nossa imaginação enthusiastica. É sobretudo pela suavidade das fórmas que Corregio distingue-se de outros grandes artistas.

De Annibal Carrache, se vê uma cópia do fresco de Corregio, na Igreja de Parma, representando S. João Baptista rodeado pelos Anjos. Segundo nos disserão, o fresco foi inutilisado, quando se reconstruio esta Igreja; de modo que, o valor deste quadro é duplo, pois imaginado por Corregio e copiado por um artista, não menos notavel, como Carrache; – elle não podia ter mais dignos autores.

Ticiano tambem é representado no grande musêo: a sua Danäe é o primor d’arte da escola veneziana. Este quadro achava-se ainda ha pouco tempo em um gabinete secreto, porém, nenhum legitimo motivo havia para esta mysteriosa reservação. A Danäe de Ticiano, foi feita por encommenda do Duque de Fárnesio, que cedendo ás instancias do Papa Paulo III a cedeu ao musêo de Roma. Não sabemos como ella hoje se acha em Napoles onde attrahe a attenção dos amadores e serve para assumpto de estudo aos jovens artistas napolitanos.

Os paineis destas galerias elevão-se hoje a mais de novecentos, porém este numero tambem comprehende mediocres cópias e muitas composições sem grande merito artistico.

As estatuas e baixos relevos em marmore constituem uma collecção de mil e quinhentas esculpturas.

Em uma das salas vimos a bella estatua de Agrippina chorando a morte de Germanico, que chamou nossa attenção pela expressiva posição, nobre e austera do vulto que pinta realmente o sentimento da dôr piedosa, sempre susceptivel á resignação.

O busto de Julio Cezar trabalhado em marmore de Carrara tambem é uma outra obra prima de esculptura; os nobres traços que desenhão-lhe as feições são firmes e de um relevo muito realçante pelas sombras que se destacão — sobre a alvura do marmore.

A estatua de Flora ou de Venus vestida, é uma obra importante da esculptura grega. Canova fallava deste monumento da arte antiga com certa admiração, e, sobretudo, o que mais elle admirava, era a naturalidade das roupagens. Esta estatua foi encontrada soterrada nas Thermas de Caracalla, conjunctamente com o Hercules Fárnesio obra de Glucon de Athenas.

A collecção epigraphica é riquissima e variada. Um dos seus monumentos é o Hercules Fárnesio de que já fallamos, e outro ainda mais famoso é o grupo do Touro Fárnesio.

Hoje está verificado que este trabalho é devido a dous antigos esculptores, naturaes da ilha de Rhodes, de nomes Appollonio e Taurisco. Este importante grupo monolitho, foi restaurado no tempo de Paulo III, e representa provavelmente, — Dirceo, no momento de ser ligado aos cornos de um furioso touro por Amphião e Zetho filho de Anthiope.

Os objectos provenientes das infelizes cidades de Pompeia e Herculanum se distinguem á primeira vista, pela sua côr e alteração.

O bronze dos objectos soterrados pelas lavas do Vesuvio, em Pompeia, está mais deteriorado e o metal apresenta mesmo alguns pontos corroidos e cobertos de manchas de côr differente, quasi sempre azuladas e rodeadas por vivos embranquecidos; emquanto que os bronzes, de Herculanum conservarão-se melhor; sua côr é verde, e a superficie em alguns pontos apresenta polimentos.

As estatuas em bronze são imponentes e algumas de grandes dimensões. Entre muitas outras, não menos notaveis, mencionaremos as seis dançarinas, com seus olhos de esmalte, encontradas em Herculanum, onde ornavão o proscenio do theatro d’aquella cidade.

A posição de cada uma d’estas estatuas é de uma naturalidade inimitavel nos nossos tempos, em que se obedece a certas e multiplices regras anatomicas que muitas vezes sacrificão a variedade das fórmas e a verdadeira harmonia do conjuncto.

Em uma outra sala, vê-se a cabeça de um cavallo colossal, antigo symbolo da republica, e que ornava a praça onde se elevava outrora o templo de Neptuno, na cidade de Napoles.

Infelizmente conveniencias religiosas privarão a arte d’esta obra prima da antiga Grecia, e só a cabeça e o pescoço forão conservados. Foi em 1322 que o Arcebispo de Napoles, vendo o povo entregar-se a uma tola superstição, attribuindo a esta estatua a virtude de curar as doenças dos cavallos, ordenou que se fundisse o corpo do cavallo e o metal fosse empregado para os sinos da cathedral; comtudo, não levando ao cabo esta profanação á arte, o Arcebispo mandou conservar a parte que descrevemos, e que basta para nos dar idéa da magnificencia do todo.

Em uma pequena sala do muzêo, cuja entrada é exclusivamente franqueada aos representantes do sexo forte, vêm-se varias estatuas de Venus, que disputão entre si a primazia da belleza: uma, muito parecida com a Venus de Medicis; outra, com a do Capitolio, outra, á Venus Anadyomenia, etc. É porém, a Venus Callipygea, que foi encontrada na casa dourada de Néro, a que leva vantagem a todas, pela elegancia de suas formas e formosura dos seus traços.

Não é menos curiosa e interessante a collecção immensa de papyros escripturados pelos antigos; e por consequencia, preciosos depositarios dos seus pensamentos.

 
China
Mandarim civil
Lit. Imp. A. Speltz.
𝕸𝖆𝖓𝖉𝖆𝖗𝖎𝖒 𝖈𝖎𝖛𝖎𝖑
 

Nas excavações que se fizerão em Portici encontrou-se grande quantidade de rolos carbonisados d’estes escriptos, que ao principio, os operários rejeitarão, julgando ser pedaços de carvão.

E em uma casa, ahi encontrada, havia uma sala guarnecida com armarios cheios de papyros formando rolos e dispostos com symetria. Mais de mil d’estes papyros forão sujeitos a estudos por homens especiaes, e depois de mil difficuldades, o Padre Antonio Piaggi descobriu o meio de ler essas folhas, completamente ennegrecidas pelo fumo e calcinadas pelo fogo.

De feito, algumas traducções importantes forão ultimamente publicadas dos trabalhos do Philodemo, Rabirio e Epicuro, graças aos perseverantes cuidados dos sábios Carcani, Ignarro e Giordano.

Quando voltamos do Oriente desembarcamos em Nápoles, e então, pudemos com mais vagar apreciar as suas principaes obras d’arte e curiosidades.

As ruas de Nápoles são, em geral, mal traçadas, estreitas e sem o necessário nivellamento, acontecendo, quando chove, as aguas permanecerem por algum tempo estagnadas em muitos logares; entretanto, o seo calçamento se presta facilmente a um nivellamento, por ser feito com pedras vulcanicas, planas e de largas dimensões. Outras ruas são largas e bem ventiladas; porém estas são em pequeno numero, distinguindo-se duas principalmente: a via Roma ou rua de Toledo, e o caes da Chiaja; também o caes de Santa Lucia e o da Victoria são bastante largos, e é d’ahi que se goza a mais bella vista do porto de Nápoles.

As casas de commercio são muito frequentadas pela sociedade napolitana, principalmente as que são situadas na rua de Toledo, a mais bella da cidade. Em muitas destas casas de venda, vê-se um nicho ou pequeno oratorio, com a imagem de uma Madona, diante da qual os devotos queimão velas de cera, ou accendem lampadas em sua honra.

O povo napolitano é essencialmente religioso á sua moda; o que elles praticão resente-se dos antigos cultos rendidos aos deoses do paganismo, e é assim que, em Napoles, encontra-se uma grande variedade de imagens da Madona, cada uma tendo seos devotos particulares, e sendo objecto de um culto distincto.

As Madonas existem em todos os pontos de Napoles: no interior das casas, em nichos praticados nos muros de algumas ruas, nas praças, e, finalmente, até no frontespicio das casas particulares, e em geral sobre a porta principal.

O Vesuvio mede mais de 1,100 metros de altura; o seo cone eleva-se no espaço como a chaminé de um grande forno, sempre fumando e lançando cinzas; e, á noite, na escuridão das trevas, esta columna de fumo e de vapor illumina-se de subito e alternativamente todos os tres minutos. Era de suppôr que as encostas deste gigante de fogo fossem abandonadas e sinistras; a sorte de Pompeia e Herculanum deveria affastar d’ahi os napolitanos; entretanto, na base do Vesuvio se destacão muitas habitações formando povoações ou aldeias.

As encostas do vulcão são intelligentemente utilisadas com bellas vinhas, cujas uvas fornecem o afamado lacrima-christi, tão procurado em algumas cidades da Europa.

Sob o ponto de vista mineralogico, o Vesuvio apresenta alto interesse; os mineraes que ahi se encontrão, são numerosos, notando-se entre outros, a mica, o epidoto, a augita, o amphiboleo, a breislakita, a amphigenea, a nephelina, o idocrasio e grande variedade de granadas.

Presentemente, as lavas da cratera são de natureza differente das que se vêm em algumas collecções mineralogicas da Europa. Nestas amostras, os porphirios e sobretudo os chrystaes de amphigenea, constituem principalmente a lava; entretanto, vimos lavas, colhidas na actual cratéra, sem conter a minima quantidade destes crystaes.

É facto verificado que a natureza da lava é modificada pelas erupções, e que, outras vezes, estas lavas são acompanhadas por muitas substancias diversas, que se encontrão nas importantes collecções geologicas, estudadas com o maximo cuidado.

A ascensão ao Vesuvio começa em Resina, depois de entrarmos em Portici, um dos arrabaldes de Napoles, assim chamado, por ter sido este lugar o Herculis porticum dos antigos; em seguida, deixa-se a estrada de Sorrento e toma-se uma outra que vai costeira aos flancos do morro, porém, em voltas tortuosas até chegar a uma antiga ermida, hoje transformada em hospedaria ou albergue. Ahi, encontrão-se cavallos, que em meia hora levão os toristas além do Summa, cujo solo é completamente coberto com camadas de cinzas ou escorias. Então, a ascensão é bastante difficil e trabalhosa, e gasta-se mais de meia hora para chegar-se até o boqueirão da cratera; onde, os olhos se extasião diante de vastos panoramas, e o nosso coração se concentra intimidado por tanta grandeza á vista da nossa pequenhez.

De Portici á cratera, gastamos mais de tres horas; ora, viajando de carro e a cavallo, ora a pé, com as plantas mortificadas pelas asperidades das escorias apezar da fortaleza dos nossos botins, que, as vezes, sem encontrar ponto de apoio resistente, aprofundavão as camadas de cinzas e lançavão esta materia sobre nossas vestes.

Entretanto, vimos bellas filhas da Albion, com suas louras madeixas e saphiricos olhos, vencerem com coragem todos os obstaculos, e galgarem o alto do Vesuvio, para d’ahi gozarem do esplendido espectaculo que a natureza nos offerece.

Lançando os olhos para o amphitheatro immenso, que se estende aos pés da montanha, subita idéa se apodera do viajante, que interroga o futuro, sobre a sorte d’esta cidade, ameaçada, a todos os instantes, de ser soterrada debaixo de camadas de projectis, como perecerão Pompeia e Herculanum.

Já que fallamos d’estas antigas cidades, cumpre-nos confessar que, por imperdoavel imprudencia na distribuição que fizemos do nosso tempo, não visitamos suas ruinas, hoje quasi que habitadas pelos sabios archeologos, incançaveis interpretes d’esse livro authentico da vida dos povos romanos do seculo I.

Na nossa viagem para o Oriente, o Ava apenas demorou-se algumas horas em Napoles, de modo, que quando deixamos este porto, os ultimos raios dourados do sol ferião as nuvens, que envolvião a cratera do Vesuvio, fazendo-as scintillar com rubra côr.

Passamos perto da pittoresca ilha de Capri, com seus rochedos escabrosos e d’onde o Imperador Tiberio, segundo Suetonio, mandava precipitar ao mar as victimas da sua crueldade, depois de as martyrisar com prolongados e excogitados supplicios.

Em frente desta ilha, fica Campanella, a terra das bellas Napolitanas, e onde existio o templo de Juno, sobre cujas ruinas edificou-se uma grande igreja, sob a invocação de S. Francisco.

No meio da noite do mesmo dia que partimos de Napoles, vimos as chammas do Stromboli que, como pharol de luz intermittente, indicava ao Ava a entrada do estreito de Messina.

Foi a ilha, onde se eleva este vulcão, a primeira que avistamos depois de Capri; a sua formação, segundo dizem, é toda vulcanica e à montanha está em constante actividade ha muitos seculos. Durante a noite vêm-se distinctamente as erupções, que por intervallos, parecem fogos de artificio. Um phenomeno curioso e particular a este vulcão foi observado por Sir Lyell.

Este sabio notou que as erupções erão muito mais fracas quando o tempo sereno do que durante as tempestades; assim é que os habitantes da ilha considerão o vulcão como um barometro.

Algumas horas depois deixavamos o Stromboli na popa do Ava e entravamos no estreito passe de Messina.

Ao lado direito viamos as luzes da cidade de Reggio e no lado esquerdo a cidade de Messina, mais importante pelo seo commercio do que a primeira.

Na frente de nós, esclarecido pelos raios bruxuleantes da aurora, divisavamos o Etna, o mais elevado vulcão da Europa, com o seu cone ainda encoberto pelo nevoeiro da manhã.

Uma hora depois, esta montanha de mais de 3,300 metros de altura, achava-se perto do Ava; navegavamos nas mesmas aguas que molhavão a sua base do lado do Oriente.

N’este ponto, a base do Vulcão fórma um circulo regular de 38 léguas de extensão, que diminue progressivamente com a altura, porém, de modo a formar doces declives apenas de 7 a 8 gráos, o que torna facil a ascenção á cratera durante a boa estação.

O Etna também é conhecido na Sicilia pelo nome de Monte Gibello; elle é cultivado em alguns pontos de suas vertentes e principalmente na sua base; ahi, vê-se grande numero de casas formando mais de 60 aldeias ou povoações; e esta região é considerada como uma das mais ferteis da Sicilia.

Debaixo do ponto de vista scientifico o Etna mereceo os estudos de Lyell e de Elie de Beaumont.

Segundo estes sabios geologos, as suas encostas do lado do Sul e de Este, apresentão depositos sedimentados e vulcanicos de origem sub-marina, e, ahi encontrárão, grande quantidade de conchas, na altura de 800 pés acima do actual nivel do mediterrâneo!

Quando o Etna poude ser visto por nós pelo seu lado meridional, este gigante de lavas apparecia com o seu dorso nú de toda vegetação e de uma côr cinzenta característica, o que formava accentuado contraste com a luxuriante vegetação da sua base oriental.

Apenas o cume do Etna, envolto em densa nevôa, era visível, quando avistamos Syracusa, a antiga e poderosa colonia grega, que desappareceo com Archimedes, o mais illustre dos seus filhos, para seguir a fortuna das armas romanas.

O Ava passou diante de Syracusa veloz em sua carreira. O vento era muito favoravel e fresco, e auxiliava poderosamente o movimento do helice que o deslocava sobre as vagas.

A tarde dobravamos o cabo do Passaro, deixavamos Malta á direita, e perdiamos de vista as terras da Europa; esta parte do Globo a mais importante pelo engenho dos seus filhos, porém menos tradicional do que as regiões que iamos percorrer.


CAPITULO II

 
As costas do Egypto. — Os historiadores antigos e modernos. — O Nilo. — A politica Ingleza e a liberdade de commercio. — Um grande homem. — O algodão egypcio. — Um gentleman original. — Chegada a Port Said. — Os cafés-concertos. — O imperio da roleta. — Os habitantes de Port Said. — Entrada do «Ava» no canal.
 


EM frente as bocas do Nilo, na distancia de sete kilometros da costa, o Ava começou a sulcar as aguas barrentas do rio, que em impetuosas correntes derramavão-se no Mediterraneo.

A vista da costa egypcia nos despertou mil recordações sobre a historia da antiga terra dos Pharáos, cujos monumentos ostentão com o máximo brilho os feitos das gerações passadas.

É para lastimarmos a pouca luz da historia do primitivo Egypto; sómente as taboas chronologicas servem ao archeologo e ao historiador para verificar os factos mencionados pelos antigos escriptores; os quaes, não obstante suas altas qualidades como homens de lettras, desafogavão muitas vezes, os sentimentos que nutrião, narrando infielmente os feitos dos seus inimigos ou usurpando para seus amigos as glorias conquistadas por outrem.

A vida política e social nos antigos tempos, não era sem duvida isenta das pequeninas miserias que, ainda em nossos dias, tanto affligeam os historiadores e os criticos; sempre faceis, em expôr os seus adversários n’um immortal pelourinho de infamia, e em exalçar os simples feitos dos seus protectores e amigos, sacrificando assim, ao seu epicurismo, a dignidade propria e a verdade da historia.

Porém deixemos de fallar das mazellas de alguns dos nossos escriptores contemporâneos, que a cada momento se deixão surprehender e retratar ao vivo nos seus escriptos, para descrevermos este solo que foi o imperio dos deoses semi-deoses e heróes.

Amrou o primeiro conquistador arabe do Egypto assim o pintava ao califa Omar:

«Imaginai um arido deserto e uma magnifica campina entre duas montanhas: uma, tendo a forma de uma collina de areias, e a outra, a do ventre de um cavallo hectico ou do dorso de um camello. Eis o Egypto.»

Estas poucas palavras dão uma perfeita idéa do solo egypcio.

É no meio deste valle que corre com magestade o rei dos rios africanos, rico quando em certa epocha do anno recebe o tributo dos subditos, para com liberalidade fertilisar o arenoso solo Egypcio.

Herodoto diz que este paiz é um producto do Nilo; e, na verdade, seria um dos mais estereis e inhabitaveis do Globo se a superficie de grande parte do seu solo, não fosse coberta pelo limo fertilisador d’este rio. Então, esta vasta planicie de areia cobre-se com luxuriante vegetação, e tornada de prodigiosa fecundidade, permitte tres colheitas até nova volta das aguas.

Todos os recursos possíveis são empregados pelos naturaes, para augmentar a area innundada, e, para isso, importantes trabalhos forão executados, de modo que as aldeias e cidades ficão em secco, durante a innundação, e se communicão por pequeninos e mui ligeiros bateis, tão numerosos como as folhas das palmeiras.

Chegada certa épocha, as aguas se retirão progressivamente, e os habitantes, sem perda de tempo, abrem sem profundar as entranhas da terra, lanção as sementes, e esperão que o benefico orvalho, supprindo as chuvas, conserve o succo nutritivo de que o solo está embebido.

Parecia-nos que n'este paiz, onde á mais abundante colheita succede de subito a esterilidade, a importância da sua lavoura seria fraco elemento para sua riqueza, entretanto, o trigo, o algodão e o fumo, produzidos pelo solo egypcio, são afamados e muito procurados em todos os mercados do mundo.

Para o poeta, o aspecto d'este paiz desperta, ora, férvido enthusiasmo, quando sob o seo bello céo elle contempla estes vastos campos cultivados, verdadeiras anamorphoses, representando deslumbrantes e variados quadros; outras vezes, á vista dos areiaes movediços pelos ventos do deserto [1], de um céo turvado, e de um sol violaceo, as ideias faltão-lhe ao cerebro, o coração se lhe annuvia de tristeza: — todos os corpos animados entrão em estado febril e doentio.

Os pulmões se contrahem n'esta atmosphera de fogo, a respiração é laboriosa, a vida torna-se intolerável.

Tal é a physionomia do actual paiz dos kœdivas digno de melhor sorte, pelo valor de suas gerações passadas, e pela capacidade dos illustrados estadistas que no nosso século tentárão regenerar os seos concidadãos, abolindo barbaras usanças, e assim, realisando diversos melhoramentos tanto de ordem moral como material. Infelizmente, quando pelo incessante trabalho do progresso, era de esperar a regeneração das grandes nações da antiguidade, vemos, ao contrario, que o engrandecimento dos paizes novos importa na ruina d'aquelles, que dispõem de uma seiva mais pobre, e de cuja circulação mais lenta resulta atraso para suas artes e sciencias.

Será esta a justa explicação da decadencia dos antigos povos, outr’ora capazes de grandes commettimentos, como demonstrão seos monumentos, e hoje, apologistas empedernidos das velhas instituições, e intolerantes sectários da escola de Epicuro?

De certo, esta causa não se opporia á marcha triumphante da civilisação moderna se, em nome do seo mais forte baluarte, a liberdade, ambiciosas nações não excogitassem perfidas ardilezas para assenhorearem-se das riquezas das mais fracas e constituirem-se, pela força ou astucia, arbitros supremos de seos destinos.

E, já que fallamos do Egypto, não será sem interesse lembrarmo-nos da influencia que a politica da altiva Inglaterra exerceo sobre o destino deste paiz.

Impondo seos tratados de commercio com as bocas dos canhões; justificão a violência, negando a qualquer estado a direito de permanecer fóra da communhão social; porém, se n’estes tratados, fossem attendidas as condições de vida de cada povo e não concebidos para exclusiva protecção ao commercio inglez, estamos convictos, de que não veriamos os portos dos paizes humilhados, transformados em theatros de rapinas, dignos dos Alaricos e dos Atilas, porém que nos modernos tempos têm por autores, philantropicos diplomatas; não, como aquelles, montados em seos indomaveis cavallos e apoiados na força do seo braço, porém defendidos pela inviolabilidade de suas pessoas, sempre recebidas com as honras e as festas.

E quando seos bons officios são recusados por algum governo patriotico e sagaz que comprehende as intenções da philantropica Inglaterra, as festas publicas, feitas em honra dos seos hospedes, são seguidas de lucto ou do miseria; e não raras vezes, populações indefezas forão assassinadas pelos soldados deste tão preconisado paiz que, assim, preferião ser esmagadas pela força do que venderem seo solo ou comprometterem o futuro da patria.

É, sobretudo, a propaganda ruinosa da liberdade de commercio que serve de apoio a estes tratados extorquidos pelos canhões inglezes, que substituem, sempre com vantagem, as mallogradas negociações diplomaticas; deixando a escolha, de uma nação livre e então rica de seos recursos naturaes, a paz na miséria ou a guerra com os seos horrores, — a bolsa ou a vida; — e mais tarde, a bancarota infallivel proporciona occasião a Rainha dos mares para transformar estes paizes em protectorados e colonias.

Aos grandes acontecimentos suscitados no começo do século pela Inglaterra, e que mudarão a face política de muitos Estados da Europa, succederão questões de interesse commercial para este paiz, nas quaes, o espirito do publico inglez estava perfeitamente de accordo com o governo.

Assim é, que facil foi a victoria para a Inglaterra, cujas doutrinas da sua politica externa cifrava-se em propagar e sustentar por todos os meios a liberdade de commercio, necessariamente vantajoso para ella que somente dispõe de sua industria manufactureira e exclusivamente utilisa materias primas estrangeiras.

Finalmente, contando em cada um dos seos filhos um collaborador da grande idéa — a preponderancia no commercio do mundo — a Inglaterra interessou em Portugal, com o importante commercio dos vinhos do Porto; em Hespanha, chamando a si as manufacturas de algodão de Barcellona, receiando a concorrência com Manchester e Liverpool; na Sicilia, monopolisando o enxofre; e finalmente, no Egypto, ingerindo-se na administração do paiz, para matar a industria da algodão egypcio; creando toda sorte de difilculdades á sabia administração de Mehemet-Ali.

Julgando-se senhora do Mediterraneo, a Inglaterra, qual inconsciente usurario, tratou de monopolisar o commercio das Indias e d’outros paizes asiaticos, já seduzindo com o seo ouro os funccionarios de alta dignidade destes paizes; já subornando os fracos de animo ou instigando os mais valorosos ás rebelliões e revoluções.

Porem, os diplomatas dos Estados-Unidos já tinhão atravessado o Pacifico e contratado relações de commercio com o Japão e a China, então a Inglaterra tratou de consolidar o seu poder nas Indias, emquanto esperava occasião azada para levar a civilisação a estes dois paizes.

Deixemos, porem, para mais adiante, esta importante questão, e lancemos nossos olhos para o Mediterraneo fechado pelo estreito de Gibraltar, praça forte da Inglaterra.

O Egypto teve um chefe que foi grande nas suas concepções como a vastidão dos seus areiaes, impetuoso em suas paixões como as correntes do Nilo, e fertil para seo paiz como as aguas deste rio.

Mehemet-Ali foi um dos homens d’Estado mais notáveis do nosso século, um dos mais esforçados iniciadores do actual canal de Suez, e, que por varias vezes frustrou os planos politicos da Inglaterra, que via na estreita lingua de terra reunindo a Africa á Asia, o obstaculo que impedia a marinha mercante da Europa de concorrer com a sua, então dominadora de todos os mercados e senhora do commercio oriental.

Mehemet-Ali nasceo em 1769, na Roumelia, e desde a mais tenra idade entregou-se ao manejo das armas e á vida activa do militar. Aos vinte annos era nomeado capitão, e, por occasião da occupação franceza do Egypto, tendo-se distinguido por altos feitos de guerra, foi successivamente promovido nos differentes postos, de modo, que finda a campanha, era commandante (seraskier) dos turbulentos albanezes.

N’este posto Mehemet desenvolveo admiravel aptidão para a administração civil, já aconselhando as autoridades medidas patrioticas e de grande valor para os interesses do Egypto, já censurando a conducta e denunciando os erros administrativos dos governadores do Egypto. Mehemet realizou com grande exito seus planos de usurpação no governo do Egypto com perseverança e dissimulada sagacidade; afinal impoz sua nomeação á Porta que, temendo o poder deste chefe militar, mandou uma esquadra ao Egypto para desarmal-o.

Entretanto Mehemet-Ali era aclamado pelos seos soldados vice-rei do Egypto, e o almirante ottomano, vendo que seria temerário executar as ordens que tinha recebido, voltou a Constantinopla, depois de conferenciar com Mehemet. Algum tempo depois, os poderes do vice-rei forão confirmados, e o Egypto inaugurava nova epocha de progresso o de paz.

A primeira necessidade de que curou o novo governador foi da paz interna, constantemente perturbada pelos mamelucos, que em suas correrias atacavão a propriedade e muitas vezes a vida dos habitantes do interior.

Mehemet-Ali depois de pacificar o paiz, constituio-se o unico agricultor e negociante, e dispondo de immensos recursos, mandou executar grandes e duráveis trabalhos, sobresahindo, entre todos, pela sua importância e real utilidade, o do canal de Mahmoudieh, o qual recebe as aguas do Nilo e as despeja no porto de Alexandria.

Quando a fome assolou alguns Estados da Europa, em 1816 e 1817, grande numero de navios ião aos portos do Egypto em busca de trigo. Mehemet-Ali, intelligente e ambicioso, soube tirar partido desta importante producção do seo paiz. Logo que notou a procura do trigo, Mehemet-Ali impoz ás províncias de Saïd e do Delta que o pagamento das contribuições fosse feito com este producto, o tornando-se o unico fornecedor, conservou a alta do trigo durante mais de dois annos.

Com os grandes lucros, assim auferidos, elle constituio-se o unico intermediario em todas as transacções.

Comprehendendo então, a importância da grande lavoura, este chefe pensou em naturalisar o algodão no Egypto; mandou vir de Pernambuco uma grande quantidade de sementes d’este nosso producto, em outros tempos tão importante, e que, hoje, pela inconstancia dos nossos lavradores e falta de progresso industrial, não póde concorrer nos grandes mercados com as producções de outros paizes.

O estudo sobre o importante commercio do Egypto de 1820 aos nossos dias, nos demonstra o desenvolvimento espantoso desta cultura; e em todas as cidades mais commerciaes da Europa, Mehemet-Ali estabeleceo armazens importantes, verdadeiros emporios do algodão egypcio. Segundo alguns economistas, Mehemet-Ali deveo á cultura do algodão os recursos do que dispoz para sustentar as longas e onerosas guerras em que submetteo o Nedj, o Yemen e o Sanaar.

Florescendo sob a direcção de um chefe illustrado, o Egypto parecia lembrar-se de sua antiga importância, porem este progresso não convinha a alguns estados da Europa, e a Turquia instigada, ou comprehendendo com má vontade o desenvolvimento do commercio egypcio, tentou em 1839, conquistar as possessões da Syria que fazião parte dos estados do Vice-Rei.

Os exercitos d’este, baterão completamente os do Sultão, e Ibrahim-Pachá, filho de Méhémet-Ali, expulsou os turcos do solo de sua patria; porém, a intervenção de algumas potencias europeas veio, em nome da civilisação, mudar a sorte das armas egypcias; e de feito, em 1841 foi assignado um tratado entre Méhémet-Ali e o Sultão, pelo qual este concedia a Méhémet e aos seos descendentes, segundo a ordem de primogenitura, o Egypto, sem que por isso, fosse elle superior aos outros vizires; e a troco d’esses favores, o Vice Rei pagaria um tributo, reconhecendo assim a suzerania do Sultão, sendo, além disto, as nomeações dos officiaes superiores do exercito feitas por escolha exclusiva do chefe turco.

Talvez que para legitimar a intervenção das potencias estrangeiras ou para resguardar os interesses da civilisação, foi prohibido Méhémet de continuar a fazer eunucos nos seos estados.

Méhémet-Ali doente e enfraquecido pela idade não descurou das necessidades do Egypto, e, entre outras medidas, merece ser lembrado o interesse que elle tomou pela instrucção dos seos subditos, tendo mesmo, estabelecido em Paris, uma escola onde alguns d’elles se preparassem para as matriculas dos cursos especiaes.

Com a idade, a razão d’este homem notavel, começou a enfraquecer; e após uma visita que sua filha lhe fez em 1845, em que, segundo dizem, qual outra Sara, apresentára uma jovem Agar ao velho Méhémèt-Ali, este, não dispondo da resignação de Abrahão, enlouqueceo completamente.

Desde então foi seo filho Ibrahim quem de facto governou o Egypto, porém, em 1848, fallecerão pae e filho e coube ao neto do grande soberano Abbá-Pacha as redeas do governo.

Este falleceo em 1854 depois de curto porem intelligente reinado, cabendo então a seu tio Said-Pacha o throno e a gloria de ver executar sob seo reinado uma das obras mais dignas do nosso século; — a abertura do canal de Suez, cujo projecto fôra concebido por Méhémet-Ali e a execução confiada ao illustre engenheiro francez Ferdinand de Lesseps.

É com sentimento que observamos o Ava seguir seo rumo com destino ao canal; desejávamos vêr Alexandria; a unica cidade do Egypto, que sobreviveo a sua ruina; visitar seos bellos monumentos e o importante canal de Mahmoudieh; ficará a satisfação da nossa curiosidade para quando voltarmos do Oriente, já habituados com os costumes orientaes e as emoções de viagem; e, como dizem que a civilisação partio do Oriente, não será sem interesse procurarmos seos vestígios d’este extremo ao occidente; e sendo o methodo indispensavel a todos os projectos que o espirito humano póde conceber, approveitaremos da viagem de ida para disprevenidos recebermos as impressões, e durante a volta coordenaremos os factos e deduziremos as nossas observações sobre o gráo de desenvolvimento de cada povo, sob o ponto de vista da moderna civilisação.

Assim, esta segunda visita pelos mesmos paizes servirá para corregirmos os nossos primeiros juizos, com o unico fim do restabelecermos a verdade, muitas vezes adulterada peia imaginação ardente e enthusiastica de alguns viajantes, ou pela exageração de outros, que julgão assim, tornar mais interessante a descripção viciada de suas viagens.

Emquanto não podemos visitar Alexandria ouçamos o que nos relata um nosso companheiro de viagem, perfeito gentleman, ainda que algum tanto severo nas suas apreciações extra-britannicas.

Viajando para empregar o seo tempo, como elle nos declarou, e para não se deixar vencer pelo spleen nacional, o nosso amigo viaja só, apenas fazendo-se accompanhar de um boule-dogg, de uma pequena mala, e com suas cartas de credito. É o typo do inglez amavel e pouco se occupando dos accidentes que tornão uma viagem difficil e custosa.

Com o seo dinheiro tudo vence, com o seo cão conversa, e com seus olhos tudo observa, sómente para si; e, se tivemos a felicidade de colher de suas interessantes informações, alguma utilidade para nossos projectos, devemos a um serviço que lhe prestamos, quando suspenso sobre as vagas, apenas sustendo-se com as mãos na extremidade de um cabo, em consequencia de se ter quebrado a escada de bordo, fomos a seo auxilio, ajudando o a sahir de uma situação bastante incommoda.

Desde então o nosso companheiro tornou-se amigo e com prazer acceitamos a sua amavel sociedade.

Segundo elle, o viajante no Egypto não póde dispensar o cicerone e ainda que estes parasitas ali existão em grande numero, é difficil encontrar quem preencha conscienciosamente os deveres de sua profissão. Em geral elles occupão-se em mostrar as insignificancias vulgares, quando são seos serviços retribuidos diariamente; preferem tratar por empreitada, isto é: por uma convencionada somma servem do guia aos viajantes nas visitas ás principaes curiosidades do Egypto; então, póde-se contar com a sua actividade, intelligencia e mesmo honestidade, acontecendo muitas vezes debaterem com os mercadores, os preços de certos objectos que os viajantes desejão a posse como lembranças de suas excursões.

Chegamos no dia seguinte á Port-Said, pequena povoação situada na entrada e sobre uma das margens do canal. Apenas o Ava fundeou, desembarcamos em busca da agencia do correio, para remetter nossa correspondência para o Brazil e Pariz. A primeira impressão que tivemos do Port-Said foi pessima, e, na verdade, nada se encontra digno de menção nas suas ruas immundas e nas edificações sem importancia, sem originalidade e occupadas, em geral, pelas casas de jogo e pelos mercadores.

O jogo é a peste que mais aflige as populações do Egypto. Em todas estas casas, em numero de 6 ou 7, encontra-se também uma orchestra composta de algumas mulheres, na mór parte valachias, bellezas murchas pelos ares abrazadores do Egypto, e gastas pela vida dissipada da prostituta disfarçada. Emquanto ellas estropião as composições dos Strauss e de Offembach, ouve-se um acompanhamento sui generis; — o tinir das moedas de oiro, lançadas continuadamente pelos jogadores sobre o tapis vert que rodea a roleta.

A scena da sala immediata á da orchestra não deixa de ser curiosa, ainda que ao mesmo tempo repugnante.

No centro, uma extensa mesa, no meio da qual se acha o objectivo de todas as vistas: a celebrada roleta, emigrada de Baden-Baden e que em breve, também será banida de Monaco. Aos lados da roda, sobre um panno verde, se vê pintado alguns quadrados, tendo cada um em seo centro um certo numero em algarismos bem visiveis. Proximo ao banqueiro ou operador uma salva cheia de moedas de oiro de diversas effigies, fascina os olhos dos parvos que, de pé, em volta da mesa, uns pallidos, os que perdem, outros com as faces escarlates, os que ganhão, alguns silenciosos, os professionaes e compadres do banqueiro, finalmente outros, monossyllabando, as victimas necessarias e contribuintes indirectos do imposto sobre o jogo; lanção todos, moedas de oiro e de prata sobre os quadrados numerados com os algarismos pelos quaes apostão.

Então o operador, vendo a colheita annunciar-se gorda, lança habilmente uma bola de vidro sobre o disco da roleta, a qual começa circular com rapidez até que perdendo progressivamente a força inicial diminue de velocidade e começa a saltar as pequenas divisões que separão as casas numeradas. É este o momento supremo: todos os olhares se fixão sobre a bóla e quando esta pára sobre um numero, ouvem-se exclamações de admiração da bocca de uns e de raiva na de outros; o banqueiro arrecada, sem mudar de lugar, e com o auxilio de um instrumento, muito parecido ao que os jogadores de bilhar chamão rabeca, as moedas que se achão sobre os dois lados da mesa, emquanto um ajudante da espelunca empurra com outra rabeca uma quantia igual a vinte e quatro vezes a que se achava no quadrado marcado com o numero feliz.

Tudo isto se passa em menos de dois minutos para recomeçar de novo e sem interrupção durante todos os dias até as altas horas da noute.

Disserão-nos que em Port-Saïd perdem os estrangeiros milhares de libras annualmente, e especialmente, as tripulações dos navios do guerra russos e americanos concorrem com a maior somma; sendo, estas casas de vicio fiscalisadas por agentes do Vice-Rei que percebem uma porcentagem sobre os beneficios realisados. Não raras vezes tem acontecido serem assassinados e roubados os jogadores felizes, quando pernoitão na povoação, ou dirigem-se ao caes para recolherem-se a bordo dos navios.

A população de Port-Saïd compõe-se de individuos de todas as nacionalidades; d’esde o Arabe de tez bronzeada até o Yankee dos Estados-Unidos da América.

Da diversidade de costumes d’estes indivíduos não se podia esperar uma população laboriosa e honesta; e, segundo as informações que colhemos, a população não excede de dois mil habitantes residentes, dos quaes, uma quarta parte consiste em trabalhadores do canal, a metade de arabes e de egypcios, mercadores de ambos os sexos; uma oitava parte de foragidos da Turquia, Valachia, Roumania e de outros paizes, que ahi encontrão a impunidade dos delictos mais ou menos graves que commetterão em seus paizes; finalmente, a ultima parte compõe-se de musicos ambulantes, artistas comicos e de outros officios, e agentes da policia egypcia.

No dia seguinte ao da nossa chegada á Port-Said, o commandante do Ava recebeu aviso de que podia seguir visto o canal achar-se livre; e, sob a direcção dos praticos da companhia, o paquete deitando cinco milhas por hora, começou percorrer a linha divisoria da Africa e da Asia.


CAPITULO III

 
O actual canal de Suez. — O canal dos antigos. — Opinião de Herodoto, de Strabão e de Sohems-Eddin. — O projecto de Lepère. — O «Ava» no canal. — Chegada a Suez — Os habitantes das cidades egypcias, seos usos e costumes. — As alméas. — O Cairo. — A circumsição dos meninos. — A cosinha dos egypcios. — Barbeiros com triplices funções. — O camello do deserto. — Um convite officioso.
 


O PROJECTO de construcção do canal de Suez, habilmente executado pelo Sr. Ferdinand de Lesseps, seria talvez o primeiro assim concebido, porém, já nos tempos dos Pharaós se fizerão tentativas, por diversas vezes, para resolver-se o grande problema da reunião do mar Vermelho ao Mediterraneo; para cuja execução faltavão então os grandes engenhos de que a sciencia moderna hoje dispõe.

É, fóra de duvida, que já em epochas mui remotas, as aguas do Nilo communicarão com as do mar Vermelho.

Segundo a tradição grega, deve ser attribuido á Sesostris a iniciativa dos primeiros trabalhos effectuados para canalisação do isthmo; Herodoto entretanto, attribue a Necos, filho de Psammetico, o qual, depois de grandes trabalhos consultara aos oraculos, que o dissuadirão de seo projecto; que foi executado completamente por Dario, depois de ter sido o Egypto conquistado pelos Persas.

«O comprimento do canal, diz Herodoto, é de quatro dias de navegação, e sua largura é sufficiente para que duas chalupas de tres remos possão facilmente navegar uma ao lado da outra. A agua que o enche corre do Nilo entra um pouco antes de Bubastis, e despeja-se no mar Érythréa (mar Vermelho), perto de Patumos, cidade da Arabia. Começando na planicie, o canal dirige-se do occidente para o oriente, e em seguida, passando pelas aberturas das montanhas, dirige-se para o sul, no golfo da Arabia.»

Strabão, descreve com a maxima minudencia a disposição do canal; e este historiador attribue sua execução a Sesostris, que iniciou e realisou a gigantesca obra antes da guerra de Troya, porém, abandonada posteriormente, elle ficou completamente obstruido até que, de novo, Dario ordenou sua abertura, com o fim de conserval-o, tendo também afinal abandonado a empresa «julgando, sem razão, ser o mar Vermelho mais elevado do que o Egypto.»

Em outro lugar diz Strabão: «o canal se lança no mar Vermelho, em Arsinoé (hoje Suez), que outros chamão Cleopatris, e corre em lagos cujas aguas erão amargas, e tornarão-se doces pela communicação com o rio.

«A origem do canal é na aldêa de Phacusa, perto de Philon, na ponta do Delta, a oéste de Bubastis

A opinião de Herodoto parece ter prevalecido; e o facto de ter este historiador viajado pelo Egypto, alguns annos depois da morte de Dario, torna verosimil o que elle nos conta sobre a existencia do canal, mesmo porque, nos nossos tempos, encontrou-se um monumento notavel sobre a margem occidental da bacia dos lagos Amargos que parece ter sido levantado em commemoração a conclusão dos trabalhos do canal.

Antes da construcção do nosso seculo encontrou-se em alguns pontos vestigios de um canal que ia terminar no lago de Mensaleh.

Os historiadores arabes estão todos de accôrdo quanto á reabertura do canal de communicação do Mediterraneo com o mar Vermelho pelo Nilo, e todos attribuem a execução d'este trabalho a Amrouben-Asr que conquistou o Egypto no anno 639 de nossa éra; e acrescentão, que durante cento e vinte e cinco annos, elle foi navegado até que, sob o reinado do califa Abou-Jafar-al-Mansour, foi de novo aterrado por sua ordem.

Eis o que a este respeito diz o historiador Schems Eddin:

«O canal chegava até a cidade de Kobzoum passando perto de Suez, e as aguas do Nilo se despejavão n’este lugar no mar salgado. Os navios carregados de cereaes descião por elle até o golfo Arabico. Omar mandou limpar e abrir este canal que desde esta epocha tomou o nome de canal do Principe dos Fieis. [2] Durante cento e cincoenta annos, até o reinado do califa Abou-Jafar-al-Mansour (no anno 159 da hegira) o canal foi sempre navegavel, porém, este chefe mandou entupir a embocadura do Kolzoum.»

Um outro historiador, Makrisi, é mais explicito na sua narração. «O canal, diz elle, está situado fora da cidade de Fostat e ao occidente do Cairo. Foi cavado por um antigo rei do Egypto a pedido de Khadjar (Agar), mãe de Ismael, quando ella habitava Mecca; com o correr do tempo ficou obstruido, porém foi de novo cavado por ordem dos reis gregos que reinarão no Egypto depois da morte de Alexandre.» Quando o Altíssimo concedeu o islamismo aos homens e que Amrou-ben-el-Asr conquistou o Egypto, por ordem de Omar, Principe dos Fieis, procedeu-se a novos trabalhos no anno da mortalidade. Este general o levou até o mar de Kolzoum, d’onde os navios partião para o Hedjaz, o Yémen e a India. Por elle navegou-se até a epocha em que Mohammed-ben-Abi-Thalob se revoltou na cidade do Propheta (Medina) contra Abou-Jafar-al-Mansour, então califa de Irak.» Este soberano escreveu ao seu tenente-general do Egypto ordenando-lhe entupir o canal de Kolzoum para que os revoltosos não podessem conduzir provisões á Medina. Esta ordem foi executada e toda communicação interrompida com o mar de Kolzoum. As cousas assim permanecerão, no mesmo estado em que hoje as vemos. (839 da hegira, 1435 da éra christã).»

Na verdade, Napoleão Bonaparte o encontrou quasi completamente obstruido, quando foi ao Egypto; e logo após sua chegada, elle encarregou a uma commissão de engenheiros o estudo de um projecto que permitisse a communicação dos dois mares.

Foi o sabio Lepère, o relator da commissão; e na sua memoria que entregou a Bonaparte, apresenta e discute as vantagens do traçado, que partindo de Suez passasse pelo Cairo e em seguida em Alexandria: attentas as considerações commerciaes do Egypto.

Alguns historiadores mal informados, affirmão que Lepère considerava como inexequivel o traçado directo, entretanto, nenhum outro antes d’elle, concebeo com mais facilidade a possibilidade de tão importante obra; se elle deo preferencia ao traçado antigo foi attendendo as considerações econômicas e aos interesses do Egypto. [3]

Desde esta epocha grande numero de memórias e projectos forão apresentados ao Vice-Rei; coube, porém, ao Sr. Ferd. de Lesseps, engenheiro e diplomata da França, a gloria do executar uma das mais uteis e importantes obras do nosso seculo.

Na concessão outhorgada pelo Vice-Rei ao Sr. Lesseps estava prescripta a condição essencial de serem, os accionistas da companhia, subditos ou cidadãos dos differentes paizes civilisados, de modo que este grande melhoramento, que facilitava a navegação do Oriente, fosse realisado pelo concurso de todos os interessados; e assim, garantida a livre navegação do canal, mediante uma retribuição pecuniaria.

Apezar dos obstaculos que a egoista politica ingleza oppunha á execução de tão reclamante necessidade, sem duvida receiando, pela approximação das distancias, a concurrencia das outras marinhas mercantes; soube o Sr. de Lesseps refutar todas as objecções que notaveis engenheiros inglezes apresentavão as bases do seo projecto; — a que deo inteira execução.

Franqueada á todas as bandeiras, a inauguração do canal de Suez marca uma data nova para a navegação com o Oriente. Outr’ora, a navegação para os paizes da Asia era difficil e muito mais longa. Assim, a navegação de Marselha a Hong-Kong pelo canal, apresenta uma differença para menos, de tres mil léguas do que pelo Atlantico, passando pelo cabo da Boa Esperança; e comprehende-se, as vantagens que resultão da economia de tempo e de dinheiro para as praças commerciaes da Europa.

O comprimento do actual canal é approximadamente de trinta leguas; a sua largura é inferior em alguns pontos a do nosso Parahyba, porém permitte a passagem de um grande navio das maiores dimensões.

O Ava seguia serenamente pelo canal, apenas a fraca aragem, vinda dos areiaes da Arabia, lançava sobre a tolda uma fina areia que incommodava-nos algum tanto. Já tinhamos vencido os trinta primeiros kilometros, quando o pratico que guiava nosso navio, tendo observado que os signaes, collocados em toda a extensão do canal, ordenava de acostar o navio, executou a manobra, e alguns minutos depois, um grande paquete inglez da linha da China passava na distancia apenas de alguns metros do estibordo do Ava.

A vista desses immensos areiaes sem vegetação nem vestigios de vida, impressiona profundamente o viajante habituado ao continuo jogo das manifestações da natureza.

De todos os lados a mudez do deserto, nem mesmo se vêm as palmeiras que em outros lugares se encontrão, e que fornecem ao viajante sequioso, uma agua limpida e fresca.

N’estas planuras arenosas, o homem concentra todos os seus pensamentos; parece-lhe que a obra da creação não foi completa, que os germens não bastarão para todos os pontos da terra: elle é forçosamente compellido, pelo influxo poderoso da verdade, a admittir um principio creador, absoluto, e que precedeu o Universo, ainda que sua essencia escape a sua analyse.

O que porém, é incontestável, e fica demonstrado pelos trabalhos geologicos e archeologicos effectuados, é que este immenso deserto serviu, nos tempos primitivos, de leito ás aguas do Oceano.

A natureza das grandes bacias que ahi se encontrão, e a existência dos lagos amargos, são provas evidentes d’esta opinião, hoje geralmente acceita. Durante os trabalhos do canal encontrarão-se despojos do Oceano, cuja origem relativamente recente, nos ensina que esta epocha foi contemporânea á da existência do homem.

A unica vegetação que vê-se nas margens do canal, consiste em pequenas tamareiras de quatro a cinco palmos de altura.

Ao anoitecer o Ava acostou a margem do canal e ahi passamos uma pessima noite, perseguidos constantemente pelos mosquitos que necessariamente se reproduzem com extraordinaria facilidade em rasão das aguas estagnadas que se encontra mui proximas a estas margens.

No dia seguinte, as 5 horas da manhã, o Ava continuou viagem, chegando á tarde d’este mesmo dia á Suez.

O panorama de Suez é relativamente grandioso para quem acaba de navegar pelo canal; e o silvo da locomotiva que parte para o Cairo, causa-nos a mesma sensação que experimenta o nosso patriotismo quando acordado por uma boa medida administrativa. É que na aridez da descrença, ha momentos em que confiamos na impetuosidade do progresso, em sua marcha civilisadora, pela communhão de idéas.

Suez, em outros tempos conhecida pelo nome de Arsinöe, Cléopatrida e finalmente, denominada Soueys pelos Arabes, é o primeiro porto no fundo do mar Vermelho. Sua importância como cidade commercial foi em outros tempos grande, hoje, porém, só os artigos asiaticos, destinados ao consumo egypcio são descarregados no seu porto dos navios mercantes, que assim deixão de pagar a contribuição para passar o canal. Os productos de importação são dirigidos pela estrada de ferro ao Cairo e em seguida á Alexandria.

A população de Suez não excede hoje, de quinze mil habitantes, entretanto com a facil communicação com a capital, esta cidade está em via de prosperidade, já pelo seu importante commercio, já pelo augmento da producção do café arabe, cultura que n’este ultimo tempo lhe tem merecido muita attenção. Os edificios, quer publicos ou particulares, são de pesado aspecto e rustica architectura, apenas um ou outro, habitado por algum europeu, apresenta em suas feições características o typo ligeiro e gracioso dos chalets da Suissa.

Nas cidades do Egypto nota-se uma variedade de typos, dos diversos povos que o habitão ou ahi vêm negociar. Entre outros, assignala-se o filho da Syria pelo seu chapéo nacional pintado de côr preta ou branca com riscas cinzentas; os Arabes do Sinai, miseravelmente trajados com immundos andrajos; os Persas, em cujas cabeças se elevão enormes chapeos de astracan; os negros do Sennaar, os Fellahs, e finalmente, os Turcos, entalados em suas vestes officiaes e de caracter europeu.

As mulheres egypcias vestem-se com elegancia e algumas com ostentoso luxo. A sua camisa é mais ampla que a dos homens, porém um pouco mais curta; uma muito larga calça de estofo de seda de variegadas cores é atada com cordões em roda da cintura e debaixo da camisa.

As grandes damas ricas vestem sobre a camisa o Yelek, veste longa e justa ao corpo, que se abotoa na sua parte anterior, correspondente á que se estende do collo a cintura. O penteado é original e de bom gosto. As madeixas são enroladas em véos de crepe ou de mosseline que formão varias voltas em roda da cabeça apresentando o aspecto de um turbante.

Na volta, assistimos ás tradicionaes danças e ouvimos os cantos das alméas, que são os espectaculos mais procurados pela sociedade egypcia, e consistem em reproduzir com naturalidade as gradações dos sentimentos do amor.

As alméas vestem-se como as outras mulheres egypcias; apenas ornão o collo, a cintura e os cabellos com apparatosas e ricas joias. Suas palpebras são contornadas de negro para dar maior vivacidade aos olhos, a palma das mãos e as orelhas são pintadas com carmim, segundo a usança das mulheres egypcias.

Quando ellas dão começo ao bailado, a expressão dos seus olhos é terno e de doce amor; os requebros do seu corpo são lentos e parecem dominados por preguiçosa volupia; progressivamente ellas exprimem a embriaguez do amor, agitando com frenesi seus membros, volvendo os negros olhos em suas profundas orbitas, como que querendo, voluntariamente, eliminar a faculdade de ver, e concentrar toda a energia de seu ser no gozo de sensuaes deleites.

Uma das figuras mais difficeis do bailado das alméas, para produzir o desejado effeito, consiste na graça e destreza com que ellas envolvem e desenrolão, com um largo véo, seu corpo e de modo a desenhar-lhes os contornos.

Uma orchestra sui generis dirige o bailado em suas differentes phases, e para ajuntar mais alguma harmonia aos originaes acordes dos instrumentos, as alméas quando danção fazem soar castanhetas ou cymbalos.

Os saltimbancos e prestigiadores abundão nas cidades egypcias. Em quasi todas as ruas e praças, encontrão-se ajuntamentos de individuos de ambos os sexos, que assistem com jovialidade a espectaculos deste genero, em que, além dos especuladores, figurão macacos, ursos, serpentes e outros animaes indigenas.

De passagem pelo Cairo assistimos a uma festa interessante pela sua origem. Era uma procissão em commemoração á hygienica operação da circumcisão dos meninos.

Um grande numero de indivíduos accompanhão ao protogonista d’este espectáculo, que contando apenas cinco ou seis annos é mais comparsa do que actor d’este verdadeiro melodrama.

Não é que sejamos contrários a esta antiga usança, mas a ostentação com que revestem a circumcisão, nos parece fóra de proposito e attentatoria á moralidade de uma religião e mesmo dos costumes de qualquer sociedade.

Esta procissão desfila pelas principaes ruas da cidade na seguinte ordem:

Na frente, montado em brioso cavallo, rompe a marcha o circumciso, vestido com roupagens variegadas, e de um valor proporcional á fortuna de seos paes.

Sobre sua cabeça vê-se um turbante de kachimire vermelha, e seos membros são envolvidos em ricos estofos, cortados em amplas e ondulantes fórmas. Seguem-se os músicos em numero de quatro ou cinco, soprando em cornetins e rufando nos tambores, lembrando assim, aos habitantes da cidade, o cumprimento da antiga e preciosa operação imposta pela religião judaica.

Fechava a marcha o util barbeiro, encarregado da operação, as almeas, sempre presentes á todas as festas, e grande numero de mulheres das diversas, condições sociaes.

A etiqueta das mesas egypcias é digna de nota. O chefe de rica familia preside as refeições diarias, tendo a seos lados suas mulheres e filhos, emquanto que as familias menos favorecidas pela fortuna, vivem com frugalidade, e seos membros apenas se reunem na ceia, que é a principal refeição dos egypcios.

A cosinha d’este povo não é das mais despresiveis aos nossos gostos. Consiste em geral de carne de vacca ou carneiro cortada em pequeninos pedaços e ensopados conjunctamente com largas rodellas de cebola e legumes.

Além d’este prato nacional vê-se em suas mesas panelladas de feijão, favas, pepinos, beringellas, preparados com um molho apimentado e adubado com outras especiarias.

O vinho, muito parece-se com o nosso jurupiga de S. Paulo, em cuja preparação apenas empregão uvas, assucar e agua.

Na mesa, ao lado de cada conviva, sempro vê-se tijellas de louça cheias deste liquido a que dão o nome de khoushaf e no qual, muitos deitão algumas gottas de essencia de rosas.

Na mesa dos proletarios, a melancia substitue ao khoushaf, que, pelo seo preço relativamente elevado, não é accessivel á todas as bolsas.

A profissão de barbeiro é muito considerada n’este paiz, pois os fazedores do barbas também accumulão as funcções do medico e do cirurgião.

Suas lojas são muito frequentadas e servem de ponto de reunião aos passeadores, que aproveitão os momentos de ocio para com toda commodidade se fazerem barbear e cortar as unhas das mãos.

Estas lojas apresentão em o seu exterior agradavel e interessante aspecto. As janellas são collocadas entre columnas e enlaçadas nas trabalhosas arcadas de muitas voltas e esculpidas com certa pretenção artistica.

Á entrada d’estes estabelecimentos encontrão-se commodos divans estufados, onde os freguezes preguiçosamente reclinados esperão cada um por sua vez serem servidos.

A pericia dos barbeiros egypcios é sorprehendente; elles barbeão ao mais cabelludo barbaço apenas em alguns instantes, a navalha passa tão rapida sobre a cutis da face que o mais exigente freguez reconhece logo, a superioridade do barbeiro egypcio sobre os nossos. Uma das suas principaes qualidades consiste em arranjar a barba de cada pessoa conforme sua idade, talhe e profissão.

Como medicos os barbeiros d’este paiz receitão ou antes ordenão certos preparados, cuja composição só elles conhecem. Entre outros productos que preparão, é de grande uso uma celebre pomada depilatoria, que tem a propriedade de fazer cahir os pellos logo após a applicação e sem causar dôr nem lesão.

Segundo nos communicou um negociante francez do Cairo, todos os individuos fazem uso d'esta pomada em cuja composição entra a cal viva e o oxydo de arsenico.

No Egypto não se encontrão carros de aluguel para o serviço dos passageiros, o camello substitue os carros de praça e os cavallos de montaria, sendo também, e com especialidade, utilisado para o transporte de cargas.

Este precioso animal, uma vez amestrado, leva vantagem ao cavallo para as longas viagens nos desertos.

O camello facilmente se acostuma, ás fadigas e ás privações de viagem, nos desertos arenosos onde, muitas vezes, o proprio viajante é sequioso e faminto, e obrigado a sujeitar-se a pequenas rações.

Apezar de ter o seu dorso tortuoso, e sua marcha ser pesada e brusca, o camello, quando bem sellado, é tão commodo como o cavallo ou outro animal de sella. São geralmente os Saïs que exercem no Egypto a profissão de camelleiro.

Na ida para o Oriente apenas tivemos em Suez, a demora necessária para o Ava receber combustível, e como este serviço se faz com morosidade n'este porto, podemos passar algumas horas em terra, entretanto, este tempo não foi sufficiente para examinar a cidade, estudar os costumes e os usos dos seus habitantes e formularmos qualquer juiso a respeito; o que fizemos quando de volta do Oriente descemos em Suez e visitamos o Cairo.

O Egypto é sem nenhuma duvida um paiz muito interessante para o viajante que dispõe de tempo; e se Roma ostenta innumeras antiguidades que recorda-nos a todo momento o poder do antigo povo-rei, as virtudes austeras da republica e os costumes libertinos do imperio; o Egypto, com seus obeliscos e suas pyramides, impõe-nos respeito e admiração, pela grandeza dos seus monumentos, que parecem confundir as pretenções das modernas Nações, pela sua ostentação, força e duração.

Hoje, o Cairo, bem como Alexandria, é habitado por grande numero de europeos, e diariamente, esta interessante cidade recebe a visita de muitos estrangeiros. A sua proximidade dos portos do Mediterraneo, com os quaes se communica varias vezes por semana, por meio de muitos paquetes, facilita esta verdadeira excursão á quem se achar na Europa, e, assim, é imperdoável aos toristas que desprezão esta viagem, a falta de gosto para as ruinas do mundo antigo.

 
ADEN
 

Lith, Imperial A. Speltz

JOVEN CRIADO DE ADEN
 

CAPITULO IV

 
Viagem pelo Mar Vermelho. — Chegada a Aden.— Sua população. — Os nadadores arabes. — Uma regata original. — A cidade arabe.— Um povo patriarchal. —As cysternas de Aden. — O fado de Aden. — Ponta de Galles. — A Ilha de Ceylão.— O Jardim das caneleiras.— O templo de Budha. — Os Portuguezes, os Hespanhoes e os Inglezes em Ceylão. — O budhismo da India. — A origem de Budha IV. — A chiromancia em Ceylão. — Entrevista com um astronomo indiano.
 


L ogo que o Ava sahio de Suez o calor tornou-se insupportavel, um vento apenas apreciável e soprando no mesmo sentido que o navio caminhava, longe de mitigar o ardor, trazia-nos mais calor das planuras dos desertos.

Exhaustos de força, quasi suffocados, passamos quatro dias de penas immerecidas; durante o dia, passavamos a agitar com um leque o ar que rodeava nossa face, e de noite, verdadeiramente prostrados, sentiamos algum allivio ao contacto da humidade que, em densa nevôa, se mostra durante certa épocha do anno sobre as aguas do mar Vermelho.

Não raras vezes, tem-se dado casos de morte a bordo dos navios, durante a passagem do mar Vermelho. São, em geral, as apoplexias fulminantes que determinão a morte, e ainda, na nossa volta, fallecêrão a bordo duas pessoas victimas do calor e da humidade que torna quasi impossivel a vida n'essas paragens.

No fim de quatro dias incompletos de viagem, chegamos a Aden, possessão ingleza situada na entrada do mar Vermelho.

O aspecto d'este paiz é triste; para todos os lados que a vista se volve, estendem-se aridas planícies, onde avultão penedias ennegrecidas pela acção do tempo, e sobre suas lombadas vêm-se largas selladas, sómente accessiveis aos animaes montezes.

No alto de uma collina que rodea o porto de Aden, eleva-se graciosamente um edificio de bello aspecto que serve de residência ao governador da possessão. É esta a unica habitação que nos lembra a architectura europêa; as outras, são verdadeiras choças, cobertas de esteiras, e sem offerecer nenhum conchêgo aos estrangeiros; comtudo, na extremidade da cidade, ou antes em uma pequena povoação, distante de dous kilometros do ancoradouro, encontrão-se algumas lojas ou armazens de venda e um largo edificio construido em columnas e arcadarias, que serve de hospedaria aos officiaes do destacamento inglez.

A população de Aden, compõe-se de negros arabes e de alguns judeos egypcios ou armenios que se empregão nos trabalhos dos navios, e em negociar toda a sorte de objectos e especialmente bellas plumas de abestruz; o que constitue o principal commercio de Aden.

Alguns typos da raça negra, que ahi se vêm, são assaz interessantes, e alguns d'estes indivíduos possuem feições delicadas e expressivas. Muitos, avermelhão seus compridos cabellos, formando cachos, fazendo uso continuo de cal viva, outros, penteão-se á moda das jovens europeas e empregão pentes que retêm os cabellos sobre os parietaes.

Alguns d'estes indigenas deixarão-se photographar mediante alguns shellings que lhes offerecemos.

De boa indole, elles são aptos para certas profissões e com facilidade, aprendem o que se lhes ensina sem que seja necessário o emprego da violencia ou dos castigos.

Entretanto, com o systema colonial da Inglaterra, estes homens, susceptiveis de civilisação e aperfeiçoamento moral, vivem na maior indolencia e liberdade, sem eira nem beira, como diz um velho adagio, á expensas dos europeus ahi residentes ou dos passageiros em transito por Aden.

Apenas o Ava ancorou n’este porto, pequeninas canôas occupadas por um ou dous negros, ainda adolescentes, o rodearão, e os negrinhos arabes, gritavão aos passageiros, em estropeado francez ou inglez, pedindo-lhes que atirassem á agua moedas de prata que irião buscar ao fundo do mar.

Completamente nús, estes amphibios mergulhão com a maior destreza, e durante um ou dous minutos, procurão no fundo do mar o objecto dos seus desejos; é sobretudo, quando a moeda é alguma piastra ou peça de cinco francos, que torna se interessante o combate travado entre os nadadores. Elles mergulhão ao mesmo tempo, seguem a mesma direcção, e depois de se debaterem sobre a arêa, um volta victorioso á superficie d’agua com a moeda preza entre os dentes. Durante este tempo, as canôas impellidas umas contra as outras são emborcadas ou enchem-se d’agua, porém, apenas finda a luta, vencedores e vencidos ajudão-se mutuamente, esgotão a agua que enchem as canôas ou endireitão as que se achão voltadas com a abertura para baixo.

Outras vezes, a troco de um shelling, elles mergulhão e atravessão, sob a agua, a quilha do navio, surgindo no lado opposto ao da partida. O mais interessante é ver com que actividade e destreza elles lutão entre si, para ganharem o premio promettido, por alguns passageiros, ao que mais velozmente percorresse a nado a distancia que separava o Ava de uma boia que via-se a trezentos e alguns metros do navio.

Á regata que assistimos na nossa ida, tomarão parte seis dos mais ageitados nadadores; a partida effectuou-se no logar onde se achava uma boia; e ganharia o premio, que consistia em duas libras sterlinas, o primeiro que tocasse com a mão no bojo do Ava.

Dado o signal, a luta começou com ardor e esforço; os nadadores formavão, instantes depois, dois grupos; no primeiro, contava-se quatro, e no segundo, já distanciado de mais de dez metros, vião-se dous que parecião estar fóra da luta, entretanto, apenas faltava a quarta parte da distancia a vencer quando estes dous ultimos alcançavão seus companheiros e facilmente se adiantavão. Durante alguns instantes a victoria pareceu indecisa entre os dous que, mais intelligentes, souberão poupar no principio seus esforços; finalmente, um era vencedor, attingia a meta marcada, porém esquecia-se de tocar no bojo do Ava, o que com espirito, o outro fez, reclamando o premio promettido.

Legitimamente as duas libras lhes erão devidas, porém como o vencedor foi o primeiro a reconhecer o direito do seu competidor, a equidade mandava que os passageiros do Ava premiassem a ambos, e, com effeito, cada um recebeo duas libras sterlinas.

Parece que tal somma fez a riqueza de alguns dias d’estes dous entes, e tal foi o seu contentamento e alegria que algumas horas depois só se fallava no povoado de Aden sobre esta regata de homens.

Pelo meio do dia descemos a terra e seguimos sem demora para a villa arabe onde chegamos no fim de meia hora de incommoda viagem.

É singular a perfeita harmonia que apresentam essas toscas construcções de madeira que não deixam de produzir um aspecto interessante pela sua originalidade. A sua população não excede de vinte mil almas, suas ruas bem que direitas são estreitas e immundas; as habitações que as limitão são acanhadas, e, em geral, compõem-se de dous ou tres compartimentos muito apoucados para seus habitantes.

As familias dos negros arabes vivem quasi que em commum nas suas cidades, e varias vezes no anno reunem-se em grupos para elegerem os juizes que dicidem das querellas e julgam os criminosos.

Os accusados, quando condemnados, são entregues ao governador inglez que toma conhecimento do crime e os sujeitão a um tribunal regular, quando o delicto é de gravidade; nas simples transgressões de lei as penas mais usadas são: as multas, a expulsão das povoações e a prisão com trabalho.

Em frente á cidade arabe, á uns quinhentos metros de sua entrada, sóbe-se a encosta de um outeiro, em cujas fraldas forão construidas as cysternas de Aden, abertas a polvora e a picão em dura rocha, e onde a população vai buscar a agua necessaria aos diversos misteres da vida.

Estes importantes reservatorios d’agua da chuva, prestão relevantes serviços aos habitantes deste paiz, constantemente flagellado pela secca, e que por isso, ainda, ha poucos annos, era inhabitado.

Quando visitamos estas gigantescas obras, havia já decorrido um anno, que nem uma gota d’agua da chuva molhara o sólo de Aden, entretanto, as quatro vastas cysternas ainda continhão centenares de metros cubicos do liquido indispensavel à vida.

Em roda dos depositos, vêm-se lindos arbustos com flôres odoriferas, pequenos taboleiros de horta e algumas graciosas palmeiras, cuja vista avivavão nossos sentidos e fazião vibrar até em nossos corações as fibras d’alma; aquelles, então entorpecidos, e estas frouxas, pelo ardor: da atmosphera que nos rodeava.

Neste lugar nos demoramos algum tempo até o descambar do sol, desfructando em atmosphera serena e refrescada pela verdura do jardim das cysternas as ultimas horas do dia.

Alguns instantes, depois de estarmos á bordo do Ava, ouvimos do lado de terra um surdo ruido de vozes, que por intervallos succedião aos sons agudos de instrumentos de musica. Soubemos sem demora, que aquelle dia era de festa em Aden, e que os habitantes indigenas, reunidos em grupos, davão começo as suas grotescas danças. Lembramo-nos immediatamente dos fados da nossa boa terra, danças a que tantas vezes assistimos nos terreiros das fazendas dos nossos lavradores; e, desejosos por conhecermos sua origem, voltamos á terra para presenciar estas festas.

Proximo ao caes de desembarque, individuos de ambos os sexos formavão grupos em frente de pequenas barracas que exhalavão o cheiro nauseabundo de azeite de peixe queimado. Ahi, vendião-se bolos de farinha e peixe e uma infusão d’erva-doce bastante alcoolica e muito estimada pelos naturaes.

Em certos grupos o riso estalava com a maior franquia entre os homens e mulheres; os primeiros, quasi nús, apenas cobertos, em roda da cintura, por simples tangas, e estas vestidas com curtos saiotes, conservando quasi nús os seos roliços braços e elevados seios, ora envoltos em mantas riscadas de vivas côres, ora completamente despidos deixando ver os luzidios atavios que lhes ornavão os braços, o pescoço e a cintura.

Em outros grupos, o enthusiasmo ou alegria era desordenada e pela influencia de bebidas alcoolicas as querellas se suscitavão sem interrupção entre homens e mulheres, por coisas de amor.

Assim, notamos, que as mulheres, n’estas disputas, tomavão sempre a parte offensiva, tornando-se necessario a intervenção dos assistentes e especialmente do policeman indiano para aquietar-lhes os animos tão dispostos a ira, quanto faceis a disciplina dos agentes da autoridade.

Em um dos grupos, quatro ou cinco musicos tocavão em instrumentos indigenas um acompanhamento ás cantigas dos fadistas. Apenas estes individuos nos virão, vierão offerecer suas photographias mediante dois shellings. Um delles, fallava o inglez e nesta lingua discorreo sobre suas danças e as bellas dançarinas, que são, muitas vezes procuradas pelos governadores e officiaes da guarnição ingleza, para dançarem em suas festas.

Entre outras dançarinas sobresahia uma, pelo bem desenhado contorno de seus membros e ostensivo vestuario. Esta robusta africana trajava curto saióte sobre largas calças, e na parte superior do seu corpo apparecia o peito de fina camiza, negligentemente aberto, e deixando ver custoso colar que em multiplices voltas rodeavão seos seios e pescoço.

Eis como os naturaes de Aden danção por occasião de suas festas o fado africano.

Á um signal os homens e mulheres formão dois grupos, e quando os musicos dão começo as melodiosas harmonias de que são capazes seus instrumentos; de cada grupo destaca-se um individuo fazendo mil tregeitos com o corpo, batendo palmas e cantando; então, a mulher, depois de parecer acceitar as momices que lhe faz seu par, recua fugindo-lhe com o corpo e afastando com ligeireza seu rosto aos labios do amante.

Um outro individuo embarga o passo ao infeliz pretendente, e, repetindo os mesmos movimentos, esforça-se em roubar o penhor tão desejado; e só quando as faces se encontrão fortuitamente ou por calculada intenção, é que outra meiguiceira fadista sahe ao encontro do seu par, repetindo-se as mesmas scenas; emquanto que os felizes amantes, com seus braços enleiados, e governados por sensual sentimento, vão as barracas beber o licôr indigeno de que já fallamos.

E se a dança que acabamos de descrever, não se parece em todos os pontos com o fado da nossa terra; é certo que este nada mais é do que a dança africana de Aden, mais degenerada, ainda que melhor acompanhada pelas sapateadas e o tinnido das esporas dos nossos jovens lavradores.

Recolhemo-nos a bordo já bastante tarde e no dia seguinte quando subimos a tolda, vimos o Ava rompendo as vagas alterosas do Pacifico.

A viagem de Aden á Ponta de Galles, na ilha de Ceylão, é muito insipida, e esta é a phase da viagem ao Oriente, a mais monotona, pois, durante sete dias, a vista se perde na immensidade do oceano sem repousar em objecto algum que a farte e a deleite. Entretanto, algumas horas antes de entrarmos no porto de Ponta de Galles começaram a desenhar-se a nossos olhos, as bellas costas de Ceylão que pelos seus coqueiros e palmeiras recordou-nos a patria.

Apenas á vista do porto, o Ava parou a espera do pratico que o devia conduzir entre os arrecifes que por entre os cimos das vagas apparecem, ouriçando-se do fundo do mar.

Alguns minutos depois, o pratico entrou a bordo, com o pé direito, o que contrariou os apostadores pelo pé esquerdo; e, emquanto se liquidavão as apostas cujo resultado dependia da maior ou menor aptidão de um dos pés do velho marinheiro em galgar o bordo, elle, depois de engulipar boa dóse de vinho, tomou a direcção do navio, e regularisando-lhe a marcha e sem desvial-o de um metro, o dirigio pelo centro do estreito canal praticado entre os arrecifes.

Lançada a ancora, podemos admirar o deslumbrante panorama que se desenrolava aos nossos olhos, e, ainda que já habituados as bellas paisagens que formão uma luxuriante vegetação no Brazil, quando illuminadas, pelos ardentes raios do brilhante sol; não podiamos comtudo, desdenhar o bello espectaculo desta natureza sempre prodiga em dispensar mil attractivos que encantão a vida.

Esses milhares de bellos coqueiros que adornão a entrada do porto de Ponta de Galles, as baixas palmeiras de um verde puro, que marginão toda a costa e rodeão elegantes construcções, em cujo meio, saliente, se vê a fortaleza ingleza; formavão em seu conjuncto, um contraste bem accentuado com o aspecto triste e desolador das regiões africanas que acabavamos de visitar.

Exteriormente, Ceylão nos interessou, e, animados pela sua bella vista, pensavamos nas surprezas que em terra nos esperavão; por isso, sem perda de tempo, embarcamo-nos no primeiro escaler que partio de bordo com as malas, graças ao convite obsequioso do agente do correio.

Apenas o pé em terra, corremos ao melhor hotel da cidade para tomarmos a primeira refeição do dia, porém, depois de alugarmos um carrinho, bastante ligeiro e geitoso para nos conduzir ao jardim das caneleiras e ao famoso templo do Budha, que ahi existe.

ADEN
 

Lith, Imperial A. Speltz

MUSICOS DE ADEN

Emquanto comiamos, um cicerone apresentava-nos, em inglez, o seu programma do modo a utilisar do melhor modo o tempo de demora do Ava n'este porto, o que não excederia de quarenta e oito horas; e depois de verificarmos o que havia de verdade nas palavras do officioso cicerone, tomamol-o ao nosso serviço mediante uma gratificação.

Ás dez horas da manhã partimos em carro na direcção Sul da cidade para o lado das fortificações, antigas muralhas levantadas pelos legendarios portuguezes, para defeza da cidade, e cuja posse seus filhos não souberão, ou antes, não puderão conservar, o que foi proveito para os fins coloniaes da Inglaterra n'esta ilha.

Fizemos caminho durante uma hora por entre elevados coqueiros e outras arvores de agradavel aspecto até o bello jardim das caneleiras. Acha-se elle situado sobre a borda do mar e estende-se em uma varzea de mais do quatro kilometros.

Na entrada do parque, elevão-se altos coqueiros sustentando seus fructos, e viçosas bananeiras com suas largas folhas verdes; além, vêm-se as pequenas palmeiras em forma de leque formando entre suas filas largos passeios cobertos de relva. No fim de uma extensa alea, começão as ruas das caneleiras cujo perfume activo faz esquecer que nossas vestes estão impregnadas do nauseabundo alcatrão de bordo. Em uma das extremidades do parque, encontra-se um verdadeiro jardim, cultivado com esmero, sobresahindo entre outras flôres, bellas camélias, grandes cravos, uma variedade de rosas cujos pés se elevão do centro das almofadas de amores perfeitos e de violetas, tudo artisticamente disposto. No centro do jardim, vimos um kiosque de estylo chinez onde um natural do paiz offereceu-nos refrescos e gulodices o que de bom grado aceitamos e retribuímos.

Encontrão-se dez especies do caneleiras na ilha, porém, a mais estimada, o corundú, como chamão os indígenas, é o Laurus cinnamomum, cujas folhas são mui parecidas com as da larangeira, a flôr é branca, cheirosa, e quando se tira a epiderme ou a segunda casca da arvore, a canella toma a fórma de tubos; e é assim que se exporta este producto de Ceylão.

A arvore do pão ou de fructa de pão existe em quantidade em toda ilha, e este fructo substitue até certo ponto o pão dos europeus.

Em Ponta de Galles apenas vimos alguns elephantes, porém pequenos e ainda novos, comtudo, é em Ceylão que se encontrão os mais intelligentes e de grande docilidade.

Quando estes animaes vivem em bandos de centenas são inoffensivos aos viajantes, porém, o perigo é encontrar um só elephante vivendo isolado, seja porque se desgarrasse do bando, ou por causa de ser numero impar, quer macho ou femea; então, o animal torna-se furioso, ataca e mata caravanas inteiras, derruba casas, arranca as arvores e chega até a penetrar nas cidades.

O elephante docil desempenha em Ceylão as funcções de executor da alta justiça, aprende e comprehende, com a maior facilidade, qual o genero de supplicio que lhe é ordenado executar.

Assim, se os condemnados devem ser torturados e executados, elles arrancão-lhes os braços, com a tromba, lanção-os ao ar e os recebem sobre suas presas onde morrem.

Do jardim de Ceylão, dirigimo-nos ao templo de Budha, situado a alguns kilometros da cidade sobre um outeiro que domina os arredores.

Ahi chegados, foi necessario que o nosso guia nos abandonasse por alguns intantes, para ir em busca do veneravel sacerdote de serviço, o qual, foi encontrado em uma casa de quitanda, especie de taverna, onde se vende bebidas espirituosas, fructas, e outros artigos com que os naturaes fazem sua cozinha.

É grotesca a capa côr de tijollos com que os sacerdotes de Budha se distinguem das outras classes da população. Reunindo ao mesmo tempo ao seu aspecto respeitavel, a gesticulação a mais comica, elles, approximando-se do templo, dirigem-se aos seus deoses mimicamente, pronunciando uma invocação em lingua indigena, ora sob tom de censura, ora sob o de humilde supplica.

O interior do templo é de um esplendor inteiramente pagão; ahi, vê-se sobre um altar a estatua de Budha, de enormes proporções, e apresentando o deos sentado sobre as pernas.

O dedo minimo das mãos de Budha é maior do que as coixas de um homem, e a sua cabeça terá mais ou menos sessenta centimetros de diametro. Sobre telas, pregadas ás paredes, notão-se tres deoses, aos quaes chamão Wichnou, Samen e Nata; o primeiro pintado em azul, o segundo em amarello e o ultimo em branco. Uma grande quantidade de flores ornavão o altar de Budha, e emquanto o padre invocava o deos, os indigenas que se achavão presentes, deitavão novas flores sobre o altar.

Os padres são, na maior parte, cingulezes, raça menos escura que a dos bedahs, menos selvagem que esta e vivendo em sociedade.

Os cingulezes são, geralmente de alta estatura, bem conformados e musculosos; e se conhece pela forma do rosto, que a raça malaia nelles predomina.

A população de Ceylão divide-se, como todos os povos da India, em varias castas ou classes. Nas castas superiores estão comprehendidos os reis, os homens de guerra e os padres; a classe mediana comprehende os mercadores, e, finalmente, a ultima casta, compõe-se dos homens de trabalho: os criados, os operarios, etc.; aos quaes é prohibido trazerem certas vestes e occuparem em seu serviço um seu igual.

As pessoas das classes superiores vestem-se mais ou menos do mesmo modo que os europeos, sempre trazem um chapéu de sol e muitas vezes um criado, que as acompanhão é encarregado deste trabalho.

Os negociantes da Ponta de Galles são intelligentes e muito interesseiros; muitos, occupão-se em negociar com os estrangeiros uma multidão de pedras preciosas como sejão: os rubis, saphiras, esmeraldas, amethistas, opalas e cornalinas, do que abundão os leitos dos rios e alguns terrenos de alluvião.

Vimos bellos pedaços de crystal de rocha de uma limpidez perfeita, e consta-nos que em Kandy existe uma estatua de Budha trabalhada em um monolitho desta substancia.

A moral do buddhismo é cumprida exactamente em Ceylão, e, segundo ella, o povo deve basear a sua devoção sobre principios essencialmente humanitarios; assim é, que a esmola e o amor do proximo é constantemente assumpto principal das predicas de seus sacerdotes, e tal é o respeito que merecem estes padres que nem os proprios reis ousão sentar-se em presença de um ministro de Budha.

Se acompanharmos entretanto, as praticas religiosas do buddhismo da Asia, em geral, veremos que estas doutrinas tendem ao materialismo, o que, em principio, parece estar em opposição com este ceremonial tão estrictamente observado.

As tradicções religiosas desta seita, são confusas e as doutrinas muitas vezes contradictorias. O buddista acredita na existencia de deoses naturaes, demonios e deoses-homens; segundo elles crêm, um homem póde, pela sua moral, tornar-se, deus, semi-deus, deos-demonio e mesmo animal irracional. A morte é apenas uma modificação de fórma, determina um novo modo de ser.

Depois da transformação da materia segue-se a crença sobre a pluralidade dos mundos que não tiverão começo nem terão fim.

Segundo os padres, quatro Budhas visitarão o mundo, e um quinto, nos seculos vindouros, substituirá a Gutama actual deos e Budha IV. A sua historia é muito interessante para deixarmos em silencio «Appareceu Gutama no leito da rainha Sadoden e foi visto alguns annos depois pelo rei de Kaladivella, que tendo observado o seu andar quiz examinal-o, e encontrando, sobre as plantas de seus pés, duzentos e dezaseis signaes chiromanticos, e sobre o corpo, trinta e dois signaes de belleza, annunciou a: rainha e ao povo que Gutama seria Budha. O filho da rainha cresceu rapidamente e sendo homem de caracter ardente e enthusiastico, entregou-se a cavalharia. Montado em brioso corsel dirigio-se ao rio Ganges, de um salto o atravessou, e depois de mil aventuras abdicou o throno de sua mãi; então, recebendo as vestes sacerdotaes, passou por todas as provas de penitencia que delle exigirão os outros padres; afinal, depois de vencer todos os demonios que o attrahião para as cousas mundanas, subio a um throno de diamantes da mais pura agua, e, ahi, contou o passado, analysou o presente, e predice o que aconteceria no futuro.

«Tendo a faculdade de multiplicar-se, de tomar todas as formas, de vencer os elementos, Budha apparecia a todos que o invocavam; muitas vezes elle invertia a ordem das cousas e transformava as nações segundo sua vontade.» «Quando morreu contava 86 annos e já a maior parte da Asia conhecia o seu poder e seguia sua doutrina.»

Vemos com clareza, por esta transcripção, que a classe sacerdotal do Budhismo tem em varias occasiões regulado as successões ao throno de diamantes e que é, necessariamente d’esta classe que sahem os Budhas; d’ahi explica-se o respeito que á ella tributão todas as classes dos povos aborigenes de Ceylão e a preponderancia dos padres, que são sempre ouvidos e consultados em qualquer deliberação relativa aos negocios publicos ou simplesmente de familia.

As habitações dos naturaes de Ceylão são construidas com taboas de madeira e bambús estreitamente ligadas com sipós ou cordas. No seo interior, apenas se notão duas ou tres camas toscamente feitas, algumas grossas esteiras, um pilão de madeira, que serve para despolpar o arroz, alguns pratos, e outros objectos de barro.

É muito curioso vêr-se um cingulez escrever em folhas de palmeira suas notas commerciaes ou mesmo qualquer outro trabalho. Empregão para esse fim um stylete ou qualquer ponta metallica que corta as fibras longitudinaes das folhas e deixão gravados caracteres originaes do idioma particular d’este povo.

Elles acreditão muito na chiromancia e não se effectua um casamento ou se verifica um nascimento sem que seos astrologos tirem o horoscopo dos consortes ou do recem-nascido. Então consultão os astros, especialmente as constellações, e por um acaso singular chegão sempre nos seos calculos ao numero 432, que considerão como expressão dos diversos movimentos combinados dos astros e o que torna esta circumstancia, já observada por outros viajantes, digna de menção, é que este numero é conforme com os algarismos de Newton.

Tivemos occasião de visitar um dos famosos chiromantes de Kandy, capital de Ceylão, e que se achava então em Ponta de Galles. Durante a conversação que tivemos com este individuo, por intermedio do nosso cicerone, notamos que sua linguagem era de um homem de letras, que cultiva a historia a medicina e sobretudo a cosmographia. Assim, sendo perguntado se acreditava na existencia de uma atmosphera na Lua, respondeo que não, a menos de não ser este astro povoado do outro lado que não póde ser observado da Terra, e que quanto a luz era do sol, e para melhor explicar, tomou um vidro de espelho, pronunciou elle em sua linguagem a palavra sol, soprou sobre o espelho exclamou — «Lua» —.

Ousamos tambem perguntar se acreditava na chiromancia ou no horoscopo que elles levantavão sobre os nascimentos, ao que, o velho astrologo ou astronomo, respondeo com certa malignidade, dizendo ser aquella sua profissão.

Assim podemos de um modo geral ajuisar dos conhecimentos d’estes individuos sobre a astronomia e certamente só como meio de vida, elles empregão-se em illudir a credulidade do povo com estes embustes.

Na bahia de Ponta de Galles vê-se o pico de Adão que domina toda ilha, e cuja altura excede de mil toesas sobre o nivel do mar. Segundo os musulmanos de Ceylão, foi sobre esta montanha que Adão depois de expulso do paraiso terrestre veio refugiar-se e ahi conservou-se em penitencias até que Deus compadecido perdoou sua falta.

Desejavamos fazer uma excursão ao pico de Adão d’onde, segundo contão alguns viajantes, goza-se de uma extensa e muito interessante vista, porém, o Ava só teve demora para tomar combustivel, e n’esta excursão gasta-se pelo menos dois dias.

Os indigenas fazem perigrinações ao pico, para venerarem o sulco deixado no sólo, pelo pé de Budha IV, e ahi, precedidos por um padre, praticão certas ceremonias religiosas. O padre veste então uma capa amarella, colloca-se junto do sulco deixado pelo pé de Buddha, e olhando para os perigrinos, que de pé se achão alinhados, recita todas as phrases do symbolo e que os assistentes repetem. Finda a cerimonia, o padre retira-se, porém os devotos começão e recomeção durante horas inteiras a mesma ceremonia que então é presidida pelo individuo mais idoso d’entre elles. Finalmente, findo o exercicio abração-se uns aos outros e offerecem-se uma composição adstringente, feita com folhas de betel, que elles mascão com grande prazer. O padre recebe tambem certos presentes a troco da benção que lhes deita como ministro de Buddha.

Uma das grandes producções de Ceylão, consiste em perolas, — entretanto, o seu preço é elevado; assim, vimos com um joalheiro indigena, algumas, do tamanho de uma ervilha, e perfeitas. O mercador pedia duas libras por cada uma, preço senão superior, pelo menos igual ao do mesmo objecto nas grandes capitaes da Europa.

Fizemos acquisição de algumas pedras em estado bruto, para nossa collecção, porém, entre as verdadeiras, encontramos posteriormente, alguns pedaços de vidro coloridos e apresentando as mesmas fórmas de cristallisação; tal é a honestidade dos negociantes de joias de Ceylão contra os quaes os estrangeiros devem se prevenir, pois, a imitação dos crystaes de saphira e de esmeralda é tão perfeita, que os seus caracteres physicos não bastão para distinguil-os dos verdadeiros. Consta-nos que esta falsificação é industria ingleza nos paizes da India e de que são unicas victimas, os proprios estrangeiros.

Reconhecemos o logro, em que tinhamos cahido, medindo os angulos formados pelas faces dos crystaes, e como na nossa volta á Ceylão, reclamassemos do negociante, (cujo retrato merece ser apreciado pelos leitores), sobre a falsificação; elle conveio em trocar as pedras falsas por vinte e cinco lindas perolas, porém, nem desta vez, escapamos; sete perolas erão verdadeiras imitações, como depois verificamos, entretanto na apparencia, côr e tamanho todas erão perfeitamente semelhantes.

A historia primitiva da Ilha de Ceylão é muito obscurecida pelas figuras e allegorias maravilhosas que difficultão o estudo sobre os povos asiaticos.

O que se sabe de positivo é que, em 379 da nossa era, depois de ter sido Ceylão o imperio de grandes e numerosos monarchas, a religião de Budha foi ahi introduzida por um padre de nome Mihiduma.

Segundo a tradição ingleza, elle atravessou os ares e parou no rochedo de Amuradapura, no momento em que o rei desta região por ahi passava.

O Rei ficou attonito vendo este homem com largas vestes amarellas, atravessar o espaço e pousar sobre o rochedo; então, o missionario fallou-lhe em nome de Budha; converteu o rei miraculosamente e esta religião foi ordenada em toda a ilha.

Sómente no seculo XVI os portuguezes forão pela primeira vez á Ponta de Galles, por occasião de grande temporal que obrigou o almirante Lourenço de Almeida a procurar refugio em algum ponto da costa. Reinava então na ilha, Darma Praccaram, que, sabendo da chegada de estrangeiros á ilha, mandou um grande da sua côrte recebe-los e offerecer-lhes hospitalidade.

Os portuguezes demorarão-se ainda algum tempo em Ceylão, e alguns mezes depois, nova frota veio encarregada de explorar as costas da ilha. Comtudo, n’esta occasião não julgarão os portuguezes poderem com vantagem estabelecer uma feitoria em qualquer ponto da ilha, cujos habitantes erão numerosos e o reino achava-se em completa paz; porém, alguns annos depois, morreu Darma, e a guerra civil apresentou occasião propicia aos ousados navegantes para se apoderarem de Colombo, onde levantarão altas muralhas que forão guarnecidas com boa artilheria.

CEYLÃO
 
Lettrado indiano
Lettrado indiano

Lith, Imperial A. Speltz

LETTRADO INDIANO

Em 1634, o Radja Singha querendo vingar uma afronta que lhe fôra feita por Simão Corrêa, chefe dos portuguezes, ligou-se aos hollandezes e sitiou Colombo, cuja tomada determinou a expulsão de todos os soldados e colonos portuguezes de Ceylão.

Entretanto, a alliança com os hollandezes não foi duradoura, e depois de cem annos de lutas continuas, estes comprehenderão a impossibilidade de occuparem o interior da ilha e limitarão-se a conservar as feitorias do littoral.

Foi então, em 1782 que aportou na bahia de Trincomalay uma esquadra ingleza commandada pelo almirante Munröe que desembarcou alguma tropa com o fim de conquistar Colombo e Negoumbo, porém, só em 1786, pôde o general Hewart entrar nesta ultima cidade por traição do commandante hollandez, que occultamente assignara capitulação sem consultar seus officiaes.

Progressivamente os inglezes estenderão seu dominio até que, em 1804, levarão a guerra aos reis de Kandy; em que varias vezes a sorte foi adversa aos temerarios invasores, que, assim, em nome da civilisação, apoderarão-se da liberdade e da propriedade de um povo livre. Dizem que acima de todas as considerações que levarão os inglezes à Ceylão, elles nutrião o desejo de se apoderarem dos immensos thesouros dos reis de Kandy; o que afinal levarão a effeito, em 1815, tendo por essa occasião, o general Brownigg tomado posse da ilha de Ceylão em nome do rei d’Inglaterra.

Como nas outras possessões inglezas da India, o systema colonial adoptado é o mesmo; a humilhação da moral, o aniquillamento de uma nacionalidade, a corrupção dos costumes; — taes são os commodos meios de que se servem os actuaes dominadores para conservarem suas possessões; comtudo, foi difficil fazer desapparecer, ao principio, todo o patriotismo de milhões de homens; por varias vezes elles tentarão sacudir o jugo, mas, diante das bayonetas e das metralhas, o direito e a justiça ainda são, infelizmente, sacrificadas no seculo XIX.

Os portuguezes em outras épochas serviam-se de seus missionarios para mais facilmente dominarem os povos; em seguida, os hollandezes empregarão muitas vezes a intriga e sacrificarão suas crenças religiosas para desalojarem aquelles de suas possessões; finalmente, no nosso tempo, os inglezes, alimentão o vicio, degradão os povos para que desarmando-os de seus brios, lhes dispensem o emprego da força.

Os primeiros, empregavão o meio do seu tempo, fazião christãos e alliados; os segundos, todos os meios erão bons, porém a corrupção era própria; os últimos, transformão seus semelhantes em brutos para melhor governal-os; e isto, em nome da civilisação como altamente proclamão.

Assim, quanto a dominação Europea na Asia, longe de ser um prejuizo dos antigos tempos que tende a desapparecer, é, no nosso século, a perda da moral e de quaesquer sentimentos que ainda os indianos conservão dos seus antigos usos; entretanto, será esta dominação legitima e o systema colonial humanitario que permitia a qualquer escriptor sustentar o direito e a pretendida philantropia da liberal Inglaterra nas suas possessões da India?

A mais cabal prova do vicio da sociedade ingleza, é a miseria que se observa nos seus proprios condados ou ducados e que faz callar o expontaneo sentimento de honra nas classes desprotegidas da fortuna.


CAPITULO V

 
O estreito de Malaca.— Os piratas malayos e chins.— Uma fragata disfarçada. — Os juncos chineses. — A cidade de Cincapura.— Seus habitantes, uzos e costumes. — Um consul que honra o Brazil. — Saigon, capital da Cochinchina franceza.— Suas bellezas. — As tribus selvagens da Cochinchina.— Partida de Saigon. — O encontro com um cyclone.
 


P EZAROSOS, pela pouca demora do Ava em ponta de Galles, o que não nos permittio percorrer a famosa ilha de Ceylão, deixamos este porto em uma bella manhã, quando os raios do sol apenas doiravam o pico de Adão, e, com brando calor, afagavão nossos membros enervados pelos incommodos de uma viagem nos mares abrasadores da África e em uma atmosphera saturada de humidade.

Na tarde do mesmo dia, passavamos em frente de Malaca, a antiga cidade rival de Goa, o Gibraltar dos mares da China, que durante muitos annos, foi disputada pelos Hollandezes aos Portuguezes, e posteriormente, á aquelles pelos Inglezes.

A sua situação explica o empenho com que tres potencias conquistadoras da Europa, e que successivamente predominaram dominarão na Asia, hostilisarão-se para possuírem a chave do estreito de Malaca.

Os desmantelados fortes e os vastos armazens em ruina, que ahi se vêm, nos mostrão que o commercio de Malaca foi importante e que sua importância, como praça forte, considerável. Hoje, ainda que sem a primitiva importancia, a cidade de Malaca, sob a dominação do seu novo senhor, é um dos emporios do commercio asiatico, porem, a sua vizinhança de Poulo-Penang e de Cincapura, tira-lhe toda importância e prejudica consideravelmente seu commercio.

Comtudo, o que mais difficulta suas transacções commerciaes com certas povoações do estreito e outras do continente, é a pouca segurança que offerece a navegação destes mares sempre infestados pelos piratas malayos e chins.

Ha alguns annos apenas, que a pirataria era a occupação preferida pelos malayos e chins, e muitas vezes navios do alto bordo forão atacados e tomados em abordagem pelos piratas malayos que, em numero de mais de mil, investião em suas piriches contra qualquer navio do commercio navegando á vela.

Em 1802, uma fragata ingleza balanceava-se em calmaria nas aguas do estreito do Malaca quando seu commandante vio um grande numero de piriches e outras pequenas embarcações de todos os lados se dirigirem ao navio, e progressivamente estreitarem o cerco para o abordar. Comprehendendo que os piratas julgavão o navio, sob seu commando, empregado no commercio, o commandante conservou as bordas falsas que occultavão a artilharia, em quanto se carregavão os canhões; ordenando somente arreial-as para desmascarar as peças e dar passagem á metralha, quando os malayos se achavão a tiro, querendo assim, enganar aos piratas pela apparencia socegada do navio e animal-os a approximarem-se.

De feito, já algumas piriches acostavão á fragata, quando as duas bandas de artilharia vomitarão metralha, mettendo a pique mais de sessenta embarcações escapando apenas algumas poderão alcançar as costas da ilha de Sumatra.

Posterior a esta severa repressão, ainda outros navios poderão sem grande vantagem dar caça a estes bandidos do mar, entretanto, foi preciso que um philantropo inglez se offerecesse ás grandes potências maritimas para ter n'estes mares em permanencia um navio armado em guerra, para que os pequenos navios de commercio podessem navegar pelo estreito.

Hoje, os piratas indianos desapparecerão d'estas paragens, porém, os juncos chinezes, que sob pretexto dos piratas, tem artilharia, exercem por sua vez o roubo e outros actos de pirataria, todas as vezes que se encontrão com embarcações mais fracas ou desarmadas. Entretanto, seria facil ao governo da China, proceder a rigorozo inquerito e empregar severas medidas repressivas e exemplares contra taes crimes, mas, ao contrario, depois de viverem sobre as aguas durante alguns annos a roubarem, os antigos piratas voltão impunemente, graças a venalidade dos mandarins, ás suas cidades para gozarem o fruto de suas pilhagens.

As autoridades os deixão viver em santa paz, uma vez que com ellas dividão os valores accumulados na lucrativa occupação.

Durante dois dias, navegamos pelo estreito, ora, entre grande numero de pequenas ilhas de luxuriante vegetação, e outras vezes entre as baixas costas de Sumatra e Malaca o que nos fazia crer acharmo-nos em largo pelago.

Muito além, as altas montanhas da ilha de Bautam e as das outras ilhas mui próximas formão um hemyciclo que ao longe parecia uma cadeia de bem conchegadas montanhas.

Finalmente o Ava passou pela estreita passagem limitada pelos perigosos escolhos Rabbit e Coney e depois de ter encontrado a livre entrada do porto de Cincapura, praticada por entre os arrecifes que rodeão a ilha, chegou a esta cidade ao descambar do dia.

A vista da cidade de Cincapura não nos deo realmente, uma idéa do seo importante commercio e população.

O Ava acostou ao caes já tarde, e só podemos no dia da chegada, visitar as principaes ruas da cidade e irmos pernoitar em um hotel regular que ahi se encontra.

Apenas desembarcamos, tomamos um pequeno carrinho, puchado por dous briosos cavallos, para nos conduzir a cidade, a qual fica distante do desembarque de tres a quatro kilometros. Era então já noite e durante esta viagem um esplendido espectaculo se apresentou a nossos olhos: milhares de pyrilampos illuminavão por instantes e alternativamente o carrinho o tal era a quantidade que as arvores brilhavão em todos seos pontos, e fomos obrigados a abotoar nosso casaco afim de que estes insectos não penetrassem pelas dobras e aberturas das nossas vestes.

Nas noutes de calor, como as que passamos em Cincapura, observa-se este phenomeno em uma grande extensão desta região, porém estes insectos desapparecem em poucos dias desde que a temperatura refresca. Parece que sua existência só é compatível com uma temperatura mais ou menos constante e que a menor modificação causa-lhes a morte.

Cincapura é actualmente uma das cidades mais commerciaes da Asia e muito importante pelo seu commercio com alguns paizes dos mares do Sul.

É para ahi que afflue grande numero de navios de vela carregados com productos indigenas de Ceylão, Madrasta, Calcutá, Gôa, Pondechery, Bombay, Batavia, ilhas Phylippinas, Reino de Sião e de outros muitos pontos da Asia, comprehendidos os da China e Japão.

Cincapura é o grande armazem europeu na Asia; exporta os productos da Europa como sejão o ferro, zinco, pannos de lã, productos chimicos; e em troca, recebe a sêda, o charão, o papel da China, a camphora, a canela, a pimenta, o dente de elephante, o cravo da índia, as noses-moscadas, a tartaruga e mil outros objectos tanto da Asia como da Oceania.

A cidade de Cincapura foi fundada no começo deste século pelos hollandezes, que a cederão á Inglaterra por conveniencia de seus proprios interesses na Batavia. Comtudo, suscitarão-se duvidas sobre a legitimidade da concessão, emquanto que os inglezes considerando este negocio sob outro ponto de vista, fizerão valer um antigo direito sobre a ilha que um século antes, fora dada pelo rei de Johore ao capitão Hamilton.

CEYLÃO
 

Lith, Imperial A. Speltz

PELLOTIQUEIRO INDIANO

Finalmente em 1824 por commum accôrdo entre os herdeiros do sultão Mahomet, fallecido em 1810, e o governo inglez, foi reconhecida a ilha de Cincapura legitima propriedade da Inglaterra que por equidade paga uma certa renda annual aos prejudicados.

Em 1819, a população era toda malaya, contava apenas tresentos habitantes, e, segundo o Sr. Crawfurd, esta cidade já tinha em 1825 dose mil habitantes, em 1832 a população era superior a vinte mil almas.

Actualmente, Cincapura deve ter uma população superior a sessenta mil individuos, sendo uma quinta parte malaia e o resto chineza. A população europêa é diminuta, comtudo póde comprehender duas mil pessoas.

A cidade divide-se em tres districtos mais ou menos distinctos: o dos chins, dos malaios e o dos europeus.

A parte mais commercial da cidade, apresenta uma actividade tal que lhe dá semelhança com um campo de feira. Suas ruas são largas, porém a população chineza é muito densa. Assim, vimos em uma pequena casa habitarem mais de vinte pessoas sem se guardar as conveniências impostas pela differença dos sexos, idade e consanguinidade.

A parte occupada pelos malaios fica na margem direita do rio; as ruas são immundas e desprendem um tal cheiro de oleo de côco que atordoa o estrangeiro e causa-lhe agudas dores de cabeça.

As edificações europeas são de bella apparencia e rodeadas de jardins e situadas nos arrebaldes da cidade.

Na nossa volta, encontramo-nos com um indivíduo que nos disse ser o consul do Brazil em Cincapura; porém, não sómente sua linguagem, como as ideas que apresentou sobre o melhor modo de facilitar a emigração chineza para o nosso paiz, nos impressionou bastante, vendo nellas retratado o traficante de carne humana, e perfeito compromettedor de nossos interesses, sem que seja necessario juntar outro encargo ao que lhe foi individamente confiado.

Comtudo, o nosso consul de Cincapura é importante negociante no lugar; e, como o mais antigo dos consules, os seus collegas estrangeiros lhe reservão o lugar de honra nas festas officiaes. Não sabemos como tal honra é correspondida, porém não é dubio que a etiqueta malaia é estrictamente observada.

Fomos recebido com natural agrado pelo Sr. consul, e durante a conversação que tivemos com o represente dos nossos interesses na cidade mais importante do commercio asiatico, nenhum outro incidente se deu que nos fizesse sahir da indifferença pela sua pessoa, a não ser o protesto que lhe fizemos contra a immoralidade do seu projecto de emigração chineza, que consistia mais ou menos em por força, astucia e falsas promessas, embarcar-se os chins em navios que empregassem-se neste novo trafico de importação de carne humana.

Infelizmente, parece que esta desastrada idéa, encontra apoio e decidida protecção por parte de alguns negociantes da capital do Imperio, os quaes, segundo o estulto consul de Cincapura, esperão obter apoio e protecção do governo imperial. Sem attendermos a nenhuma conveniencia, que neste caso seria fatal aos nossos interesses, denunciamos valorosamente estes factos que podem ser averiguados por quem competir; e, assim fazendo, temos a consciencia de que cumprimos um dever de patriotismo, ainda que por isso incorramos no desagrado e desaggravo de quem se julgar offendido.

Se para appropriarmos os braços estrangeiros á satisfação das necessidades da patria, fosse necessario depravar o minimo sentimento do nosso coração, preferiamos vel-a lutando com a miseria, de que nós, pelos nossos erros e nenhum patriotismo, somos os unicos culpados; e conservar illeso para melhores tempos, o estro racional e moral da nossa sociedade.

Não é esta, a parte deste livro a mais appropriada para fallarmos das vantagens e inconvenientes da emigração chineza para nosso paiz, deixaremos esta questão para quando tratarmos da China e de seus habitantes.

Os chins de Cincapura dividem-se em diversas classes conforme suas profissões; os mais estimados são os naturaes de Fo-Kien, que se distinguem pelos seus costumes e usos dos demais, e se empregam no commercio mais importante da ilha; alguns, são negociantes e commissarios do importante commercio de exportação para alguns paizes da Europa.

Encontram-se na ilha excellentes madeiras de construcção, as larangeiras, as mangueiras, os excellentes magostões [4], e outras arvores fructiferas, todos os legumes das zonas equatoriaes e raizes farinaceas.

O reino animal é representado pelos macacos de diversas especies, o gato selvagem, a lontra, o porco espinho, o tigre, o leopardo e uma variedade de reptis entre os quaes, a serpente, conta mais de quarenta especies. Os passaros tambem são numerosos e alguns possuem uma bella e vistosa plumagem.

As especiarias das Indias são todas exportadas para Europa de Cincapura, e a maior quantidade vai directamente para Inglaterra em saccos ou em granel, no fundo dos navios, onde depois de accondicionada é importada nos paizes da América do Sul, e, em geral em todos que não dispõem de um commercio maritimo de longo curso. Só as transacções que ahi se fazem de pimenta, cravo, canella, sagú e camphora importão mensalmente em milhares de libras esterlinas.

No hotel onde nos hospedamos, durante a demora do Ava em Cincapura, vimos negociantes malayos que offerecião aos viajantes alguns objectos fabricados no paiz. Estes individuos só se occupão no commercio volante, ora á espera de estrangeiros para venderem curiosidades da ilha, ora vão pelas casas dos residentes europêos offerecerem certos objectos de uso domestico.

Entre outros objectos vimos bem trabalhados cestos de palha, trabalhos em marfim, representando elephantes e estatuas dos deoses indianos, lenços de seda muito apreciados pelos tomadores de rapé, e bengalas feitas com junco da India e artisticamente esculpidas.

Os mais perfeitos juncos se encontrão em Cincapura e seo preço é algumas vezes elevado.

Sahimos á tarde do dia seguinte ao da chegada á esta cidade, e quando o Ava descia o rio vimos sobre as margens alguns crocodilos de um a dois metros de comprimento, que ahi andão aos bandos e se reproduzem de um modo espantoso.

Quando entramos no Oceano os ultimos raios do sol douravão as altas Costas de Malacca, e horas depois, um céo estrellado e sereno nos fez lembrar do que cobre o solo patrio. Estavamos apenas dois gráos acima do equador; até então, o Ava dirigira sua marcha para o Sul, agora, mudando de rumo, dirigia-se a Saïgon, capital da Cochinchina franceza.

Em menos de tres dias ganhamos a entrada do rio Saïgon, em cuja margem esquerda eleva-se a aristocratica capital da colonia.

É muito pittoresca a capital da possessão franceza e as suas modernas edificações, espalhadas nos arrabaldes da cidade com grandes chacaras e bellos jardins, parecem-se com as villas italianas, pelo gosto de sua architectura e conforto interior.

Ao desembarcarmos entramos em um largo boulevard com suas casas de commercio europeo e chinez, e onde encontramos um pequeno restaurant, que foi immediatamente invadido pelos passageiros do Ava.

As ruas transversaes são occupadas pelo commercio chinez e habitadas por alguns annamitas, que são aborigenes desta região.

Encontra se nesta cidade toda sorte de objectos de uso europêo, e as lojas ou armazens os vendem por preços relativamente baratos.

Ahi se encontrão charutarias, padarias, açougues, cafés, etc.

Entre os mais modernos edificios sobresahe, pela importancia da sua architectura e custosos trabalhos de ornamento, o palacio que serve de residencia ao governador, e a cathedral que ainda se achava em construcção. Mui bellos e vistosos chalets e casas de campo se encontrão distribuidos com certo criterio pelos arredores da cidade, e cada uma destas edificações é rodeada por bem ornados jardins ou chacaras.

Tudo que ahi vimos lembra o espirito social do povo francez, sabendo com gosto reunir o util ao agradavel, sem comtudo contrahir onerosos compromissos, ou sacrificar sem utilidade correspondente, grandes sommas de dinheiro.

Em Saïgon, os francezes souberão reunir todas as insignificancias que pouco custão, mas que, entretanto, tornão uma cidade commoda para viver-se.

Em breve tempo, Saigon será um dos emporios importantes do commercio asiatico, e as condições, para que se realise nossas previsões, não pódem ser desconhecidas por qualquer pessoa que tenha visitado a possessão francesa.

A cultura do café tem provado bem, e na épocha da nossa chegada a esta região soubemos que, por instrucção do governo francez, o governador tratava de animar esta cultura, já mandando distribuir sementes como fazendo certas concessões e vantagens aos agricultores d'este estimado producto, que faz a riqueza do nosso paiz.

Em Saïgon, tivemos a honra e o prazer de conversar com o almirante Krantz, então governador desta colonia, e por cujos esforços a lavoura tem-se desenvolvido de um modo extraordinario em quasi todo o territorio da concessão.

Sua Excellencia honrou a commissão com uma interessante soirée no seu palacio, durante a qual o espirito francez sustentou com distincção a fama de que goza em todos os paizes.

A festa foi completa, concorrida por grande numero de officiaes, algumas senhoras francezas e outras crioulas, isto é, filhas de francezes mas naturaes de Cochinchina.

A administração militar n'esta colonia, é a que mais convem aos interesses da França. Algumas tribus selvagens habitando ao norte de Saïgon perturbão em suas excursões o socego da colonia e torna-se então necessário repellil-as, para as suas brenhas, pelas armas.

Ultimamente, poude o governador convencel-os de que devião cultivar o rico solo d'esta região, e com effeito, plantão e cultivão actualmente o arroz, o algodão, o fumo, a canna de assucar e o trigo da Turquia; comtudo, o trabalho da lavoura é mal feito e as colheitas se perdem muitas vezes por falta de cuidado ou indolencia d'estes selvagens.

As tribus principaes são: as dos Ba-hnars, dos Se-danz, dos Ro-ngão, dos Ia-raï e dos Ha-long, que aborigenes como os annamitas differem entretanto d'estes, pelos costumes e pelos dialectos que fallão.

Os Se-danz habitão as montanhas ricas em minerios de cobre e de ferro, e occupam-se, em geral, do fabrico de ferramentas e instrumentos agricolas.

Os Ba-hnars occupão-se na fabricação de um estofo que serve para cobertas, fabricão cachimbos esculpidos e explorão uma especie de caneleira das suas florestas cujo producto é muito estimado. Os Ha-long occupão-se em explorar os terrenos auriferos e finalmente os Ia-rai e os Ro-ngão são caçadores e vivem do commercio de marfim, chifres de rhinocerontes, etc.

O governo entre elles é patriarchal; cada aldeia é independente, forma uma republica separada e cujo chefe é um dos seus mais idosos habitantes.

Algumas vezes, estas aldeias se declarão guerra por qualquer motivo, e quando uma d'ellas é vencida, os vencedores escravisão seus habitantes e os vendem ás outras tribus.

Os seus costumes são simples e puros, o furto e o roubo são completamente desconhecidos n'estas tribus.

O suicidio é considerado acto covarde, e aquelles que voluntariamente se deixão morrer, são enterrados á parte e sua memória é detestada.

Conta um viajante que internou-se na Cochinchina, que quando algum habitante é accusado ou suspeitado de ter commettido um crime, é immediatamente sujeito a certas provas; as principaes são a da agua e as dos ovos quebrados.

As dos ovos consistem em os adevinhos tomarem um entre o pollegar e o index e apostropharem: «Se tem crime arrebente»; se o ovo não se quebra o accusado é innocente.

Muitas vezes o ovo arrebenta e a pessoa que é accusada de um crime supposto, apenas responde : «Foi, talvez durante o somno que fiz mal, eu o ignorava.» e se resignão a sua sorte.

Isto basta para que o accusado seja vendido aos Sàos como escravo.

Segundo informa o Padre Tournofond, uma missão foi fundada em 1848 entre estes selvagens, e os missionários tem obtido melhorar a sorte destes infelizes ensinando-lhes a cultivar o fertil solo de seu paiz.

O reino animal da Cochinchina é muito numeroso; encontra-se ahi o elephante, o rhinoceronte, o tigre, o lobo, o javali, o veado, e rebanhos de buffalos selvagens e muitos outros animaes que longo seria descrever.

Ultimamente, a França assignou um tratado de commercio com o rei de Annam, que permitte á todas as bandeiras a navegação do Kong-Kiang, e o commercio com Tong King.

Francisco Garnier não sacrificou sua vida inutilmente e este tratado de commercio é o fructo dos serios trabalhos do explorações a que elle procedeu no Indo-China.

Os productos deste paiz são riquissimos e muito variados.

Entre os metaes encontra-se em abundancia, o ferro, o minerio do estanho, os de zinco, os de cobre, os de arsenico, os de prata e finalmente os de ouro e de mercurio.

Já existem muitas destas minas em exploração; as de cobre são em numero superior a quarenta, e, uma dellas, a de Tang-Tan forneceu em um só anno 15 milhões de kilogrammas de metaes.

O chumbo é argentifero, e contem aproximadamente meio por cento do prata, o que é verdadeiramente rico.

Os principaes productos agricolas encontrão-se um Su-Tchmen e consiste em sedas fortes e resistentes, em algodão, em fumo, o qual póde ser comparado com o das ilhas Philippinas, o chá, principal producto de consumo na China, verniz e mil outras producções.

O Tong-King conta hoje para mais de quinhentos mil christãos em suas dezasete provincias, e, em breve tempo, este rico paiz será inteiramente christão, fazendo excepção com os demais situados também na Asia.

A Cochinchina muito ganhará com o novo tratado assignado pelo rei do Tong-King; será um posto avançado da França, que virá a adquirir a mesma importancia de que gosa Cincapura, como grande emporio do commercio inglez na Asia.

O almirante Krantz, já commandou a devisão franceza dos mares do sul; elle nos fallou do nosso paiz, do seu primeiro cidadão, da sua constituição, etc., forão alguns momentos de immenso prazer os que gastamos em conversar com este militar e habil administrador.

Como teríamos de visitar Hong-Kong, e na volta, a importante cidade de Shangai, deixamos de observar a população chineza de Saïgon e concentramos toda nossa attenção para os annamitas que ahi encontramos; e com alguns podemos conviver durante o tempo que o Ava demorou-se neste porto, graças ao prestimoso hotelleiro que ahi encontramos.

Os individuos annamitas com quem conversamos, erão de raça cochinchina, fallavão o francez e vierão de Húe, havia já alguns annos, em companhia de officiaes da marinha franceza.

Segundo elles nos disserão, o governo de seo paiz é como o da China; também existem os mandarins que governão com o junco o povo e as famílias.

Os seos usos são simples, trabalhão somente para comer, e os indivíduos das classes inferiores não nutrem a esperança de tornarem-se ricos, mesmo, porque, nos disserão elles, os mandarins encontrarião meio de se apoderarem do fructo dos nossos trabalhos.

Os maridos exercem direito absoluto sobre a mulher exceptuando o de morte, comtudo, ellas entrão na caza do homem voluntariamente; a polygamia é permittida ainda que raros sejão os casos.

As jovens mulheres são inteiramente livres, ninguém póde estranhar sua conducta e nenhuma falta impede-lhes o casamento.

Ainda que um pouco indolentes estes individuos, gostão da lavoura e são sobrios nas suas paixões e nas suas refeições.

Relachados com a limpeza de seos corpos, elles deixão crescer os cabellos, quasi sempre cobertos de vermes, e por estas razões não são raras as molestias de pelle, de que os europeos tanto receião o contagio.

Algumas mulheres são entretanto lindas de rosto e seos membros são bem desenvolvidos, porém o pouco ou nenhum aceio com os seos corpos, as tornão nojentas e despresiveis.

Em outros pontos da Cochinchina, encontrão-se tribus laboriosas, vivendo em sociedade e facilmente susceptiveis de civilisação; são, especialmente, os kambodjianos e os annamitas, os mais intelligentes, mais vigorosos e os de mais alta estatura d'entre elles.

Sahimos de Saigon com bello tempo, porém, apenas sulcamos as aguas do Occeano um vento fresco e um mar agitado vierão emballar-nos no Ava, do que já tão facilmente nos tinhamos desacostumado.

No primeiro dia da nossa viagem, o sol não se mostrou, e as observações barometricas feitas a bordo nos indicarão mudança brusca de tempo. O commandante do Ava, o experiente 1° tenente da marinha franceza Sr. Fleuriais, desde logo conheceo a approximação de um cyclone. Com effeito, no dia seguinte, ás dez horas da manhã, o barometro marcava uma depressão de vinte millimetros de mercurio, o mar começou a engrossar, o vento soprava com violência e era acompanhado do chuviscos. O Sr. Fleuriais conheceo então, o que convinha fazer; as theorias do grande Maury forão observadas; o nosso fim era desviarmo-nos do centro da actividade do tufão. A marcha do cyclone era no sentido inverso a do Ava ficavamos na sua trajectoria e era impossível desviar tanto quanto deveriamos; os arrecifes da costa impedião ao Ava de manobrar livremente. Esperamos pois, resignados a tormenta que se approximava rapidamente se annunciando com violencia inaudita.

Ás quatro horas estavamos no circulo de acção da borrasca giratoria, as rajadas de vento ameaçavão tudo demolir, o Ava mergulhava nas altaneiras ondas para elevar-se bruscamente, estorcendo-se como o agonisante na hora fatal.

Ás cinco horas, ouvimos o estrepito produzido por uma vaga que invadindo a coberta, arrombou as portas de descida para o salão e ameaçava inundar o navio. Perdemos a esperança vendo que novas vagas sobrepujavão em altura ao navio e que um outro embate tão vigoroso, faria sossobrar o Ava.

Felizmente, a machina estava enxuta e o leme ainda governava dando direcção conveniente ao navio, de modo que o hábil commandante, entre o perigo de approximar-se da costa e o da violência das vagas, poude determinar uma direcção que sem entregal-o a mercê das vagas não o conduzisse fatalmente sobre os arrecifes da costa.

Diminuiu-se a marcha, contemporisamos com o cyclone e no fim de quatorze horas de enjôo e de perigo, durante os quaes, andamos sobre as vagas em vertiginosos movimentos, o vento amainou, o véo de nuvens rasgou-se como por encanto e o Sol dardejando seus raios sobre os vertices espumantes das vagas ainda enfurecidas, fazia brilhar como preciosas pedras os pingos d’agua que erão lançados no espaço.

No dia seguinte aportamos em Hong-Kong e o lançava ancora perto do Tanaís que era o navio destinado a nos conduzir ao Japão.

 
CEYLÃO
 

Lith, Imperial A. Speltz

NEGOCIANTE DE CEYLÃO
 

CAPITULO VI

 
Hong-Kong. — Os inglezes e o opio. — Um grito de indignação do Governo do Celeste Imperio. — O commercio de Hong-Kong. — Os negociantes chinezes e japonezes. — Um novo meio de transporte. — Os chins do Norte e os do Sul. — A razão dos pequeninos pés das damas chinezas. — Macáo. — Como são recebidos os europêos na China. — Um curioso pasquim. — Attentados commettidos pelos chins contra os estrangeiros.
 


O PORTO de Hong-Kong, da moderna cidade que renasceo das antigas ruinas de uma população indigena, é, pela sua situação, o mais importante do Celeste Imperio, e hoje, com o augmento extraordinario da navegação do Oriente, esta cidade é destinada a ser a mais importante praça commmercial da Asia. Infelizmente, a dominação ingleza obsta que o Imperio da China utilise as vantagens do seo commercio maritimo; e, é sobretudo, pelos seos portos de mar que penetra nas mil e quinhentas cidades da China, o terrivel veneno que entorpece o espirito e enfraquece progressivamente os musculos de grande parte da população da China, transformando seos habitantes em verdadeiros entes irracionaes.

O trafico infame do opio é, em larga escala, feito pelos inglezes, e não obstante as reclamações, protestos e appellos feitos, durante a revisão do tratado de commercio de 1869 pelo Governo Imperial da China, representado pelo Principe Kong e outros personagens ao Ministro de S. M. Britannica, com o fim de reprimir o consumo do opio; já augmentando os direitos da importação, ou os de exportação nos mercados inglezes; o governo de Londres, tendo á frente o Sr. Gladstone, foi surdo a esta justa petição, verdadeiro brado de indignação da sociedade illustrada da China [5].

O desmedido amor de riquezas, que ninguem poderá desconhecer nos inglezes, é a causa unica de toda a sorte de iniquidades, praticadas por estes homens nos paizes asiaticos. Esquecem-se até, que elles fazem parte da humanidade e collocando-se fóra da communhão dos entes racionaes, julgão-se legitimos senhores dos bens da terra, e pela força se apossão do alheio, em nome de uma liberdade que a mór parte delles, no seu proprio paiz nunca conhecerão, vivendo na miseria e com um desfaçamento de costumes mais degradante do que tudo que a esse respeito se tem observado entre os selvagens.

O consummo do opio na China augmenta diariamente, e uma terça parte da população, entrega-se desordenadamente á este infame vicio. Alguns, fumão opio em largas fornalhas de seus compridos cachimbos; outros, mascão o lento veneno como os indianos o betel e os africanos o fumo; outros, ainda mais viciosos, preparão o opio em pilulas e a todo o instante engolem uma ou duas grammas desta substancia.

A cidade de Hong-Kong apresenta um aspecto agradavel e imponente; o mór numero das habitações são edificadas sobre um pequeno monte que se divisa do porto, em pittoresco panorama, com importantes edificios e lindas casas em fórma de chalets e pintados com variegadas côres.

A sua população é superior a cento e cincoenta mil individuos, dos quaes, quatro quintos são chins e o resto compõe-se de europeos e de malayos.

Actualmente, o commercio d'esta cidade é florescente, e é interessante vêr-se, durante o dia, o grande movimento de mercadorias nas ruas occupadas pelo commercio estrangeiro.

Os inglezes são, naturalmente, os principaes negociantes de Hong-Kong, em seguida, o commercio chinez é o mais importante; contando-se, porém, algumas casas francezas, hollandezas e portuguezas não menos respeitaveis.

Existe em Hong-Kong duas casas bancarias inglezas e uma franceza, filial ao Comptoir d'Escompte de Paris, as quaes, fazem lucrativas transacções com o commercio chinez não só d’esta cidade como com o do interior.

Em frente aos bancos inglezes, proximo á entrada e dentro de um gradil de ferro, vêm-se os contadores chins que se occupão em verificar as piastras de prata, dadas em pagamento ao banco. Com extrema habilidade e rapidamente, estes individuos fazem soar cada moeda por sua vez, e para isso lanção-n'as ao ar e em seguida as recebem sobre uma outra que conservão na palma de uma das mãos. Pelo som produzido, julgão, sem repetir a prova, da qualidade da prata, tendo o cuidado de separarem não sómente as moedas falsas como as que, por qualquer motivo, pareção depreciadas em seu justo valor.

Disse-nos um empregado do banco inglez de Hong-Kong, que, em quanto um empregado europeo verifica dez mil piastras, um chinez, com pratica de alguns dias, não só verifica, como conta e ensacca este mesmo numero de moedas.

Os chins são bons empregados de escripta e intelligentes correctores para compras e vendas das mercancias orientaes, e, em taes empregos, são bem remunerados pelos negociantes europeos, e salvo os japonezes, que, em geral, os excedem em probidade, nenhum outro povo da Asia é mais apto para o commercio.

Uma outra qualidade avantaja o negociante japonez sobre o chinez, é a sobriedade em certos vicios, o que não era de esperar de homens que entregão-se ao opio, em busca de estupidas emoções e lascivos sonhos.

Assim, ao anoitecer, é contristador vêr-se, nas lojas de venda chinezas, o chefe da casa e mesmo seus empregados, embriagados e abatidos, completamente distrahidos do que fazem, respondendo por monossyllabos ao que se lhes pergunta, apenas occupados com seus compridos cachimbos, e em empestar o ambiente com o fumo do maldito extracto de dormideiras.

Além dos pequenos carros, puchados pelos cavallos da Australia, encontra-se em Hong-Kong, um outro meio de transporte, que consiste em uma cadeira de forma appropriada presa lateralmente a duas longas travessas de madeira ou a bambús, a qual, dois ou quatro homens facilmente carregão. Os pés dos passageiros repousão, para maior commodidade, sobre um estribo suspenso por fitas que se prendem aos braços da cadeira.

Em geral, paga-se um shelling pela corrida dentro da cidade; para os arrabaldes, convem proceder-se a um trato preliminar, sob pena de pagar-se, sem direito de reclamação, ás autoridades inglezas, a quantia que for exigida; e os carregadores chins, bem avezados em taes espertezas, nunca fallão sobre o preço ao passageiro, antes de terem feito o serviço que se lhes exige.

A cidade de Hong-Kong acha-se edificada sobre as encostas de collinas que se succedem em todo o longo do porto em uma extensão approximada de duas léguas.

A parte baixa da cidade é occupada pelas casas de commercio, edificios publicos e pelos armazens alfandegados. As suas ruas são largas, bem ventiladas e aceiadas; e mesmo, no quarteirão chinez, não se observa a immundicie nem se respira o ar viciado e putrido das cidades chinesas.

Os chins de Hong-Kong são verdadeiros mestiços da raça chineza e malaya, e, á primeira vista, se distinguem os chins do sul dos do norte do Império. Os primeiros, são de uma constituição fraca e mesmo rachitica, muito magros e curvados para diante, se dirá que são verdadeiros hecticos; emquanto os chins do norte, são de robusta compleição, mais activos e intelligentes do que aquelles.

Igual differença, senão mais acentuada, se nota entre as mulheres, e, em geral, a filha das regiões do norte do Império é mais bella do que as do sul.

A principio, julgamos que um dos caracteres, entre as chinas de pura raça e as mestiças, era o tamanho dos pés, porém, mesmo entre as ultimas, se encontrão algumas que possuem pequeninos pés.

Uma questão em que divergem as opiniões de alguns viajantes é sobre os meios empregados pelos chins para impedirem o crescimento d’esses membros.

Segundo nos disse pessoa bem informada, alguns paes desarticulão pouco a pouco o calcaneo de suas filhas, de modo que este osso venha a occupar um lugar mais alto; deixando assim de fazer parte da planta dos pés e de exercer o trabalho que lhe é destinado, o calcaneo tem um desenvolvimento muito lento ou quasi nullo. Qualquer que seja o meio empregado, nota-se facilmente que ha deformação, e que a pequenhez a que reduzem os pés das mulheres, importa o sacrificio da fórma natural, parecendo a planta do pé ser formada por dous planos que formão entre si angulo apenas sensivel, e dos quaes o anterior é o unico que serve de apoio ao corpo.

As mulheres chinas vestem calças e amplas blusas de estofo azul ou branco com vivos de outras côres; aos pés, calção uns sapatos de seda preta lustrosa ou de outro qualquer estofo, com fortes solas de palha trançada.

Muitas, usão penteados a europea, porém a mór parte deixão cahir os cabellos em forma de pequenas tranças sobre as espaduas.

Os homens ainda usão do tradicional rabicho, no que elles tem o maior cuidado, o tal é o apreço, que, se considerarião deshonrados e banidos da sociedade se por qualquer motivo perdessem os cabellos.

Esta valia, em que os chins teem o rabicho, muito servio á policia de S. Francisco da California para garantir a ordem na colonia chineza; assim, desde que alguns culpados de pequenos delictos forão condemnados a perderem o rabicho, o numero dos infractores do regulamento policial diminuio consideravelmente. Ainda hoje esta pena é applicada em algumas cidades dos Estados-Unidos e mesmo na China, quando se trata do pequenos delictos.

Algumas horas de viagem dista Macáo de Hong-Kong, esta interessante visita á antiga cidade portugueza se fez com toda commodidade em grandes paquetes americanos, que são empregados exclusivamente neste serviço.

Macáo foi uma das mais ricas cidades da Asia; era o verdadeiro emporio do commercio portuguez com o Japão: hoje, em completa decadencia, esta antiga rival de Gôa apenas apresenta um interesse historico.

A antiga possessão portugueza foi concedida pelo Imperador Khang-Hi que quiz, assim, reconhecer os relevantes serviços prestados pelos filhos da antiga luzitania contra os piratas Chang-Silau e Hoang-Tchin, que assolavão as costas meridionaes da China.

Partindo de Lampassau, os portuguezes apenas chegarão á Macáo, tratarão de edificar casas e igrejas, e depois de fortificarem os limites da concessão, organisarão um governo regular que sob a direcção do da metropole curasse dos interesses da cidade e da segurança de seus habitantes.

A concessão comprehendia um pequeno terreno que se estende em isthmo na parte oriental da ilha, de Negão-Men.

O governo chinez reservou para si a outra parte da ilha, que mandou fortificar, e onde sempre conservou agentes intelligentes encarregados de fiscalisar a politica dos portuguezes.

Á nenhum estrangeiro era permittido, sem incorrer em severas penas, franquear os limites da cidade europea; entretanto, foi facultado aos chins penetrarem e residirem na concessão.

Emquanto durou o commercio do Japão, Macáo floresceu e mesmo gosou dos esplendores da riqueza; porém, posteriormente a decadencia do predominio portuguez na Asia, os hollandezes e os inglezes, ciosos da prosperidade da cidade portugueza, tratárão de obter a franquia do porto de Cantão, que recebendo, desde então, os navios das companhias das Indias Orientaes causou a ruina do commercio de Macáo.

Á este facto, já muito significativo, reunirão-se outros de ordem moral; e os abastados negociantes macaistas liquidarão seus negocios e voltarão ao Reino. Não era somente a importancia do commercio de Macáo que se mingoava, era a desmoralisação das instituições da mãi patria, transplantadas, havia muito tempo, ao solo da colonia. Os filhos de Macáo, na mór parte mestiços, erão naturalmente indolentes, e pouco a pouco os chins se apoderárão do commercio ainda existente, de modo que significando elles ao seu governo, o supposto perigo de serem attacados pelos portuguezes-macaistas, pedirão e obtiverão por um accordo entre o governador da colonia e o governo da China a intervenção de mandarins para regularem a marcha da justiça e conjurarem as revoluções.

Desde então, as revoluções, promovidas pelos indigenas de Macao e os chins, se têm succedido sem longos intervallos, e nestes tempos anormaes, as residencias dos europeus são invadidas e entregues ao saque e á pilhagem.

Entretanto, o velho Portugal faz verdadeiros sacrificios para conservar esta colonia, que, longe de lhe dar lucro, é onerosa aos seus cofres, segundo nos informarão; e quando seus filhos, reconhecidos, devião auxiliar o governo da colonia, altamente proclamão o estupido desejo que nutrem, de experimentarem o regimen colonial da Inglaterra.

O que dissemos, é infelizmente pura verdade, e apezar de termos recebido distincta hospitalidade de alguns cavalheiros macaistas, bem como de alguns europeos do club portuguez de Hong-Kong, cumpre-nos confessar que os filhos da terra predilecta de Camões, são os unicos culpados dos vexames e das arbitrariedades que hoje soffrem dos mandarins chinezes.

Assim é, que jámais governador portuguez, quaesquer que fossem seus titulos, encontrou n’aquella colonia o apoio de seus compatriotas; forão sempre seus actos mal interpretados e censurados publicamente nas praças publicas e casas de negocio, e o primeiro cuidado dos macaistas era tentarem desmoralisar o delegado da metropole com mofinas e denuncias pelos jornaes inglezes de Hong-Kong. Os chins aproveitão inteligentemente da dissidencia, para, com astucia, augmentarem a preponderancia de que já gozão na colonia.

 
CEYLÃO
 
Mulher cinguleza
Mulher cinguleza

Lith, Imperial A. Speltz

MULHER CINGULEZA
 

Foi com amargura que lembramo-nos dos antigos feitos, de que foi theatro a cidade, então florescente, de Macáo, e difficilmente se reconhecem os filhos dos autores de tão grande empreza. A terra onde Camões, o poeta ao mesmo tempo mythologico e christão, terminou Os Lusiadas, é hoje apenas habitada pelos descendentes de uma raça europea, atrozmente degenerada pelo sangue indiano e chinez.

O commercio de Macáo é presentemente sem nenhuma importancia, e salvo algumas casas chinezas que vendem a retalho, nenhuma casa importante tem prosperado.

Não queremos fallar dos meios adoptados como fontes de renda para subsidiar a metropole, nas despezas que faz com esta colonia; além destas questões não interessarem ao leitor, não devemos commentar certos factos que pódem encontrar, senão justificativa, ao menos, explicação necessaria nos costumes locaes, os quaes não profundamos.

O jogo é um dos vicios alimentados pelo povo chinez e sobretudo, as populações do litoral, entregão-se com infrene paixão a este covarde inimigo do trabalho; e na phrase do mais abalisado economista — Adam Smith, o verme destruidor de toda riqueza.

Nas suas relações com os europeus, os chins são pouco leaes e muito insolentes, e para fallarmos verdade, nenhuma garantia tem o viajante quando se interna no celeste Imperio.

É, especialmente, em Pekin, debaixo das vistas das autoridades superiores da China que os attentados contra os estrangeiros se succedem, sem que o governo chinez tome serias medidas de modo a prevenir taes delictos. Se contenta em punir os assassinos, emquanto que, com seu silencio, autorisa a publicação e distribuição de manifestos contra os europeus, excitando o odio das populações das cidades onde se distribuem taes pasquins.

Transcrevemos um destes manifestos, que foi affixado nas esquinas das ruas de Pekin e que dará idea exacta dos sentimentos que os chins nutrem contra os estrangeiros. A traducção que se segue devemos ao Sr. Eugêne Cottin.

No alto do manifesto lê-se :

APELLO AOS HOMENS DE CORAÇÃO.

No primeiro quadrado começando-se pela esquerda:

O FIEL, JUSTO E GRANDE MINISTRO TIEN-SIN-CHOU
Palavras de Tien-Sin-Chou

Malditos mil vezes, sejão este macho e esta femea indignos da especie humana! Porque querem elles se metamorphosear em quadrupedes? A parte, anterior de seus corpos é, na verdade, da raça europea, porém, é quando entrão na China, que tomão essa forma humana; uma vez, porém, que tornão a respirar o ar da patria, os primeiros traços lhes caracterisão. Não adorão o céo nem a terra, e não conservão lembrança dos antepassados. Suas mulheres e filhos pertencem ao primeiro que quizer corrompel-os, e é, por esta razão, que estes demonios, dignos emulos dos cães, só crião bastardos de raça barbara. Podemos distinguil-os pela pelle, pelo pello e pelos cornos; e, ainda que elles quizessem, jámais poderiam deixar a especie bruta para pertencerem ao genero humano.

O quadrado inferior correspondente, representa um christão coberto com a pelle de um boi, uma christã com a de um cão e um menino cujas costas de tartaruga, indica ser bastardo.

Os caracteres chinezes que constituem a legenda se traduzem:

Á esquerda: — christão macho e femea.

Á direita: — filho dos christãos.

Lê-se na columna do meio:

O GRANDE MINISTRO Ly-Hong Tchang, PERNAS E BRAÇOS DO IMPERIO.

Palavras de Ly-hong Tchang.

Só abrirei a boca para vos maldizer, ó barbaros reis. Se ousais, vinde perturbar a ordem do grande Imperio! Raça de cavallos e de cães! Jesus, o velho barbaro, é causa de toda calamidade. Sob pretexto de vos exhortar para o bem, elle destroe a ordem e corrompe os corações; porém, é incapaz de turvar minha consciencia e de manchar minha fidelidade. Criminoso dos pés á cabeça, elle merece mil mortes; secretos embustes, hypocrisia, odio á autoridade, eis seus projectos.

Agora, que o poder está em minhas mãos, filhos e netos de barbaros, morrei sob a espada, que d’ora avante a religião christã seja aniquilada. Abandonemos a mentira, sigamos a verdade e sejamos felizes.

A caricatura correspondente, tem as seguintes legendas: Á esquerda:

Rei barbaro da França.

No meio:

O chefe da religião do nome detestado de Jesus,
está na cruz atravessado por flexas.

Á direita:

Rei barbaro da Inglaterra.

Eis finalmente a traducção da terceira columna:

VALENTE E PROBO GRANDE MINISTRO PÁO-TCHÁO
Palavras de Páo-Tcháo

Malditos sejão estes europeus, estes cães missionarios ou governadores de cães, que pregão uma religião barbara, destroem a santa sabedoria, profanão e difamão o santo Confucio, e, entretanto, nem mesmo estudarão a primeira pagina de um livro.

O céo não os póde tolerar e a terra recusa sustental-os; devemos feril-os e envial-os a meditar no fundo dos infernos. Que se lhes corto a lingua, porque seduzem a multidão com mentiras; e a hypocrisia, com que se revestem, tem mil meios para conquistar os corações. Que elles não cuidem ser minha dynastia fraca e tímida, eu tsio[6] tenho força e coragem. As penas com que castigo são terriveis. A morte não basta para punir seus crimes. Lancemos seus cadaveres no deserto e sirvão de pasto aos cães.

 

A caricatura representa o missionario sendo torturado.

A legenda indica o genero de morte para os missionarios. Fóra do quadro, lê-se quatro legendas transversaes, duas á direita e duas á esquerda.

As da direita:

 

As pessoas que guardarem esta sentença sem publical-a, são tão culpáveis como os christãos.

Voltemos a felicidade; homens da justiça e da espada reuni vossas forças para varrer a falsa religião e salvar a dynastia dos Tsin.

As da esquerda significão:

 

Convite aos lettrados, aos agricultores, operarios, negociantes, para reunir suas forças, esmagar o monstro e prevenir suas rapinas.

Quem receber esta folha devera affixal-a na praça publica.

 

Estas excitações ao assassinato, tem sido fataes aos estrangeiros que se acham na China, o consta-nos, que nestes ultimos annos, grande numero de crimes forão commettidos em suas pessoas. Assim, em 1874, forão gravemente feridos nas ruas de Pekin um joven addido á embaixada russa e o Dr. Bushes e sua senhora que forão perseguidos a pedradas pela infima plebe.

Ainda ultimamente, conta o jornal das Missões Catholicas que mesmo, em Shangai, deu-se um facto revoltante que entretanto não mereceu attenção do governo do imperio do Meio. Acabavão do desembarcar nesta cidade as tropas chinezas que forão mandadas á ilha Formosa, para baterem os selvagens e, depois de se pôrem em ordem, desfilarão pelos quarteirões europeus, porém, na concessão franceza, os soldados debandarão e ameaçarão invadir as casas dos residentes. Os estrangeiros recolherão-se ás suas casas e pozerão-se em defeza, promptos para venderem caro suas vidas. Infelizmente chegavão nesta occasião dos arredores, em carro descoberto, um americano e sua senhora, os soldados lhes impedirão a passagem, lançarão-nos fóra do carro e ferirão-nos com suas lanças.

MANIFESTO PUBLICADO PELOS CHINS CONTRA OS ESTRANJEIROS
MANIFESTO PUBLICADO PELOS CHINS CONTRA OS ESTRANJEIROS

Imp. Lith. do A. Speltz Rua S. Jose 69. Rio de Janeiro.[nota 2][nota 3]

Foi necessario a intervenção dos marinheiros dos navios de guerra estrangeiros, para pôr cobro aos desmandos dos soldados chinezes que, durante muitos dias, praticarão toda sorte de crimes sem que as autoridades do paiz podessem contel-os.


CAPITULO VII

 
A civilisação chineza. — Costumes chinezes. — A preponderancia do cultivo intellectual entre os chins. — A familia chineza. — Os casamentos. — Um codigo criminal philosophico.— As innovações no Celeste Imperio. — As ultimas concessões do governo da China sobre a civilisação européa. — Um estrangeiro poderoso na China. — As alfandegas chinezas. — Um devastador cyclone no porto de Hong-Kong. — Um quadro horrivel. — Como se pode visitar o Japão sem travar-se conhecimento com os cyclones. — Um fatalista em acção.
 


Muitas pessôas, aliás esclarecidas pelos conhecimentos que cultivão, da historia e da litteratura occidental, ignorão o gráo de civilisação e de instrucção da sociedade chineza; e, não raras vezes, somos interrogados sobre o que vimos a este respeito, durante nossa visita a esse paiz.

Em geral, os viajantes que visitarão o Celeste Império, contão com enthusiasmo as impressões, que gosarão, vendo mil costumes originaes, usos extravagantes, e outros accidentes que encontrarão em suas excursões ás differentes cidades da China, porém, com espirito caustico, mofão das instituições chinezas, por que as julgarão pelas apparencias, baseando-se em observações incompletas ou informações inexactas. Muitos escriptores julgão a sociedade chineza pelo que virão nas cidades do littoral, exclusivamente habitadas por pescadores e piratas e pelas autoridades civis e militares, as quaes, são compellidas a empregarem medidas violentas e arbitrarias para conter populações eivadas de todos os vicios, verdadeira escoria dos habitantes da China.

É nas cidades do littoral que refugião-se os foragidos do interior, é ahi que a raça chineza se cruza com a arabe e mesmo com a cafre; e, naturalmente, é nos portos do Imperio que recolhem-se os disfarçados piratas, de que já fallamos depois de suas correrias contra os navios de commercio, já para fugirem dos temporaes já para dissiparem qualquer suspeita sobre delictos que tenhão commettido.

Eis, pois, em que meio vive o estrangeiro ao chegar a China, e, não é neste abysmo fervescente de corrupção, que o viajante deve recolher os dados para julgar do estado moral e intellectual de um povo.

Accresce á influencia dessas falsas observações sobre o animo do escriptor, a má vontade com que os chins nos recebem, o que desperta em nosso coração, um sentimento pouco generoso ainda que de natural despique: — a antipathia por esse povo.

Esta repugnancia natural não deve, entretanto, guiar nosso juizo, quando tratamos de descrever os usos e costumes de uma sociedade, sob pena de faltarmos á verdade, por fraqueza de espirito ou intoleravel egoismo. Assim para, podermos conhecer os costumes dos chins, temos necessidade de investigar a razão de suas leis, a sua indole, e mesmo o fundamento da vida de familia, e sobre tudo, não devemos deixar-nos impressionar pelo que vimos nas cidades do littoral.

A historia de nenhum outro povo necessita da razão philosophica para ser commentada como a dos chins; entretanto, na massa d’esse povo não se encontrão homens de lettras e philosophos que confundão sua missão com quaesquer outros misteres.

 
CHINA
 
Mulher china
Mulher china

Lith, Imperial A. Speltz

MULHER CHINA
 

Salvo os casos de privilegios de nascimento, que são muito especiaes no Imperio da China, todo individuo póde elevar-se ás principaes dignidades do Imperio pela sua superioridade intellectual e moral. E estas distinções são tão legitimas, que os chins respeitão seus superiores sem que para isto seja necessario a imposição official; ao contrario, é a estima e a consideração publica que apresenta ao governo os homens capazes para a administração do paiz.

Além desta superioridade, conquistada pelo estudo e virtudes existe a da idade, e, em geral, é preconceito estabelecido que o tempo fizera as pessoas idosas depositarias da sabedoria; por isso, nem os homens os mais distinctos e até o Imperador deixão de lhes prestar respeito e distincta consideração.

O exemplo do amor filial, é edificante entre os chinezes, e nenhuma sociedade lhes avantaja neste sublime dever; é assim que os livros da moral chineza dizem que a primeira cousa que dá alegria é a saude de seus paes e a união da familia.

Pela morte do pai de familia é o mais velho dos filhos que o representa, a quem seus irmãos prestão verdadeiro respeito, e, aquelle, é o unico herdeiro de todos os bens de fortuna, comtudo, qualquer que seja o legado, o filho mais velho é obrigado a educar seus irmãos, sustental-os em vida, e as irmãs, são mantidas emquanto não casão. Assim, este privilegios de primogenitura, que parece injusto, é um verdadeiro encargo para o privilegiado herdeiro, se attendermos que as nove decimas partes da população da China compõem-se de familias de proletarios.

A lei da polygamia existe no imperio, só no caso de ser a primeira mulher infecunda, então é a esta que cumpre procurar outra mulher que dê filhos a seu marido; – foi para satisfazer os votos da natureza reproductora que esta lei foi promulgada no imperio. Na propria escriptura do velho testamento, vemos muitas matronas, que se distinguirão por suas virtudes, como Lia, Sara e outras, darem a seus maridos outras mulheres, afim de que um defeito physico, que lhes era pessoal, não impedisse a successão na familia; e, na verdade, se o fim do matrimonio é a procreação, a mulher infecunda devia ceder seus direitos a outra que podesse satisfazer os encargos da esposa.

Os chins assim pensão; porém reconhecem o dominio da legitima esposa sobre a segunda mulher, e também ellas tem direito de mãi legitima sobre todos os filhos de seu marido.

A superstição lavra na China nas classes inferiores, do mesmo modo que o fanatismo nos povos de raça latina, e por isso, vemos que quando apparece qualquer epidemia ou calamidade que afflija o paiz, em lugar de cuidarem de remover as causas do mal, quando é possivel; os chins tornão-se inactivos e desanimados, e limitão-se em rogar a protecção dos seus idolos. Comtudo, á nenhum indivíduo supersticioso, é confiado os empregos do Estado, e, em geral, os homens politicos da China, seguem a doutrina de Confucio, verdadeiramente philosophica, e humanitaria por excellencia.

O codigo criminal da China é admiravel pela humanidade de suas leis e pelas razões sãs e justas com que fundamenta cada pena; sómente pelo crime commettido é responsável o delinquente; a intenção de dar morte não constitue um delicto, como o que é disposto nos codigos das sociedades que se dizem mais civilisadas; ao contrario, os legisladores chinezes condemnando o assassino por ter commettido uma morte, livremente e depois de reflexão; não admittem como crime a intenção do dar a morte, desde que o delicto não foi perpetrado; e para fundamentarem as razões do seu codigo, dizem: «que as penas são proporcionaes aos estragos causados, sendo condição essencial a intervenção da acção physica.»

Um uso chinez que seria de máo gosto para as nossas leitoras, é o que diz respeito aos casamentos e ao modo do vida do bello sexo.

As velhas, como mais experientes, encarregão-se de procurar maridos ás jovens senhoras que não são consultadas sobre a escolha feita pelos parentes, e, quando casadas, as mulheres de distincção vivem em sociedade exclusiva do seu sexo no interior de suas casas, apenas sahem á rua uma ou duas vezes no anno para visitarem seus paes.

Apezar desta especie de isolamento, as grandes damas chinezas passão horas inteiras diante dos seus tocadores, e gastão muito tempo a enfeitarem-se; o que não deixa de ser agradavel aos maridos e ao mesmo tempo satisfaz o amor proprio que afflige o seu sexo.

As innovações encontrão na China invencivel repugnancia na população, e, ainda que muitos dos seus mais illustres filhos, tenhão tentado realisar certas medidas de interesse capital para riqueza de seu paiz, raras vezes tem-se visto serem bem succedidos. Muitas vezes ouvimos dizer, que a China é um paiz estacionario, rebelde a civilisação e insociavel; e, se estas accusações são fundadas, comtudo, tendo sido este rico paiz sacrificado em seus interesses, pelos famosos tratados de commercio com algumas nações da Europa, é natural a desconfiança que alimentão seus filhos contra qualquer instituição estrangeira, das quaes, algumas, já servirão aos inglezes para levarem a effeito seus ambiciosos projectos.

N’estas condições, vivendo fóra do contacto europeu com uma civilisação propria e sendo victima da diplomacia do canhão, este povo não pode supportar qualquer innovação nos seus costumes desde que suspeitão ser de origem européa, e, já muitas vezes, as revoluções instigadas pelos lettrados, derrubarão ministros d’estado e obrigarão o imperador a mudar de politica.

Apezar do odio que o povo chinez vota a tudo que é europeo, o governo da China, auxiliado por uma parte da sociedade illustrada, parece resolvido a sacudir o espirito estacionario de exclusão que caracterisa suas relações com as demais nações.

Em 1870, por um decreto do vice-rei da provincia de Chihli, forão creadas escolas especiaes onde os jovens chinezes podem aprender as sciencias cultivadas na Europa, e, ainda ultimamente, o governo do Imperio resolveo estabelecer legações e consulados nos principaes paizes da Europa e nos consta, que noventa mandarins forão designados para occuparem estas dignidades nos mesmos paizes, que apenas a annos, os chins denominavão «barbaros».

A boa disposição que o actual governo mostra, para com as instituições estrangeiras, é sem duvida devida a um homem poderosissimo da China, que sendo estrangeiro, soube captar a confiança dos chins e elevar bem alto a civilisação do occidente. O Sr. Roberto Hart chamado á China para crear e administrar o serviço das alfandegas do imperio, soube, em poucos annos, elevar as rendas das alfandegas, que antes rendido algumas centenas de dollars, à trinta e seis mil contos de réis annuaes, porém, depois de ter dispensado do serviço das alfandegas os filhos do céo, que forão substituidos pelos europeos.

As principaes alfandegas do celeste imperio são: a de Shangaï, Kien-Kiang, Fou-Chào, Cantão, Tai-Onan, Chin-Kiang, Nuig-Po, Chi-Fou, Tien-Tsin e Amoy.

Em 1869, os objectos importados representavão um valor de duzentos e quarenta mil contos de réis, e os artigos de exportação o de duzentos mil contos; elevando-se a receita das alfandegas á importante somma de trinta mil contos de réis que foi com o mais delicado escrupulo entregue pelo Sr. Hart ao governo da China.

Apezar da grande influencia de que este cavalheiro dispõe, não lhe foi ainda possivel decidir o governo a consentir na exploração das importantes minas de carvão do Pe-Tchi-Li e da ilha Formosa, entretanto, o preço da tonellada d’este mineral eleva-se muitas vezes á quarenta mil réis e mesmo, raras vezes, os paquetes e navios a vapor encontrão á venda em Shangaï e em outros portos da China o carvão de que necessitão, soccorrendo-se dos depositos das Messageries ou da Companhia peninsular.

Devíamos partir de Hong-Kong no dia 25 de Setembro pela manhã a bordo do Tanaïs com destino á Yokohama, porém, ainda achavamo-nos no Ava, quando ao anoitecer de 22 fomos assaltados por um violento cyclone que causou grandes avarias e desgraças em todo o porto e na parte baixa da cidade de Hong-Kong.

Foi verdadeiramente horrivel a noite que passamos a bordo do Ava durante o furacão.

Por espaço de doze horas, os officiaes, marinheiros e passageiros do Ava, esperavão a todo momento serem victimas da tormenta, e se depois de quebradas duas correntes que amarravão o navio, a ancora de salvação não podesse impedir o Ava que ia á garra, despedaçar-se contra o forte de Hong-Kong, teriamos a mesma sorte de vinte navios de alto bordo que derão a costa ou forão a pique, depois de se abalroarem, em quanto que o temporal, em terra também causava grandes desgraças.

O vento começou a soprar com impeto ás oito horas da noute mais ou menos, e, uma hora depois, tal era a violencia das rajadas, que se succedião com intervallos de mortificante silencio, que não ouviamos o que um companheiro de viagem, em voz alta, nos dizia, na distancia de um metro.

Ás duas horas da madrugada ouvimos em um destes intervallos, gritos de agonia e de soccorro; e no mesmo instante um grande navio passava á garra a bombordo do Ava e ia-se despedaçar sobre as casas que rodeão o caes da cidade.

Quando a rajada soprava, o Ava deitava-se sobre o seu bordo; era impossivel conservarmo-nos de pé; apenas, agarrados ás columnas de ferro da praça do navio, podiamos ter as indicações das agulhas de dois barometros aneroides.

Ás tres horas, o immediato exhausto por um lidar terrível de oito horas, desceu para onde estavamos, lançando imprecações contra as miserias da vida do marinheiro, e rogava a Deus a morte de seus filhos antes de dar-lhes momentos tão crueis como inglorios. Foi, então, que as duas cadeias do Ava romperão-se e o navio achou-se apenas preso á grande ancora que entretanto caçava.

O commandante, firme no seu posto, só esperava que a ultima ancora se perdesse para ordenar o movimento da machina com o fim de governar pelo porto até que a tempestade passasse, ou mesmo tentar uma sahida para o oceano; porém o céu estava escuro e os chuviscos obscurecião o tempo que era impossivel distinguir-se qualquer objecto ou mesmo a luz a alguns metros de distancia.

Felizmente pela madrugada, o vento saltava para o mesmo ponto donde começára na tarde anterior; cyclone tinha passado, mas o quadro mais triste e desolador que aos nossos olhos se tem mostrado veio contristar o nosso coração e fazer esquecer os perigos passados.

Em um canal, ao lado da cidade, apenas vía-se sobre a agua as pontas dos mastros de tres navios, carregados de gente que esperavão soccorros. Em frente de nós, sobre o caes, dois vapores hespanhoes que devião partir no dia seguinte para as Philippinas, completamente quebrados; perto das fortificações, alguns outros navios sossobrados e somente eramos tres ou quatro sobre a agua dos vinte que ahi se achavão fundoados na vespera.

A rua principal da cidade, sobre o caes, offerecia o aspecto de ruinas, tal era o numero de casas abatidas pelo furor do tufão.

Segundo os jornaes inglezes, o numero dos mortos se elevava a oito mil, comprehendidas as pessoas que perecerão nos navios hespanhoes, cujos passageiros compunhão-se na mór parte de familias proscriptas da Hespanha pela guerra civil, e que ião ás Philippinas em busca do asylo que, na sua patria, lhes era negado pelos soldados de D. Carlos.

Descemos á terra e desviamos os olhos destes montões de cadaveres de pescadores chins e de europeus, que as vagas lançavão a praia. Durante seis dias, que ahi permanecemos, só o desgosto e o pezar nos desanimava em nossos passeios e visitas aos arredores de Hong-Kong.

Sentimos não saber o nome de um cavalheiro inglez, então director da repartição dos incendios de Hong-Kong, que durante o furor do temporal arriscou sua vida para salvar a de um certo numero de passageiros dos navios hespanhóes. Actos desta ordem não devião ficar em silencio; e não nos desculpamos de ignorar um nome digno do reconhecimento de todas as almas bem formadas.

Emquanto dous elementos desencadeados levavão a morte e a desolação aos habitantes de Hong-Kong e aos tripolantes e passageiros dos navios surtos no porto, grupos de piratas chins ateavão fogo aos armazens da companhia americana, e levavão o saque e a pilhagem á um dos paquetes desta mesma companhia.

O incendio por circumstancias inexplicaveis apenas consumio dous armazens, porém, na pilhagem, forão assassinados alguns estrangeiros pelos miseraveis bandidos.

O governador da colonia mandou proceder a um inquerito sobre este inaudito crime e consta-nos que seus autores pagárão com a vida o acto barbaro e sanguinario que praticarão com o mais revoltante cynismo e audacia.

Muitos forão os dias de consternação e de luto que se seguirão ao da horrivel catastrophe; e a cidade de Hong-Kong foi theatro de pungentes e dilacerantes scenas.

Aqui, era um pai curvado pelos annos que reconhecia entre os vultos desfigurados dos cadaveres o do filho querido, a quem havia horas, considerava seu unico arrimo; mais adiante, uma pobre viuva trazendo pela mão dous filhinhos, levantava seus olhos ao céo para pedir ao Creador coragem e resignação, emquanto as crianças chamavão, em lingua indigena, aquelle que, sem duvida, lhes tinha dedicado seu ultimo pensamento; além, perto dos destroços do vapor Albany, um homem de tez morena com os cabellos em desordem e suas vestes em desalinho, andava a largos passos sobre o caes, gesticulando e fallando em voz alta e em lingua hespanhola, como que ordenando as manobras de um navio em perigo: – era o commandante do Albany a quem a desgraça da vespera tornara louco.

E estas lugubres scenas se repetirão durante o dia por varias vezes, todos choravão, e quem não tinha lagrimas para verter devia soffrer horrivelmente; — concentrava sem duvida acerba dor em seu coração.

Estas contrariedades, que algumas vezes sorprehendem os viajantes nas longinquas jornadas ao oriente, fazem valer as emoções que elles esperimentão ao visitar tão interessante paiz; e, se algum leitor tem a intenção de visitar o Japão, lhe aconselhamos realisar esta instructiva e deleitosa viagem, porém, de modo, que utilisando intelligentemente seu tempo espere na India a bôa estação para embarcar-se para o Japão. Em todo caso é perigoso e de máo gosto, viajar sobre os mares da China e do Japão durante a epocha da transicção das monções, o que tem lugar nos mezes de Setembro e Outubro; ao contrario, conta todas as probabilidades de fazer conhecimento com os cyclones o que não apurando o gosto para as viagens de mar, nem nos impressionando de modo agradavel, nos faz passar algumas horas aziagas.

Entretanto, existe nessa immensa familia humana alguns individuos de tal regimen de vida que nada lhes altera os costumes, e, como exemplo, apresentamos um gentleman nosso companheiro de viagem, que durante os dous violentos tufões deitara-se ás horas do costume ainda que para manter-se sobre o leito se ligasse solidamente á guarnição de ferro de que elle era rodeado, e como alguém lhe perguntasse se não receiava pela segurança do navio, e admirasse a serenidade de seu animo, á vista das desgraças que presenciavamos no porto, apenas respondeu que era fatalista.

E, na verdade, se o inglez não tinha razão não podemos negal-a ao experiente commandante do Ava.

 
JAPÃO
 

Lith, Imperial A. Speltz

OS IMPERANTES DO JAPÃO
 

CAPITULO VIII

 
O Japão antigo — Os escriptores hollandezes ciosos da descoberta do Japão pelos portuguezes. — Fernão Mendes Pinto. — Como este viajante descobrio o Japão, e como foi recebido n’esse paiz. — S. Francisco Xavier no Japão. — Como forão recebidos os primeiros estrangeiros no Japão. — Os missionarios e os bonzos. — Importancia do commercio portuguez com o Japão.
 


De todos os paizes da Asia, é, na opinião da maior parte dos viajantes, o Império Japonez que mais interesse apresenta, assim pelos costumes dos seus habitantes, como pelo lugar que em breve occupará entre as nações mais adiantadas.

A sua historia, se perde nas tradicções antigas de modo que seria impossivel, determinar-se, com alguma approximação, quaes os costumes d’este povo nos tempos primitivos, e nem mesmo póde-se affirmar qual a sua origem.

Nos annaes historicos d’este paiz, vê-se a identificação dos primeiros chefes japonezes com deoses e semi-deoses de uma mythologia complexa. Assim é, que por elles se vê que, durante dois milhões de annos, reinarão cinco deoses-homens, que se succederão no governo, para irem ás altas regiões decidirem dos destinos de seu paiz. Esta tradição legendaria nos mostra com clareza que a fórma theocratica do governo subsistio até 1868, quando a revolução veio senão, então tornar o Japão um paiz constitucional pelo menos fazel-o pôr em movimento todas as suas forças, e de um salto sahir do estado de barbaria relativo, em que se achava, á um gráo de civilisação bem apreciavel.

Antes de fallarmos do Japão moderno, será indispensavel para accompanharmos o seu progresso, lançarmos a vista sobre sua historia a partir da epocha em que se soube de sua existencia na Europa.

Alguns escriptores hollandezes, levados por um sentimento de patriotismo mal entendido, negão aos portuguezes a gloria de terem sido os primeiros europeos que pisarão o solo japonez; outros, respeitando a verdade, ajuntão que esta gloria foi obra do acaso, e por isso, que o facto da descoberta do Japão apenas apresenta sob este ponto de vista um interesse secundario.

A estes, basta lembrarmos que não foi o acaso que fez dos antigos portuguezes aventurosos navegantes e perfeitos guerreiros de então; aos primeiros, pediremos permissão para pôr em duvida seus titulos de fieis chronistas.

E, se algum facto pode ser verificado mais facilmente o da descoberta do Japão pelos portuguezes o será tambem, e este é assumpto de brilhantes paginas escriptas pelo seu proprio descobridor Fernão Mendes Pinto e pelo continuador das decadas da Asia de João de Barros, Diogo do Couto.

Os proprios annaes da Companhia das Indias Orientaes contão que aos portuguezes se deve a noticia d’este rico paiz do Oriente, com o qual, durante dois seculos, ella foi a unica que d’elle auferio lucros immensos.

A narração de Fernão Mendes Pinto parece em alguns pontos inverosimil, porém não é difficil conhecer-se que a falta de precisão, é antes filha de uma imaginação ardente e enthusiastica pelos seus proprios feitos, do que de calculada má fé ou de habituada mentira.

Como nós partimos da cidade de Uzangué [7], e do que nos aconteceu, até chegarmos á ilha de Tanaxumá [8], que é a primeira terra do Japão.

«Com alvoroço, o contentamento, que se pode imaginar que teriamos no cabo de tantos trabalhos, e desventuras, como até então tínhamos passado, do que por então nos viamos livres, nós partimos d’esta cidade de Uzangué a 12 de Janeiro, e fizemos nosso caminho por um grande rio de agua doce de mais do uma legua em largo, levando a proa a diversos rumos, por causa das voltas que o rio fazia; vendo sempre por espaço de sete dias, que por elle corremos, muitos e mui nobres logares, assim villas como cidades, que segundo o apparato de fóra, parecia que devião do ser povos ricos, pela sumptuosidade dos edifícios, que nelles se vião assim de casas particulares, como de templos com curuchéos cosidos em ouro, e pela grande multidão do embarcações de remos, que ali se vião com toda a sorte de mercadorias, e mantimentos em muita abundancia. Chegando nós a uma Cidade muito nobre, que se dizia Quangeparú [9], quo teria quinze, ou vinte mil visinhos, oNaudelum, que era o que por mandado d’El-Rei nos levava, se deteve n’ella dose dias fazendo sua veniaga com os da terra a troco de prata, e de perolas, em que nos confessou que de um fizera quatorze; mas que se levara sal, se não contentara com dobrar o dinheiro trinta vezes. Nesta cidade nos affirmarão que tinha El-Rei de renda todos os annos, só das minas de prata, dois mil e quinhentos picos, que são quatro mil quintaes; e fóra esta renda, tom outras muitas cousas differentes.

«Esta cidade não tem mais força para sua defensa, que só um fraco muro de tijolo de oito palmos dos meus de largo, e sete palmos de fundo. Os moradores della são gente fraca, e desarmada, nem tem artelheria, nem cousa que possa prejudicar a quaesquer quinhentos bons soldados, que a acometerem. D’aqui nós partimos uma terça-feira pela manhã, e continuamos por nossa derrota mais treze dias; no fim dos quaes chegamos ao porto de Sanchão[10] no Reino da China, que é a ilha onde depois falleceo o Bemaventurado S. Francisco Xavier, como adiante se dirá: e não achando ali já a este tempo navio de Malaca, por haver nove dias que erão partidos, nós fomos a outro porto mais adiante sete leguas por nome Lampacau, aonde achamos dois juncos da costa do Malayo, um de Patané, e outro de Lugor. É como a natureza desta nossa nação Portugueza é sermos muito affeiçoados a nossos pareceres, houve aqui entre nós todos oito tanta differença, e desconformidade de opiniões sobre uma cousa, que o que mais nos levava era termos muita paz, e concordia, que quasi nos houveramos de vir a matar uns aos outros; de maneira que por ser assaz vergonhoso contar o como isto passou, não direi mais, senão que o Necodá da lorcha, que nos alli trouxe, espantado deste nosso barbarismo se partio muito enfadado, sem querer levar carta, nem recado nosso, que nenhum de nós lhe desse, dizendo que antes queria que El-Rei por isso lhe mandasse cortar a cabeça, que offender a Deos em levar cousa nossa, aonde elle fosse. E assim differentes, e mal avindos ficamos nesta ilha mais nove dias, em que os juncos ambos se partirão, sem tambem nenhum d’elles nos querer levar comsigo; pelo que nos foi forçado ficarmos alli mettidos no mato arriscados a grandes perigos, dos quaes ponho muita duvida podermos escapar, se Deos Nosso Senhor se não lembrára de nós; porque havendo dezasete dias que aqui estavamos em grande miseria, e esterilidade, veio acaso alli surgir um cossairo por nome Samipocheca, que vinha desbaratado fugindo da Armada do Aytão do Chinchêo, que de vinte e oito vélas que trazia, lhe tomara as vinte seis, e elle escapara somente com aquellas duas que trazia comsigo, das quaes trazia a maior parte da gente muito ferida; pelo que lhe foi forçado deter-se alli vinte para que a curasse. E nós os oito constrangidos da necessidade nos foi necessário assentarmos partido com elle, para que nos levasse comsigo por onde quer que fosse, até que Deos nos melhorasse n’outra embarcação mais segura, em que nós fossemos para Malaca.

«Passados estes vinte dias em que os feridos convalescerão, sem em todo este tempo haver entre nós reconciliação da desavença passada, nos embarcamos ainda assim mal avindos com este cossairo; os tres no junco em que elle ia, e os cinco no outro, de que era capitão um seu sobrinho ; e partidos daqui para um porto, que se chamava Laylo, [11] avante do Chinchêo [12] nove léguas, e desta ilha oitenta, seguimos por nossa derrota com vento bonança ao longo da costa de Lamau [13] espaço de nove dias ; e sendo uma manhã quasi noroeste-sueste com Rio do Sal, que está abaixo do Chaboque, cinco léguas nos accommetteu um ladrão com sete juncos muito alterosos, e pelejando comnosco das sete horas da manhã até as dez, em que tivemos uma briga assaz travada, e muitos arremeços, assim de lanças, como de fogo; emfim se queimarão tres velas, as duas do ladrão e uma das nossas, que foi o junco, em que ião os cinco Portuguezes, a que por nenhuma via pudemos ser bons, por já a este tempo termos a maior parte da gente ferida; e refrescando-nos sobola tarde a viração, prouve a Nosso Senhor que lhe fugimos, e escapamos das suas mãos. E continuando nossa viagem assim destroçados como hiamos mais tres dias, nos deu um temporal de vento esgarrão por cima da terra tão impetuoso que naquella mesma noite a perdemos de vista; e como então já a não

podiamos tornar a tomar, nos foi forçado arribarmos em popa
Como desembarcamos n'esta ilha de Tanixumá, e do que passamos com o senhor d’ella.

« Não havia ainda bem duas horas, que estavamos surtos nesta calheta de Miaigina, quando o Nautaquim Principe desta ilha do Tanixumá se veio ao nosso junco acompanhado de muitos mercadores, o de gente nobre com grande somma de caixões cheios do prata para fazer fazenda. E depois de se fazerem de parte a parte as cortezias costumadas, o elle ter seguro para se podor chegar a nós, se chegou logo, e vendo-nos aos tres Portuguezes, perguntou que gente éramos, porque na differença do rosto e barbas entendia que não éramos chins. O capitão cossairo lhe respondeu que éramos de uma terra, que se chama Malaca, aonde havia muitos annos que tinhamos vindo de outra que se dizia Portugal, cujo Rei, segundo nos tinha ouvido algumas vezes, habitava no cabo da grandeza do mundo. De que o Nautaquim fez um grando espanto e disso para os seus que estavão presentes. Que me matem se não são estes os Chenchicogins, de que está escripto em nossos volumes, que voando por cirna das aguas, tem senhoreado ao longo delia os habitadores das terras, aonde se crearão as riquezas do mundo: pelo que nos cahirá em boa sorte, se elles vierem a esta nossa com titulo de boa amisade. E chamando então para junto de si uma mulher. Lequia, que era a interprete por quem se entendia com o Capitão Chim senhor do junco, lhe disso. Pergunta ao Necodá aonde achou estes homens ou com que titulo os traz comsigo a esta nossa terra do Japão? A que respondeu: Que sem falta nenhuma éramos mercadores, e gente bóa, e que por nos achar perdidos em Lampacau, nos recolhera, para nos ajudar com suas esmolas, como tinha por costume fazer a outros, que já assim achara; para que Deus permittisse livral-o a elle das adversidades impetuosas, que cursavão por cima do mar, com as quaes se perdião os navegantes. Ao Nautaquim parecerão tão bom estas razões do cossairo , que entrou logo no junco e mandou aos seus, que por serem muitos não entrassem mais que os que elle dissesse. E depois de andar vendo todas as particularidades do junco assim da pôpa, como da prôa, se assentou em uma cadeira junto com o toldo, e nos esteve inquirindo de algumas cousas particulares, que desejou saber de nós, a que respondemos conforme ao gosto, que nelle enchergamos, de que elle mostrava muito contentamento.

«Nestas praticas gastou comnosco um grande espaço, mostrando em todas as suas perguntas ser homem curioso, e inclinado a cousas novas; e se despedio de nós e do Necodá chim, que dos mais não fez muito caso; dizendo:

— Amanhã me ide vêr a minha casa, e me levai um grande presente de novas desse grande Mundo, por onde andaste, e das terras que tendes visto, e como se chamão; porque vos affirmo que essa só mercadoria comprarei mais a meu gosto, que todas as outras; e com isto se tornou para terra.

«E como ao outro dia foi manhã clara, nos mandou ao junco um grande paráó de refrescos, em que entravão uvas, peras, melões, e toda a sorte de hortaliça, que ha nesta terra; com cuja vista demos muitas graças e louvores a Nosso Senhor.

«O Necodá do junco lhe mandou pelo mensageiro algumas peças ricas, e brincos da China em retorno do refresco, e lhe mandou dizer que como o junco ancorasse no surgidouro, quando estivesse seguro do tempo, o iria logo ver a terra, e levar-lhe as amostras da fazenda, que trazia para vender.

«E ao outro dia tanto que foi manhã desembarcou em terra, e nos levou comsigo a todos tres com mais dez chins, os que lhe parecerão mais graves, e autorisados em suas pessoas, os quaes elle queria para o ornamento desta primeira vista, em que esta gente se costuma mostrar com muita vaidade.

 
China
Lit. Imp. A. Speltz.
𝕯𝖆𝖒𝖆 𝖈𝖍𝖎𝖓𝖊𝖟𝖆 𝖊 𝖘𝖚𝖆 𝖈𝖗𝖎𝖆𝖉𝖆
 

Chegando nós a casa de Nautaquim, fomos bem recebidos delle, e o Necodá lhe deu um bom presente, e após isto lhe mostrou as amostras de toda a sorte de fazenda, que trazia;de que elle ficou muito satisfeito, e mandou logo chamar os principaes mercadores da terra, com os quaes se tratou o preço della, e concertados nelle, se assentou que ao outro dia se trouxesse a uma casa, que mandou dar ao Necodá, em que se agasalhasse com a sua gente, até se tornar para a China. Isto ordenado, o Nautaquim tornou de novo a praticar comnosco, e a perguntar-nos por muitas cousas miudamente, a que respondemos mais conforme ao gosto, que nelle viamos, que não ao que realmente era verdade; mas isto foi em certas perguntas, em que foi necessario ajudarmo-nos de algumas cousas fingidas, por não desfazermos no credito, que elle tinha desta nossa patria. A primeira foi dizer-nos: que lhe tinhão dito os chins, e lequios que Portugal era muito maior em quantidade assim de terra, como de riqueza, que todo o Imperio da China; o que nós lhe concedemos. A segunda: que tambem lhe tinhão certificado que tinha o nosso Rei fogigado por conquista de mar a maior parte do mundo; a que tambem dissemos que era verdade. A terceira, que era tão rico o nosso Rei de ouro e de prata, que se affirmava que tinha mais de duas mil casas cheias até ao telhado; e a isto respondemos que no numero de duas mil casas nós não certificavamos, por ser a terra e o reino em si tamanho, e ter tantos thesouros, e povos, que era impossivel poder-se-lhe dizer a certeza disso. E nestas perguntas, e em outras, desta maneira nos deteve mais de duas horas; e disse para os seus:

— Certo que se não deve haver por ditoso nenhum rei, de quantos agora sabemos na terra, senão já o que for vassallo de tamanho monarcha como é o imperador desta gente.

«E despedindo o Necodá com toda sua companhia, nos rogou que quizessemos ficar aquella noite com elle em terra, porque se não fartava de nos perguntar muitas cousas do mundo, a que era muito inclinado, e que pela manhã nos mandaria dar umas casas, em que pousassemos junto com as suas, por ser o melhor lugar da cidade; o que nós fizemos de boa vontade, e nos mandou agasalhar com um mercador muito largamente; assim nesta noite, como em doze dias mais, que pousámos com elle.»

Estas linhas bastão para mostrar como Pinto aportou no Japão, e fica bem provado, pelos capitulos seguintes da narração de Pinto, e que não transcrevemos por serem extensos, que foi elle, e Zeimoto um dos companheiros a quem se refere, os primeiros filhos do occidente que forão ao Japão. Fica ainda provado pelos annaes do Japão que, apezar de ser já ahi conhecida a polvora, forão Pinto e seus companheiros que primeiro fizerão conhecer aos japonezes-as armas de fogo e lhes ensinarão o modo como d’ellas se devião servir.

Segundo a ordem dos factos e algumas datas apresentadas por Pinto nas suas 'Peregrinações, devemos concluir que este viajante chegou a Tanegasimá em começo do anno de 1545, o que não combina com a tradicção Japoneza que menciona a chegada do primeiro navio europeu no Japão em 1543; comtudo, parece-nos que não é prova bastante esta divergencia para autorisar a rejeitar como falso, ter sido Pinto um dos descobridores do Japão. Erros semelhantes se tem observado em outras datas, que, entretanto, forão verificadas de diversos modos.

Ainda hoje, no Japão, póde-se vêr desenhados sobre papel os retratos dos primeiros europeus que alli aportarão; e pelo vestuario, accessorios e mais signaes, conhece-se perfeitamente que são portuguezes do XVI seculo o que elles representão.

Pinto voltou alguns annos depois á Gôa, tendo neste intervallo, realisado varias viagens ao Japão, com o que ganhou boa somma de dinheiro.

Segundo conta o Padre Melchior Nunes Barreto, foi Pinto quem convidou e acompanhou ao Santo padre Francisco Xavier, tambem chamado o apostolo das Indias, ao Japão, e ahi deixando este virtuoso varão, Pinto voltou á Europa à occupar, durante muitos annos, lugar distincto na côrte de Philippe II, que o tratava com estima e distinção.

Facil foi o estabelecimento dos portuguezes no Japão, e varias causas concorrerão para attingirem a este fim.

Primeiramente, nenhuma indisposição nutrião os amaveis japonezes contra os estrangeiros, e superior a tudo, muito contribuirão as santas doutrinas do martyr do Golgotha. Infelizmente, nem todos os missionarios comprehenderão a santa missão, à que voluntariamente se obrigarão, e as queixas repetidas e as difficuldades que elles oppunhão á marcha dos negocios publicos no Japão, decidirão o governo a lançar mão de todos os meios para banir os estrangeiros do sólo japonez, o que elle levou a effeito, fechando durante dous seculos, todos os portos do imperio aos europeus, com excepção dos hollandezes, porém, que aceitarão certas e determinadas condições bastante humilhantes e restrictivas.

Porém, para bem comprehender-se, como a successão de factos deu em resultado uma medida tão extraordinaria, unico exemplo que nos apresenta a historia das nações, traçaremos ao correr da penna, aquelles que mais contribuirão para o isolamento do Japão.

Os primeiros propagadores do chistianismo no Oriente não podião ser mais felizes em sua missão, e tal era o numero de convertidos que fizerão em alguns mezes, que elles attribuião á um soccorro sobrenatural, a rapidez com que se convertião cidades inteiras, desde o principe até ao mais humilde homem do povo. Assim devia ser: as verdades do christianismo não deixarião de influir sobre um povo intelligente e nobre, que assistia muitas vezes a victoria ganha pelos primeiros missionarios, em estiradas discussões theologicas com os bonzos do Japão, que vivendo desregradamente não podião exemplificar as doutrinas que ensinavão.

Avidos por saber, admiradores das intelligencias cultivadas, já, m’aquellas epochas, o povo corria a assistir á estas discussões, provocadas pelos bonzos sobre um mysterio ou dogma da religião christã. Os missionarios que aprendião com extrema facilidade a fallar a lingua japoneza, aceitavão os desafios, e da arena sahião victoriados pelo povo, que pedia-lhes em altos brados o baptismo, declarando quererem professar uma religião, cujas verdades não se impõe, porém se demonstra com evi- dencia.

Tal era o systema da cathechese no Japão, emquanto alli esteve o Padre Francisco Xavier, que levantando com seus virtuosos exemplos e sua illustração, os alicerces de um dos mais bellos edifícios da fé, mal sabia que outros seus successores, sem recursos intellectuaes, nem dispondo de uma alma bem formada, virião, alguns annos depois, dar ganho de causa aos bonzos, que moralmente fortes, pedirão aos governadores a expulsão dos padres, e a interdição dos livros sagrados no território japonez.

Outros factos, vierão comprometter a causa dos Europeus, tão intimamente ligada á da religião christã.

Além de abusivas praticas dos negociantes portuguezes, quando desembarcavão em alguns portos pouco frequentados, impondo por preços elevadissimos as mesmas fazendas que em Nangasaki vendião pela decima parte, forão estes mercadores muitas vezes intrigados pelos hespanhoes que traficavão sob a capa dos portuguezes, e por isso mesmo, com menos escrupulo do que se fizessem abertamente. Não forão, comtudo, estes os que mais concorrerão para que os japonezes lançassem mão de medidas repressivas e energicas para se verem livres das visitas numerosas de navios de diversas nações, que ião carregados de fazendas, e voltavão com immensas riquezas, adquiridas pelos negociantes estrangeiros com usura e facil trabalho.

A inveja causada pela preferencia que os grandes potentados japonezes davão aos portuguezes, foi a cansa da ruina de um commercio que, como dizia um chronista da epocha, «se durasse mais alguns annos, faria de Macão a primeira cidade do Oriente.»

Tal era a importância do commercio portuguez que, em um só anno, os seus navios transportarão de Nagasaki á Macáo, duas mil tresentas e cincoenta caixas de prata, representando um valor de mil contos de réis. Em 1636, conta a chronica hollandeza sobre o commercio do Japão, que dous navios portugueses , d’ali sahirão carregando mais de oito mil contos em metaes preciosos.

Tal foi a origem da intriga dos hollandezes que, sem crenças a conservar, insinuarão-se no animo dos japonezes, atacando os sacerdotes europeus, e que mesmo exclamavão, em altas vozes, que serião funestas as consequências da propaganda christã para o Japão, e durante dous séculos, satisfizerão as mais vexatorias condições, para a dignidade do homem livre, com o unico fim de conservarem um armazém em Nangasaki o ahi poderem negociar.

Agora vejamos, no seguinte capitulo, como germinarão as sementes lançadas no solo Japonez pelo Apostolo das Indias.


CAPITULO IX

 
Progresso do Christianismo no Japão.— As discussôes theologicas entre os bonzos e os missionarios. — Penas e trabalhos por que passou o Apostolo das Indias.— O bonzo Foucarandono.


Ahistoria da Igreja Catholica do Japão, é cheia de feitos heroicos e de numerosos exemplos que muito honrão o caracter dos filhos desse paiz.

Os miraculosos progressos operados, pela palavra de S. Francisco Xavier, só se encontrão comparaveis nos fastos da Igreja primitiva.

E sem desconhecermos o interesse que tomavão pela propaganda da Fé no Japão, os mercadores Portuguezes, sem que fossem levados por legitimo fervor religioso mas por amor a ingrata e caprichosa deosa da fortuna; comtudo, não se póde attribuir o fervor dos primeiros missionarios á sordido interesse, que apagasse o brilho de seus feitos em favor condição primaria para civilisação de um povo.

A coragem e a constância com que os convertidos supportarão os maiores tormentos e ignominias, fallão ainda bem alto em favor d'este povo que merece, pelas qualidades que o ennobrecem, a admiração e o respeito de todas as Nações.

S. Francisco Xavier chegou ao Japão em 15 de Agosto de 1549, levando em sua companhia, um joven Japonez, que alguns annos antes partira do Japão em companhia de alguns mercadores Portuguezes, e que depois de se instruir sobre os mysterios da Religião Catholica e de receber, nas Indias, as ordens religiosas, voltava a sua patria disposto a auxiliar ao padre Xavier na missão.

O rei, a rainha de Satsouma e um grande numero de fidalgos Japonezes, intrigados pelos boatos que logo correrão sobre as virtudes do Santo Missionario e a conversão de seu compatriota que é mencionado nas chronicas da Igreja com o nome de Paulo de Santa Fé, mandarão buscal-os; e depois de ouvirem e fazerem interpretar as palavras do Santo varão, o rei concedeu-lhe por cartas-patentes, a graça de pregar em todas as terras sob seu dominio, e por ellas autorisava aos seus subditos a abraçarem a nova religião.

Apenas S. Francisco Xavier completou seus conhecimentos sobre a lingua Japoneza de modo a poder d'ella servir se nas predicas, percorreu toda a provincia de Satsouma fazendo proselytos e levantando capellas, ás quaes corria o povo, por zelo ou curiosidade, em prejuizo dos interesses dos bonzos que vião a estima e veneração publicas voltarem-se para os sacerdotes de um novo culto; ao mesmo tempo começavão a faltar-lhes a caridade dos Japonezes e o perigo era extremo para elles. Empregarão logo todos os meios, sem muito escolher, para aniquilar o alto prestigio de que gosavão os Missionários, já accusaudo-os de feitiçaria e do toda sorte de embustes, já ameaçando com a cólera dos deoses a aquelles que assistissem aos officios divinos da nossa religião.

Eis, segundo a chronica Japoneza, a linguagem que elles empregarão em seus protestos ao Rei de Satsouma.

«Porque deixareis a Religião de vossos antepassados para abraçar a de tres miseraveis estrangeiros que vierão procurar pão no nosso paiz? Sereis capaz de expulsar de vossos Estados os deoses titulares do Imperio para admittir um Deus desconhecido e amotinador, que guerrea a todos os outros sem querer compartilhar o poder? A divisão do Reino, uma guerra sanguinolenta entre os vossos subditos, a perda da vossa corôa, a inveja dos Reis vossos visinhos, aos quaes se juntarão todos os sacerdotes do Japão para vingar os ultrages que quereis fazer aos Kamis [14], aos Fotocas [15] e á gloria dos Pagodes; — taes são os resultados que deveis esperar, se não ordenais sem demora contra estes estrangeiros, inimigos da Religião e do Estado.

O Rei temendo que taes ameaças se realisassem, e pouco lhe importando os interesses de uma Religião, cujos beneficios desconhecia, revogou a permissão que dera aos Missionarios para livremente poderem pregar; e, sob pena de morte, foi prohibido aos Japonezes de abraçarem a Religião do Christo.

Depois de exercer a influencia que suas virtudes lhe dava, perto do Rei de Satsouma, e nada obtendo, S. Francisco Xavier partio para Firato, deixando aos cuidados de Paulo da Santa Fé o fóco de luz que tão brilhantemente já illuminava até o mais insignificante lugarejo da provincia de Satsouma.

Contão os padres Bouhours, Marini e outros que tratarão de tal assumpto, que o chefe dos bonzos europeos, como os japonezes denominavão o padre Xavier, obteve em Firato em suas prédicas o mesmo successo que ao principio em Satsouma e que ahi deixando o padre Cosme da Torre partio depois de pouca demora para Miako, capital religiosa do Japão, onde esperava instruir grande numero de néophytos. De passagem para Amangouchi elle prégou a palavra do Evangelho; porém, foi ahi mal recebido e perseguido ás pedradas pela população, que não podia comprehender, como um sacerdote consentia em trazer as vestes esfarrapadas sem nada pedir para si: tal era o luxo que ostentavão os bonzos desta rica cidade que assim habituarão o povo a julgar.

Nem as perseguições, a fome, o frio e mil contrariedades desalentarão ao padre Xavier, que confiando na justiça da causa por que combatia, depois de vencer mil obstaculos, chegou a Miako certo de ahi arvorar o Estandarte da Cruz; porém, o paiz achava se nas garras de uma feroz guerra civil, sustentada entre os dous Imperadores do Japão, o Mikado e o Taikúno. Resolveo pois voltar á Firato persuadido de que sua presença em Miako seria de nenhuma vantagem á sua missão.

Na volta, o padre Xavier tornou a passar pela cidade de Amangouchi, e graças a alguns presentes, consistindo cm objectos desconhecidos no paiz, que elle offereceo ao rei da provincia deste nome, a quem também forão entregues cartas officiaes do Rei das Indias e do Bispo de Gôa, nas quaes o padre Xavier era apresentado como homem de grandes virtudes e de posição consideravel entre os portuguezes, elle encontrou a mais cordial hospitalidade nesta cidade, ao contrario do que se vio na sua primeira visita. E quando em uma occasião que o rei de Amangouchi offereceo ao santo varão uma forte somma do dinheiro em troca dos interessantes presentes que este lhe fizera, o vio recusar hnmildemente, elle exclamou admirado:

«— Nossos bonzos só nutrem um desejo insaciável de amontoar ouro e prata, e este bonzo da Europa nada quer acceitar!»

Esta conducta irreprehensivel, valeo a mais alta idea que os japonezes, poderão conceber sobre a nossa religião, o seus sacerdotes, e a protecção que este rei dispensou ao padre Xavier e aos seus companheiros mudou a situação da Igreja no Japão.

De feito, não erão bastantes tão poucos pastores para tão numerosos rebanhos e apezar da actividade dos primeiros missionarios, foi necessário que o padre Xavier escrevesse para Roma pedindo voluntários apostolos que a seu exemplo e de seus maiores, se dispuzessem a morrer, se assim fosse necessario, para honra e confirmação das suas crenças.

Assim escrevia o padre Xavier para Roma e ajuntava: — «É necessario que sejão homens (os missionarios) de uma vida irreprehensivel; porque os japonezes julgão do interior para o exterior, e da boa doutrina pelos bons costumes. Que tenhão tambem grande capacidade e muita instrucção. Esta nação possue homens sabios que só cedem quando convencidos por evidentes razões. Que elles contem soffrer todas as necessidades com intrepida coragem; viver em continuos perigos; morrer se fôr necessário em terriveis torturas; que sejão profundamente entendidos em astronomia e em mathematicas; que não contem, sobretudo, com faceis successos porém, com toda sorte de obstáculos e trabalhos.»

« Elles se fatigarão durante todas as horas do dia e durante uma parte da noite, com visitas importunas e questões enfadonhas. Elles serão sem interrupção, chamados ás casas de pessoas de qualidade, e, muitas vezes, nem terão tempo para orarem nem se recolherem, nem poderão talvez dizer missa e lêr o breviario e muito menos dispor de tempo para repousarem. Não se póde acreditar quanto importunos são os Japonezes para os estrangeiros de quem não fazem nenhum caso. Julgai o que soffrerão os nossos apostolos quando fôr preciso levantar-se contra a Fé de taes homens e censurar altamente seus vicios e seus erros!!»

Foi em Boungo que o padre Xavier encontrou a mais decidida protecção para levar ao cabo a sua santa missão.

Durante as viagens ás differentes cidades do Japão o padre marchava á pé, levando sobre as costas um pesado sacco contendo um pequeno altar de pedra para dizer a missa, um calice e todos os paramentos necessarios. Foi assim que elle chegou ao porto de Figen, distante uma legua da cidade de Funay, capital do reino de Boungo.

Ahi encontrou um capitão portuguez de nome Eduardo da Gama, que reunindo-se aos outros seus compatriotas, forão receber o padre Xavier fora de Figen e o introduzirão na cidade ao som das salvas de artilheria e das acclamações das equipagens dos navios mercantes. O rei de Boungo tendo noticia do que se passava, mandou com instancia chamar ao padre Xavier que no dia seguinte ao da sua chegada em Figen fez sua entrada triumphal na capital deste reino onde foi recebido com todos os respeitos e honras que erão devidos á suas virtudes.

Foi necessário que elle cedesse de sua humildade e se prestasse a satisfazer os desejos dos Portuguezes, vestindo uma sotaina de sèda, pozesse uma estola de velludo com franjas de ouro que lhe foi offerecida, e, assim, se dirigisse ao palacio do rei rodeado por numerosos Portuguezes vestidos com magnificos e vistosos estofos e ornados com joias de ouro e de pedras finas. Todos entrarão em ricos barcos em cujos mastros fluctuavão ao vento as côres portuguezas.

Fechava o cortejo alguns musicos portuguezes, que com seus concertos harmoniosos, attrahião os moradores dos lugares por onde passavão, que seguião resolutamente em suas almadias augmentando esta flotilha de paz.

Eis em que ordem chegou o cortejo ao palacio do Rei depois de ter desembarcado na margem opposta do porto Figen d’onde tinhão partido.

Na frente, com a fronte descoberta, tendo na sua direita a vara de ceremonia, Eduardo da Gama rompia a marcha, como escudeiro do Apostolo das Indias e do Japão. Aos lados delle, vião-se cinco portuguezes, os que maior estima gosavão; um levava o cathecismo do missionario; o segundo, a imagem da Virgem, envolvida em damasco de sèda vermelho; o terceiro, uma bengala guarnecida com rico castão de ouro, os dous ultimos levavão magnificos chapeus de sol, semelhantes aos que se trazem nas Indias diante das pessoas de alta distincção. Vinha em seguida numerosa multidão compondo-se de marinheiros, de creados e de grande numero de Japonezes, que corrião para vêr o bonzo Chinchicogin (que em sua língua significa portuguez).

Chegados á palacio, o capitão das guardas, que se achava a testa de quinhentos soldados, introduziu o cortejo em uma grande galeria, onde apenas chegados, os cinco portuguezes se ajoelharão diante do Santo padre. Um apresentou-lhe a vára de ouro, outro as alparcas de veludo, dous se collocarão a seus lados, e o ultimo, atraz, sustentava o chapéu de sol; e assim se encaminharão até uma grande sala, onde se achavão reunidos os grandes personagens da Côrte, tendo um delles, ainda joven, assim saudado o padre Xavier:

«É necessário que tenhaes grande coragem, para vir do outro extremo do mundo nos dar a conhecer o verdadeiro Deus sem mais esperanças do que injurias e affrontas. Porém, é tambem de necessidade, que vosso Deus seja bastante poderoso, porque, se te fizestes pobre pelo amor d’elle, elle vos faz honrar pelos ricos.»

Atravessou o cortejo esta sala e entrárão em outra, onde parou, para que o missionário recebesse os comprimentos dos filhos dos principes do Reino que lhe recitarão entusiasticos versos.

Assim atravessarão outras muitas salas antes de chegarem â anticamara do Rei. Apenas entrados, o Rei adiantou-se quatro ou cinco passos para a frente, e, em seguida, inclinou-se tres vezes até o chão, emquanto que o padre se prostou do mesmo modo, e tendo tomado a mão do Rei para beijar, este não o consentiu e o obrigou a assentar-se a seu lado.

Comprehendeu sem demora o Rei de Boungo o homem que tinha na sua presença, e encantado de sua vasta erudição e maneiras humildes, prometteu-lhe conceder todos os favores que elle desejasse, porém, não contava este soberano com o poder dos bonzos de seu paiz, que receiosos da influencia que o padre Xavier exercia sobre o espirito do Rei, forão buscar Faxiondono, um dos mais illustrados ministros de Budha, o qual provocando um escandalo diante do Rei, foi por ordem deste expulso de sua presença, quando exclamava assim. «Que os Deuses lancem do céo um fogo que te devore (dizia ao Rei) e que reduza a cinzas todos os reis que ousarem proceder como tu.»

O Rei vexado com este escandalo, e vendo no ministro de Christo a maior humildade e moderação, e no dos seus idolos a mais inconsiderada e violenta conducta, disse ao padre Xavier, que estava cançado com os vicios e as hypocrisias destes bonzos; e convidou-o a jantar em sua companhia, dizendo:

«É signal de distincção e de estima admittir alguém á minha mesa, porém comtigo, para mim será a honra se quizeres participar de meu jantar.

Ao que o padre Xavier respondeu inclinando-se para o chão o beijando o sabre do soberano japonez, o que é signal do mais profundo respeito, segundo os usos do paiz.

Durante o jantar, a que assistirão de joelhos toda a côrte japoneza e os cinco portuguezes, reinou a mais cordial harmonia entre o Rei de Boungo e o humilde servo de Deos, a quem aquelle confundia com a mais esquisita ceremonia o franca hospitalidade.

Dias depois desta explendida festa, foi o padre Xavier convidado a discutir sobre alguns pontos theologicos con os Bonzos entre os quaes distinguia-se o superior de um famoso mosteiro de bonzos, chamado Fucarandono, o que o Rei permittiu com a condição, porém, de que não se deixarião estes governar pelas más paixões, e não se lançassem ás injurias aos insultos quando vencidos pelo seu forte adversario.

Diante do Rei travou-se o combate e foi o nosso heroe quem primeiro elevando a sua sonora voz disse:

«Podereis sustentar que os magnificos quadros que vemos n’esta salla sejão obra do acaso?»

«Será fortuitamente que as côres cahirão sobre a tela e ahi traçarão estas figuras deliciosas?»

«A mesma cousa poder-se-hia dizer do um livro ou de todo outro trabalho dos homens? Não, sem duvida. E, se assim é, o universo é o mais bello dos quadros, o mais sublime de todos os livros. Ele revela pois um principio intelligente.»

Este argumento muito agradou aos Japonezes, porém os bonzos esforçarão-so em destruil-o, baseando suas objecções em que elle pecava pela base, pois não se podia comparar os effeitos da materia animada com os da materia inerte, e, una voce, perguntavão qual era a natureza d'este Principio, se bom ou mão, e se os bens e os males delle provinhão?

«Se este primeiro soberano autor fosse perfeitamente bom, dizião elles pela boca de Fucarandono, sem nenhuma mistura do mal, não poderia orçar demonios, inimigos dos homens e maus por sua natureza; e se ha um Deos que se vinga de suas creaturas, não póde ser chamado bom por excellencia, mas cruel. Se elle creou os homens para o honrar não deveria consentir que elles fossem tentados nem lhes dar fraqueza e inclinação para o mal. Um Deus bom e misericordioso poderia crear um eterno inferno e ao mesmo tempo impór aos homens leis tão rigorosas e de tão difficil observância?

Poderia elle assistir ao espectaculo doloroso dos condemnados sem deixar-se sensibilisar? Nossa religião é mais philosophica. Admitte que os Deoses retirão do inferno aquelles que implorão sua clemência. É uma doutrina mais bem fundada do que a vossa tanto sobre a justiça como sobre a piedade.»

O padre Xavier esforçava-se em destruir uma por uma estas objecçõos intelligentes, ainda que baseadas sobre apparente verdade, o dispondo de verdadeira eloquencia e dos conhecimentos perfeitos da lingua Japoneza, obteve os applausos geraes da assemblea que assistia a essas discussões.

Durante cinco dias, discutirão diversas questões capitaes da nossa religião, e quando o Padre fallou sobre a immortalidade da alma, crença que não alimenta nenhum interesse mundano, foi que elle ganhou todos os corações e fez numerosos proselytos.

No fim d’este tempo o Rei encerrou os debates e subindo ao throno julgou de accordo com todos os assistentes que a religião do estrangeiro era mais conforme com a verdade, a razão e o senso commum, do que a dos bonzos a quem dirigindo-se em seguida, disse: «Ide, retirai-vos, depois do que ouvistes tratai de ser homens de bem.»

Em outro qualquer paiz que, como o Japão, subsistisse sob o regimen theocratico, as conveniencias politicas terião desde logo prevalecido sobre outra qualquer consideração no espirito do Rei, que, sem duvida, baniria os santos missionarios; porém, para o Japonez, a verdade está superior a todos os prejuizos ainda mesmo que ella custe a sua vida ou a perda de seus interesses; por isso é que vimos este Rei, a exemplo de muitos outros chefes Japonezes, deixar-se levar pelo enthusiasmo que lhe provocarão as virtudes d’este pobre velho que exemplificou com sua conducta as mais elevadas doutrinas do Christianismo.

Emquanto o padre Xavier, ganhava estas explendidas victorias sobre os sacerdotes pagãos do reino de Boungo, o padre Cosme da Torre percorria varias cidades, convertendo os seus habitantes, alguns dos quaes, como adiante se dirá, honrarão no supplicio e no meio das mais barbaras torturas, a causa que espontaneamente abraçarão e com heroismo defendião.


CAPITULO X

 
Partida de S. Francisco Xavier do Japão. — Conversão do joven Rei de Boungo ao ohristianismo. — Uma embaixada Japoneza enviada ao Papa pelos ohristãos do Japão. — Como forão os embaixadores recebidos em Portugal, na Hespanha e em Roma. — Os Hespanhoes malquistão os portuguezes com o Imperador. — Execução dos martyres do Japão.


São Francisco Xavier deixou o Japão em 1551 para voltar á Gòa, onde antigos compromissos o chamavão, fazendo-se acompanhar por dous proselytos ambos Japonezes; um, de nome Bernardo, foi o primeiro neophyto que elle teve ao chegar á Satsouma; o outro, era um fidalgo da côrte do rei de Boungo, por este enviado ao vice-rei das índias como portador de suas credenciaes e de presentes, que consistião em ricos trabalhos de arte japoneza.

Com a partida do padre Xavier, ficava chefe do christianismo no Japão, o padre Cosme; e foi debaixo de sua direcção, que se viu os fruetos produzidos das sementes lançadas no solo Japonez pelo apostolo das Indias.

A catechese das tribus selvagens das Américas, se desenvolve geralmente pelos cuidados paternaes e pelos exemplos de abnegação dos missionários, que tornão-se, muitas vezes, verdadeiros chefes, e dispõem do corpo e da alma dos convertidos. No Japão, porém, a propaganda se fazia pelo proprio merito das doutrinas do Christianismo, muitas vezes assumpto de longas discussões, ás quaes, como vimos, assistia grande numero de pessoas que só depois de julgarem a superioridado do christianismo sobre as outras seitas de seu paiz, fazião-se catechumenos antes de receberem o baptismo. E para mostrar o criterio com que procedião, será interessante narrarmos como e porque o rei de Boungo se fez christão.

Ainda joven, nasceu-lhe o primeiro sentimento de amor pela nossa religião, quando elle viu alguns portuguezes, desembarcados em Funay, e hospedados pelo rei sou pae, fazerem diariamente suas orações de joelhos e os olhos voltados para o céu.

Um dia, o joven príncipe disse á um delles: — «É em honra dos nossos Kamis e dos nossos Fotocas que oraes com tanta devoção?» Ao que o negociante respondeu, animado de sincera piedade. « Senhor, não é aos deuses de madeira, de pedra ou metal que eu dirijo as minhas orações: porém a um Soberano creador do céo e da terra; — vossos douses não tem ouvidos para me ouvir nem mãos para fazer o bem; porém Aquelle que adoro enche este grande universo com a sua presença e seus beneficios. Elle vê todas as nossas acções, ouve todas as nossas palavras; é rico e poderoso, e acolhe a todos que o invocão com confiança.»

Estas palavras ditas com simplicidade e enthusiasmo, incutirão no coração do Principe, grande estima para o Deos dos Christãos; e apenas subio ao throno, pela morte de seu pai, começou a estudar as crenças religiosas de seu paiz, abraçando a vida dos Bonzos da seita jenpou, e mandando construir um grande templo pagão em Ousuqui.

Esta seita, é ainda, seguida no Japão pela mór parte dos nobres, e entre os deveres que ella prescreve aos adeptos, o mais penoso é a obrigação de meditar cada dia sobre uma das mil e setecentas considerações que constituem os seus fastos religiosos.

Entretanto, a philosophia destas doutrinas não satisfizerão ao Rei, que comparando com a do christianismo, resolveo receber o baptismo; exemplo que foi seguido por grando numero do fidalgos da sua corte.

A conversão do Rei de Boungo, parecia firmar o estabelecimento da Egreja do Japão, porém, numerosos inimigos querião a sua ruina, e, sem escrupulo, lançavão mão de todos os meios para indispor os missionários com os Reis de Amangouchi, de Boungo e de Arima; em cujas capitaes, se levantárão em poucos mezes, grandes e ricas Egrejas.

Seria longo acompanharmos todas as phases por que passou o christianismo no Japão, o que não comporta os limites deste livro; apenas diremos, que accusados os missionarios como revolucionarios e incendiarios pelos Bonzos, começãrão a ser mal vistos e desconsiderados pelos principaes japonezes, mesmo porque, alguns destes sacerdotes não sujeitavão-se a vida austera e santa como os primeiros missionários.

A primeira victima dos pagãos, foi uma joven escrava japoneza, a quem seu senhor decepara a cabeça, por tel-a encontrado de joelhos a orar no templo catholico.

Feito o primeiro martyr no Japão, a ordem publica alterou-se com a noticia deste facto, e, como o assassino era nobre, o Governo entendeu dever proscrever a religião catholica, o que era pedido com insistencia pela nobreza; e assim, garantir a paz interior e impedir que taes factos se reproduzissem.

Os missionarios forão expulsos de todos os pontos do Japão, menos de Funay, no reino de Boungo, onde encontrarão apoio e protecção; mais tarde, por um edito do Imperador, foi concedido aos missionários habitarem Miako, e ahi prégarem a sua Lei; porém, depois de muitas alternativas de fortunas e de revezes, que durárão mais de cincoenta annos, seguio-se uma das mais sanguinolentas perseguições que registrão os annaes da Egreja.

Durante este tempo, é digno de menção, o facto da embaixada dos Príncipes christãos japoneses, junto do Papa Gregorio XIII.

Os fidalgos, que forão encarregados desta missão, erão: Mancio, neto do Rei de Fiounga, representando D. Francisco Rei de Boungo; Miguel Cingiva, em nome de Protais, Rei de Arima, e Bartholomeu, Rei d’Omoura.

Estes principes, que no baptismo receberão nomes christãos, flzerão-se acompanhar de dons jovens japonezes do distincção, também chamados Julião de Nacaura e Martin do Faria.

Depois de mil difficuldades e de experimentarem terriveis tempestades nos mares do Japão e da China, os embaixadores o seu sequito chegárão à Gôa, no fim de alguns mezes de viagem, onde o Vice-Rei das Indias, D. Francisco de Mascarenhas, lhes fez magnifica recepção e lhes deu um navio, melhor equipado, para seguirem viagem para á Europa.

Ainda novos perigos e naufragios não desalentarão os japonezes de seu empenho; e tendo elles partido de Nangasaki, em 20 de Fevereiro de 1582, só chegárão á Lisboa em 10 de Agosto de 1584; onde o Cardeal Alberto d'Austria os recebeu com grandes honras.

A duqueza de Bragança, mãi do Rei Philippe II, fez-lhes honrosas demonstrações de apreço, e entre todas a que mais agradecerão os japonezes foi ter ella vestido o seu filho Eduardo, a moda do Japão, por occasião de recebel-os em sua mesa no castello de Villa-Viçosa.

O itinerario que elles devião seguir até Roma, foi combinado pelo Cardeal d’Austria, de modo que visitassem os principaes lugares do Reino que ficavão n’aquella direcção; e na sua passagem, todas as cidades os festejavão fazendo-se-lhes em tudo, as mesmas honras a que tem direito os principes da Europa.

A embaixada embarcou-se em Valença e depois de furiosa tempestade que acommetteu os navios em que ião os seus membros, chegou finalmente á Livourne em 1° de Março de 1585.

Apenas os navios ancorarão n’este porto, as salvas de artilheria saudarão os embaixadores Japonezes, e quando desembarcarão forão recebidos pelos dois irmãos do Duque de Pisa, que, em pessoa, os esperou no primeiro degráo da grande escada de Seu Palacio.

D'ahi partirão para Roma, passando por Sienda e Viterbo; e ao entrar na cidade dos Cesares, o Papa lhes enviou ao encontro duas companhias de cavallaria, que reunidas a numerosa guarda de honra mandada pelo Duque Boncompagno davão caracter triumphal a entrada dos representantes da Christandade do Japão na capital do mundo Catholico.

Entretanto o Papa reunia o consistorio para deliberar sobre o modo por que devia receber os embaixadores Japonezes.

Nada faltava a embaixada para ser qualificada Real, e por consequencia, o Soberano Pontifice de accordo com os seus Cardeaes, resolveu que ella fosse recebida com as pompas e esplendores com que naquella epocha os Papas recebião pessoas Reaes.

Assim, no dia seguinte, forão os Principes Japonezes conduzidos a Vinha de Julio III, situada fóra da Porta do Povo, d’onde sahio o cortejo, e que, depois de percorrer as principaes ruas de Roma, foi recebido pelo chefe da Egreja na Sala Real do Vaticano.

Eis, segundo um chronista da epocha, a ordem do cortejo:

« Rompião a marcha, os guardas do Papa a cavallo, todos vestidos com riqueza. Em seguida, vinhão as companhias dos Suissos, e os officiaes e criados dos Cardeaes, os quaes vistião côr violeta, porque estavão na quaresma. Os embaixadores e os Ministros das Potencias estrangeiras, sustentavão magnificência em seus trens de luxo, que erão precedidos por tambores e trombetas; os Camaristas do Papa, os Escudeiros e outros officiaes de Palacio, todos vestidos de vermelho, rodeavão os embaixadores Japonezes que montavão lindos cavallos, cujo pello de um velludo negro fazião sobresahir os bordados de ouro dos arreios.

«Elles estavão vestidos a moda de seu paiz, com largas vestes do seda, cujas mangas mui largas só descião até o cotovello. Seus sabres, cingidos no lado esquerdo, brilhavão aos raios do sol e offuscavão a vista pelos brilhantes que os ornavão. No lado direito, via-se um rico punhal em cujo cabo também brilhavão pedras finas de muitas cores.»

Na Salla Real, o Papa os recebeu cercado de seus Cardeaes; e quando os Japonezes inclinarão-se por terra para beijarem os joelhos do Soberano Pontifice, este, enternecido, os levantou precipitadamente para os abraçar, e, n’este instante, a alegria d’este grupo foi tão grande que todos derramarão lagrimas; e principalmente Gregorio, que então occupava a cadeira de S. Pedro, não podia deixar de se enternecer vendo que do extremo Oriente, do paiz sem contestação o mais civilisado da Asia, vinhão reconhecer á autoridade da Santa Sé na sua pessoa.

Depois de exporem ao Santo Padre a necessidade de um Bispo para o Japão, os embaixadores Japonezes, contentes com a promessa que obtiverão, cuidarão nos preparativos para voltarem á seus lares.

Com effeito, em 8 de Agosto de 1585, elles embarcarão em Gênova, e depois de visitarem de novo o Rei de Hespanha, nos seus Estados, seguirão viagem, acompanhados de desasete missionarios; tocando o navio em que ião, nos principaes portos da Asia, onde também forão festejados, chegando ao Japão cinco annos depois; em 1590.

Convencidos os principaes homens do Japão e principalmente o Imperador Taiko Fideyosi que o christianismo era um meio para os portuguezes adquerirem secretamente uma influencia politica, e suspeitando mesmo, o designio de quererem estes, o dominio de sua Nação, intimarão aos missionarios a ordem de sahir do Japão sob pena de morte, dentro de um certo praso; e começando pela sua còrte, o Imperador exilou alguns nobres quo tinhão abraçado o christianismo, e entre outros a Oucondono, que fiel As suas crenças, rejeitou todo e qualquer auxilio dos seus amigos, com receio de enfraquecer o brilho da fé que nutria em seu coração.

Oucondono reuniu os officiaes do exercito de que elle era chefe, e declarou que banido das honras que lhe competião, obedecia humildemente as ordens do seu Imperador, porém, esperava que seus companheiros, christãos como elle, persistissem em suas crenças para não manchar a honra do exercito nem perjurar ás santas verdades do christianismo.

O Imperador, irritado pela dedicação de grande numero de militares pela nova religião, mandou de novo publicar um edito, assim concebido, e ordenava ás autoridades do Japão que dessem-lhe completa execução.

«Sendo-nos presente por fieis servidores, membros do nosso conselho, que os religiosos estrangeiros, vierão aos nossos Estados, pregar uma religião contraria as leis do Japão, se atrevendo mesmo a arruinar os templos dedicados aos nossos Kamis e aos nossos Fotocas, ordenamos-lhes que, dentro de 20 dias, deixem o Japão, e se findo este praso, se os encontrar nos nossos Estados, sejão elles punidos como criminosos. Quanto aos negociantes portuguezes, lhes permittimos de aportar aos nossos Estados e ahi permanecerem todo o tempo que os negocios assim exigirem; porém lhes é vedado conduzir qualquer religioso, sob pena de confiscação de seus navios e mercadorias.»

A execução deste edito era impossivel, visto não haver nos portos do Japão nenhum navio com destino ás Indias, o que sendo reclamado pelo padre provincial ao Imperador, foi ordenado por este, que os cento e vinte missionarios, que então existião no Japão, esperarião em Firato, a partida de um navio que devia deixar esse paiz com destino ás índias no fim de seis mezes.

Um outro decreto, que foi publicado em editaes nas ruas e praças do Imperio, prohibia a todos os subditos trazerem cruzes, rosarios ou outros quaesquer signaes do culto christão, e concluia dizendo, que todos perecerião ou mudarião de religião.

Comtudo, apenas chegados os membros da embaixada japoneza , carregados de presentes para o Imperador, este mandou suspender a execução de seus decretos, e então, por algum tempo, poderão os missionarios continuar em sua santa empreza.

Justo Oucondono, que fôra chamado de novo ao serviço militar, acabava de fazer prodigios de coragem na guerra da Coréa, e os feitos de seus soldados desarmarão a cólera do Imperador, que deixou por algum tempo em paz os adeptos do christianismo.

Uma embaixada hespanhola chegou, entretanto, alguns annos depois ao Japão, e, emquanto o Imperador distinguia o Castelhano, que lhe trazia presentes da parte do Governador das Philippinas, este aproveitou a occasião para intrigar os Portuguezes, dizendo que, senhores de Nangasaki, elles commettião grandes violências e só protegião os Padres, instrumentos de suas ambições e projectos de conquistas.

O Imperador encolerisado, substituio o Governador de Nangasaki, e receiando que os Christãos se revoltassem contra o seu poder, ordenou que elles não podessem usar da espada e punhal a que tinha direito todo japonez maior de doze annos de idade.

Despojados do direito, que mais encareciam, não tiverão os Christãos do Nangasaki outro recurso, para não chamar contra si males maiores, senão resignarem-se á sorte que se lhes mostrava adversa, esperando que em pouco tempo seria a sua religião, a da maior parte dos seus compatriotas.

Em 1596, entrou arribado ao porto de Ourando um navio hespanhol «El San Felipo» que ia das Philipinas para nova Hespanha, carregado de grandes riquezas; e este simples facto muito influio para a expulsão e perseguição dos Christãos.

Tendo o Imperador noticia de que este navio conduzia verdadeiros thesouros, concebeo logo o projecto de apoderar-se delle, e para este fim, mandou Maxito Yémondono, um dos seus servidores, ao porto de Ourando proceder a um inquerito sobre a nacionalidade, e com que fim aportava, sem sua permissão, um navio nos seus Estados.

Maxito, chegando a Ourando, convidou o commandante hespanhol a vir á sua presença, o qual lho mostrou cartas-patentes, assignadas pelo ultimo Imperador, pelas quaes era permittido aos hespanhóes negociarem no Japão.

O funccionario Japonez quando certificou-se do que o com- mandante lhe dizia, perguntou: «Os Hespanhóes e os Portuguezes constituem a mesma Nação? É o mesmo Rei que possue o Perú, as Philippinas, a Nova Hespanha e a India Oriental?»

D. Mathias, como assim chamava-se o commandante hespanhol, respondeo que quanto a primeira questão; os Hespanhóes e os Portuguezes erão Nações bem differentes, quanto a segunda que um só Rei dominava as Indias-Orientaes e Occidentaes.

E assim fallando, desenrolou um immenso mappa geographico, no qual indicava, ao Japonez admirado, a vasta extensão de terras que então pertencião a corôa de Hespanha. Este perguntou-lhe como foi possível aos Hespanhóes conquistarem tantos paizes; ao que D. Mathias ou por maldade para aflligir aos Portuguezes, ou sem reflêctir, respondeo que o Rei seo senhor, enviava a todos os paizes um grande numero de religiosos para pregar o Evangelho; e que depois de converterem seus habitantes expedia forças, que auxiliadas pelos christãos, subjugavão os reis e se assenhoreavão do paiz.

Apenas Maxito ouvio estas palavras foi ter com o Imperador e relatou o que se passara com D. Mathias; e no mesmo dia, em 9 de Dezembro de 1596, forão presos os missionarios que se achavão nos conventos de Oosaka, e dois dias depois o Imperador ordenou ao Governador Gibonoscio de mandar executar os missionarios ultimamente chegados ao Japão como culpados de alta traição.

Seis religiosos Franciscanos, tres Jesuitas e desesete christãos, que habitavão com os padres de S. Francisco forão condemnados a morte. Cortarão-lhes o nariz, as orelhas, e em seguida, depois de amarrados em grupos do tres, forão conduzidos polas principaes ruas do Miako. Na frente, vinha um official que levava uma grande bandeira na qual so achava escripto em grossos caracteres o seguinte:

«TAIKO SAMA.

«Condemnei estes homens a morte, porque elles vierão das Philippinas ao Japão, se annunciarão Embaixadores sem o serem, porque permanecerão sobre minhas terras sem meo consentimento, o pregarão a lei dos christãos contraria a minha prohibição. Eu quero que sejão todos crucificados em Nangasaki».

Chegados a Nangasaki, levantarão-se as cruzes na praça das execuções, porém, por pedido dos negociantes Portuguezes, transferio-se este instrumento do supplicio, santificado, depois que Christo nello morreo pelos homens, para uma collina que domina Nangasaki, e onde, ainda vimos os marcos de pedra que substituirão as cruzes em que morrerão estes primeiros martyres.

Exceptuados os tres Franciscanos, os demais erão indigenas, mesmo os tres padres Jesuitas, o que elevava a vinte, o numero dos martyres Japonezes.

Os Franciscanos, occupavão o centro da longa fila de cruzes, e segundo os usos n’este genero de execuções, os carrascos ferirão a todos com suas lanças.

Ao longe, numerosos christãos de Nangasaki assistirão ao martyrio do seus irmãos, e apenas elles expirárão, apressãrão-se em molhar suas vestes no sangue quo corria das feridas feitas pelas lanças dos carrascos.

Os martyres expiravão cantando louvores ao Altissimo, entrecortando seus canticos com profundos gemidos causados pelas dores que soffrião. Os Padres reunião todas as forças que lhes restavão e repetiam em côro: «In manus tuas. Domine, commendo spiritum metim. »

Estes acontecimentos dolorosos, que tiverão lugar em 5 de Fevereiro do 1597, longe de enfraquecer a fé dos christãos, os prepararão para novas perseguições; e fanatisados, ostentavão publicamente suas crenças para obterem a palma do martyrio.

A crença da immortalidade era a que mais enthusiasmava o christão japonez, e este povo já bravo, e pouco apreço dando á vida, pela sua educação, considerava como infamia occultarem as opiniões que nutrião sobre qualquer assumpto com receio da força.

Vendo que os christãos persistião, e que indignados protestavão contra esses actos violentos, o Imperador receiou a guerra civil e entendeu que devia empregar todos os meios para combater o christianismo. Assim é que dous fidalgos japonezes, suas mulheres, a mãi de um d'elles, e seus filhos forão executados. Os homens perderão a cabeça e as mulheres e crianças morrerão na cruz.

Uma d'estas heroinas, momentos antes de expirar, animava um seu filho ainda menino que, crucificado em um pequeno madeiro, não desviava os olhos d'aquella que lhe dera á luz e respondia: « Nada receieis, minha boa mãi; eu quero morrer comvosco,» ao que esta banhada em lagrimas exclamava. « Nós vamos para o Céo, lende coragem! Invocaio nome de Jesus e Maria» — e ambos de concerto repetião — «Jesus, Maria!»

Os fastos do Christianismo não apresentão martyres de maior coragem; e hoje, neste tempo em que a descrença corroe muitos corações fracos e pouco preparados, que ostentão principios philosophicos que não comprehendem e exagerão, e que os lanção mesmo, no verdadeiro atheismo; é para admirar que apenas ha tres seculos, o fanatismo desse coragem e firmeza de convicções aquelles que preferião morrer no meio de torturas, do que serem considerados renegados de uma religião que apenas se impunha pela simplicidade de suas verdades, pelos principios liberaes e pela igualdade que estabelecia entre os homens.

É, cheios de consternação, que hoje observamos a corrupção dos costumes, crenças e opiniões; sentimentos que vemos sacrificados sem difficuldade á interesses puramente materiaes e transitorios, porém, que não são a consequencia do progresso realisado nos ultimos seculos, mas o resultado da perigosa propaganda do materialismo, feita sem a necessaria precaução, nas sociedades pouco illustradas e que digerem mal os principios de uma phylosophia, cuja importancia é puramente scientifica e excede aos limites da intelligencia humana.

Não combatemos os principios e os factos isolados, que são confirmados pela observação, porém, por sua natureza, toda moral, todo o homem deve reconhecer a existencia de um Principio creador, diante do qual elle deve parar em sua analyse, e possuido de respeito e gratidão se aproximar pelas suas virtudes, correspondendo assim à excellencia da origem donde elle deriva.

Em 1614, um novo edito Imperial bania todos os christãos japonezes, que não quizessem apostatar, para Tsougará, provincia situada no Norte do Japão.

Inaugurava assim o Imperador, um novo systema de perseguição cansado de derramar o sangue de seus subditos.

Publicado o edito nas ruas e praças de Miako, os christãos em numero de dez mil, todos com suas vestes de gala, se reunirão diante do palacio do Governador da cidade: — vinhão expontaneamente se apresentarem para ser conduzidos ao exilio.

Ainda assim condemnárão á morte os mais influentes e tanto a Egreja de Miako como as de Boungo, Tocate, Fingo e de Arima encherão o seu martyrologio com os nomes de milhares de vidas sacrificadas pela Fé.

Em 18 de Julho de 1625, sob o reinado do cruel Imperador Iyémito, trinta pessoas das mais altas posições, forão por sua ordem, tanto os homens, como mulheres e crianças, queimadas por fogo lento, e em seguida, quando inanimados não poderão mais evocar a piedade do Altissimo deceparão-lhes as cabeças.

Foi então que a perseguição chegou ao seo auge; os religiosos forão tambem executados, escapando apenas alguns que se esconderão, não com receio da morte, mas para animarem os fieis a permanecer na Fé.

Ainda assim alguns outros missionários desembarcarão no Japão favorecidos pelos disfarces que empregarão, para illudir a vigilancia dos agentes do novo Nero, e entre outros aportou em 1632, o provincial Sebastião Vieira que fôra banido e embarcado por ordem do fallecido Imperador para as Indias em 1614.

Vieira, vestido como marinheiro chim desceo do navio e pisando o solo de Nangasaki beijou a terra e exclamou: — «Hæc requies mea in sæculum sæculi; hic habitabo, quonian elegi eam. Hæc est domus Dei et porta Cœli.» Aqui é o lugar de meo descanso no seculo dos seculos. Eis a minha habitação; por que eu a escolhi: a casa de Deus e a porta do Céo.

Espalhou-se logo em Nangasaki a noticia da chegada de um padre romano, e Unemondo, Governador da cidade, receiando ser accusado de connivencia, mandou pintar sobre telas o retrato do missionario e declarou que receberia quinhentos escudos quem o descobrisse ou conduzisse á sua presença prisioneiro.

O padre Vieira viajava incognito, a pé, e atravez de mil perigos para levar consolação ás pobres cabanas dos christãos japonezes, porém, foi preso em Oosaka o levado por ordem do Imperador Iyémito á sua presença. Ora, segundo uso no Japão, todo culpado que fosse chamado a presença do Imperador era posto immediatamente em liberdade, e como um dos seos ministros lhe lembrasse esta autiga usança, Iyémito ordenou que conduzissem o padre Vieira a prisão, quando este já se achava em uma das salas do Palacio. Dias depois Vieira e mais cinco religiosos forão condemnados a morrer no supplicio do fosso, o que consistia em ligar o condemnado a uma cruz com a cabeça para baixo, plantal-a no centro de um fosso e em seguida cobrir a abertura de modo a impedir que a luz ahi penotrasso. Durante quatro dias, os santos missionarios soffrerão torturas dolorosas; seu sangue se lhes escapava pelos olhos, boca, nariz e ouvidos. Vieira foi no fim deste praso encontrado pelos guardas ainda vivo e balbuciando as palavras de Deus; então, elles encherão o vasio de palha, e atearão o fogo, e este santo varão morreo como tinha predito, em 6 de Junho de 1634.

Em 1638, um facto deploravel veio dar o ultimo golpe no christianismo do Japão, e levar ao supplicio os ultimos missionarios. Ottona d'Armina, um dos perseguidores dos christãos, acabava de crear impostos vexatorios que devião ser satisfeitos somente pelos christãos, e estes, indignados se revoltarão, contra esta tyrannia, apoderarão-se de Simabarra, a fortificarão e esperarão o assalto do exercito do Imperador. Porem, faltos de munições e alimentos, completamente sitiados, elles succumbirão; uns pela fome outros com as armas nas mãos.

Este facto, exasperou o Imperador que convencido do que os portuguezes tentavão apoderar-so do imperio, mandou prender a Embaixada portugueza que acabava de chegar a Nangasaki, e reunindo o seo conselho propoz que fossem os embaixadores e todas as pessoas de sua comitiva decapitadas, com excepção de alguns que voltarião á Macáo com esta noticia, bem como de que se trataria do mesmo modo todo o estrangeiro que pisasse o solo japonez.

Esta embaixada compunha-se de quatro pessoas de distincção e de setenta servidores.

A execução teve lugar em Nangasaki; o depois de deliberarem reservar trese pessoas para voltarem com a noticia a Macáo, dividirão os portuguezes em tres grupos assim dispostos:

O primeiro compunha-se dos quatros Embaixadores e seos servidores, o segundo, dos marinheiros chins e domesticos do navio, o terceiro, deveria unicamente assistir a execução dos seos companheiros afim de poderem relatar de volta a seo paiz esta triste scena de verdadeira barbaridade.

Os bravos portuguezes morrerão valorosamente, e todos estes desgraçados repetião cada vez que a cabeça de um dos seus companheiros cahia sob o golpe da espada, os nomes de Jesus e Maria.

Os treze espectadores, aterrorisados, assistirão a morrer com coragem os seus infelizes amigos e compatriotas; e no dia seguinte, depois de verem queimar o navio portuguez, fôrão embarcados em um navio indigena, com destino a Macáo, onde a noticia desta cruel execução consternou toda a cidade.

Os corpos dos portuguezes fôrão enterrados proximo a uma pequena casa que existia no lugar da execução, e em um poste de madeira ahi levantado, lia-se a seguinte declaração do Imperador:

«Que no futuro ninguém, emquanto o sol llluminar o globo, tento penetrar no Japão, nem mesmo sob o titulo de Embaixador. E esta declaração não poderá ser revogada em tempo algum, sob pena de morte.»

Assim, no fim de um seculo de contacto com os estrangeiros, que, para fallarmos a verdade, abusarão da hospitalidade deste povo; os portos do Japão fôrão fechados aos navios de todas as Nações, exceptuados os hollandezes, aos quaes foi permittido estabelecer uma feitoria em Nangasaki, onde seus navios poderião aportar todos os quatro annos, não lhes sendo, porém, permittido, communicarem durante a noite com os indigenas.

Accusa-se aos hollandezes de terem auxiliado aos governadores de Nangasaki, nas perseguições contra os christãos, e que assim fazião para se insinuarem nas boas graças do Imperador.

O viajante Kæmpfer, que escreveu um interessante livro sobre o Japão, conta que os hollandezes interceptarão uma correspondência entre os portuguezes e os christãos japonezes, que revelava uma conspiração tramada contra a vida e o throno do Imperador, o segundo o padre Charlevoix, os hollandezes tinhão fabricado cartas com o fim de causar a perda dos seus rivaes.

O que não apresenta duvida alguma, é que estes interesseiros mercadores, soffrendo pela concurrencia dos portuguezes em seus negocios, lançarão mão de meios ignobeis e pouco dignos, o que deu em resultado a perda de milhares de vidas, e de ser ainda hoje odiado pela classe nobro do Japão, o nome de Christo.

Os hollandezes corresponderão a confiança dos Imperadores japonezes, e durante dois seculos prestavão-se ás maiores humilhações.

Nada de mais servil do que as ceremonias das audiencias, que o Imperador concedia em Yedo ao residente hollandez que dirigia o commercio da companhia das Indias.

Kæmpfer, que não póde ser suspeito, conta assim o que se passava nestas audiencias : — Desde que o residente entrava na sala da audiência, gritava-se Hollanda Capitan, o que significava ordem para elle approximar-se e apresentar seus respeitos. Entretanto o residente arrastava-se sobre os joelhos, até um lugar que lhe era indicado que ficava entre a fila de assistentes e o Imperador; então, sempre de joelhos curvava-se até tocar com a fronte ao chão, e depois retirava-se sempre recuando ou antes difficilmente arrastando-se como uma lagarta, sem dizer uma só palavra. Nisto consistia a audiência que nos concede este poderoso monarcha.»

«Quando o Imperador consentia em receber os hollandezes em particular, diz Kæmpfer, os membros da missão entravão arrastando-se na salla da audiência, em seguida o Imperador assentava-se a nossa direita, e nos ordenava de tirar o nosso manto de cerimonia, dizendo que era para nos vêr mais a vontade, ora ordenava-nos de andar, de parar ou de fazer cumprimentos a nossa moda, ora obrigava-nos a dansar, pular, imitar os embriagados, fallar o japonez que sabiamos, lêr o hollandez, e sobretudo de cantar. Faziamos o que estava no nosso alcance para agradal-o, e eu me lembro, accrescenta Kæmpfer, que uma vez dansando em sua presença acompanhei os pulos que dava com uma canção de amor allemã, o que divertio muito o Imperador e sua Côrte.»

Deste servilismo resultou que, ainda hoje, os japonezes que nunca sahirão de seu paiz, tratão com o maior desprezo os estrangeiros, e só pelos esforços dos diplomatas que nestes ultimos dez annos tem representado os seus paizes no Japão, é que se tem obtido fazer desapparecer esta má impressão, e manter sobre o mesmo pé de igualdade as relações com este paiz, de modo a evitar-se os inconvenientes de uma falsa situação.

 
JAPÃO
 

Lith, Imperial A. Speltz

PRINCIPE JAPONEZ

As primeiras expedições que no nosso século aportarão ao Japão forão consideradas pelos naturaes, mais como uma demonstração hostil de que como alliadas que vinhão tratar de interesses reciprocos. E quando em 1342 os japonezes conhecerão os motivos da guerra feita aos chins pelos inglezes, o que deo em resultado o tratado de Nankin, elles dispozerão-se a impedir com as armas nas mãos que o seo solo fosse pisado pelo estrangeiro.

A noticia da humilhação da China chegou depois de muito commentada e adulterada aos mais afastados logares do Japão; o terror se apoderou da maior parte dos membros que compunhão o conselho do Taikúno, emquanto que este e alguns japonezes illustrados comprehenderão a impossibilidade do Japão viver isolado, com os seos portos fechados e sem nenhuma relação com os estrangeiros.

D'esta divergência originou-se dois partidos: um chamado dos estrangeiros e o outro nacional.

O primeiro tinha á sua frente o Taikúno e o outro o Mikado e a maior parte dos Daimios.

Para comprehendermos os resultados d'esta guerra civil que durou longos annos e consumio parte da seiva de que este povo dispunha, quando isolado, vivia feliz e prospero, é necessario narrarmos quaes os acontecimentos que empossarão uma familia japoneza, de uma especie de poder regio na pessoa do Taikúno.

Nos antigos tempos, o Mikado reinava com omnipotencia sobre o Japão; apenas havião dezoito daimios aos quaes muitos historiadores dão o titulo de reis, que dirigião as diversas provincias, porúm prestavão todos os annos em Yedo hommenagem ao suzerano e lhe pagavão tributo.

No século XVI porem, o Mikado que então reinara tendo encarregado a um dos seos generaes de nome Faxiba de submetter metter alguns daimios rebeldes, este, longe de cumprir o seu dever, aproveitou-se do poder para se collocar a frente do governo. Tal é a origem dos Taikúnos.

Faxiba depois de assim, usurpar o throno julgou necessario aos seos projectos conservar o Mikado com uma potencia espiritual fazendo-o passar como Deos e rodeando-o do maior esplendor e magnificencia; ao mesmo tempo elle instituia o feudalismo que satisfazendo as ambições dos nobres japonezes consolidava o poder do Taikúno, que não perdeu occasião para mostrar publicamente seo respeito e veneração para o Mikado tambem chamado o Imperador Espiritual.

Erão estas as principaes instituições politicas do Japão, quando em 1853 o commodore Perry apresentou-se em Yedo com numerosa esquadra e com instrucções do presidente dos Estados Unidos não só para reclamar a equipagem de um navio mercante que mezes antes tinha naufragado nas costas do Japão, como para fazer sentir ao Governo Japonez a necessidade de uma alliança que impedisse alguma tentativa da parte da Inglaterra sobre o Japão.

O Taikúno Mina-Moto-Yeoski, que recebeu com toda attenção o commodore americano, falleceu repentinamente alguns dias depois de ter assentado as bases de um tratado de commercio, e este facto deu lugar a recriminações dos partidarios do Taikúno, que accusarão ao principe Mito, chefe dos patriotas, de ser causador desta morte.

O commodore Perry esperou, durante um anno, resposta do novo Taikúno, e vendo que nada obteria por meios suasorios, elle declarou que os Estados-Unidos não consentião que no seculo XIX um paiz viva isolado, sem mesmo poder garantir a vida e a propriedade dos estrangeiros que navegão por perto de suas costas. Finalmente chegarão a um accordo, sendo então nomeado consul americano o Sr. Harris, que durante os annos de 1854 a 1858, viveu na pequena ilha de Simoda, sempre animando o partido Taikúnal, para contrahir alliança com o governo de seu paiz com o fim de assignar-se um tratado mais ampliado, que melhor garantisse o Japão dos projectos ambiciosos da Inglaterra.

De feito, o Taikúno assignou um segundo tratado, porém, um mez depois, foi assassinado. Começarão então os assassinatos dos europeus por alguns nobres fanaticos. Em menos de seis mezes, contou-se seis victimas destes samurahis que percorrião provincias inteiras para vingar, dizião elles, as leis sagradas, que prohibião a entrada dos barbaros no Imperio.

Em 1858, dado o exemplo pelos Estados Unidos; a França, a Inglaterra, a Russia e algumas outras nações enviarão á corte de Yedo os seus plenipotenciarios encarregados de assignarem tratados de commercio.

Entre outros attentados contra os europeus, praticados pelo partido nacional ou dos patriotas, conta-se o que teve lugar em 1862, nos arrebaldes de Yokohama, e de que forão victimas dous officiaes inglezes, os majores Boldwin e Berd; posteriormente, em 1865, deu-se um outro facto deste genero, porém, acompanhado por circumstancias agravantes.

O principe de Satzouma, um dos mais ferozes daïmios do partido nacional, veio á Yedo prestar homenagem ao seu suzerano. De volta as suas terras, o principe fez-se acompanhar pelos seus soldados em numero superior a setecentos. Reprehendido em Yedo pelo Taikúno, elle não poude conter sua colera e communicou aos officiaes, as severas ordens que lhe forão dadas em nome do Imperador, afim de que se não molestasse os estrangeiros, que por qualquer eventualidade se achassem na sua provincia. Apenas o cortejo sahio da capital, encontrou sobre a estrada o infeliz Lennax Richardson e um de seus amigos tambem subdito inglez e duas damas europeas que andavão a passeio. Possuidos pela colera alguns officiaes atacarão os europeus, ferirão mortalmente á Richardson, e deixarão feridas gravemente sobre a estrada as duas senhoras e o outro cavalleiro.

Este lamentavel acontecimento deu lugar a explicações pouco amistosas entre o ministro inglez e o governo do Taikúno , que, afinal, mandou julgar e executar os principaes culpados deste crime.

Transcrevemos em seguida a traducção, de um manifesto publicado e mandado espalhar em quasi todas as cidades do Japão, pelos chefes do partido nacional, algum tempo antes da revolução de 1868.

«Tenta o Governo do Taikúno por todos os meios anniquillar o partido dos patriotas, que vêm sua patria invadida pelos barbaros, e secundar nos seus traiçoeiros projectos a funccionarios orgulhosos, á mercadores interessados e rapaces, á marinheiros grosseiros, estupidos e devassos.

«As sabias leis que recebemos de To-chio-gou deixárão de ser executadas; nossos portos são constantemente invadidos por uma multidão de inimigos, que corromperão o Governo do principe chefe, e empenhárão o Imperio na via ruinosa em que marcha a largos passos; assignando miseraveis tratados que lesão nossos interesses, e pelos quaes se autorisou a exportação das producções raras, unica riqueza do nosso paiz.

«Se o Governo é impotente, não sabe empregar a força para banir das nossas plagas os barbaros estrangeiros, cumpre a nós, que não dispomos da decima millesima parte destes meios de defeza, o encargo de exterminal-os.

«Ha apenas um anno que mandamos matar Ykam-Mono-kami, porque elle se fez tributario das potencias estrangeiras, porque se conduzio como inimigo audacioso de nossa patria e tinha jurado a sua ruina.

«Apezar deste energico protesto dos patriotas, apezar da revolução que elles sustentão, vimos sem podermos impedir os desenvolvimentos de uma emigração espantosa, e nenhum daïmio da sua côrte protestou contra este facto. Todos estes degenerados japonezes tomárão sobre seus hombros grande responsabilidade, derrubando as sabias leis de To-chio-gou; e, esta temeridade, elles pagárão com o seu sangue.

«Accusa-se-nos de estupidez, porém a custo de nossas vidas e da nossa liberdade, resolvemos manter as instituições de To-chio-gou.

«Ao principio, dizião-nos que os tratados de commercio serião apenas um grande favor, concedido depois de pedidos reiterados, e feitos com a devida humildade pelos estrangeiros; entretanto, tolera-se em Yokohama estes Yakoninos insolentes, que ousão dizer que estes tratados constituem para elles um direito legal, e annuncião-se representantes das potencias estrangeiras, como se para os barbaros poderem traficar não fosse bastante suas lojas e balcões.

«É, mergulhados em profunda tristeza, que os patriotas ouvem fallar nos systemas de governo das nações estrangeiras, e na concentração do poder na administração do governo.

«Vós, os amigos dos barbaros, vos espuzestes á amargas recriminações; excitastes as desconfianças dos vossos compatriotas.

«As nações estrangeiras terão um Mikado como o nosso e que descende directamente dos deoses?

«Decidistes, dos destinos da patria sem ouvir ao nosso soberano, o Mikado, unico chefe supremo que reconhecemos.

«Não queremos relações com os estrangeiros, a sua presença no Japão não tem razão de ser, e se hoje elles possuem navios movidos pelo vapor em lugar dos morosos barcos de vela, tanto melhor, partirão mais depressa.»

Estes e outros manifestos de linguagem vehemente e resoluta forão o preludio da revolução de 1868, que depois de muitas alternativas, deu ganho de causa ao Mikado apesar do auxilio que os estrangeiros derão ao Taikúno.

Derrubado do governo, os successores de usurpadores que mais de uma vez mancharão-se no sangue para galgarem o poder; as relações estrangeiras se restabelecerão em condições mais cordatas com o direito das gentes; e hoje, o Japão possue estradas de ferro, um extraordinario numero de escolas publicas, academias e escolas especiaes; e o Mikado reina como Imperador, a sua autoridade é moderada pelos differentes poderes publicos a semelhança do que existe nas monarchias constitucionaes.

Assim, este mesmo partido que autorisava o assassinato, apenas galgou ao poder, rasgou seu programma e aceitou, de boa vontade, as imposições da civilisação do seculo desanove.

Um grande numero de portos forão abertos aos estrangeiros, e entre outros citaremos: Yokohama, Yedo, Hiogo ou Kobé, Oosaka, Negata, Hakodadé e Nangasaki.


CAPITULO XI

 
Chegada á Yokohama.— As carruagens japonezas.— Os bazares de Yokohama.— As mulheres do Japão.— Yedo.— Os tchaa-jias.— As religiões dos japonezes.


Aviagem de Hong-Kong á Yokohama é, em geral, incommoda em consequencia do mar estar sempre agitado n'estas paragens, e tambem perigosa, pelos innumeros arrecifes que ahi se achão espalhados, e que são a causa de se contar mensalmente, alguns naufragios nas costas do Japão.

Durante os oito dias, que durou esta ultima parte da nossa longa viagem, tivemos sempre o vento pela prôa do Tanaïs, que apezar de estar carregado até o tombadilho, fluctuava como se fosse uma casca de noz, obdecendo docilmente ao capricho das altaneiras vagas que o fazião dançar em todos os sentidos.

Antes assim, era prova da perfeita impermeabilidade do seu bojo; comtudo, talvez preferissemos que esse navio fosse menos esguio, pois, não raras vezes, os effeitos combinados do langage e do roulis produzia-nos o resultado que teria uma rasteira, passada pelos capoeiras da nossa boa terra.

D’esta ultima parte da viagem, feita a bordo do Tanaïs, só guardaremos lembrança do forte cheiro de alcatrão de que até a sopa se ressentia, e do bello aspecto das costas do Japão, illuminadas durante a noite por numerosos pharóes, o que jà nos mostra o gráo de civilisação d’este povo, que ha poucos annos trucidava os indiscretos viajantes ou interesseiros mercadores que aportavão em seo territorio.

A entrada da bahia Yokohama nada tem de notavel a não ser o aspecto imponente do legendario Fusi-hamá que, como um gigante, se levanta no fundo da bahia, com o seo cimo envolvido na neve o dominando todo territorio japonez.

O Tanaïs chegou a este porto em tres de Outubro pela manhã e apenas aferrou, nos preparamos para descer á terra sem mesmo lembrarmo-nos das formalidades necessarias.

Havia somente alguns minutos que o helice do navio entrava em repouso e entretanto mais de cem pequenas barcas de elevadas prôas rodeavão o vapor, conservando-se a respeitosa distancia, sem duvida esperando a visita dos funccionarios da alfandega e da policia japoneza.

Algum tempo depois, entravão a bordo tres funccionarios japonezes, cujo vestuario e maneiras aguçou seriamente nossa curiosidade. Vestião largas calças e uma mal ageitada jaqueta ou sobrecasaca militar, o que fez-nos perder a esperança de vermos as compridas vestes e os brilhantes sabres de que fallavão todos os vivantes com quem tinhamos conversado. Concluida a visita, o que foi mais uma formalidade do que seria inspecção das cartas do navio, entramos em uma das pequenas barcas, que velozmente nos conduzio á terra.

Verdadeiras canoas governando de voga, como se diz entre nós, ellas deslisão com rapidez sobre as aguas pelo impulso que quatro vigorosos bateleiros, todos de pé, dão aos chatos remos de que fazem uso.

Uma vez em terra cumpria-nos procurar a Egreja e darmos graças ao Altissimo que nos protegeo sobre tantos mares e em tão amargas circumstancias.

 
JAPÃO
 

Lith, Imperial A. Speltz

BARBEIRO JAPONEZ

A pequena capella catholica acabava de ser reconstruida e acha-se situada em uma das principaes ruas da cidade do Yokohama.

Ao entrarmos, vimos de joelhos muitos homens e mulheres do paiz, quo oravão com o maior recolhimento e fervor, o que nos encheo de jubilo; —pensavamos no sangue de tantos martyres, derramado sobre este mesmo solo em que, dous seculos mais tarde, sem receio de torturas, cada um pratica os actos religiosos da seita que professa.

Satisfeito o nosso dever de bom catholico, sahimos em procura do Grande Hotel de Yokohama que nos informarão a bordo ser o melhor, e onde devião residir os membros da nossa missão scientifica.

Não conhecendo as ruas e não desejando incommodar os transeuntes, julgamos mais acertado entrarmos em um dos pequenos carrinhos que estacionavão a porta da Egreja e pronunciarmos simplesmente a phrase. «Grande Hotel.» Com effeito, o japonez, que fazia o papel que entre nós pertence a algum representante da classe cavallar ou muar, apoderou-se dos varaes do carrinho, e ao trote percorreu a distancia que mediava entre a Egreja e o Hotel.

Na verdade, é interessante ver-se como se prestão commodamente estes pequenos carrinhos, semelhantes aos em que as crianças sahem a passear, para o estrangeiro percorrer as ruas da cidade.

Pintados com vistosas côres e apresentando desenhos curiosos, estes carrinhos são de real utilidade para os habitantes de Yokohama, que mediante um bou, que vale mais ou menos quatrocentos réis da nossa moeda, percorrem toda a extensão da cidade.

O hotel em que residimos, era bem gerido por uma empreza americana, a sua meza era relativamente boa, os aposentos ventilados e espaçosos; quanto ao preço, necessariamente, o viajante que vai ao oriente deve deixar nos bolsos dos hoteleiros alguma cousa de mais por conta das curiosidades que vê e das delicias de que goza; tanto mais, que elle á o melhor interprete, e o mais prudente guia que podemos ter.

Depois do tomarmos um delicioso banho, e de confortarmos nosso estomago, sahimos para vêr a população indigena, e darmos começo as curiosas visitas que tinhamos em mente.

O japonez é agradavel, cortez, sympathico, e de um amor proprio nacional sem limites; assim, na visita que fizemos aos bazares, encontramos a maior delicadeza e probidade da parto dos mercadores japonezes.

Os bazares são verdadeiros musêos, onde o estrangeiro admira toda sorte de productos indigenas, desde o gigantesco vaso de porcellana, até a porcellana chamada casca de ôvo, que é a mais estimada e de um typo todo japonez.

Ahi se encontrão mil objectos de charão, ornamentos de bronze, lindas pinturas sobre sêda, representando formosas e jovens japonezas, vasos de porcellanas do mil fôrmas e desenhos, Emfim, outros muitos objectos que encantão o estrangeiro, e que muito concorrem para augmentar as despezas de uma longa viagem.

É interessante o modo dos japonezes negociarem, e muitas vezes passavamos horas inteiras no interior destes immensos bazares, a perguntarmos o preço de mil objectos, para afinal sahirmos com algumas insignificancias, no valor de alguns bons com esperança do encontrarmos no dia seguinte em um outro bazar, um objecto mais curioso e interessante.

Os japonezes não usão constantemente, como ha alguns annos, os dois immensos sabres que trazem mettidos na banda que lhes cingo a cintura, comtudo, ainda se encontrão, mesmo nas ruas de Yokohama, alguns que parecem verdadeiros cabides de sala de armas: — tal é o numeroso petrecho bellico que carregão.

Em geral, os homens vestem calças muito justas nas pernas e que são occultas por uma larga veste, especie de robe de chambre, munido de grandes mangas de que se servem com vantagem de preferencia aos bolsos; seus pés estão verdadeiramente enluvados de brim de linho, achando-se separado o polegar dos outros dedos, em cujo espaço passa a corda das sandalias, ou dos altos tamancos; verdadeiros cavaletes de tres a quatro pollegadas de altura, e de que fazem constante uso na estação chuvosa.

As jovens japonezas são lindas e meigas, e salvo os olhos, que são um pouco alongados, podemos comparal-as ás bellas brazileiras de côr morena e porte esbelto. O vestuario das mulheres consiste no classico robe de chambre oriental, em geral, de côr viva, porém sem os complicados bordados dos chins. As pessoas de tratamento usão de vestes ricas e de tons originaes, o que dá elevada idea aos estrangeiros sobre o apurado gosto das damas japonezas. Na cintura, cingem um longo cinto de crepe de seda verde ou escarlate cujas pontas atão em forma de laço. É especialmente o cuidado que dedicão aos cabellos e o modo de penteal-os, que dá verdadeira graça e distinção ás damas japonezas. Os altos penteados, de gosto occidental, são ornados com pequenos enfeites de prata ou ouro, segundo as fortunas, representando um punhal, um sabre, um simples grampo ou todo outro objecto, os quaes atravessão os cabellos mostrando apenas suas extremidades.

A limpeza do corpo é um dos cuidados que mais occupa os japonezes de ambos sexos; e em todas as cidades do Japão, encontrão-se casas banhos, cujas portas se distinguem das outras pelas bandeirolas que ahi fluctuão ao vento. No interior, a agua corre continuadamente em grandes tanques onde, conjuntamente, homens, mulheres e crianças fazem suas abluções no estado em que vivião nossos primeiros paes antes do peccado. Este facto nos dá idéa da simplicidade dos costumes japonezes, e nos autorisa a pôr em duvida que este povo participe do peccado do primeiro homem, pois, os banhistas acotovellão-se dentro destes immensos tanques com mais innocencia do que os cysnes nos lagos artificiaes dos nossos jardins. Dias depois da nossa chegada resolvemos visitar a immensa capital tão fallada pelos escriptores que tratão do Japão. Yedo, apenas dista de Nangasaki de alguns kilometros, porém, em 1874, já estava concluida e em trafego uma linha ferrea ligando Yokohama a capital. Assim partimos pela manhã do Yokohama, e duas horas depois entravamos em Yedo.

Á primeira, vista, esta cidade, que segundo dizem conta perto de tres milhões de habitantes, apresenta um aspecto triste e monotono, porém, depois de ter o viajante percorrido as suas ruas principaes, o quarteirão dos antigos Daimios, e os seus templos, reconhece injusta a sua primeira apreciação; tantas curiosidades, tantos usos, que lhe são completamente estranhos, são verdadeiras delicias para um espirito observador e sensivel.

A nossa primeira visita a capital foi em pura perda, tinhamo-nos afastado do nosso programma, queriamos tudo ver e pouco apreciamos; comtudo, vagamos pelas suas intermináveis ruas durante seis longas horas, ora paravamos em frente dos basares, ora entravamos nas casas de banhos, flnalmente, demoramo-nos em uma das mais conhecidas casas de chá, onde, pela primeira vez, apreciamos este rico producto do Japão preparado pelas mãos de bellas japonezas, que apenas contarião quinze ou dezaseis annos de idade.

A casa de chá do Japão não parece-se nem com o café francez nem com a taverna ingleza, comtudo, se ahi não se encontra a infusão de chicoréa nem o clássico roast-beef, o viajante póde saborear o excellente chá e mesmo delicados manjares e outras gulodices, com a vantagem de não ser servido pelo prestimoso garçon que lhe grita aos ouvidos o infallivel versez, fazendo saltar o tampo da cafeteira, ou pelo imperturbavel boy com seus interminaveis yess, e sim por bellas japonezas que sempre sorrindo, levavão vantagem sobre os occidentaes na arte de agradar.

Os tchaa-jias, ou casas de chá, tem uma apparencia fantastica, quando, durante as primeiras horas da noite, se illuminão com lanternas de papel de differentes dimensões e variadas côres, o deixão vêr a meia luz do interior pela transparencia do papel, que substitue os vidros dos largos caixilhos de suas portas e janellas.

No interior, estas casas são divididas em muitos compartimentos, apenas separados por quadros de papel, movendo-se em corrediças, o que permitte de se transformar em alguns instantes, quatro ou seis destas divisões em um extenso salão.

O chão é forrado com delicadas e espessas esteiras, no que os japonezes tem o maior esmero; assim, fomos obrigados com receio do enlamaçal-as, deixar nossos botins á porta; e isto é uso no Japão.

Os bebedores de chá sentão-se sobre os joelhos e fórmão circulo em roda de um brazeiro, emquanto, que jovens japonezas correm pressurosas a offerecer-lhes fumo e cachimbos, cujas fornalhas são menores que o vasio de um dedal. Logo, em seguida, vem o precioso chá, que para bem aprecial-o os japonezes tomão sem assucar e em pequenas taças de fina porcelana casca de ovo. E na verdade, quanto a esta ultima condição estamos de accordo; o bom chá deve ser bebido em finas e transparentes taças.

O leitor não se enganará suppondo por esta discripção, que o Japão é o mais curioso e o mais delicioso paiz do mundo.

Alli não se encontra a indolencia e a perversidade do chim, tudo é animação, alegria, excellente e encantador; o chá, a porcellana, os bellos objectos de charão, a soda, os japonezes e finalmente, até os deoses são risonhos e meiguiceiros.

Os templos de Yedo constituem uma prova do que dissemos; o de Quanou apresenta-se-nos mais semelhante a uma feira do anno bom, do que como lugar de recolhimento e devoção; o que não quer dizer que os japonezes não a tenhão a seu modo.

É no fim de uma rua lateralmente occupada por algumas barracas, onde se achão expostas as curiosidades orientaes, que levantão se os tectos pontudos de um pagode, de alguns andares, de estylo pouco japonez, e onde se venera a Deus Quanou, muito popular no Japão, ainda que seja natural da China.

Depois de atravessarmos um pateo onde abundavão centenares de homens, mulheres e crianças, subimos alguns degráos e penetramos no interior do templo.

Ahi via-se immensas lanternas de papel de mais de 4 metros de altura, suspensas no tecto e tomando quasi toda altura da sala; cobria as paredes um grande numero de quadros representando mesmo algumas figuras profanas, e que encontrarião apropriado lugar nas salas reservadas dos muzeos; entretanto, não sabemos qual a relação entre o assumpto que apresentão estes quadros e os mysterios do Deus Quanou.

Este deus é, na verdade, de um bom humor inalteravel, pois os japonezes o ameação, supplicão, e até, em alguns templos, atirão-lhe bolas de papel, e outros projectis que não o molestão seriamente. E isto fazem com o fim de obterem o que desejão.

Como em alguns templos catholicos, tambem se encontrão milhares de promessas nos templos japonezes, apresentando braços, pernas, navios, espadas, e todo e qualquer outro objecto.

A divindade principal acha-se, geralmente, no centro do templo; é de dimensões colossaes; basta dizermos que poderiamos commodamente sentarmo-nos sobre a unha do seu polegar. A imagem do deus Quanou, com seus cem braços, parece dispôr de meios sufficientes para corresponder ao seu grande numero de devotos, porém a firmeza destes não é das mais inabalaveis, e, apenas sahimos do templo, encontramos folgando e rindo com a maior jovialidade, alguns dos mesmos Quanunistas, que, momentos antes, ameaçavão e interpellavão de um modo verdadeiramente tragico, pobre deus que com os seus cem braços, parecia unicamente pedir esmolas para sustentar, naturalmente, os seus sacerdotes.

Com effeito, o tinir constante das moedas ao cahir em um immenso cofre, annunciava que a colheita seria farta no fim do dia.

Guiados por um japonez, subimos ao ultimo andar do pagode, e depois de uma ascensão difficil, em que, ora arrastavamo-nos sobre as costas, ora faziamo-nos suspender pelo nosso guia, chegamos ao terrasso do templo e d'ahi gosamos da immensa perspectiva que apresenta a cidade de Yedo.

No centro da vasta area edificada, eleva-se o palacio Imperial, em japonez Siro; em roda e occupando uma larga circumferencia, estendem-se os quarteirões dos principes, ou Soto-Siro, finalmente segue-se o Midzi, que abrange mais da metade de Yedo, e que é a parte da cidade occupada pelo commercio e pelas classes menos favorecidas de fortuna.

Todos estes quarteirões ficão na margem direita do Ohogawa ou Grande Rio; na margem opposta encontra-se o Hondjo ou grande arrebalde, onde se achão alguns armazens do Estado e diversos templos.

Em um destes templos, que visitamos em companhia de um jovem japonez, e que pertence a seita dos Sintoistas ou da religião dos avós, vimos um grande numero de bonzos, sacerdotes deste culto. É verdade que ahi se adorão trinta e algumas mil divindades, o que nos dá idéa do pantheismo do Japão, e contão, que muitas vezes, quando os negocios particulares de um japonez, não correm como elle desejara, é motivo sufficiente para mudar sem o menor escrupulo de religião.

Vemos agora, que conhecemos um pouco os costumes e usos dos japonezes, que o christianismo, por sua essencia monotheista, não podia encontrar o apoio das grandes e converter todo este povo pagão.

É, sobre todas, a religião dos Kamis, tambem chamada Sinto, de um caracter todo patriotico, a que mais se oppõe a propaganda christã.

Os sintoistas reconhecem um Ser Supremo porém que é auxiliado em seus trabalhos, na direcção do Universo, por outros deoses, cuja residencia elles fixão nos astros; estes são os deoses naturaes; segue-se immediatamente depois os deoses historicos que tomão o titulo de Kami.

Elles não adorão o Ser Supremo porque julgão-se tão pequeninos que não esperão ser attendidos em suas supplicas; todo o culto é em honra dos deoses naturaes, e os Kamis são os intermediarios para aquelles que dispoem de um poder absoluto sobre a natureza inteira, podem-lhes fazer o bem ou o mal a seu capricho.

O respeito pelos grandes homens está tão enraizado no coração dos japonezes, que quaesquer que sejão suas crenças, publicamente visitão os templos dos Kamis, e prostão-se diante de suas imagens com toda reverencia, e assim pagão com a gratidão, os serviços prestados á patria pelos antigos imperadores e patriotas que forão considerados deoses historicos.

Os sacerdotes desta religião, salvo raras excepções são verdadeiros hypocritas que vivem a expensas dos credulos e dos fanaticos no meio do luxo e da devassidão.

Assim é, que os bonzos fazem acreditar, que os deoses necessitão de toda sorte de objectos indispensaveis a vida, e os credulos japonezes, depoem sobre os degráos dos templos ao cahir do dia, suas offerendas que em geral consistem em peixe, fructas, gulodices assucaradas, etc., e á noite, os bonzos recolhem todas estas provisões que fossem as delicias do seu paladar e do de suas familias. Comtudo, a parte mais instruida da sociedade japoneza não se deixa illudir deste modo tão ridiculo, apenas contribue com uma certa quota para o custeio e manutenção do culto.

O budhismo é, sem duvida, a seita religiosa que conta maior numero de sectarios.

A primeira estatua de Buddha för introduzida no Japão no anno 559, e no fim de dois seculos as tres quartas parte da população do Imperio professavão esta religião; e foi sobre seus sectarios que o christianismo no XVI seculo levou grande vantagem; infelizmente, como vimos, considerações de outra ordem, comprometterão para com o governo do Japão esta propaganda civilisadora.

Quanto a lei de Confucius, apenas encontra adeptos na classe lettrada deste paiz.

 
JAPÃO
 

Lith, Imperial A. Speltz

JOVENS JAPONEZAS TOCANDO
BANDOLIM

Segundo um escriptor japonez, eis em que consiste esta seita do Japão que toma o nome de Siouto; e que não é inteiramente semelhante a que os chins professão:

«Nossa doutrina pode-se reduzir em cinco preceitos que se exprimem em outros tantos monosyllabos:

Dsin, viver virtuosamente.

Gi, fazer igual justiça a todos.

, ser amavel e polido.

Tsi, propagar e defender o programma de um bom e sabio governo.

Sim ter uma consciencia pura e um coração justo.

«Não reconhecemos a transmigração das almas; porém acreditamos em uma Alma do mundo, em um Espirito universal, em uma Potencia que existe no espaço, que dá vida a tudo e une as almas ao corpo, como o mar recebe todos os rios e as outras aguas que nelle se despejão.»

«Esta Alma do mundo é o recipiente commum das almas individuaes, que depois de repousarem nos limbos regeneradores, sahem para de novo animarem outros corpos.»

«O que chamamos Ser Supremo, nada mais é, do que este Espirito Universal que possue todas as perfeições e qualidades Divinas.»

«Nós, não fazemos distinção entre o Céo e a natureza, e confundimos nas nossas acções de graças, quando temos necessidade de testemunhar á uma potencia superior nosso reconhecimento pelos dons preciosos que recebemos.»

«Comtudo, alguns dos nossos sectarios admittem um ser intelligente, immaterial, governador e director da Natureza, porém que não é o Creador. Ao contrario, elles pretendem que esta especie de Providencia foi por elle creada. Confundem In e Yo, o Céo e a Terra, um activo e o outro passivo; o primeiro, principio gerador, o outro, principio de corrupção. O Mundo é eterno. Os homens e os animaes forão produzidos pela combinação de In e de Yo com os cinco elementos sublunares.»

«Como não admittimos deoses, não temos templos nem cultos. Nos conformamos com os usos geraes do paiz, para celebrar a memoria dos nossos avós, parentes e amigos, arrebatados de nossas familias pela morte.»

«Como fazem os Sintoistas e os Budhistas, tambem collocamos sobre a mesa funérea, carnes cosidas e preparadas, e queimamos cirios, diante das imagens dos nossos mortos, prestamos-lhes assim, veneração como se vivos fossem ; e para honrar sua memoria, reunimo-nos todos os annos ou todos os mezes em banquetes commemorativos, no qual tomão parte toda a familia. Nesta occasião cada um se apresenta com as suas mais ricas vestes, depois de se purificar durante os tres dias que precedem, por abluções e pelo emprego de perfumes.»

«Não queimamos os nossos mortos: depois de conserva-los em nossas casas durante tres dias, os collocamos em tumulos como se faz na Europa. O esquife, é cheio de aromas que garantem o corpo da putrefacção. E assim que descem os corpos de nossos maiores á seus sepulchros.

«Tambem acreditamos que é permittido o suicidio, quando não encontramos outro meio para evitarmos um fim vergonhoso, e esta acção é considerada heroica e reparadoura dos nossos delictos e tambem do opprobio de cahirmos vivo no poder de um inimigo vencedor.»

Baseando-se sobre estes principios philosophicos, e dispensando o culto externo, esta religião não poderia encontrar adeptos na massa de um povo constituido por individuos de uma instrucção insufficiente para a sua comprehensão.

Hoje se encontra em algumas escolas publicas o retrato de Confucius, que, como sabemos, foi o fundador desta doutrina.

Os Sintoistas forão, em outros tempos, accusados de favorecerem secretamente o christianismo; é que os sectarios desta religião, não compartilhando do fanatismo das outras seitas, tomavão interesse nas discussões amigaveis com os padres de Christo, cujas doutrinas tambem são, por excellencia, liberaes e philosophicas; por isso, foi ordenado pelos Imperadores, que os Sintoistas levantassem templos, e que pelo menos, nelles collocassem um symbolo qualquer de sua religião.

Do que temos dito, conclue-se, que existe actualmente no Japão, a liberdade dos cultos, sendo, porém, os christãos mal vistos pelo governo, não por causa de suas crenças, mas sim por terem sido considerados auxiliares naturaes dos europeus, e por consequencia perigosos á segurança do Estado.

Ainda ha poucos annos elles erão castigados com prisão simples ou pagavão uma multa, felizmente, estes prejuizos tendem a desapparecer sob a influencia benefica do contacto com as nações civilisadas.

É pela influencia da civilisação occidental e pela facilidade com que este povo della diriva melhoramentos para as suas instituições, que em breve constituir-se-ha uma das nações mais civilisadas pelas suas instituições politicas e das mais dignas pelo caracter altivo e cavalleiro de seus filhos.


CAPITULO XII

 
Um convite official. — O jantar do ministro da Instrucção publica. — O tio do imperador. — Uma alta dama japoneza. A orchestra de S. M. Imperial do Japão. — Um passeio em bella companhia. — A emigração dos ohins. — Partida de Yoko-hama.


Aá nos achavamos ha mais de oito dias em Yoko-hama, occupados, entre outros objectos, de estudar esta cidade e a capital, de modo a vermos todas as suas curiosidades, e a colleccionarmos o que mais nos agradasse pela sua originalidade, porém que fosse compativel com o estado da nossa bolsa. Assim passavamos nossos dias, quando propicia occasião se apresentou para conhecermos a alta sociedade japoneza. Acabavamos de receber um immenso involucro de papel com caracteres japonezes e no verso lia-se o nosso endereço escripto em francez:- pressurosos rompemos o lacre e em uma folha de excellente papel hollanda lemos textualmente as seguintes linhas:

Mombusko, Tokio, Nippon le 10 Octobre 1874.

«Monsieur. - Le Ministre de l'Instrution Publique fait ses compliments à Monsieur et prie avoir l'honneur de votre presence à En-riò-Kan, lundi prochain le 12 Octobre à deux heures pour venir faire la compagnie.

Agréez Monsieur mes hautes considerations.[nota 4]

Tanaka Foudjimaro,

Ministre de l'Instruction Publique.

Sem estranharmos o gráo de fertilidade do redactor, sem duvida algum interprete do ministerio, agradecemos aos Kamis e aos Fatocas do Exm. Sr. Ministro da Instrucção Publica, tel-o inspirado a delicada attenção de mimosear a commissão de Venus com uma soirée que promettia ser bella e que, assim, nos proporcionava occasião para observar a alta sociedade do Japão.

As primeiras horas do dia marcado para a recepção do Sr. Foudgimaro, passamos a bordo de um bello navio de guerra encouraçado, da marinha franceza, cujo nome, se não nos enganamos, era Mont Calme.

Pertencia á esquadrilha franceza, que então se achava no Japão; e este navio de construcção moderna, era um dos melhores da marinha franceza. Sua guarnição era numerosa e a officialidade briosa e cavalheiresca.

Era este, o navio chefe da esquadra franceza, que então fazia o serviço dos mares da China e do Japão, o qual pela sua construcção e condições de guerra, distinguia-se de todos os outros que se achavão ancorados no porto de Yoko-hama.

Ao meio dia tomamos o trem de Yedo, onde chegamos um pouco antes das duas horas. Na estação encontramos tres carros que nos esperavão, e que, em alguns minutos, nos conduzio a En-rio-kan, bello edificio de moderna architectura pertencente, segundo nos disserão, ao Estado e onde devia ter lugar a festa offerecida aos membros da Missão pelo Sr. ministro da Instrucção Publica.

Ahi precedidos pelo nosso chefe, o Sr. Jansen, membro do Instituto de França, fomos apresentados a S. Ex., que por sua vez se dignou acreditar-nos perto dos seus collegas do governo.

A joven esposa de S. Ex. fazia com a maior gentileza as honras da festa.

Depois de conversarmos com o Director da Instrucção Publica do Japão, que tambem fôra convidado, dirigimo-nos á sala do banquete, no meio da qual se achava uma extensa mesa coberta com as mais delicadas iguarias francezas, entre as quaes sobresahião os perús, gallinhas e outras peças assadas, todas trufadas, e que, segundo nos disse um joven japonez, addido á commissão, forão preparadas por um cozinheiro do paiz que fôra mandado á Paris aprender sua arte.

O que nos intrigou a principio, foi não vermos cadeiras em roda da mesa, porém, ao convite attencioso que nos dirigião os ministros japonezes de tomarmos os lugares, notamos encostadas ás paredes da sala commodas poltronas.

Apenas nellas recostados, pensavamos nas difficuldades que se nos apresentavão, por termos de repousar, necessariamente, os pratos sobre nossos joelhos, mas a nossa perplexidade durou pouco; numerosos creados vestidos com todo luxo asiatico, collocárão diante de cada conviva um pequeno banco que assim nos tirava do embaraço.

Durante todo o jantar, fomos obsequiados por S. Ex. e seus collegas, que com a mais exquisita delicadeza, derramavão excellentes vinhos nos nossos calices, e ião e vinhão sem cessar, a offerecer-nos novos pratos, sem nos deixar mesmo tempo, para saborear as iguarias que acabavão de nos servir.

O jantar durou uma hora, e apenas findo, S. Ex. nos ponderou as vantagens de um passeio pelo jardim do palacio de En-rio-kan, o que foi acceito pelos convivas com immenso prazer.

Assim, depois de Mme Janssen aceitar o braço de um dos ministros japonezes, o que foi retribuido pela joven esposa do Sr. Foudjimaro, fazendo esta honra a M. Janssen, descemos as escadarias do palacio, e, em grupos, seguimos pelas diversas avenidas do jardim. Largos canteiros traçados com um gosto original, continhão bellas rosas do Japão, que nós chamamos camelias, e outras muitas flôres de delicados perfumes e vistosas côres. Altos vasos de porcellanas, dispostos ao longo das avenidas, sustentavão comados arbustos, com as extremidades de seus pequenos ramos perfeitamente aparados, o que lhes davão a apparencia dos chapéos de sol japonezes.

Aqui, via-se uma pequena ponte construida com bambús unidos ou trançados, alli, um pequeno pavilhão de forma chineza com suas campainhas douradas, e suas pinturas grotescas e coloridas, e em volta desse extenso jardim, pequenos bosquetes, fazião realçar as bellezas do bello quadro, deixando passar entre os ramos de suas arvores, os raios dourados do sol, prestes a desapparecer do horisonte.

Subimos uma pequena collina quando chegamos a extremidade do jardim; alli, novas e esplendidas vistas se apresentarão aos nossos olhos: de um lado o jardim que acabavamos de percorrer, apresentando uma bella paisagem com todos os seus planos bem distinctos; – o musgo que cobria o sólo, as flores dos seus canteiros e as series de arbustos em seus lindos e elegantes vasos, tornavão encantadora esta perspectiva. Do outro lado, viamos a vasta bahia de Yedo, com suas pequenas ilhas, suas fortalezas e coberta pelos graciosos juncos, que fazem a navegação de cabotagem.

Deixamos com pezar este bello lugar e a amavel companhia em que nos achavamos.

Durante a conversação animada que precedeu o jantar, elevava-se sobre todas as vozes a de um dos ministros, cuja physionomia sizuda, offerecia contraste com profundas cicatrises que apresentava o seu rosto, causadas por alguma arma branca; julgavamos ser este individuo algum antigo general, então encarregado dos negocios da guerra, mas enganavamo-nos completamente, porque era o presidente do conselho e tio do Imperador.

Á energia deste personagem e a sua dedicação á causa da civilisação, deve o Japão a paz interior, e a consideração que tem merecido dos homens honestos e liberaes.

Ainda ha pouco tempo foi este personagem atacado nas proximidades de seu palacio, por alguns samourais que tinhão jurado sua morte. Depois de o cutilarem, apesar da rude defesa que elle apresentou, com seu sabre na mão, os samourais deixarão-o por morto na estrada. Durante a noite, com custo, e arrastando-se, elle poude ganhar o seu palacio, onde apenas chegado, mandou chamar a autoridade competente para perseguir e encarcerar os assassinos. De feito, depois forão executadas os principaes cabeças deste attentado.

O Sr. Foudjimaro nos disse, durante o passeio que fizemos no jardim do En-rio-kan, que sentia não ter o Mikado do Brazil representantes no Japão, e que, apesar do seu paiz sahir de uma guerra civil, era com immenso prazer que aceitava a amisade das nações civilisadas do Globo.

Em seguida, ainda conversamos, por intermedio de seu interprete, sobre as vantagens do Brazil importar os ovulos dos bichos de seda, a exemplo do que fazem os europêus.

Mostrou S. Ex. ter acompanhado com cuidado os ultimos acontecimentos que se realisárão no Brazil, especialmente quanto ao que diz respeito ao Paraguay.

Na verdade, quanto as vantagens de termos um encarregado de negocios, que representasse o nosso paiz na China e no Japão, ninguem poderá desconhecer. Muito facilitaria uma navegação regular e directamente, pelo Cabo da Boa Esperança com os paizes do extremo oriente, de modo que certos generos, como o chá, as especiarias e outros objectos de luxo não nos fossem remettidos por intermedio da Inglaterra; o que é em prejuizo dos consumidores.

Porém, o fim principal deveria ser de estudar-se as condições da industria da seda, do fabrico do chá, da porcellana, e sobre todas a questão da immigração chineza.

É esta questão uma das mais serias a resolver para em tempo bem proximo podermos dispensar os braços escravos que tornão-se cada dia mais escassos, em detrimento da nossa lavoura e, por consequencia, da riqueza nacional.

Parecem-nos infundadas as opiniões de muitos dos nossos compatriotas que não confião nas vantagens da introducção dos coolies no Imperio, entretanto, se elles visitassem a parte septentrional da China, especialmente Shangai e suas immediações, não encontrarião nenhuma semelhança nem nos typos, nem nas qualidades, que fazem os homens aptos para o trabalho, entre os habitantes indigenas destas regiões e os malayos que vagão pelas ruas da capital do Imperio e que, pelos seus vicios, só servem para activar a vigilancia da nossa policia.

Os chins ou malayos que aportarão á nossas plagas como emigrantes, soubemos terem sido recrutados nas praias de Macau ou nas costas da China, proximas de Hong-Kong.

Nenhuma vantagem se lhes offerecia; a troco de algumas piastras que se lhes dava, embarcavão sem saberem para onde ião, erão mendigantes, muitos, cobertos de lepra e immundos, que a fome e a miseria os obrigavão irreflectidamente, a dar esse passo. E estes homens invalidados pelas doenças, eivados dos mais degradantes vicios, não podião satisfazer aos desejos do governo do Brazil quando autorisou esta emigração.

Alguns dias depois de nossa chegada ao Japão alguns jornaes do paiz noticiárão, que fôra retido no porto de Nangasaki um navio brasileiro que transportava mais de dous mil coolies, contra a vontade destes, que não tinhão assignado contrato algum diante das autoridades chinezas antes de embarcarem.

Immediatamente tratamos de verificar a noticia, e com effeito, o governo japonez mandara desembarcar os coolies, reter o navio até ulterior deliberação e encarcerar o capitão e a tripolação; porém, a sua bandeira era a da Republica do Perú e felizmente neste ponto a noticia era inexata.

Ao principio, pareceu-nos arbitraria e violenta a deliberação do governo do Japão, porém, quem testemunhar a pouca humanidade com que os estrangeiros tratão os chins e os japonezes quando uma vez sujeitos ao direito da força, não deixará de approvar essas medidas necessarias para a honra da civilisação e em bem dos nossos semelhantes.

As difficuldades que surgirão de todos os lados para contratarem coolies que convenhão aos nossos lavradores, só poderão ser obviadas pela diplomacia, do contrario, estamos convictos, de que o Governo Imperial da China reclamará auxilio das marinhas de guerra estrangeiras para impedir, como elles já disserão, o trafico de seus subditos, que illudidos, e muitas vezes á força, vão povoar os paizes da America.

É, pois, pelas difficuldades que apresenta a contratação dos coolies e não por ser esta emigração de nenhuma utilidade para o Imperio, que julgamos infructuosos quaesquer esforços que se empreguem, sem sermos autorizados ou, pelo menos, sem contarmos com a indifferença do Governo da China.

Já dissemos algumas palavras sobre esta questão em um dos capitulos anteriores, porém, só em um livro, poderá ella ser estudada em todas as suas faces; este não é o nosso fim e não seria sem duvida do gosto dos nossos benevolos leitores.

No dia seguinte ao do banquete do Ministro da Instrucção Publica, recebemos permissão do Governo para vizitar o immenso jardim do Mikado, e, sem mais demora, tomamos o trem de Yedo e em seguida, os carros que encontramos a nossa disposição na estação.

Com velocidade percorremos os quarteirões da parte commercial da cidade, e no fim de uma hora descemos em frente de um largo portão, cuja entrada era guardada pelos soldados do regimento Imperial.

Alêas extensas e bem ornadas cortavão em todas as direcções os parques limitados pelas altas muralhas de verdadeiras fortificações. De todos os lados, vião-se bellos kiosques de charão, de differentes e multiplices fórmas, e em um pequeno outeiro artificial, limitado pela margem de limpido regato, elevava-se o chalet imperial, onde o Imperador em seus passeios descansava e tomava algum alimento. Esta bella construcção, ostentava uma magnificencia indescriptivel. As pequenas salas erão forradas com bellas alcatifas de grande valor, não sómente suas paredes como todo o pavimento. Ahi vião-se esteiras espessas e trançadas com finos fios de palha. Aos lados das portas, achavão-se dispostos com harmonia, curiosos objectos de bronze, que apresentávão, entre outros modelos, grandes cegonhas, artisticamente trabalhadas em épocas remotas. No exterior, o aspecto desta construcção era gracioso e simples, de uma architectura original e que não vimos reproduzido em nenhum outro edificio do Japão.

O gosto que presidio a execução deste jardim, cuja extensão mede alguns kilometros, não parece ter sido de um só homem. Assim é que elle toma diversas formas, já na distribuição dos canteiros, dos lagos artificiaes, dos pequenos regatos, de modo que a vista não se cansa, admirando todas as minudencias que manifestão o esplendor do seu todo!

E se o leitor imaginar, no meio de tantas bellezas, entre as folhagens e as flores, nos tectos dos pequenos kiosques e chalets, centenares de passaros de diversas grandezas e ornadas com bellas plumagens de variegadas cores, poderá apreciar como os japonezes sabem satisfazer as condições da arte, os differentes ornamentos de que dispõem, com uma delicadeza infinita, de modo que o effeito geral não seja sacrificado a bellezas de ordem inferior.

De volta á estação, onde embarcamo-nos no trem para Yoko-hama, os nossos cocheiros tomárão um caminho diverso ao da ida, passando por um dos arrabaldes mais bellos de Yedo.

Toda a estrada é orlada de pequenas casinhas e interessantes jardins, cultivados com esmero, e que offerecem acentuado constraste com o que se vê na parte commercial da cidade, onde toda a área é aproveitada para as edificações em madeiras e de dimensões acanhadas.

Muitas arvores fructiferas, encontrão-se nos arrabaldes da capital, e entre outras, as mais vulgares são os pecegueiros e as ameixieiras.

Em uma destas bellas avenidas, que percorremos, vimos o vasto palacio de um dos mais poderosos principes do Japão, Kagano Kami. Este edificio é todo murado, e dizem que, no seu recinto, existem immensos quarteis que podem receber mais de vinte mil soldados.

Infelizmente, esta vez foi a ultima que visitámos Yedo, e considerações de outra ordem nos forçárão a deixar Yoko-hama e a partir para Kobé, cidade situada no mar interior do Japão e mais conhecida pelo nome de Hiogo. Com effeito, partimos, bordo de um paquete americano de tres andares, para Kobé, onde chegámos em um dos ultimos dias de Outubro.

Hiogo ou Kobé, é uma cidade européa edificada, ainda ha poucos annos, pelos residentes e pelo governo, quanto os edificios do Estado occupados para alfandega, escolas e repartições publicas.

Entre outros edificios bem construidos e de gosto europeu, nota-se o consulado inglez, o Hiogo Hotel e algumas casas de commercio.

O Yankiró ou cidade japoneza, dista de dous a tres kilometros da concessão europea, que estende-se ao longo da praia do porto de Hiogo.

No dia seguinte ao da nossa chegada, percorremos a cavallo toda a cidade japoneza que tem suas ruas bem traçadas e largas e suas edificações bem alinhadas.

Ahi, pela primeira vez vimos os portadores da mala do correio, que fazem este serviço de modo inteiramente grotesco. Elles são sempre acompanhados de um companheiro para substituil-os em caso de accidente ou de doença, que poderia demorar a entrega da correspondencia. Encontrão-se nos arrabaldes de Hiogo alguns destes portadores que carregão dous volumes de cartas e jornaes atados nas extremidades de um bambú; o seu andar é rapido, ou antes, elles correm a passo de balanço e sem parar na distancia de dez ri sendo então substituidos por outros. Este systema postal tem dado bons resultados, pois, segundo nos disse um joven japonez, não ha exemplos de reclamações feitas pelos interessados sobre perdas de cartas ou outro qualquer objecto, confiado ao correio japonez; e quando acontece, a mala demorar mais uma hora por cada dez ri que tem a percorrer, os portadores são punidos severamente.

O ri equivale aproximadamente a mil e duzentas jardas inglezas.

Em Hiogo, vimos grandes pontes de pedra construidas em tempos remotos que nos dá idéa do engenho dos japonezes; assim, é que na construcção das abobadas elles procedião do mesmo modo que os europeus, com a differença, que o trabalho era muito mais moroso, pela deficiencia de meios mecanicos.

O quarteirão dos tchaa-jias é muito frequentado em Hiogo, diante dessas casas que são construidas em roda de uma praça, os japonezes levantão arcos com bambús, e, durante a noite, os enfeitão com immensas lanternas de papel, que illuminão perfeitamente toda a praça, e dão-lhe um aspecto festivo.

Em uma das nossas excursões, entramos em um tchaa-jias que pela sua apparencia e frequencia, parecia ser o mais procurado pelas pessoas principaes de Hiogo.

Era dia de festa, a sala principal da casa de chá estava completamente replecta de passeiadores. Com difficuldades podemos nos accommodar e alli gozamos o curioso espectaculo que apresentava essa reunião de individuos, alguns vestidos á europea, e outros armados com dous sabres, cujos punhos brilhavão entre as dobras das ricas bandas de seda que os sustentavão. Lindas e jovens japonezas, pressurosas corrião aos differentes grupos a offerecer-lhes cachimbos, fumo e chá.

Um dos objectos mais indispensaveis a todo o japonez, qualquer que seja o sexo ou posição, é o tradicional cachimbo cuja fornalha é menor que o fundo de um dedal, sendo o tubo em bronze e muitas vezes trabalhado, com incrustações e ornamentos em ouro ou prata.

Os japonezes trazem este objecto preso á uma pequena bolsa de fumo, que pende-lhe do cinto.

Alguns momentos depois de nossa chegada do tchaa-jias, soubemos que teria lugar aquella noite uma dança tradicional no Japão, e em que tomão parte as jovens japonezas, que chamão a esta especie de jogo de prendas Shirifuri. É algum tanto difficil narrar todos os pormenores do Shirifuri, apenas diremos que as japonezas, ornadas com flores, tendo as costas das mãos coloridas com carmim e vestindo suas mais ricas vestes, dividem-se em dous grupos, e ao mesmo tempo que danção, batem palmas. Alternativamente, ora apresentão a mão fechada, ora voltão a palma para frente, outras vezes ficão com uma das mãos suspensas no ar, emquanto que a outra descansa sobre o quadril; e acompanhão cada um destes accionados com phrases correspondentes, de modo que, se uma dansarina engana-se fazendo um signal com as mãos, que não corresponde á phrase pronunciada, é punida, e como prenda entrega uma peça do seu vestuario.

Recomeção, assim, tantas vezes, complicando as peripecias de mais a mais, de modo que no fim de alguns minutos uma unica fica vencedora entre suas companheiras despojadas de suas vestes. E a que sustenta toda luta, sem mesmo perder sua cinta, é victoriada pelos assistentes, emquanto que as outras com a maior simplicidade se vestem rapidamente e correm a festejar sua companheira.

Nesta festa todos tomão sua parte; os assistentes acompanhão com gargalhada franca todo este complicado jogo; e só quem comprehende a lingua japoneza, é que poderá avaliar o espirito destas phrases, ditas com incrivel vivacidade, e acompanhadas com certos gestos determinados.

Assim reunidas, essas jovens japonezas de 16 a 20 annos de idade, parecem não comprehender a pouca moralidade deste jogo que as obriga a despojarem-se de suas vestes.

Depois do Shirifuri, tivemos uma sessão de physica divertida, dada por dous prestidigitadores, que se achavão em Hiogo de passagem para a populosa cidade de Oosaka. Na falta de theatro naquella cidade, ellas escolherão o tchaa-jias para exhibirem suas pelloticas. Um dos prestidigitadores, era individuo de alguma idade, tendo a parte anterior de sua cabeça raspada e trajava uma larga vestimenta muito folgada em forma de dominó. A sua barba, bem penteada, cahia-lhe sobre o peito o que é raro no Japão, e finalmente o seu aspecto era a de um perfeito magico da antiga tradicção. Executou alguns trabalhos com graça e felicidade, e entre outros nos recordamos da sorte da multificação dos chapéos de sol, e dos passarinhos que ajuntavão seus ovos e os chocavão na mão dos espectadores. Estas sortes são feitas com a mesma pericia pelos homens do officio entre nós, porém, o que nos admirou, bem como a todo o estrangeiro que vai ao Japão, foi o jogo das duas borboletas. Eis em que consiste:

Tomão dois pedacinhos de papel, que torcem em ponto e dão-lhe assim a forma de duas borboletas, lançam-nas ao ar e as mantem suspensas com o auxilio de um leque. Em seguida, mudando a posição do leque, que não cessa de deslocar o ar, dirigem uma das falsas borboletas sobre a outra. Ora ellas volteião juntas no espaço, ora uma corre em direcção opposta á outra, outras vezes ellas lutão no ar, recuando e avançando alternativamente até que a vencida cahe por terra e a outra desapparece por uma porta ou janella da sala.

É necessario uma mão muito exercitada e habil para determinar este ou aquelle effeito, inclinando mais ou menos o leque de modo a aproximar os dous pedaços de papel, afasta-los, elevar a um mais que a outro, faze-los tomar direcções contrarias e facilmente combinar todos estes movimentos apparentemente differentes e todos determinados por um mesmo leque.

O prestidigitador acompanha todos estes movimentos com ditos sem duvida espirituosos, pois provoca hilaridade nos espectadores.

Durante a nossa estada em Hiogo, fizemos uma excursão a cavallo pelas immediações desta cidade. Depois de uma hora de viagem chegamos a um templo consagrado a um deus cujo nome japonez nos esqueceu, porém que em nossa lingua é o Deus do amor.

Este templo é extravagante pelos seus ornamentos e imagens; de um lado, vêm-se cintas japonezas, flores seccas, pequenos cachimbos de bronze e outros muitos objectos de uso profano; do outro, largas fitas de seda encarnadas, um par de velhas sandalias, uma vestimenta completa e um sabre tinto de sangue.

 
JAPÃO
 
Dama japoneza dormindo a sesta
Dama japoneza dormindo a sesta

Lith, Imperial A. Speltz

DAMA JAPONEZA DORMINDO
A SESTA

Quanto as imagens, são toscos desenhos sobre seda, e um pequeno quadro, representando uma japoneza ainda joven.

No jardim, que rodeava o velho templo, encontramos algumas aves, das quaes o maior numero consistia em patos e gansos. Quando apeamo-nos dos nossos animaes e os confiamos aos tocadores, especies de pagens que a pé acompanhão as cavalgaduras, vimos um grupo de japonezas, ainda jovens, que nos saudárão com sua costumada delicadeza, e dirigirão-se ao templo.

Ao chegarmos, grande foi nossa admiração, quando as vimos no interior do templo a almoçarem tranquillamente as iguarias preparadas, que trouxerão em caixas de charão. Convidarão-nos a compartilhar do seu almoço, e como recusassemos, uma dellas deu-nos cachimbo e fumo, pedindo-nos que aceitassemos e que delles nos servissemos emquanto comião.

Não houve remedio senão aceitarmos por comprazer o offerecimento; e como um dos nossos pagens entendesse o inglez, ligamos com ellas conversação; e eis, mais ou menos, e salva a redacção, o que ellas nos disserão a respeito do templo do Deus do amor.

«No tempo do Taicúno Yéyeas, disse uma dellas que parecia a mais idosa, um daïmio, amou a mulher de um grande ministro e seu amor foi correspondido. O ministro do Imperador, encontrou um dia o joven cavalleiro aos pés de sua mulher e como fosse seu parente e não querendo infamar o nome de familia, ordenou que elle matasse sua amante e em seguida se suicidasse. O daïmio, comprehendendo então, quanto fôra traidor á amizade e a confiança que nelle depositava seu parente, jurou que se castigaria severamente, porém pedia ao grande ministro para receber sua mulher e perdoar sua falta.»

Compadecido, o ministro ouvio pesaroso esta supplica e perdoou a ambos; porém, o daïmio abandonou a corte do Imperador, visitou todos os lugares onde teve entrevista com sua amante, e ajudado pelos seus servos, mutilou seus membros, separando primeiramente, um braço, depois outro, em seguida uma perna, e assim, no quinto lugar, que foi onde nos achavamos, elle mandou que um dos seus amigos o degolasse.

Então, o Imperador sabendo destes feitos, propoz á seu conselho que fosse este daïmio venerado como kami; e que se levantassem templos onde os japonezes fossem venerar sua memoria.

A nossa curiosidade não satisfeita com a explicação que acabavão-nos de dar sobre a divindade que fazia parte da nossa companhia, e assistia, é verdade que em pintura, a nossa conversação, quiz saber o que representavão aquellas vestes que estavão no templo.

Uma outra japoneza, ainda joven, levantou-se e começou a ler em voz alta a inscripção de um quadro que se achava suspenso na parede do templo, e o nosso interprete traduziu, ainda que mal, as suas phrases.

Em conclusão, o sabre, a velha sandalia e as vestes, pertencião á defuncta divindade, – era o proprio sabre que decepara-lhe a cabeça.

As outras vestes, mais numerosas, erão de novas victimas do amor, tambem immoladas, porém, que não tiverão o heroismo do deus do amor, e por isso, só tinhão expostas as suas vestes, e as suas imagens erão simplesmente pintadas.

Soubemos, por uma dessas jovens, que a familia com quem tratavamos, pertencia á nobresa japoneza, que era de orgulhosos daïmios, e que seu pae fòra massacrado em um encontro entre os patriotas e os Taikúnistas.

Ao despedirmo-nos, fomos ainda rogados de acompanhal-as á sua residencia, que ficava no nosso caminho.

Durante esse curto trajecto, era interessante vêr uma das mais bellas japonezas do grupo, vestida com ricos estofos de sêda e graciosamente sustentando um chapéo de sol, que resguardava o seu rosto dos raios do astro do dia.

Uma outra dama trazia ás costas um seu filho, de uma vivacidade precoce e que apenas contaria dois annos de idade.

Chegamos, afinal, á uma casa de bella apparencia, onde encontramos todos os confortos de que gozão as ricas familias do Japão: o pavimento era coberto com finas esteiras, as paredes douradas, e as salas ornadas com bellos vasos de porcellana, e ricos objectos em bronze.

Formamos de novo o roda, fumamos nos seus cachimbos, e apreciamos deliciosas chavenas de chá, as quaes, cada uma, apenas poderia conter duas colheres do liquido.

Durante uma hora que ahi permanecemos, podemos avaliar a delicadeza, e a mais prudente descripção, que caracterisão o trato da familia japoneza.

Ao despedirmo-nos, estas damas, por intermedio do nosso interprete, nos derão o seu nome, e declararão sentir que seus irmãos não estivessem presentes. Um delles, disserão-nos, estava na marinha do Mikado, o outro em Paris, onde posteriormente o encontramos.

Por sua vez, desejárão saber qual o nosso nome e a nossa nacionalidade, e assim, nos lembrárão um dever; e se já não o tinhamos cumprido, foi por mera distracção e não por falta de consideração a quem tão francamente nos obsequiava.

Já tinhamo-nos esquecido deste encontro, quando, alguns dias depois, no Hiogo-Hotel, nos vierão dizer que duas senhoras japonezas desejavão nos fallar.

Immediatamente deixamos a sociedade dos nossos companheiros, que ficarão intrigados com a visita, e recebemos as damas japonezas no salão do Hotel.

Depois de nos saudar e de se informarem de nossa saude, graciosamente pedirão-nos para ser portador de cartas de familia para seu irmão, que se achava em Paris; e ellas acrecentarão, desejar que com elle ligassemos amizade.

Puzemos todo o nosso prestimo á sua disposição; o que uma dellas agradeceu, offerecendo-nos uma bella facha em crepe de seda como signal de amizade e respeito. Quando ellas se despedirão, ficamos seriamente pesarosos por não comprehendermos a sua lingua, o que tornava indispensavel um interprete, que, em geral, transforma uma conversação em dialogo, reservando a forma para si.

Posteriormente, em Paris, apreciamos as boas qualidades do joven irmão destas damas, o qual exerce actualmente um cargo importante na alta administração do Japão. É o actual governador das provincias do norte do Imperio. Depois de seis annos de estudos, findo os quaes, obteve em Paris o diploma de engenheiro civil, e, posteriormente, o mesmo titulo pela escola de Londres, este joven amigo, que apenas conta vinte e seis annos, presta relevantes serviços a seu paiz, que muito necessita de homens intelligentes e liberaes.

Nos esqueciamos de fallar da celebre orchestra de S. M. o Imperador do Japão, que é muito interessante e merece ser mencionada.

Nada conhecemos que nos faça lembrar a harmonia da musica japoneza, a não ser quando ouvimos algumas crianças choramigar ao mesmo tempo.

A orchestra que tocou em Yedo, por occasião da recepção official da nossa commissão, compunha-se de vinte e nove figuras, algumas porém, parece-nos, que apenas fazião numero; tal era o fraco som que desprendia-se de seus instrumentos.

Alguns musicos servem-se de instrumentos frautados, feitos com bambús, outros, de pequenos timbales de cobre, e finalmente muitos tirão agudos e asperos sons de cordas metallicas tendidas sobre pedaços de madeira.

Apezar de não ser do nosso gosto tal harmonia, cumpre dizer que os musicos do Japão recebem uma certa educação, e o seu repertorio musical é escripto em linguagem apropriada, como acontece entre nós.

Consta-nos que no Japão já existem verdadeiras bandas de musica militares, como as que vemos nos outros paizes, e que a orchestra do Imperador é conservada, apenas por patriotismo do governo, que não quer abolir certas usanças tradiccionaes, uma vez que não compliquem a marcha civilisadora que trilha a actual politica japoneza.


CAPITULO XIII

 
Os lutadores do Japão. – Golden Age. – Viagem pelo mar interior. – Um eclipse do Sol. – Pappenberg ou a ilha dos christãos. – A cidade de Nangasaki. – Decimá ou a feitoria hollandeza. – A montanha de Compira. – Um templo tradicional.


Em um dos nossos passeios pelas ruas do Yankiró de Hiogo, fomos attrahidos por um grande numero de japonezes, agglomerados á porta de uma casa.

Resolvemos saber o que era, e como vissemos muitos cabides de armas entre o povo, examinamos furtivamente os nossos revolwers e penetramos na dita casa. Em um pateo interior, um bilheteiro, por meio de signaes, nos fez comprehender que estavamos em um circulo de lutadores; e que dentro de meia hora começaria o espectaculo.

Mediante alguns bous, nos foi permittido o ingresso, e ainda que fossemos o objectivo de todos os olhares, muitos graciosos, e alguns severos e concentrados, especialmente os dos samourais, atravessamos a multidão e tomamos assento no pequeno amphitheatro, no meio do qual devião lutar robustos e vigorosos japonezes, que recebem o tracto dos cavallos de puro sangue.

Do mesmo modo que se preparão os cavallos de puro sangue em Inglaterra, para as corridas do Derby ou do Golden Cup, tambem no Japão se preparão os lutadores, com a differença, porém, que aquelles bellos animaes são cotejados em varios ensaios, para que seus membros ganhem elasticidade e vigor, e estes, fazem exercicios gymnasticos, isoladamente, e fóra das vistas do publico, para que só elles possão julgar da sua força para o momento decisivo; e como pela vida que passão, poucas occasiões se lhes apresentão para pensarem nas afflicções e contrariedades a que está sujeito o homem do trabalho, elles gozão de excellente saúde, e, em geral, são tão nedios que os seus traços desapparecem debaixo da espessa camada de gordura que cobrem todos os seus membros.

Como usão os homens do povo, os lutadores tambem raspão completamente a parte anterior da cabeça e amarrão as pontas dos curtos cabellos que cobrem o occipital. Na luta, apresentão-se apenas com uma especie de tanga muito curta e fortemente apertada na cintura. Eis como elles procedem nos seus combates:

Os lutadores tirão a sorte de modo a lutarem dois a dois. os braços e apertão-se fortemente, tratando cada um pelo geito ou sorpreza, podendo tambem empregar as pernas, de derrubar um ao outro.

Ao espectaculo, a que assistimos, erão dez os lutadores. O vencedor do primeiro par, bateo a quatro adversarios, porém, foi afinal derrubado pelo quinto, que por sua vez foi vencido pelo ultimo; e erão estes tres os vencedores; elles baterão-se de novo, sendo o ultimo, o invencivel, o que foi victoriado com flores e moedas de prata, porém sahio bastante doente em consequencia, segundo nos disserão, da pequena colheita que lhe rendeu a festa.

É para admirar que estes individuos, extraordinariamente gordos, sejão tão ageis e possão realizar tantos movimentos musculares com certa graça e muita destreza. É principalmente quando derrubão os adversarios, impedindo que seus corpos caião bruscamente sobre o sólo, que o publico os applaude com enthusiastico frenesi.

Partimos de Hiogo, depois de alli estarmos quinze dias, para Nangasaki, onde deviamos estabelecer o nosso acampamento, afim de assistirmos a interessante entrevista entre Venus e o Sol; e como este importante phenomeno teria infallivelmente lugar em 9 do seguinte mez de Dezembro, dispunhamos de pouco tempo para preparar-nos convenientemente de modo a tornarmo-nos dignos de um olhar da deusa da formosura.

Habituados a vermos, como os japonezes prestavão homenagem aos seus Kamis e Fotocas, seria imperdoavel qualquer negligencia da nossa parte, á vista destes edificantes exemplos, o que nos acarretaria justa censura por parte dos veneraveis sacerdotes do templo da Sciencia se, irritando a deusa, ella não se dignasse apparecer no momento supremo a nossos olhos.

Porém, não tinhamos perdido o nosso tempo; viajamos pela costa do Japão em procura das credenciaes necessarias para a apresentação, e posto que os japonezes não cuidassem, até aquella época, em levantar templos aos Tres Elementos da Terra, onde com o barometro o thermometro e o psychrometro, os seus bonzos poderião acompanhar as alterações do systema nervoso destes deuses, que muitas vezes se deixão levar pela colera e tornão-se insupportaveis e inconvenientes; comtudo, encontramos um subdito inglez que, já havia alguns annos, fazia diariamente suas adorações a estas divindades.

Consultámos a este pagão, que graciosamente nos mostrou os fastos de sua religião, e por estes annaes se viu que, durante os mezes de Novembro e Dezembro, as divindades em questão mostravão-se pouco accessiveis a qualquer concessão; resolvemos assim, partir para Nangasaki, em busca de devotos mais acreditados perto destas divindades caprichosas, inconstantes, que, como dizemos entre nós, quando se trata de pessoas voluveis, varião mais facilmente do que o tempo ou o vento.

O Golden Age é um grande paquete de pinho, conta tres altos andares, mede cem metros de cumprimento, e traz a bandeira americana.

Não gostamos de viajar nestes navios que se inflammão mais facilmente do que uma barrica alcatroada, porém, a menos de não navegarmos em algum junco chinez ou japonez ou em navio de guerra francez, que só tem commodos para sua numerosa guarnição, não tivemos outro remedio senão embarcarmo-nos no Golden Age, confiados na fortuna porque, na verdade, todos os annos inflamma-se um destes navios, e, alguns, no meio do Oceano Pacifico sem que nem mesmo se tenha noticia.

Entretanto, os camarotes são espaçosos e a bordo encontra-se todas as commodidades possiveis em uma viagem de mar; coloriferos, bons banheiros, regular passadio, e, sobretudo, bons pilotos e officiaes; porém, a par disto, fuma-se nos salões, nos camarotes e até na segunda classe e mesmo, debaixo da coberta, veem-se centenares de chins amontoados como fardos, quasi adormecidos, ou fumando o opio em seus immensos cachimbos.

E a fleugma do joven commandante americano vai a tal ponto que, tendo noticia por um dos passageiros do abuso dos chins fumarem debaixo da coberta, mandou chamar o immediato e depois de communicar o occorrido, accrescentou rindo-se que não desejava que seu navio se queimasse, porque a companhia tinha, havia um mez, perdido um que incendiou-se ao sahir de Hong-Kong, e que tambem era accionista da companhia.

O interesse pecuniario predominava sobre sua responsabilidade moral.

Ao entrarmos no mar interior do Japão, vastos panoramas se desdobravão á nossos olhos; e, na verdade, tinhamos até então, percorrido a parte arenosa do territorio Japonez.

Assim, no littoral, vião-se altos rochedos como que plantados em limpida areia cobrindo largas praias e formando dunas mais ou menos elevadas. No mar interior, porém, destacavão-se altas montanhas com suas encostas cultivadas, pequeninas casas com seus tectos pontudos, e grande numero de barcas transportando passageiros de umas para as outras cidades, ou aldeias, situadas ao longo da costa.

 
Japão
Lit. Imp. A. Speltz.
𝕭𝖆𝖗𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖕𝖆𝖘𝖘𝖊𝖎𝖔 𝖙𝖗𝖎𝖕𝖔𝖑𝖆𝖉𝖆 𝖕𝖔𝖗 𝖒𝖚𝖑𝖍𝖊𝖗𝖊𝖘 𝖏𝖆𝖕𝖔𝖓𝖊𝖟𝖆𝖘
 

Em alguns pontos, observava-se luxuriante vegetação de um verde puro, que se destacava do aspecto abrupto e esteril dos rochedos isolados e de fórmas caprichosas, que orlão toda a costa.

Na vespera da nossa chegada a Nangasaki, ás 4 1/2 horas da tarde, observamos, de bordo do Golden Age, um eclypse do Sol, que era parcial para o Japão. A athmosphera estava pura e transparente e pela primeira vez poderiamos observar as differentes phases deste phenomeno em excellentes condições, se podessemos dispor dos instrumentos necessarios e de installação conveniente.

No dia seguinte pela manhã, avistamos pela prôa do Golden Age, as ilhas Iwosima, que se achão situadas entre os promontorios ou pequenas linguas de terra, que ahi se encontrão em grande numero, muito proximas umas as outras.

Muitos destes promontorios são fortificados e alguns dispoem de excellente artilheria que foi mandada vir dos Estados-Unidos pelo actual governo.

As baterias são dispostas de modo a impossibilitar aos inimigos das vantagens dos tiros de grande alcance; assim, ellas formão planos combinados de modo a attrahir os navios inimigos para as passagens, na apparencia praticaveis, por entre os rochedos que se achão quasi a superficie das aguas.

Vimos muitos militares debruçados sobre as muralhas dos fortes que com interesse acompanhavão a marcha do Golden Age.

As encostas das pequenas montanhas que olhão o lado de terra, são utilisadas pelos quarteis e armazens de munições que pela sua situação são inacessiveis, pois parece de muita temeridade qualquer tentativa de desembarque naquelles pontos da costa.

Antes de entrarmos em Nangasaki encontramo-nos com grande numero de barcos de pesca, com suas próas levantadas e suas velas perpendiculares e feitas com algumas esteiras de pequenas dimensões.

A equipagem compõe-se de seis ou sete Japonezes e duas mulheres, que auxilião os homens nos differentes trabalhos, emquanto que seus filhos se conservão no fundo do barco.

Os pescadores Japonezes apenas cobrem seus corpos com uma cinta ou tanga de estofo cinzento.

A môr parte das barcas trazem pavilhões de diversas cores e formas, que parecem indicar quem os seus proprietarios.

Na parte estreita do porto, passamos perto da famosa ilha de Pappenberg, a Capri do Japão, donde o imperador Yéyas, qual outro Nero – mandava precipitar os christãos depois de amarrarem-lhes os pés ou de abrirem-lhes uma veia importante. Era, assim, que os Neros do Japão mandavão precipitar ao mar os christãos portuguezes e japonezes pelas escarpadas encostas da ilha de Pappenberg.

Apenas o navio americano aferrou, um tiro de peça annunciou aos habitantes de Nangasaki a sua chegada, e, dez minutos depois, entravão a bordo os empregados da policia e da alfandega japoneza, que depois de verificarem os manifestos e as cartas do navio permittirão-nos desembarcar e offerecerão-nos o seu escaler.

Durante alguns minutos que estivemos em companhia de taes funccionarios, notamos a mais exquisita delicadeza e discripção no seu tracto. Elles fallavão perfeitamente o inglez e soffrivelmente o francez.

O porto de Nangasaki tem, aproximadamente, uma legua de comprimento sobre uma milha de largura; a cidade fica no lado direito da entrada, e no fundo do porto elevão-se grandes montanhas, offerecendo uma perspectiva de varios planos, pois, suas encostas são cortadas em largos degráos, sobre os quaes, se cultivão legumes e cereaes. No fundo da cidade, tambem existe uma longa fila de montanhas, das quaes, a mais alta, mede mil e oitocentos pés de altura. Os japonezes dão-lhe o nome de Kawagawa, ou alta montanha.

Muitas baterias, das quaes o maior numero parece em abandono, elevão-se de todos os lados; e, pela sua posição, este porto pode ser considerado um dos mais fortificados do Japão. Na beira do mar, e separado do resto da cidade, notava-se uma especie de ilha, porém ligada por meio de pontes de madeira com a terra firme; é antiga feitoria hollandeza: Decimá, como chamavão os indigenas. Ahi, ainda se encontrão grandes e vastos armazens pertencentes a este commercio, hoje em decadencia, e que em outras épochas erão os depositos dos objectos de importação que a Europa fornecia a todo o Japão.

O lado direito do porto é occupado pelas construcções de uma architectura europea, que são habitadas pelos negociantes estrangeiros residentes em Nangasaki.

Apenas descemos á terra, corremos em busca de um aposento. Fomos felizes, pois, podemos obter o unico quarto que se achava desoccupado no hotel de Nangasaki, em quanto que nossos companheiros, menos previdentes, forão obrigados a recorrerem á hospedaria japoneza. Já era tarde quando chegamos em Nangasaki, de modo que não podemos n'aquelle dia percorrer a cidade e nem mesmo visitarmos a estação dos astronomos americanos, que ahi já se achavão havia quinze dias.

No dia seguinte visitamos o Yankiró de Nangasaki. Esta parte da cidade occupada pelos japonezes, fica em um grande valle que se prolonga em uma extensão superior á quatro milhas.

Os bazares são numerosos, porém, nem a porcellana, nem o charão são da qualidade que vimos em Yedo; sem duvida, são objectos fabricados para a exportação. Apenas encontramos em uma destas casas uma linda salva ou prato em bronze com ricas incrustações em prata e ouro.

Os mercadores japonezes fazem negocio á seu modo, e quando perguntamos o preço deste objecto, um d'elles com fino olhar, e sem mostrar interesse, nos disse, que infelizmente possuia este objecto havia muito tempo, que não encontrava amador, e que, por isso, estava disposto a vendêl-o por menos do valor; e só depois de fumarmos uma duzia de cargas de fumo nos seus delicados cachimbos e de termos sorvidos outras tantas chicaras ou antes colheres de chá, podemos saber do preço da bella peça. Pedia nada menos de quatrocentos bous, que correspondem mais ou menos a duzentos e cincoenta mil réis de nossa moeda.

Naturalmente, a nossa bolsa não podia supportar sem perigo estes continuos attaques, e nos consolamos em apreciarmos o bello relevo e o valor artistico, e, para não contrariar o nosso amavel negociante de curiosidades, fizemos acquisição de uma duzia de delicadas taças de porcellana casca de ovo.

Dias depois, grande foi a nossa sorpresa sabendo que o objecto dos nossos desejos e que nos levou muitas vezes a visitar este bazar; era propriedade de um companheiro, e que apenas lhe custara cincoenta bous, isto é, a oitava parte do que nos exigia o farcista japonez.

Voltamos dias depois a sua casa e ahi vimos uma outra peça, do mesmo modelo e em tudo igual, o que muito nos fez rir, lembrando-nos da raridade tão apregoada pelo vendedor, que desta vez foi mais razoavel, pois nos vendeo por quarenta bous o tal prato, sem duvida para facilitar a venda de um terceiro a quem mais ou menos pagasse, á seo desejo.

Apenas residimos alguns dias no American Hotel e como já tivessemos escolhido lugar conveniente para levantar o nosso acampamento scientifico, não era possivel continuarmos n'esta agradavel vida, só consistindo em passear, mercadejar teteyas japonezas, comer e dormir. Isto seria natural para o viajante que só a curiosidade o levasse ao oriente.

O nosso acampamento foi levantado sobre uma das montanhas situadas no fundo do porto de Nangasaki e denominada Compirá-Hyamá:

Para chegarmos até o cume, galgavamos mais de mil largos degráos, talhados na pedra, sem contar uma pequena viagem de trinta minutos atravez de toda a extensão da cidade.

Esta parte, percorriamos em pequenos carros, cada um puxado por um japonez, que ao trote largo igualava em velocidade a marcha de um cavallo. Chegavamos sempre a nossa residencia extenuados, e só eramos prestaveis para qualquer cousa no fim de meia hora de descanço.

A nossa habitação fòra cedida pelos bonzos do Deus Compirá, e era contigua ao templo; consistia em uma espaçosa sala dividida com os classicos caixilhos de papel em cinco alcovas, sem contar com a sala commum onde faziamos as nossas refeições.

O templo do deus Compirá estava situado sobre a parte mais elevada da montanha, no fim de uma pequena esplanada, limitada em ambos os lados por frondosos bosquetes.

Á entrada, logo que se attingia ao plano, apresentava-se a nossa vista essa alea pittoresca, com seos arcos de pedras, seus tanques d'agua para os devotos fazerem suas abluções; e, no fim, o pequeno templo em forma de chalet que era constantemente visitado, (pelas japonezas especialmente).

O interior do sanctuario era muito acanhado, porem estava decorado com vistosas cores e suas paredes cobertas de promessas e offrendas bem como de muitas imagens de difficil interpretação.

Na parte posterior do templo, via se uma especie de gaiola, isolada, que, segundo dizião os bonzos, era a morada do deus Compird, o protector dos navegantes e que nada mais é senão o deus do tufão representado, sem duvida, por algum Kami ou Fotoca.

Em uma outra elevação, armarão-se as cabanas vindas da Europa e que devião servir para resguardar os nossos bellos instrumentos.

Era interessante vêr se jovens japonezes e japonezas, durante as frequentes visitas ao nosso observatorio.

Admiravão as dimensões das grandes Innetas, cuja utilidade mal comprehendião, miravão-se nos espelhos dos nossos siderostatos, querião tudo vêr, e nos inquirião mostrando grande interesse, sobre a utilidade e muitas vezes sobre o preço dos instrumentos.

Comprehende-se quanto era difficil satisfazer estas perguntas, e então, para contental-os, mostravamos tudo quanto lhes era possivel comprehenderem, porem, procurando sempre entrete-los sobre o conjuncto do que vião, e sobre o fim da nossa missão.

Ahi recebemos a visita do almirante japonez e dos officiaes do seo estado maior, que parecerão interessarem-se pelo que vião e ouvião por intermedio do interprete que o governo japonez pozera á disposição da commissão.


CAPITULO XIV

 
Venus e o Sol. — A profissão dos astronomos Japonezes. — A imprensa Japoneza. — O Japão-Republica. — A instrucção publica n’esse paiz.


Ver Venus era o nosso objectivo quando embarcamo-nos da França para o paiz mais extremo do Oriente.

Por isso, calcule o benevolo leitor que sensações experimentamos á aproximação da epocha fatal da rara entrevista da caprichosa deusa com o galante Sol.

Na vespera, ao anoitecer, todo o horisonte achava se coberto, e a medida que a noite se adiantava, as nuvens tornavão-se mais negras e densas, não nos deixando ver ponto algum do esplendido matiz que orna o firmamento.

Formulavamos mil hypotheses, mais ou menos provaveis, que poderião permittir a presença da bella deusa, e, parece-nos, que nem um só elemento conhecido, foi despresado neste complicado calculo de probabilidades. Comtudo, já achavamo-nos habituados com as mudanças repentinas de tempo; e na estação tempestuosa, era de esperar que qualquer mudança que experimentasse o vento em sua direcção, modificaria o tempo que até as 9 horas da manhã do dia do phenomeno, mostrou-se indifferente aos nossos desejos.

Porém, alguns minutos depois, as nuvens se adelgaçarão e como que obedecendo a gravidade, deixárão-se cahir sobre o horizonte, onde amontoarão-se em negros cumulus.

Então, o sol appareceu festivo, seus raios ainda que quentes produzião-nos doce sensação, e, jámais, este astro nos pareceu tão radiante de doce luz. E na verdade ella atravessava uma atmosphera fresca e humida para chegar até nós, e, nestas condições, alguns inconvenientes previstos poderião ser obviados no momento fatal.

As dez horas e alguns minutos assistimos a entrada triumphal de Venus nas regiões solares, e já havia decorrido mais de um seculo que a formosa deusa não se dignava permittir aos mortaes, de testemunharem suas ardentes visitas ao rei dos astros.

Vimos Venus no seu todo e distinctamente ao entrar nos dominios do seu amante, um effeito de luz nos permittiu vel-a envolvida em fina gaze, tão transparente como a nossa atmosphera. Momentos depois, um pequeno disco perfeitamente negro, começou a deslocar-se em uma certa direcção sobre a face do sol.

Era que Venus interpondo-se entre nós, e o sol não nos permittia olhar sua face brilhante, mas voltava para os indiscretos observadores a outra face, como que querendo deixar nas trevas o terraqueo globo.

Fomos, por varias vezes interrogado, por pessoas aliás de algum traquejo social e mesmo outras, de elevadas posições administrativas sobre «as feições de Venus, sua côr, se a achamos bonita ou feia, etc. etc.» porém, o leitor, um pouco discreto, nos dispensará deste trabalho, e se algum mais curioso estranhar nosso silencio, esperamos reparar essa falta, indicando-lhe dois excellentes livros que satisfarão cabalmente seus desejos, quaesquer que sejão seus gostos: — A Memoria sobre as observações da passagem de Venus de 1874, publicada pela Academia de sciencias de Paris ou a Mythologia illustrada, ambos publicados em francez, lingua muito lida no nosso paiz, por aquelles que lêem.

Essas observações não são sorprehendentes, pois o governo do Japão, deste paiz, que ainda ha poucos annos jazia em perfeito estado de barbaria, não descuidou-se de aproveitar a presença de algumas commissões scientificas no seu paiz, para facilitar a instrucção astronomica dos jovens officiaes de sua marinha de guerra, que, em numero superior a vinte, forão addidos ás commissões francezas, americana e mexicana, os quaes, com interesse, tomarão parte e acompanharão os differentes trabalhos que se fizerão.

Os astronomos existirão em todas as epochas no Japão, e a historia desse paiz os menciona a todo momento. Porém, outra era a missão do astronomo japonez, do que de estudar os astros, e tal era o seu numero e as diversas occupações que exercião, que podemos comparal-os ao que são os bachareis em direito no nosso paiz. Erão engenheiros, ministros de qualquer das pastas, magistrados, etc. Em geral, erão aptos para tudo como são aquelles bachareis para todos os cargos da nossa administração.

A imprensa do Japão é representada por varias folhas, umas publicadas em Yokohama e outras em Yedo.

Em geral, o formato dos jornaes é pequeno, porém são impressos com o maximo cuidado em lingua indigena.

Algumas folhas diarias ou periodicos em linguas estrangeiras são impressas em Yokohama, no que os residentes prestão real serviço ao Governo do Japão, que, assim, inicião medidas de interesse geral para o paiz e fazem respeitar os direitos dos estrangeiros.

O que muito nos admirou no Japão foi o systema de educar as crianças. O castigo corporal está completamente banido ha mais de tres seculos dos costumes japonezes.

Quando um menino commette delicto proprio da idade, os preceptores japonezes procurão estimular-lhe os brios, já obrigando-o a lêr ou a ouvir contos moraes, mais ou menos adequados a occasião, já mandando que os delinquentes condemnem ou recompensem os protogonistas dos contos que acabão de ouvir, e, assim, os habituão a julgar e a corrigirem seos proprios defeitos.

Durante o tempo que estivemos n’esse paiz, não vimos uma só vez maltratar-se as crianças, e é, sem duvida, conservando-lhes os brios e pela influencia toda moral dos paes ou preceptores, que se deve attribuir o respeito e mesmo a dignidade, com que os japonezes, até os da mais baixa esphera social tratão-se reciprocamente.

Uma outra observação, digna de menção, é que um japonez de certa classe não se deixa governar pela colera, e quando acontece que um d’elles, em suas reuniões ou assembléas, emprega linguagem vehemente, os outros, longe de reagirem ou accompanhal-o, respondem com desdem «deixemos este homem que esquece-se do que é para descer até o bruto.»

Quando se suscitão questões entre as autoridades das cidades ou mesmo em caso de calamidade publica, os principaes habitantes reunem-se em assembléa e representão em termos brandos e humildes ao Governo do Imperador, o qual, segundo nos disserão, jamais despresou taes representações. Ao contrario, um inquerito rigoroso é ordenado, e se ia culpados são immediatamente banidos ou severamente punidos, segundo a gravidade do delicto.

Existe tambem, em algumas cidades, uma instituição municipal que deve curar, como entre nós, dos interesses de seus municipes; parece-nos comtudo, que esta assembléa apenas serve de intermediaria entre os habitantes e o Governo.

Não conhecemos um só viajante ou historiador, que desconheça os nobres sentimentos de patriotismo e de generosidade que animão o povo japonez.

Kœmpfer, que alli viveu muitos annos, não cessa de elevar as nobres qualidades, que tanto distinguem este povo dos outros seus visinhos; e já no tempo da propaganda christā, S. Francisco Xavier orgulhava-se da brandura do tracto de suas ovelhas.

Este illustre varão, diz em uma das suas cartas, que os japonezes excedem em virtude e em probidade a todas as nações conhecidas; é exactamente nossa humilde opinião porque, na verdade, não podemos distinguir nem pela educação nem pelo modo de vida, as differentes classes sociaes deste paiz.

Virtuoso paiz que conta elementos moraes de grande valor e que satisfazem todas as condições, para que a republica democrata não seja acoimada de utopia, por aquelles que receiando de si, não admittem a existencia de uma cidade, sendo exclusivamente dominada pelos elevados principios da liberdade, que nada mais é do que a independencia do cidadão dentro da orbita legal, o que ainda importa o trabalho.

É verdade que, se estudarmos o antigo regimen politico do Japão, veremos o feudalismo da idade média em todas as suas provincias e os imperadores com attribuições muito amplas, disporem tanto da vida e da propriedade dos nobres como dos plebeos.

E esta mudança rapida do antigo para o moderno regimen, este salto mortal da barbaria para a civilisação não seria provocado pela revolução de 1868, donde sahio vencedora a causa dos palriotas?

E esta transformação dos costumes d’este povo não se realisou com os applausos da propria Inglaterra, que com suas imposições vexactorias feitas á China foi a involuntaria iniciadora da liberdade deste povo, dando lugar a que os patriotas receiassem da franqueza do governo de então, que tudo cedia aos estrangeiros?

Hoje, o Japão caminha a largos passos para o mais perfeito dos regimens politicos. Em 1868, os patriotas combaterão os famigerados daïmios que ouvião, sem lembrarem-se da patria, os ultimos gemidos da China independente, entregue as garras da leôa dos mares, que não contente de sugar-lhe a seiva queria envenenar-lhe os filhos com o terrivel opio; amanhã, o povo japonez fará desapparecer os ultimos vestigios do passado regimen e assentará os alicerces de um governo republicano sobre as suas sublimes virtudes de patriotismo e abnegação.

Se fossemos japonezes, seriamos decididos republicanos, porque se o Imperio póde alimentar o vicio, mercadejar com os sentimentos, os mais nobres, de um povo, sem cahir na incoherencia, nem constituir o absurdo, a republica deve ser pura e isenta da desconfiança, sob pena de ser a barregã mais immunda ou a concubina mais incestuosa de seus pais titulares, eleitos, não pelo povo, mas pela intriga, ou pela força; —o mais vil elemento que pode entrar na composição de um systema todo moral.

É pela instrucção que o homem afasta-se do bruto e habitua-se a desprezar a força de seus musculos, que não convence a ente algum, e, quando muito, impelle o miseravel a fazer certo acto momentaneo; pois bem, queriamos vêr no nosso paiz a propaganda da liberdade se fazer com a carta do A B C, e que os republicanos, longe de se prestarem aos caprichos deste ou daquelle partido, constituissem em suas cidades, villas, fazendas, escolas populares, que jámais serião em grande numero para um paiz como o nosso, que conta alguns milhões de habitantes espalhados na vasta área de milhares de milhas quadradas.

No Japão, as escolas são em numero superior a treze mil, e não existe uma só rua em Yedo, Nangasaki e Oosaka, em que se não encontre uma escola publica para crianças de ambos os sexos.

Os alumnos do sexo masculino, que frequentão as escolas publicas, são em numero de 970, 464, e as meninas attingem ao elevado algarismo de 420, 380, o que prefaz o sorprehendente numero de 1, 390, 844 crianças que aprendem a ler, escrever e contar, e recebem uma excellente educação moral.

Já ha dois seculos, existião nas immediações de Miako quatro academias, onde quatro mil jovens recebião uma educação litteraria.

Hoje, conta o Japão mais de dez academias de letras, uma escola especial de engenharia, uma de marinha e duas de medicina.

Os professores são na mór parte americanos, alguns são francezes, porém já muitas cadeiras são regidas por jovens japonezes que forão educados na Europa.

Perto de Yedo, foi estabelecido, ultimamente, um vasto arsenal de construcção e um observatorio astronomico. Estes dois importantes estabelecimentos são dirigidos por habeis profissionaes estrangeiros.

Em 1873, foi organisado um corpo de engenheiros, os quaes são encarregados de dirigirem os trabalhos publicos, as estradas de ferro, as minas do Estado, etc.

Taes são os principaes melhoramentos realisados em menos de oito annos, pelos briosos e intelligentes japonezes, que durante este tempo dirigirão os negocios publicos do Japão.


CAPITULO XV

 
Legislação penal do Japão. — Supplicios e penas restrictivas da liberdade. — Penas infamantes. — Differença na execução das penas, segundo a condição do condemnado nobre ou plebêo.


A pratica, ainda que secreta dos actos religiosos das seitas prohibidas no Japão, constituia, ha ainda poucos annos, um delicto punido pelo codigo desse paiz, com pena de prisão e sequestro de bens.

No começo da revolução de 1868, uma facção política, dispondo de alguns recursos, pôz-se ao serviço do Taikúno, com a condição, porém, de ser proclamada a liberdade religiosa no Japão. Como dissemos, o Mikado, que posteriormente aceitou as condições que forão impostas ao Taikúno pelo partido dos patriotas, também respeitou os tratados de commercio e de amizade, feitos com as principaes potências da Europa; e, dessas relações, o governo do actual Imperador soube derivar importantes melhoramentos, tanto de ordem moral como material para seu paiz. Foi, então, que desappareceu a indisposição contra os christãos; e hoje, exceptuados alguns lugares do interior do Imperio, podemos dizer que o christão japonez póde, sem risco de sua liberdade e propriedade, praticar os actos da respectiva religião.

Na época da nossa viagem ao Oriente, ainda erão perseguidos os christãos japonezes, mesmo em algumas cidades do litoral, porém, consta-nos que no começo do corrente annoo governo expedio avisos aos governadores das provincias, pelos quaes sustinha a execução do artigo do codigo penal que castigava com prisão os japonezes que professassem a religião christã.

Como se vê nas monarchias constitucionaes, onde o principio representativo, longe de ser uma verdade, é o elemento o mais servil da vontade imperial, tambem no Japão existe uma especie de poder regio que se faz sentir em todos os actos administrativos.

Comtudo, existem sabias e bem sanccionadas leis que garantem a independencia do poder judiciario.

Os governadores de provincia, os chefes de policia e qualquer outro funccionario da administração japoneza, que proteja, occulte ou dê fuga a um criminoso, é immediatamente punido pelos magistrados, que exigem do governo a demissão.

Do mesmo modo, todo bonzo que consentir em dar sepultura ao corpo de um homem assassinado, ainda mesmo por ordem dos funccionarios publicos, com excepção do magistrado competente, é condemnado á pena de prisão, como se complice fôra do assassinato.

Qualquer autoridade que guardar um objecto, achado sobre a via publica, sem communicar ás autoridades a cujo cargo se achão os bens dos ausentes, é condemnado á pena de prisão e a perda do emprego. Se o culpado do crime, assim previsto, for agente da policia em serviço de ronda diurna ou nocturna, será ligado a um cavallo, conduzido á praça das execuções e decapitado. Comtudo, se o objecto achado fôr de diminuto valor, insufficiente para prover a subsistencia de um homem durante um dia, será o delinquente marcado sua na face e no braço com o ferrete da infamia e em seguida banido da cidade, aldeia ou povoação em que residir.

Toda autoridade policial, qualquer que seja sua categoria, que se entregar aos jogos de azar, quando no exercicio de suas funcções, será deportado para alguma das ilhas que servem de presidio.

Os donos, emprezarios, ou qualquer individuo que tenha banca de jogos de tavolagem em sua casa, tambem será punido com a pena de deportação.

Todo individuo que denunciar as casas de jogos de tavolagem receberá como recompensa dez vezes o valor dos objectos apprehendidos.

Aquelle que, em jogos de azar, tiver ganho, sem lealdade provada, dinheiro aos seus parceiros, será decapitado e sua cabeça exposta no lugar do crime.

Todo o individuo que vender ou comprar clandestinamente, sem licença da autoridade, mulheres já prostituidas ou donzellas, soffrerá a pena de prisão durante cem dias. Se o delinquente for funccionario publico soffrerá a mesma pena além da perda do emprego e multa, que será arbitrada segundo sua fortuna.

ATTENTADOS CONTRA OS COSTUMES
ESTUPRO

Art. 1.º Os paes que encontrarem seus filhos menores ou suas filhas em flagrante delicto de estupro, não terão pela presente legislação, direito de morte sobre elles, mas sim o direito de queixa á autoridade competente.

Art. 2.º Quando a filha menor se deixar seduzir nas vesperas de seu casamento, por outro que não seja seu noivo, incorrerá na pena de morte que poderá ser applicada por este ou seu pae.

§ 1.º No caso do delicto previsto pelo art. 2.º e na falta da execução da pena correspondente, cumpre a autoridade enviar a delinquente a uma casa de prostituição, qualquer que seja a posição de sua familia.

§ 2.º No caso previsto pelo mesmo artigo e dada a hypothese do 1º, quanto ao delinquente, será este condemnado a trazer os cabellos raspados á navalha durante cem dias.

Art. 3.º Todo o individuo, qualquer que seja seu estado ou idade, que incorrer no crime de estupro com qualquer mulher menor, livre de obrigação ou compromisso, será obrigado a sustental-a e a educar seus filhos.

§ 1.º No caso previsto pelo art. 3.°, e se for o seductor casado, a primeira mulher tem direito sobre as outras mulheres e filhos de seus maridos, salvo quando provado ser ella infecunda.

§ 2.º Na hypothese de ser a primeira mulher infecunda, ficalhe o direito de habitar em casa separada da de seu marido e a expensas deste.

Art. 4.º Na impossibilidade de qualquer individuo cumprir seus deveres de esposo, por molestia ou incapacidade moral, provada a pedido de qualquer das suas mulheres, fica a estas a liberdade de conducta; cessando os effeitos legaes dos compromissos que tomarão.

DO INCESTO

Art. 1.º O incesto entre o filho e mulher do pai, entre a filha e o marido da mãi, é punido com a pena de decapitação, sendo as cabeças dos criminosos expostas na praça publica.

Art. 2.º O incesto entre o marido e a mãi da mulher, entre o irmão e a mulher ou filha do irmão, tambem será punido com a pena de decapitação.

§ 1.º Se nestes delictos concorrem circumstancias attenuantes, será a pena reduzida á prisão temporaria.

São circumstancias attenuantes particulares a estes delictos:

1.º A ignorancia do grao de consanguinidade de parentesco.

2.ª O isolamento dos culpados por circumstancia fortuita.

3.ª A impossibilidade de executar-se a pena aos dous criminosos, pela morte ou ausencia fóra do paiz de um delles.

§ 2.º A existencia de molestia que favoreça a intemperança da mulher, tambem constitue attenuante para ambos os culpados.

DO ADULTERIO

Art. 1.º O servidor que seduz a mulher de seu amo, será conduzido á cavallo á praça das execuções; perderá a cabeça, que será exposta ao publico.

Art. 2.º O servidor que fizer por escripto uma declaração de amor á mulher de seu amo, que attentar contra sua honra, soffrerá a pena de decapitação.

Art. 3.º A mulher casada que se deixar seduzir pelo seu servidor, incorrerá na pena do art. 2.º

DA BIGAMIA

Art. 1.º A mulher que vivendo em companhia de seu marido, ou co-habitar na mesma cidade, contrahir segundas nupcias, será decapitada.

Art. 2.º A mulher que contrahir segundas nupcias sem se divorciar de seu primeiro marido, perderá seus cabellos e em seguida entrará na casa de seus pais; sob recusa destes será enviada á uma casa de prostituição.

Art. 3.º A pedido de um dos conjuges, o juiz declarará o divorcio, salvando os direitos que a cada um couber sobre os bens existentes.

DA VIOLENCIA

Art. 1.º Todo bonzo ou padre de qualquer religião, que violentar uma mulher, será decapitado.

§ 1.º A mulher será enclausurada em um convento.

Art. 2.º Quem tentar violar uma mulher, qualquer que seja o seu estado, será deportado, independente das outras penas em que possa incorrer.

Art. 3.º Todo bonzo ou padre que abusando de sua posição seduz uma mulher, a violenta de facto, e incorrerá na pena do art. 1.º

DO RAPTO

Art. 1.º O servidor que raptar a filha de seu amo será decapitado, ainda que queira pelo casamento reparar o mal.

Art. 2.º A mulher que fugir com o servidor de sua familia, será enviada á uma casa de prostituição.

DO SUICIDIO MUTUO PELO AMOR

Art. 1.º Quando dous amantes jurarem morrer juntos e se suicidarem, já, abrindo seus corpos ou por qualquer outro meio, os seus cadaveres serão entregues a justiça.

Art. 2.º Quando os ferimentos de um delles não forem mortaes, e não se effectuar o suicidio de ambos, o que sobreviver sera julgado como assassino do outro.

Art. 3.º Se ambos não morrerem, serão banidos como covardes da cidade em que habitarem.

2.º DO HOMICIDIO E FERIMENTOS
DO HOMICIDIO E FERIMENTOS POR NEGLIGENCIA E SEM INTENÇÃO

Art. 1.º O homicidio por imprudencia não é considerado criminoso.

Art. 2.º O homem do povo que, com premeditação, mata um malvado é condemnado á deportação.

Art. 3.º O senhor que mata seu servidor sem premeditação, é banido de sua casa.

Art. 4.º Qualquer que por imprudencia ferir a outrem com uma arma de fogo, não será deportado, se os parentes do offendido declararem aos Juizes que o ferimento foi involuntario.

Na caso contrario o culpado merece a morte.

Art. 5.º O pae do menino que, por imprudencia, matar um dos seus camaradas é considerado criminoso.

§ 1.º Será, porém, absolvido se o pae da victima interceder pelo culpado.

DO HOMICIDIO, DOS FERIMENTOS, DAS CONTUSÕES PRATICADAS COM ALGUMA INTENÇÃO

Art. 1.º O preceptor que occultar a morte de seu alumno, occasionada pelo máo tratamento ou privação de alimentação, será deportado.

Art. 2.º O homem do povo que ferir ou insultar um soldado sobre a via publica, será deportado.

Art. 3.º O homem de reconhecida maldade que ferir injustamente um homem honesto será deportado e seus bens serão confiscados em proveito do offendido.

Art. 4.º Quando um soldado ferir um homem do povo e fugir, seus parentes serão obrigados a pagarem as despezas occasionadas pela gravidade do delicto, independentemente da pena em que incorrer o delinquente.

Art. 5.º Quando do ferimento resultar a morte o offensor será decapitado, salvo se circumstancias attenuantes concorrerem em seu favor.

DO HOMICIDIO E DOS FERIMENTO: CONSIDERADOS GRANDES CRIMES

Art. 1.º O servidor que matar seu amo por malicia, será ligado sobre um cavallo, conduzido á praça publica e findo o supplicio da serra de bambús, será decapitado.

Art. 2.º O servidor que ferir seu amo com um sabre, será crucificado.

Art. 3.º Aquelle que atirar seu sabre, ou mesmo um pedaco de madeira, sobre seu mestre será decapitado.

Art. 4.º Aquelle que matar o seu antigo mestre será exposto ao publico e em seguida crucificado.

Art. 5.º Aquelle que matar pessoa da familia de seu mestre, será decapitado.

Art. 6.º Aquelle que ferir pessoa da familia de seu mestre soffrerá a mesma pena.

Art. 7.º O parricida voluntario ou quem offender physicamente seu pae, será no primeiro caso crucificado e no segundo decapitado.

Art. 8.º Quando varias pessoas commetterem algum assassinato, quem primeiro ferir será decapitado e os outros deportados.

Art. 9.º Aquelle que matar, com seu carro ou seus cavallos, a outrem, será decapitado, ainda que o crime fosse commettido por imprudencia.

Art. 10. Aquelle que matar seu sogro será decapitado e quem matar sua sogra será deportado.

Art. 11. Aquelle que commetter um assassinato, instigado por outrem, será deportado e o mandante será sem remissão decapitado.

DOS CRIMES DE MOEDA FALSA

Art. 1.º Quem fabricar moeda falsa, papel ou metal, será condemnado á morte, sem direito de appellação e immediatamente executado.

Art. 2.º Quem passar moeda falsa, occultar criminosos deste crime e concorrer para o fabrico, será decapitado.

DO AGGRAVO E DA COMMUTAÇÃO DAS PENAS

Art. 1.º Toda pena augmenta de um gráo na reincidencia do crime e nos seguintes casos:

1.º Com a fuga do criminoso.

2.º Com a falsa deposição no inquerito.

3.º Quando o criminoso ou seu advogado tentarem corromper as testemunhas.

Art. 2.º A pena diminue de um gráo, quando o criminoso entrega-se expontaneamente a prisão.

Art. 3.º A pena de morte é commutada na de deportação, quando o condemnado denuncia um grande criminoso.

As penas capitaes, consideradas na legislação penal do Japão, são: a simples pena de morte ou decapitação pelo sabre, a da cruz, a do fogo, e a decapitação com uma serra feita com bambús, sendo qualquer dellas, na ordem em que as nomeamos, aggravações afflictivas da que precede.

Os executores ou carrascos são individuos marcados como infames, verdadeiros forçados, que em troco do triste encargo que lhes é confiado, diminuem de um gráo o aggravo da pena a que forão condemnados.

Eis como os japonezes executão a pena de morte:

Se o condemnado deve simplesmente ser decapitado, dois ajudantes do carrasco o segurão pelos braços, emquanto que o executor, de um só golpe, decepa-lhe a cabeça pela parte posterior.

No caso de resistencia, o paciente é algemado, deitado por terra e em seguida executado.

A pena da cruz se executa como nos antigos tempos, porém só em algumas provincias, e mesmo tende a desapparecer tão barbara sentença.

Do mesmo modo, o terrivel supplicio da serra de bambús tem sido supprimido em quasi todo o imperio, e esta pena consistia em enterrar o culpado até as espaduas e com uma lasca de bambú serrar-lhe o pescoço. Todo transeunte é obrigado a fazer uma incisão, com o instrumento do supplicio no pescoço do condemnado, e, em geral, só no fim de oito dias é que fallece o paciente depois de horriveis torturas, occasionadas pelas dores da larga chaga que progressivamente se aprofunda, e tambem pela fome.

Antigamente, em, Yedo, os corpos dos suppliciados servião durante alguns dias para os jovens officiaes experimentarem seos sabres.

As penas infamantes impossibilitão qualquer japonez de occupar cargo publico e de fazer parte do exercito ou da marinha.

As principaes são:

A marca. — Especie de pintura chamada Ire-soumi que, em geral, apresenta largas bandas pretas impressas no braço. Outras vezes pintão nos braços ou pernas dos condemnados uma letra ou mesmo palavras.

A exposição na praça publica (sarasou, seccar ao sol), consiste em expôr o individuo culpado, durante um ou mais dias, na praça mais frequentada da cidade, e em ser seu crime annunciado em altas vozes.

A lei japoneza estabelece a igualdade entre todos os cidadãos perante o codigo penal, porém, as penas capitaes, differem pelo modo de execução, segundo que o paciente é nobre ou plebêo.

No primeiro caso, a simples pena de morte é communicada ao paciente, que reune sua familia, veste suas mais ricas vestes, e sentando-se em seguida sobre um lençol branco, abre o seu ventre com o pequeno sabre que nunca o deixa. Alguns, depois de rasgarem o ventre, conservão ainda a necessaria coragem para degolarem-se, e, os que assim fazem, deixão nome como valentes, honrão sua familia e reparão sua falta.

Comtudo, é necessario declararmos que todos estas originaes e barbaras usanças, tendem a desapparecer, e raros casos se contão desses factos, que de algum modo depõem contra os sentimentos humanitarios, e achão-se em perfeita opposição com o caracter ameno e insinuante dos japonezes.

 
Japão
Joven dama japoneza e sua criada
Joven dama japoneza e sua criada
Lit. Imp. A. Speltz.
𝕵𝖔𝖛𝖊𝖓 𝖉𝖆𝖒𝖆 𝖏𝖆𝖕𝖔𝖓𝖊𝖟𝖆 𝖊 𝖘𝖚𝖆 𝖈𝖗𝖎𝖆𝖉𝖆.
 

CAPITULO XVI

 
A industria japoneza. — exercito e a marinha de guerra do Japão. — Um banquete offerecido em Nangasaki, pelo almirante japonez aos membros da commissão franceza da passagem de Venus. — Partida para Shangai.


Xenophonte
, já no seu tempo, observou que as revoluções justificadas pela marcha gloriosa do progresso, arrastão os povos para as conquistas industriaes, activando ao mesmo tempo a seiva então empobrecida, e que necessitava de certos elementos de ordem moral e intellectual.

Essa influencia, cuja acção é perfeitamente conhecida no nosso seculo, fornece resultados negativos todas as vezes que após a reação contra as violencias e arbitrariedades dos governos, não cuidão os vencedores de suster os abusos, as violencias e as arbitrariedades que oppuserão ao poder ou regimen que acabarão de derrubar.

É este o perigo das revoluções que, então, longe de produzirem seus fructos, podem anniquilar as forças vitaes da mais rica das nações.

Porém, se attendermos que estes movimentos politicos, são determinados pela inepcia dos governos, degradação dos partidos predominantes, finalmente, pela corrupção dos costumes no mundo administrativo, é evidente que os elementos moraes e intellectuaes, que faltão no Estado, devem sahir da propria revolução; – verdadeira distillação que separa as substancias mais ricas, das pobres, inuteis ou prejudiciaes.

No Japão, a distillação de 1868, deu pelo menos este resultado.

O partido degenerado dos daïmios, que tentou vender a patria ao estrangeiro; que, imprudente, acceitou as condições onerosas para seu paiz dos primeiros tratados de commercio, desappareceu pela revolução, apezar dos soccorros que lhe fôrão dispensados pelas nações estrangeiras; e, posteriormente, muitos de seus membros, estimulados pelos exemplos de abnegação e de civismo, que diariamente davão os patriotas, souberão esquecer antigos odios, já acceitando cargos publicos, já prestando seu concurso á grande obra civilisadora, realisada pelas reformas liberaes, unindo-se todos, no interesse commum, para fazer respeitar a autonomia politica de seu paiz.

É que a revolução os regenerára expurgando-os de seus erros e tornando-os aptos para auxiliarem a marcha gloriosa da patria, na senda da liberdade e do progresso.

E tal foi o desenvolvimento que apresentou esse paiz, já nas artes, como nas sciencias, que a Inglaterra receiou temerosa, e desistiu de seus ambiciosos projectos, diante das provas de sympatia que os Estados-Unidos, a França e a Russia dispensarão ao regenerado Imperio do Japão.

As producções japonezas forão, então, procuradas pelos europeus e pelos americanos, e, necessariamente, a industria desse paiz recebeu grande impulso e extensão.

Fabricas importantes de porcellana forão creadas em varios pontos do Imperio; a creação dos bichos de seda apresentou um desenvolvimento espantoso, e, hoje centenares de kilogrammas de ovulos do bombix cynthia são annualmente exportados para a Italia e Sul da França, fornecendo a materia prima ás principaes fabricas de tecido de seda da Europa.

Importantes officinas de ferro e aço forão estabelecidas em algumas cidades do littoral, e, sem contestação, a metallurgia do aço, no Japão, fornece productos superiores aos das melhores fabricas da Europa.

Muitas minas de carvão de pedra são actualmente exploradas, e ainda que o systema de exploração não seja dos mais economicos, comtudo, em vista o baixo preço do trabalho operario, a venda do mineral, que é de excellente qualidade, cobre as despezas de extracção e de transporte aos mercados, e deixa um lucro de 17% sobre o capital empregado.

O Estado é o primeiro consummidor deste producto que é explorado administrativamente, o que torna independente do estrangeiro a sua marinha de guerra e de commercio, os arsenaes e as demais officinas publicas.

Muitas pequenas fabricas de comestiveis, de perfumarias e de outros objectos, encontrão-se no Japão, e tal tem sido o seu desenvolvimento, que, em Yokohama, existe uma lithographia munida de cinco prensas que estão constantemente empregadas em imprimir os rotulos e as marcas de commercio dos fabricantes europeus.

O Japão póde dispôr, em caso de guerra, de cincoenta mil soldados de terra, que receberão durante quatro annos instrucção militar de um certo numero de officiaes francezes e inglezes, que forão contratados como instructores, com o consentimento dos governos destas duas nações.

O uniforme do exercito japonez é semelhante ao do exercito francez, o seu armamento é moderno, e seus officiaes fazem estudos regulares das tres armas nas escolas militares. Disciplinados como os antigos soldados de Sparta, valentes como estes, os soldados japonezes impõem certo respeito á China que já experimentou o seu valor, por occasião da expedição á Ilha Formoza, realisada com gloria para os japonezes, sendo a China obrigada a acceitar as imposições que lhe forão feitas.

As indemnisações de guerra, avaliadas em alguns milhares de contos de réis, forão immediatamente pagas pelo governo do Celeste Imperio.

A marinha japoneza dispõe de alguns navios encouraçados, de duas fragatas de madeira e de outros navios menos importantes.

Ao principio, o governo japonez foi victima de especuladores americanos, que lhe venderão navios imprestaveis, incapazes para qualquer acção, porém, actualmente, existe um arsenal bem montado e um pessoal intelligente nas repartições da marinha.

A facilidade com que aprendem qualquer officio militar, e coragem de que dão provas nas occasiões de combate, collocão os japonezes em perfeita opposição com os seus vizinhos, os chins.

Para mostrar como os japonezes são faceis e a grande confiança que depositão em suas pessoas, devemos contar um facto grotesco, que se deu por occasião do governo comprar o primeiro navio a vapor aos americanos.

Depois de receber o navio, o official japonez a quem foi confiado o commando, quiz experimentar sua marcha no porto de Nangasaki. Ordenou, pois, a um japonez, que mal sabia o que era uma machina a vapor, que accendesse as fornalhas e esperasse o signal de partir.

Duas horas depois, as caldeiras fornecião vapor, navio percorria o porto de Nangasaki em todos os sentidos, e, durante algum tempo, manobrou em rapida carreira, ora, voltando em direcção opposta, quando estava prestes a tocar a terra, ora, tentava sahir do porto, mas, á vista do oceano,

O commandante ordenava a manobra de voltar; ao mesmo tempo, quando passava proximo a um vapor americano, que alli achava-se fundeado, um official japonez munido de um portavoz, pedia soccorro, pois o machinista não podia fazer parar a machina. Foi necessario que o machinista do navio estrangeiro se segurasse a um cabo, que lhe foi lançado do navio japonez, e que, depois de ser guindado, decesse até a machina que não obedecia ao improvisado professional japonez.

Este mesmo navio, dias depois, tentou passar por entre os arrecifes que orlão a entrada do porto, e tal foi o sangue frio do seu commandante que, apezar de ser estreito e tortuoso o canal formado por aquelles obstaculos, conseguiu seu intento, sem que o navio soffresse a menor avaria.

Entretanto, no mesmo dia, um navio inglez que aventurou-se penetrar no tal labyrintho, para mostrar que a passagem era practicavel, perdeu-se completamente no meio do dédalo, sendo sua tripolação salva pelo mesmo navio japonez, cujo commandante era o causador involuntario de tal desastre.

Alguns dias depois do da passagem de Venus, fomos convidados pelo almirante japonez, em nome do ministro da marinha, para um banquete offerecido aos membros da commissão, e que teve lugar em um palacete do Estado, antiga residencia dos governadores de Nangasaki.

Depois de percorrermos, nos carrinhos japonezes, toda a cidade em sua maxima extensão, chegamos a um lindo palacete de forma chineza, onde fomos recebidos pelo amavel almirante e pelos officiaes do seu brilhante estado-maior. Alguns momentos depois eramos convidados a penetrar em um rico salão, decorado á europea, e no meio do qual achava-se servida a meza do banquete.

Desta vez podemos chegar as nossas cadeiras á mesa, e, menos preoccupados do que por occasião do festim, dado em Yedo, podemos saborear as bem preparadas iguarias e os velhos vinhos de diversas qualidades, que nos forão offerecidos.

Exceptuados os convidados, officiaes da marinha japoneza e os membros da commissão, nenhuma outra pessoa do sexo feio achava-se na sala do festim.

O serviço era feito pelas jovens e bellas japonezas, trajando suas vestes talares de vistosas côres, as quaes, em numero de vinte, não deixavão por um só instante vasios os muitos copos que se vião alinhados em frente de cada conviva.

Durante duas longas horas, os pratos se succedião sem interrupção, e parece-nos que nenhum hotel do Globo, jámais dispoz de tão longo e variado menu, e como não soubessemos o japonez, fomos obrigados a rendermo-nos á discripção das bellas criadas, comendo de algumas iguarias que nos servião, e deixando intactas as que não nos agradavão, pois, houve um momento, em que não era possivel continuar a lucta; e apezar dos signaes que faziamos ás criadas, forçados fomos a permittir que estacionassem diante de nós por alguns instantes, mais de quarenta pratos servidos com diversas iguarias, que uns após outros e successivamente erão retirados pelas jovens criadas.

No fim do jantar, graças a amabilidade do almirante japonez, a etiqueta foi posta de lado e a conversação tornou-se geral. Alguns convivas fallavão o inglez, outros o japonez, o maior numero o francez; aqui, fallava-se sobre marinha, alli, sobre Venus, que não era mal representada por algumas das bellas criadas, e nós, os membros da commissão, nas difficuldades que apresentarião a nossa volta para o cume do Compira Hyama, depois de tão opiparo jantar.

Comtudo, ao anoitecer despedimo-nos, provavelmente para todo o sempre, do bravo almirante, que estreitou em seus herculeos braços a todos os amantes de Venus, como elle nos chamava, e puzemo-nos á caminho para o nosso acampamento, onde chegámos atrozmente fatigados no fim de duas longas horas.

Em um dos ultimos dias de Dezembro resolvemos partir para Europa, porém, deviamos tomar o paquete em Shangai, cidade muito importante da China, pelo seu commercio e moderna edificação.

Assim, partimos de Nangasaki a bordo do Neva, paquete da companhia do Pacifico; e quando nossos olhos não poderão mais ver as bellas costas do Japão, gotejarão insensivelmente lagrimas de saudade, por este povo altivo, nobre e hospitaleiro, que parece exclusivamente constituido por verdadeiros cavalheiros.

E lá ficou um nome, embora obscuro, gravado em dura rocha, (no monumento levantado pelos japonezes, para commemorar os trabalhos scientificos da commissão de passagem de Venus), que servirá para testemunhar aos vindouros o interesse que o Brazil tomou pelo mais importante facto scientifico do seculo XIX, mandando um de seus filhos á mais longiqua terra do Oriente, para observar a passagem de Venus sobre o Sol.


CAPITULO XVII

 
O «Neva» — Chegada a Shangai. — As concessões estrangeiras. — A cidade chineza. — A criação dos peixes dourados na China. — Um jantar no consulado francez. — Uma parisiense na China. — O duque de Penthièvre.


Já longe das costas do bello paiz que acabavamos de deixar, um terrivel temporal nos accommetteu, e durante o trajecto das 450 milhas, que separão os dois imperios, fomos bruscamente embalados a bordo do Neva, immenso navio de pinho de dois altos andares e que navegava pelo impulso de uma poderosa machina de balancim.

Máo grado as grossas vagas, que a todo instante quebravão-se contra o bombordo do Neva, chegamos á florescente cidade de Shangai com cincoenta e quatro horas de viagem, ao cahir do dia; e, apezar de ser já noute, obtivemos permissão para desembarcar depois de terem sido nossas malas sujeitas a formal exame, pelos empregados da alfandega dessa cidade. Soubemos que só no fim de doze dias deveria partir para França um velho navio das Messageries chamado no tempo do imperio Imperatriz Eugenia e que, então, apenas lembrava uma devisão territorial da França: La Provence.

Longe de nos affligir essa demora, ficamos satisfeitos por dispôr de doze dias para visitarmos a cidade de Shangai que se nos apresentava com feições inteiramente europêas pelas suas bellas edificações, largas ruas e ajardinadas praças.

Procuramos, logo que desembarcamos, uma hospedaria na concessão franceza, apezar de não ser a melhor da cidade, era comtudo de bom trato, e pertencente a um honesto negociante francez.

No dia seguinte, procuramos o Sr. Consul da França, á quem fomos recommendado pelo Sr. Janssen, o qual nos recebeu com a mais cordial delicadeza, e nos offereceu um aposento no palacete do consulado. Segundo a pratica que até então tinhamos seguido em favor de nossa independencia, procuramos razões acceitaveis para recusarmos tão delicado offerecimento.

A cidade de Shangai é antes uma cidade internacional do que possessão do celeste imperio. Alli se encontrão quarteirões francezes, inglezes, e americanos, perfeitamente distinctos e habitados pelos cidadãos das respectivas nações; comtudo, os residentes pagão um certo imposto territorial correspondente a extensão da arêa que occupão com seus armazens e casas de moradia.

O consul, é a primeira autoridade da concessão, porém as questões municipaes, ou antes ás que dizem respeito a impostos de casas de negocio, a viação, edificação, etc., são resolvidas por uma especie de conselho municipal, eleito pelos residentes, porém cujos membros podem ser suspensos pelo consul.

Os chins de Shangaï não se parecem com seus compatriotas das cidades do Sul. A raça é mais pura e os individuos são, em geral, de alta estatura, robustos e muito mais activos; e tivemos occasião de vêr algumas mulheres de tez rosada e fresca que se afastavão sensivelmente do typo vulgar da raça chineza.

A influencia do clima, muito mais ameno que o das cidades do Sul do Imperio muito concorre para isso. Hong-Kong, Contão e outras cidades do Sul do Imperio, são, durante sete mezes no anno, sujeitas a um clima ardente não só devido a sua posição geographica como aos calidos ventos do Sul que ahi soprão continuadamente. Emquanto que Shangai que é situada na costa oriental da China, acha-se sob a influencia dos ventos da Siberia e em uma latitude bastante elevada.

Visitamos a cidade Chineza, que se acha edificada entre altas muralhas, que devem offerecer grande resistencia, em caso de guerra.

Suas ruas são muito estreitas e immundas, e, durante os dias de chuva, a camada de lama que cobre os passeios, eleva-se a um palmo mais ou menos de espessura.

As casas ou armazens de venda são baixas e muito pouco ventiladas, entretanto, no interior de taes gaiolas, encontrão-se muitas vezes mil objectos d’arte de grande valor artistico.

Logo ao entrar na cidade chineza, pela porta principal, encontra-se em frente, a rua dos Bronzes. Alli, vê-se grandes vasos de um a dois metros de altura, esculpidos com arte e representando os monumentos, os combates e outros feitos, em geral, assumptos da historia da China. Segundo os amadores, os vasos em bronze chinezes, não tem o mesmo valor dos mesmos objectos trabalhados pelos japonezes, que são mais artistas do que seus vizinhos. Do mesmo modo, a porcellana japoneza é muito mais procurada do que a chineza que não prima pelo colorido, nem pela fineza da massa. Entretanto, apezar destes dois povos se acharem em completa opposição quanto aos costumes, usos, lingua, e serem, como foi verificado, de origem muito diversa, a industria da porcellana, do bronze e do charão, acha-se quasi na mesma situação nos dois paizes.

Assim, vimos que os processos da fabricação são os mesmos em ambos os paizes, e que sómente no trabalho artistico e no fabrico da porcellana chamada casca de ovo, os japonezes sobresahem aos chins; e quanto a fineza da massa dizem ser divida a melhor qualidade do kaolim do Japão.

Em uma das nossas visitas á cidade da China, visitamos os grandes aquarios de Shangai, onde os chins crião certos peixes que servem de ornamento, pelas suas brilhantes côres e fórmas.

Os mais interessantes, são os peixes tellescopios, que forão transformados pelos creadores chins em perfeitas bolas animadas, que apresentão em certa parte, os olhos e a boca, e na parte que lhe é diametralmente opposta, á cauda. As escamas destes animaes reflectem todas as côres do arco-iris, em alguns, predomina o dourado, emquanto que em outros, a côr prateada. Dizem os chins, que estes peixes apresentavão em outros tempos a fórma ordinaria, porém que, por meio de operações, conseguirão modificar-lhes a fórma, que é hoje obtida pela reproducção. Longe de fenderem as aguas, esses lindos peixinhos rolão sobre si mesmo com certa ligeireza, fazendo brilhar a linda couraça que lhes cobre o corpo.

Uma outra especie interessante de peixinhos, conhecida pelo nome de arco-iris, são criados pelos chins, ainda que sejão originarios do Japão. A sua fórma é alongada, os seus olhos parecem duas opalas, que reflectem sob a agua raíos dourados e prateados, suas escamas fórmão um verdadeiro mosaico que parece formado com saphiras, esmeraldas, rubins, topazios e amatistas, separadas com pequeninas e iguaes perolas.

Comtudo, o mais interessante dos peixinhos chinezes é o macropodo, não, sómente, pelo brilho de suas côres, e originalidade de fórma, como tambem pelo seus habitos de vida.

As escamas do macropodo appresentão listas verticaes de côr amarella, vermelha e azul que se alternão formando côres iriadas até a extremidade da cauda.

Quando se approxima a epocha da femêa pôr, os macropodos fórmão bolhas de ar que introduzem em um liquido viscoso e que torna-se solido, em seguida, forrão o fundo do aquario com esta substancia. Apenas a femea poe, o macho com a

é bocca recolhe os ovos e vai deposital-os na rêde viscosa que acabou de construir, não se descuidando desde então, por um só instante, de prodigalisar á sua progenitura, em estado embryonario, todos os cuidados até o nascimento dos filhinhos.

Logo que nascem, os macropodos não se alimentão de substancias organicas; é necessario deitar no aquario diversos infusorios como os monadas, paramecias etc. No fim de 20 dias de se alimentarem com estes animalculos, os peixinhos encontrão no aquario a necessaria alimentação.

Os macropodos vivem perfeitamente em todos os climas, tanto sob fraca camada de gelo como em agua na temperatura de 40 gráos centigrados.

Fizemos aquisição em Shangai de 40 a 50 exemplares de cada uma das tres especies, porém, com o movimento do navio a agua dos aquarios se deslocava a todo instante occasionando ferimento nos pequenos peixes do que resultou a morte do maior numero, chegando à França, apenas 8 peixes (tellescopios, 3 dos denominados arco-iris e 10 macropodos.

Finalmente, por um accidente quebrou-se no trem de ferro o aquario em que estavão os macropodos, e só podemos dispôr em Paris, dos peixes tellescopios e dos arco-iris que offerecemos ao sabio naturalista do Muzeu, o qual com tanta distincção se tem dedicado ao estudo da piscicultura.

Já nos achavamos, havia alguns dias em Shangai, quando recebemos um convite do Sr. Consul de Franca para jantarmos e passarmos em sua companhia a soirée no bello palacio do consulado.

Ahi, encontramo-nos com a officialidade de um navio de guerra franceza surto no porto de Shangai, com o Sr. Chanceler da legação Franceza e com a bella espirituosa esposa deste funccionario, que muito concorreo para tornar a conversação animada e muito agradavel.

Logo ás primeiras palavras que esta joven senhora nos fez a honra de dirigir, conhecemos a parisiense, que nem na China, cede a qualquer outra Senhora o primeiro lugar que todos lhe conferem nas boas sociedades.

Comprehenderá, pois, o leitor, quanto nos foi agradavel, depois de estarmos oito mezes separados da sociedade occidental, e quando já nos achavamos habituados com a ingenuidade e singeleza dos japonezes, fazer frente á conversação de intelligente parisiense, que no seu fino tracto social facilmente habitua-se a empregar, mesmo na mais insinuante conversação, uma certa fórma que a transforma insensivelmente em argumentação socratica.

Entretanto, o cavalheiro imparcial que conhece a bôa sociedade parisiense, só póde confessar que ella sabe harmonisar a discripção com a curiosidade, certos prejuizos absurdos de sexo com o mutuo respeito, finalmente, até o religioso com o profano; e, em geral, o quadro da vida dos salões nada mais do que o da vida intima ou de familia, depois de amplificado; a differença, é que na familia amisade deve ligar todos membros, e nos salões, o que garante a confiança mutua é uma educação liberal, porem bem exemplificada pela moralidade das familias. Quanto á sua existencia, tambem comprehendida na França, é devida a necessidade que todos temos de não deixarmo-nos dominar pelo tédio.

Na soirée dada pelo Sr. Consul de França, soubemos que se achava como immediato a bordo do navio francez, surto em Shangaï, o duque de Penthièvre, filho de uma brasileira distincta, irmã do actual Chefe da nossa patria.

Um obsequioso official francez offereceo-se para apresentar-nos no dia seguinte ao jovem immediato do navio de guerra francez, porém, não insistimos, em razão de taes apresentações feitas á certos principes, serem por elles consideradas verdadeira homenagem que um inferior presta a seo superior.

Enganavamo-nos, como verificamos mais tarde, sobre o principe de Penthièvre. Nascido no exilio, lutando como verdadeiro homem contra as contrariedades da vida, este joven official, não tendo jamais provado do suor do povo, é, ao contrario, bravo servidor da patria e muito digno filho do principe de Joinville, e de sua virtuosa esposa.

E se reconhecemos publicamente o merito real do joven official de marinha, em serviço da Republica Franceza, o fazemos levados exclusivamente pela sympathia que nos soube inspirar suas nobres qualidades e não influenciados pela posição de seos antepassados nos tempos escuros.

Tendo observado que muitas vezes os filhos dos poderosos abuzão da lei, são insolentes e cidadãos imprestaveis, termos, de passagem, fallado no principe de Penthièvre, encontra explicação no sentimento de justica que nos anima, maxime quando conhecemos a desciplina, a que voluntariamente elle se sujeita, sendo official de marinha, e de que, segundo seos companheiros, é o primeiro a dar o exemplo.

Neste caso, ser descendente de reis, encarece as virtudes de quem tambem é bom cidadão e valente servidor da republica.


CAPITULO XVIII

 
Excursões pelos arredores de Shangaï. — O collegio dos jesuitas em Si-Ka-Waii. — La Provence. — Chegada a Napoles


Yedo, a populosa capital do Japão, apresenta-se aos estrangeiros como o centro de um grande paiz que parece ainda em estado de organisação, porém que dispõe pelo seu commercio e pela actividade de seus habitantes, de ricos elementos, para ser, em breve, uma capital typo dos paizes asiaticos; Shangaï, ainda que seja mais moderna, limita o seu desenvolvimento em vista a especulação estrangeira, servindo, quasi que exclusivamente, de emporio dos objectos de importação para Pekin, ainda que, em troca, exporte alguns milhares de kilogrammas de excellente chá, que é cultivado nas immediações da capital do Celeste Imperio.

Shangaï, com suas bellas edificações, dispostas ao longo do caes, com suas largas ruas bem arborisadas, leva vantagem a qualquer outra cidade pelo aspecto todo europeo; o viajante, já acostumado com os habitos orientaes que e aporta a essa cidade, encontra todos os objectos indispensaveis de uso europêo, e uma sociedade escolhida e amavel que o faz crer em algumas das cidades situadas na margem do Rheno.

Sobre o cáes de Shangaï, vê-se edificações modernas e de imponente architectura, que são occupadas pelos bancos, escriptorios e pelas principaes casas de venda da cidade.

Em toda a extensão do cáes, existem pontes e docas para a descarga dos navios, e no centro, eleva-se o edificio da repartição fiscal da alfandega chineza que está sob a direcção de um agente do Sr. Hart.

Em uma avenida, parallela ao cáes, e que é orlada por bellas e comadas arvores, encontrão-se as casas de venda a retalho, sendo a maxima parte pertencente aos chins.

Nestas lojas, vendem-se todos os objectos de uso domestico na China, comprehendendo os objectos de luxo e de elevado preço. O charão, as obras d’arte em bronze e a porcellana abundão por toda parte: nas portas, sobre o balcão, em largas e altas prateleiras, dispostas em fórma de degráos; e o conjuncto destes objectos apresenta o aspecto de um verdadeiro musêo de curiosidades.

O marfim é trabalhado com arte pelos chins, e ainda que vissemos na India meridional grandes pedaços desta substancia, representando elephantes e os deoses indianos, comtudo, é na China que se encontrão grandes modelos de graciosas embarcações, de bem ornados palacios; – tudo apresentando tal minudencia, de que só os chins, pela paciencia com que trabalhão, são capazes.

Alguns dias depois da nossa chegada á Shangaï, partimos em carro puchado por dois fogosos cavallos australianos, em direcção a escola dos jesuitas, situada ou Si-Ka-Waii.

Durante o trajecto de algumas leguas, só vimos largos e extensos campos, que deverão ser chamados os campos dos mortos: tal é o numero de tumulos que nelles se achão espalhados.

Em alguns lugares, a estrada se estreita, porém, de ambos os lados, apparecem por centenas e centenas as lapides amarellas e os massicos de alvenaria, que cobrem ou rodeão os tumulos.

Em outros lugares, são verdadeiros esquifes que se mostrão, todos de madeira e quasi sempre rodeados por viçosas couves e outras hortaliças, e que, segundo nos disserão, são sem escrupulo enviadas ao mercado de Shangai. Sob a acção dos raios do sol, estes corpos desprendem taes miasmas que o viajante é obrigado a empregar perfumes, para não se deixar infeccionar pelo cheiro nauseabundo que o obriga a conservar-se callado, e que faz desapparecer os encantos dessas excursões.

Esse modo, dos chins venerarem os restos mortaes de seus maiores, já tem sido, por varias vezes, fatal a saúde de populações inteiras.

Os esquifes, sendo de madeira e mal fechados, não preservão os corpos do contacto do ar, de modo que, em poucas horas, elles estão em completo estado de putrefacção formando, assim, verdadeiros focos de epidemia.

No fim de tres horas de rapida viagem, tinhamos percorrido os dez kilometros que separão Si-Ka-Waii de Shangai.

Si-Ka-Waii é uma pequena povoação de individuos, na môr parte jovens chinezes que recebem excellente educação moral e intellectual de dedicados missionarios jesuitas.

O collegio contava em 1874 mais de mil alumnos que se achavão divididos em tres classes:

A primeira comprehendia seiscentas e algumas crianças que aprendião a ler, escrever e contar, e, em certas horas, diversas profissões como a do carpinteiro, pedreiro, marceneiro, impressor, etc.

A segunda contava duzentos alumnos, mais ou menos, os quaes erão escolhidos d’entre os mais intelligentes e que mostravão aptidão para os estudos. Estes recebião uma educação litteraria, mas essencialmente chineza.

A terceira classe ou classe superior, compunha-se de jovens estudantes, que já tinhão dado provas sufficientes das materias da 2ª classe.

Os alumnos desta classe estudavão o sanscrito, o latim, a rhetorica, a poetica, litteratura geral e linguas vivas, com especialidade o inglez.

Ao concluir este curso de estudos, os estudantes recebem sucessivamente o gráo de bacharel, licenciado ou doutor, e chegando a certa idade são nomeados mandarins.

Apezar de christãos, os doutores chinezes aprofundão e discutem a philosophia de Confucio, do mesmo modo que, entre nós, os estudantes adiantados das nossas escolas entregão-se ao estudo da philosophia positiva, desenvolvida magistralmente por Augusto Comte.

E, na verdade, estes dois grandes homens estabeleceram a philosophia debaixo dos mesmos principios; o primeiro, a verdade religiosa livremente comprovada pela razão humana; o segundo, tudo pela observação, cujas condições devem ser estabelecidas pelo methodo e verificadas.

Porém, Confucio não limitou a liberdade, deixou a razão livremente julgar; emquanto que Comte pára em sua analyse e chega a anniquilar as faculdades do homem, não negando nem affirmando. O exame do mundo moral parece, segundo elle, não constituir prova.

Visitamos na vespera da nossa partida para França um templo chinez de grande nomeada, que se acha edificado na direcção norte de Shangaï e distante de duas leguas dessa cidade.

O templo eleva-se no meio de uma planice arenosa, e mede trinta e cinco metros de altura.

Na parte superior vê-se elevados curucheos que cobrem os tres corpos principaes do templo.

Na frente, pequenas janellas de forma ogival, e ornadas com complicados relevos; nos lados, estendem-se lindas avenidas que são limitadas pela luxuriante vegetação de densos bosquetes que ha muito tempo são conservados.

No interior, o principal personagem é um grande Budhá de oito a dez metros de altura, e que tem a seus lados os deoses do mal e do bem – Vichnou e Siva.

Os padres chins vestem uma especie de batina feita de estofo preto ou azul ferrete, e sobre a cabeça trazem uma gerra de estofo de seda azul claro.

Alguns, vivem no interior do templo, muitos têm familia e habitam nas immediações, sendo, porém, obrigados, segundo nos informarão, a comparecerem tres vezes por dia ao templo para os Officios Divinos.

Ao despedirmo-nos dos padres chins, offerecemos algumas piastras a um delles, que aceitou, porém nos fez dizer pelo interprete, que empregaria em esmolas o pequeno obulo, pois, os christãos não deverião concorrer para sustentação do Culto de Budhá; o que agradecemos por julgarmos mais acertado o emprego.

Approveitamos o ensejo para colhermos interessantes informações sobre a caridade chineza. Soubemos que mesmo em Shangaï, existia dois hospitaes para os desprotegidos da fortuna, e que estes estabelecimentos de caridade erão custeados pelos habitantes, que a administração achava-se á cargo dos sacerdotes budhistas, os quaes annualmente prestavão contas ao mandarim civil da cidade.

E como um dos ministros do gigante Budhá perguntasse qual era nossa opinião sobre a cidade chineza de Shangaï, e com franqueza respondessemos, que o seu aspecto era triste e indicava haver muita miseria dentro de seus muros, o padre chim, longe de se mostrar contrariado, disse-nos que já esperava essa resposta, porém que os individuos que mendigavão pelas ruas, rôtos e esfarrapados, erão verdadeiros vagabundos, viajando de cidade em cidade implorando a caridade publica, e que se demoravão em cada uma, apenas alguns dias, até que a policia os obrigava a partir.

Na vespera da nossa partida visitamos pela ultima vez a cidade chineza, e como tivesse chovido durante toda a noite e prevessemos a influencia da chuva sobre a lama das estreitas ruas dos chins, calçamos nossas botas de montar, mas, nem assim, as nossas vestes sahirão de tal chiqueiro sem serem cobertas de lama; e os chins, quasi que atolados, salpicavão com profusão grossas gotas do pastoso liquido sobre as vestes dos seus proprios mandarins.

No dia seguinte, pela manhã, embarcamo-nos a bordo do navio que devia levar-nos a Europa.

La Provence é um velho, porém commodo paquete das Messageries maritimes; o seu commandante era um bravo e delicado cavalheiro, que havia trinta annos vivia sobre as ondas.

Partindo de Shangaï chegamos depois de quatro dias a Hong-Kong, onde demoramo-nos um dia; sete dias depois abordavamos a Saigon, e no fim de cincoenta dias de viagem, depois de termos aportado em Sincapura, Ceylão, Aden, Suez, etc., chegamos á bella cidade de Napoles, exhaustos de forças pelas fadigas de uma longa viagem de mar, ainda que, fortemente impressionados com o que tinhamos visto nos paizes do Oriente.

Nos pareceu que tinhamos vivido varios annos durante os nove mezes que estivemos ausentes da Europa; e se uma longa viagem apresenta muitas vezes inconvenientes, é no mór numero dos casos, a mais instructiva e salutar distracção, das que o homem póde, sem prejudicar o proximo, gosar durante o curto tempo que vivemos.

Se podessemos, percorreriamos tantas vezes todos os mares e todos os paizes, que traçariamos em nossa marcha, pelas terras e mares, todos os circulos que vemos das espheras terrestres.

E, se assim fizessemos, só o leitor seria prejudicado em seus preciosos momentos de ocio, pelos numerosos volumes que entregariamos a mercê de sua avida curiosidade.



Notas do autor

[editar]
  1. Os arabes dão-lhes o nome de semoun que significa veneno.
  2. Como dissemos, foi Amrou-ben-Asr que, segundo a tradição arabica, emprehendeu então este trabalho, porém por ordem do califa Omar mais conhecido na historia arabica sob o nome de Principe dos Fieis.
  3. Memoire sur le canal des deux mers, por M. Lepère. — Tomo II.
  4. Estes fructos são de saboroso gosto, devidem-se em gommos de côr alvissima sendo a côr de sua casca e o seu tamanho semelhante a de uma romã.
  5. Eis em que termos foi concebida a reclamação dos commissarios chinezes:

    «De Tsungli-Samen á Sir R. Alcock, Julho de 1869. — Os abaixo assignados, já por varias vezes, ao conversarem com S. Ex. o Ministro Inglez têm-se pronunciado sobre o negocio do opio como altamente prejudicial aos interesses do commercio da China. Tiverão em vista os tratados entre nossos respectivos paizes firmar uma paz duradoura; mas, se é impossivel adoptar medidas que affastem do espirito publico uma interpretação por demais affrontosa, será de recear que nenhuma politica consiga remover as causas de futuros disturbios. Se ha desejo sincero de cortar o mal pela raiz o de estancal-o em a sua origem, nada será mais efficaz do que uma prohibição igualmente decretada por ambas as partes. Ao passo que os negociantes chinezes fornecem, ao paiz que representais, excellente chá e seda, beneficiando-o portanto, os negociantes inglezes envenenão a China com o pestifero opio.

    «É injusto tal procedimento. Quem o justificará? Que admiração se todas as nossas classes accusarem a Inglaterra de pretender a ruina da China; e disserem que nenhum sentimento amigavel para comnosco a anima?

    «Todos fallão na riqueza e generosidade da Inglaterra. Sabem o cuidado com que ella previne e antecipa tudo quanto possa prejudicar os seus interesses commerciaes. Como é, pois, que a Inglaterra hesita em remover um mal reconhecido como tal? Não é possível que a Inglaterra persista ainda neste máo negocio, arrostando o odio de todas as classes a China e tornando-se alvo das censuras das outras nações, só, porque, com a prohibição da cultura da dormideira perderia uma pequena fonte de receita!

    «Os abaixo assignados contão que V. Ex. induzirá o seu governo a expedir ordens para a India e outros pontos, afim do ser a referida cultura substituida pela dos cereaes ou algodão. Prohibão terminantemente ambas as nações a producção da dormideira, e logo o trafico, como o consumo do opio, cessarão.

    «Grande seria o merecimento da Inglaterra se acabasse com semelhante mal; além de, assim, fortalecer as relações amigaveis, tornaria seo nome illustre. Que gloria para ella de transmittir aos vindouros um acto de tanto alcance! É este negocio prejudicial aos interesses commerciaes em não pequeno gráo. Se S. Ex. o Ministro Inglez não pode, antes que seja tarde, concertar um plano para a prohibição conjuncta (do trafico), então, não importa o zelo que os abaixo assignados desenvolvão, talvez não seja possivel dissipar os sentimentos adversos do povo e estreitar as relações amigaveis a ponto do as collocar acima de qualquer receio de desavença.

    «Dia e noite dedicão-se os abaixo assignados com a mais desvelada attenção ao estudo deste assumpto.

    «Suppondo haverem-se manifestado com toda a franqueza, os abaixo assignados esperão ser honrados com a resposta de V. Ex.»
  6. Nome de dignidade militar.
  7. Segundo o que se segue na narração de F. Mendes Pinto esta cidade é hoje conhecida pelo nome de Fuchnang o que está de accordo com a tradição japoneza.
  8. Hoje Tenegasimá.
  9. Quanhiabanbong.
  10. Sanchvam.
  11. Saylo ou Ningpo segundo os autores chinezes.
  12. Tschang-Tscheou—Fou eomo também chama Danville.
  13. Jeha do Lamau segundo Linschooten.
  14. Deoses do Japão.
  15. Deoses secundarios, inferiores aos Kamis.

Notas da Wikisource

  1. Antigo nome da cidade de Nápoles.
  2. Peça de propaganda pró-Qing e xenófoba, exaltando os oficiais da Dinastia Qing Tian Xingshu, Li Hongzhang e Bao Chao, respectivamente, enquando os paineis inferiores criticam estrangeiros, o cristianismo e sacerdotes cristãos. Originalmente produzida em 1875 por cidadãos de Hezhou, tendo circulado por Shunqing. De acordo com a obra 《四川教案与义和拳档案》, o General de Chengdu e o governador de Sichuan decretaram a proibição de materiais anti-missionários como este em 21 maio de 1875.
  3. Transcrição e tradução livre do Wikisource:
    Posição Original Tradução
    Título: 膺戎圖 ("Ilustração do ataque contra os estrangeiros")
    Painel à extrema esquerda: 更冀滿漢文武和衷濟美,掃除邪教保清朝 ("Esperamos que manchus e hans, civis e militares possam trabalhar juntos para erradicar os cultos e proteger a dinastia Qing")
    Painel à extrema esquerda, canto inferior: 隱此圖者罪同奉教人 ("Aqueles que escondem estas imagens são tão culpados quanto os cristãos")
    Painel superior esquerdo: 忠義大臣 田心恕 ("Leal Ministro Tian Xingshu")
    Painel superior central: 股肱大臣 李鴻章 ("Confiável Ministro Li Hongzhang")
    Painel superior direito: 剛直大臣 鮑照 ("Íntegro Ministro Bao Chao")
    Painel à extrema direita: 通啟士農工商,協力復讎,降伏妖氛消劫運 ("Cooperemos soldados, agricultores, operários e comerciantes para restaurar o reino, subjulgar esta atmosfera malévola e evitar um grande disastre")
    Painel à extrema direita, canto inferior: 領此圖者務貼當眼處 ("Àqueles que virem estas ilustrações: não se esqueçam")
    Painel inferior esquerdo: 田大人判云:大罵男女不是人,為何甘願變畜牲。前身定是西洋種,初入中華變人形。忽被蠻風相感觸,依舊現出爾元神。不敬天地滅宗祖,妻女供獻任宣淫。如此狐羣狗黨輩,生出龜兒是蠻根。披毛戴角分內事,欲逃物類萬不能。 ("O Sr. Tian assim determinou: Apesar de homens e mulheres terem sidos amaldiçoados a não mais serem humanos, por quê gostariam se tornar animais? Os ancestrais eram sem dúvida ocidentais, e se transformaram em seres humanos quando adentraram a China. Mesmo se repentinamente agredido por uma ventania, o espírito primordial ainda sim apareceu. Desrespeitando o Céu e a Terra e destruindo os antepassados, esposas e filhas são jogadas à prostituição. Está na raíz deturpada desse grupo de raposas e cães parir tartarugas. Para eles, ter pelugem e chifres é uma questão natural, inescapável.")
    Painel inferior central: 李宰輔判云:開言怒罵二蠻王,敢來大國亂綱常。爾輩原屬犬馬類,耶穌老蠻留餘殃。勸善為名賄奸黨,豈能蒙蔽我忠良。以下犯上該萬死,陰謀詭詐惱上蒼。今朝落在我的手,蠻子蠻孫刀下亡。從此滅盡天誅教,去邪歸正降吉祥。 ("O Sr. Li assim decidiu: Os bárbaros cristãos nos deixaram na calamidade, transformando a justiça em traição através do suborno. Como proteger nossa lealdade? Aqueles abaixo que transgrediram contra os acima merecem dez mil mortes, os que conspiraram deslealmente para ofender os Céus.")
    Painel inferior direito: 鮑大人判云:罵聲西洋這狗官,遍傳夷教滅聖賢。污辱孔聖惡已極,歷代未曾讀書篇。上天不容地不載,打入阿鼻億萬年。妖言惑眾應割舌,奸詐百出挖心肝。莫謂我朝皆懦弱,本堂性剛刑森嚴。死有餘辜何足惜,屍拋曠野任犬餐。 ("O Sr. Bao assim julgou: Espalhou-se o boato que este oficial ocidental, um cão, foi repreendido, e que a religião bárbara destruirá os sábios. Insultar Confúcio é extremamente vil, e nunca se viu em dinastias passadas. Os Céus não permitem que a Terra se afunde, e o enviaram para as profundezas do inferno por centenas de milhões de anos. Você deveria cortar sua própria língua se você engana as pessoas pela boca. Isso não significa que nossa dinastia seja covarde, nossa Igreja é severa e pune com rigidez. Seria uma pena se houvessem múltiplas mortes, com corpos jogados em terrenos baldios para cães comerem.")
    Legenda da ilustração à esquerda inferior: 奉教男女
    奉教人之子
    ("homens e mulheres crentes")
    ("crias dos crentes")
    Legenda da ilustração central inferior: 大法國蠻王
    天誅教主,臭名耶穌,十字架上,亂箭嗚呼。
    大𠸄國蠻王
    ("o grande rei bárbaro francês")
    ("o infame fundador sectário Jesus, justamente punido na cruz, com flechas e gritos de dor.")
    ("o grande rei bárbaro inglês")
    Legenda da ilustração à direita inferior: 傳教死成 ("a morte do missionário")
  4. Em tradução livre:
    «Senhor. - O Ministro da Instrução Pública faz seus cumprimentos ao Senhor e reza para que tenha a honra de vossa presença em En-riò-Kan, na próxima segunda-feira, 12 de outobro às dez horas para fazer-nos companhia.

    Aceite, meu senhor, minhas altas considerações.

INDICE


 
Pags.
Marselha. — Seu porto. —Seus habitantes. — Thiers em Marselha. — As suas bellezas. — O fim da nossa viagem ao Oriente. — Venus e o Sol. — Partida do Ava. — O outeiro de Nossa Senhora da Guarda. — Uma antiga usança. — Toulon. — O porto de Napoles. — O museo nacional. — Ascensão ao Vesuvio. — Partida de Napoles. — O Stromboli. — O Etna. 
 5
 
 
As costas do Egypto. — Os historiadores antigos e modernos. — O Nilo. — A politica ingleza e a liberdade de commercio. — Um grande homem. — O algodão egypcio. — Um gentleman original. — Chegada á Port-Said. — Entrada do Ava no canal. 
 23
 
 
O actual canal de Suez. — O canal dos antigos. — Opinião de Herodoto, de Strabão e de Schems-Eddin. — O projecto de Lepère. — O Ava no canal. — Chegada á Suez. — Os habitantes das cidades egypcias, seus usos e costumes. — As alméas. — O Cairo. — A circumcisão dos meninos. — A cosinha dos egypcios. — Barbeiros com triplices funcções. — O camello do deserto. — Um convite officioso. 
 37
 
Viagem pelo Mar Vermelho. — Chegada á Aden. — Sua população. — Os nadadores arabes. — Uma regata original. — A cidade arabe. — Um povo patriarchal. — As cysternas de Aden. — Ponta de Galles. — A ilha de Ceylão. — O Jardim das canelleiras. — O templo de Budha. — Os Portuguezes, os Hespanhóes e os Inglezes em Ceylão. — O budhismo da India. — A origem de Budha IV. — A chiromancia em Ceylão. — Entrevista com um astronomo indiano. 
 49
 
 
O estreito de Malaca. — Os piratas malayos e chins. — Uma fragata disfarçada. — Os juncos chinezes. — A cidade de Cincapura. — Seus habitantes, usos e costumes. — Um consul que honra o Brazil. — Saigon, capital da Conchinchina franceza. — Suas bellezas. — As tribus selvagens da Conchinchina. — Partida de Saigon. — O encontro com um cyclone. 
 67
 
 
Hong-Kong. — Os inglezes e o opio. — Um grito de indignação do governo do Celeste Imperio. — O commercio de Hong-Kong. — Os negociantes chinezes e japonezes. — Um novo meio de transporte. — Os chins do norte e os do sul. — A razão dos pequeninos pés das damas chinezas. — Macáo. — Como são recebidos os europeos na China. — Um curioso pasquim. — Attentados commettidos pelos chins contra os estrangeiros. 
 81
 
 
A civilisação chineza. — Costumes chinezes. — A preponderancia do cultivo intellectual entre os chins. — A familia chineza. — Os casamentos. — Um codigo criminal philosophico. — As innovações no Celeste Imperio. — As ultimas concessões do governo da China sobre a civilisação europea.Um estrangeiro poderoso na China. — As alfandegas chinezas. — Um devastador cyclone no porto de Hong-Kong. — Um quadro horrivel. — Como se pode visitar o Japão sem travar-se conhecimento com os cyclones. — Um fatalista em acção. 
 95
 
 
O Japão antigo. — Os escriptores hollandezes ciosos da descoberta do Japão pelos portuguezes. — Fernão Mendes Pinto. — Como este viajante descobrio o Japão, e como foi recebido nesse paiz. — S. Francisco Xavier no Japão. — Como forão recebidos os primeiros estrangeiros no Japão. — Os missionarios e os bonzos. — Importancia do commercio portuguez com o Japão. 
 105
 
Progresso do Christianismo no Japão. — As discussões theologicas entre os bonzos e os missionarios. — Penas e trabalhos por que passou o Apostolo das Indias. — O bonzo Foucarandono 
 119
 
 
Partida de S. Francisco Xavier do Japão. — Conversão do joven rei de Boungo ao Christianismo. — Uma embaixada japoneza enviada ao Papa pelos Christãos do Japão. — Como forão os embaixadores recebidos em Portugal, na Hespanha e em Roma. — Os Hespanhóes malquistão os Portuguezes com o Imperador. — Execução dos martyres do Japão 
 129
 
 
Chegada á Yokohama. — As carruagens japonezas. — Os bazares de Yokohama. — As mulheres do Japão. — Yedo. — Os tchaa-jias. — As religiões dos japonezes 
 151
 
 
Um convite official. — jantar do ministro da instrucção publica. — O tio do Imperador. — Uma alta dama japoneza. — A orchestra de S. M. O Imperador do Japão. — Um passeio em bella companhia. — A emigração dos chins. — Partida de Yokohama 
 165
 
 
Os lutadores do Japão. — O Golden Age. — Viagem pelo mar interior. — Um eclipse do sol. — Pappenberg ou a ilha dos Christãos. — A cidade de Nangasaki. — Decima ou a feitora hollandeza. – A montanha de Compirá. — Um templo tradicional 
 181
 
 
Venus e o sol. — A profissão dos astronomos japonezes. — A imprensa japoneza. — Japão-Republica. — A instrucção publica nesse paiz 
 191
 
 
Legislação penal do Japão. — Supplicios e penas restrictivas da liberdade. — Penas infamantes. — Differença na execução das penas, segundo a condição do condemnado nobre ou plebêo 
 199
 
A industria japoneza. — O exercito e a marinha de guerra do Japão. — Um banquete offerecido em Nangasaki, pelo almirante japonez, aos membros da commissão franceza da passagem de Venus. — Partida para Shangai. 
 209
 
 
O Neva. — Chegada a Shangai. — As concessões estrangeiras. — A cidade chineza. — A criação dos peixes dourados na China. — Um jantar no consulado francez. — Uma parisiense na China. — O duque de Penthièvre. 
 217
 
 
Excursões pelos arredores de Shangai. — collegio dos jesuitas em Si-KaWaii. — La Provence. — Chegada á Napoles. 
 225