Anexo:Imprimir/Motta Coqueiro

Wikisource, a biblioteca livre
  • Ao imprimir esta página, selecione a opção de Versão para impressão do menu lateral esquerdo. Notarás que desaparecerão este quadro, os cabeçalhos e elementos de navegação entre páginas que não seriam úteis em uma versão impressa.
  • Clicando primeiro em atualizar esta página estará se assegurando de obter as últimas atualizações feitas no livro antes de o imprimir.
  • Se preferir, podes exportar o texto em um dos formatos a seguir:


Índice[editar]

Macaé, pequena cidade do litoral da província do Rio de Janeiro, não conhece a vida ativa e estrepitosa das grandes cidades populosas.

Olhando ao longe o oceano que vem, às vezes acovardado e murmurando apenas, às vezes espumando e bramindo estender-se ou arremessar-se na praia donde ela surge, o aspecto da cidade e o do oceano contrastam singularmente.

É que enfrentam o movimento das vagas, quase sempre brusco e violento, e a mais tranqüila quietação; o ruído que por horas de tempestade assoberba-se, avoluma-se e prorrompe em escarcéus medonhos, e o silêncio que de contínuo reina nas ruas e praças pouco transitadas.

Para ligar a vida da cidade e a do oceano só há os navios ancorados, que ficam silenciosos, oscilando ao tom das ondas, de maneira que os seus extensos mastros como que fingem pontes movediças interpostas a ambos.

No dia 26 de agosto de 1855 dir-se-ia que uma inesperada mudança se havia efetuado, trocando-se repentinamente os papéis entre si.

Ao passo que as vagas erguiam os colos azulados a rosear-lhes a orla branquicenta no colorido de uma serena madrugada, a cidade já acordada enchia-se dos sussurros próprios de uma reunião popular.

De toda a parte afluíam cavaleiros e carros de bois, conduzindo famílias, que presto apeavam e seguiam em direção ao mesmo lugar.

Irisavam as ruas as roupas variegadas e vivas dos moradores do interior, e os transeuntes apenas cortejavam-se, sem que nenhum deles reparasse que o outro, quebrando os estilos da boa camaradagem e sociabilidade sertaneja, não fizesse uma longa parada para informar-se por miúdo da saúde e negócios do seu conhecido.

Essa atividade insólita denunciava que toda aquela gente reunia-se para assistir a alguma cena extraordinária, algum desses acontecimentos memoráveis que se gravam indelevelmente na memória dos povos, desinteressada arquivista dos fatos que mais tarde terão de ser julgados pela imparcialidade da história.

Os pontos mais concorridos eram a praça Municipal e a rua que, atravessando-a, vai terminar na praça do Rossio.

No primeiro largo a população afluía, estacionava, engrossava-se agora e para logo rareava, escoando-se para sul e norte pela rua secante.

Contrapondo-se a tamanha atividade, à serenidade expansiva das fisionomias, onde havia o reflexo de um sentimento honesto, o sino da Matriz começava a dobrar por morto.

Esse fato, que destoa dos sentimentos religiosos das populações do interior, ficaria, porém, cabalmente explicado para aqueles que se. acercassem dos grupos, que estadiavam pelas praças citadas e a rua, que na parte norte passava pela cadeia da cidade.

— Homem! eu se vim aqui não foi para regozijar-me com a morte do infeliz; tenho certeza de que ele entrou nisso como Pilatos no Credo.

— O Sr. está falando sério, Sr. Martins?

— Se estou, era até capaz de jurar que ele não mandou matar.

— Ora isto é que é vontade de teimar. Todas as testemunhas foram concordes em dizer que foi ele.

— Então, Sr. Luís de Sousa, se eu for dizer aqui ao Sr. Cerqueira, e este a outro, e a outro que o senhor mandou matar uma família, isto, por si só, é uma prova contra o senhor?

— Valha-me Deus, isto não vem a pêlo. O Motta Coqueiro não está neste caso; era um homem tido e havido por mau em todo o Macabu; malquisto com seus vizinhos sérios e só cercado de homens iguais ao Faustino, um fugido das galés, e o Florentino, o tal Flor, bem conhecido por perverso.

— Os senhores dizem só, mas não apontam os males que ele fez. O próprio Francisco Benedito foi por ele acolhido em sua casa, quando, tendo sido corrido pelo Dr. Manhães, não tinha onde cair morto.

— Agora é que o senhor disse tudo; para o desgraçado cair morto era preciso mesmo ir agregar-se para a casa do facínora, que não só lhe desmoralizou uma filha, mas ainda lhe queria roubar as benfeitorias do Sítio.

— E o que me diz o Sr. Martins acerca da mulher de Motta Coqueiro? interrompeu um novo interlocutor.

— Eu sou da opinião do Sr. Luís de Sousa; para mim, Motta Coqueiro era capaz de fazer ainda mais, principalmente porque era açulado pela mulher, a qual dizia que, para despicar o seu marido, venderia até o seu cordão de ouro.

— Por Deus ou pelos diabos; os senhores falam só e não me deixam falar. Com os diabos, Motta Coqueiro já foi condenado; dentro de uma hora há de ser pendurado pelo carrasco; que eu diga que sim, que os Srs. digam que não, nada lhe aproveita; mas a verdade antes de tudo. Eu não falo por mim. O Conceição é homem à-toa?

— Eu vou com ele até o inferno.

— Pelo menos nunca ouvi dizer que ele não fosse um homem sério.

— Pois o Conceição diz que Motta Coqueiro é inocente no assassinato da família de Francisco Benedito.

— Ora essa! ...

— E então por que não foi ser testemunha da defesa, se ele sabia do fato?

— Não foi, e fez muito bem; eram capazes de dizer que ele também era um dos co-réus, porque o Conceição, como sabem, estava na casa de Motta Coqueiro na noite em que se deu o crime.

— Ponhamos as cousas nos seus lugares, Sr. Martins, interrompeu Luís de Sousa. Ninguém diz que o Coqueiro foi o matador, o que se diz é que ele foi mandante, e não havia de dar as ordens à vista de Conceição. Já vê que este nada pode saber com certeza.

— Sr. Luís de Sousa, eu não quero brigar com você, e por isso o melhor é cortar questões. O Sr. fica com a sua opinião e eu fico com a minha, o tempo dirá qual de nós tinha razão. Eu digo que é falso, é falso, é falso; o Coqueiro não mandou fazer tais mortes; esse desgraçado morre inocente.

Pela conversação a que acabamos de assistir é fácil saber que achamo-nos no dia em que a justiça pública, para desafrontar-se, ou melhor, desafrontar a indignação pública, ia levar ao cadafalso Manuel da Motta Coqueiro, que era geralmente acusado como mandante do assassinato execrando, que exterminou toda uma família à exceção de uma moça, que não se achava no lugar do crime.

A notícia lutuosa correu veloz por todo o Brasil, e todo o povo ergueu um brado de maldição contra os assassinos.

Pedia-se em altos brados, nas reuniões e na imprensa, uma punição famosa, que passasse de geração em geração, atestando que ao menos os contemporâneos, impotentes para reparar o crime, tinham sido inexoráveis num castigo tremendo.

O nome de Motta Coqueiro era proferido com horror e bem assim os dos seus cúmplices, e as mães, ao verem-nos passar, ensinavam às criancinhas a maldizê-los.

O governo provincial e as autoridades locais uniram-se em solícito esforço para a captura dos réus, oferecendo especialmente ao que prendesse o mandante uma quantia com que nunca sonharam os pobres moradores das matas, por onde Coqueiro vagava refugiado; — dois contos de réis.

Entretanto do meio do ódio geral que cercava mais estreitamente o nome de Motta Coqueiro, alguns ânimos benévolos, concordes em amaldiçoar os criminosos, afastavam todavia o seu veredicto da cabeça do principal acusado.

Era desse número o ardente Sr. Martins, que, sempre protestando não aceitar discussões a respeito do assunto geral da conversação, não podia entretanto resistir a não chegar-se aos grupos para lhes ouvir as opiniões.

Homem tão honrado e bondoso, quanto gárrulo, o Sr. Martins naquela manhã discutiu com quase toda a população de Macaé, e o maior número das vezes concluiu repetindo a frase final da sua conversação com Luís de Sousa: É falso, é falso; o desgraçado morre inocente.

Desanimado e entristecido por não encontrar na compacta massa de povo uma pessoa só que concordasse consigo, plenamente, na inocentação de Coqueiro, Martins atravessava rapidamente o beco do Caneca, quando foi detido por uma vigorosa mão.

— Com que o Sr. Martins veio também assistir ao enforcamento da Fera de Macabu?

Estas últimas palavras foram, porém, proferidas com acento tão repassado de tristeza, que o Sr. Martins, sorrindo, abriu os braços e neles estreitou o seu interlocutor, exclamando:

— Até que, enfim, encontro um homem que pensa comigo!

E os peitos daqueles dois homens deixaram que perto batessem por longo espaço os corações, que palpitavam por um sentimento bem diverso do que animava à maioria da cidade.

Quando separaram-se ambos tinham os olhos rasos de lágrimas, e por um movimento acorde correram o olhar em redor.

Aquele olhar na sua tímida expressão traía o temor que ambos, mas principalmente o novo personagem, tinham de ser vistos por alguém; tão grande era a exaltação dos espíritos que atemorizava até a livre manifestação de sentimentos benévolos para com o sentenciado, sem logo incorrer em censura.

— Não é verdade, Sr. João Seberg? O Coqueiro morre inocente.

— É verdade, meu amigo, e ainda agora mesmo acabo de conversar ali com a D. Maria; respondeu Seberg, apontando para uma casa que tinha a porta e as janelas fechadas.

— E a D. Maria é também do número das que se arrebicaram para ver a execução.

— Não é, felizmente. Acaba de contar-me que as suas duas filhas lhe vieram pedir para virem, em companhia das vizinhas, ver este novo assassinato. Negou-lhes a licença e até repreendeu-as fortemente. Ainda agora quando o sino dobrou pela vez, que será penúltima, antes de separarmo-nos para sempre do desgraçado, ela, que estava conversando comigo, empalideceu, mandou que acendessem as velas do oratório, e chamou as filhas para que ao último dobre peçam a Deus que perdoe-nos a cegueira da nossa justiça.

Faz pena a pobre senhora; nem que fosse parenta dele. Só ouvindo-a; ela narra diferentes obras caridosas feitas pelo infeliz Coqueiro, e só interrompe-se para chorar.

— Isto revolta mesmo a gente, Sr. Seberg: ver morrer um amigo inocente e não ter força para salvá-lo.

— E ele que resistia sempre que se lhe queria dar meios para fugir ou... suicidar-se, o que era muito melhor do que ir parar às mãos do carrasco.

— Desgraçado.

— E nem ao menos ver na hora de morrer a esposa, e os filhos, que não se ativeram a estar aqui, temendo que os... enforcassem também.

— É um escândalo!

— É uma requintada infâmia. Obstaram a defesa, dificultaram as provas, andaram com ele de Herodes para Pilatos, e afinal chamaram requintado desavergonhamento aquele grito de desespero, com que ele acabou de responder ao último interrogatório.

Não viram nas barbas e nos cabelos que de todo embranqueceram, na macilenta cor de seu rosto, nas pálpebras sempre entrecerradas, a expressão de um generoso coração, que, talvez conhecendo o culpado, não condenava ninguém.

Adeus, Sr. Martins, rezemos por ele, e que Deus perdoe a quem o faz morrer.

Separaram-se, e o Sr. Seberg, com a cabeça baixa e vagaroso passo, tomou para a banda da praça Municipal. A sua longa barba grisalha caía-lhe na sobrecasaca preta toda abotoada, o seu porte, o seu ar, como que se iluminavam com as cintilações da justiça.

Naquela hora, esse homem severo, completamente vestido de preto, e com o semblante embaciado pela mais sincera tristeza, parecia o latente remorso de uma população inteira, que vinha assistir à tragédia judiciária para mais tarde lavar a nódoa que manchava as vítimas da lei.

De repente Seberg estacou, como que detido por um braço de ferro.

O sino da Matriz dobrava e, na outra extremidade da praça, o povo que se apinhava, encontroando-se, bradava:

Lá vem ele; lá vem ele!

Os gritos que, avassalando o sussurrar perene da multidão, como que chumbaram os pés de Seberg ao chão da praça, sobreexcitavam cada vez mais os espíritos.

Os vários grupos dispersos puseram-se em desordenado movimento. Cada qual queria chegar primeiro ao ponto donde os gritos partiram. Os mais moços corriam rapidamente, e as senhoras idosas, cambaleando aqui e acolá, e praguejando no puro estilo do beatério, aproximavam-se como um bando de gansos espantados.

Os pais e mães, no intuito de darem desde a infância um exemplo à sua progênie, levavam consigo os filhos, e na velocidade de que precisavam dispor, quase que os arrastavam, ao som de ralhos impertinentes.

Toda essa gente apressava-se, corria, aglomerava-se, encontrava-se, e alguns mais imprudentes, querendo a todo o transe romper caminho no mais denso do ajuntamento, provocavam, da parte dos desalojados, violentos empurrões e frases duras, a ponto de ser necessária a intervenção da autoridade para evitar conflitos.

Não foi um rebate falso o que se espalhara.

Já a campainha, tangida por um dos irmãos da Misericórdia, badalejava lugubremente à porta da cadeia.

Pedia-se silêncio e repetiam-se insistentes psius por toda a multidão.

— Ouçamos o pregoeiro! ouçamos o pregoeiro! bradava-se por toda a parte. Esse novo fermento lançado à sôfrega curiosidade de todos, fez com que alguns se destacassem, porque, temendo não poder ver daí o espetáculo, queriam buscar em outro lugar melhor ponto de observação.

O Sr. Luís de Sousa muito interessado em coadjuvar a justiça, quanto estivesse em suas forças, elegeu-se capitão dos retirantes e, suando em bica, bufando e abanando-se com o chapéu, gritava a bons pulmões:

— Vamos para o Rossio, lá o bicho não nos escapara.

Dentro em pouco o Rossio recebia mais um numeroso contingente de espectadores, ansiosos por verem o epilogo desse rosário de horrores, do qual durante três anos esteve pendente a atenção pública.

A praça do Rossio, em que devia ter lugar a execução, estava quase literalmente cheia, e, soturnamente sonora, transbordava esse zunido abafado que derrama o vento atravessando um túnel.

Reinava aí a alegria e o dia esplêndido, todo luz e céu azul, aqui e acolá sarapintado de nuvens alvadias, como que santificava esse regozijo, a não ser que na opulência de brilho um poder oculto tentasse ver se era possível que um raio ao menos penetrasse naquelas consciências.

Abertos os guarda-sóis e reunidos em grupos, os curiosos matavam o tempo comentando as peripécias do crime e do processo, louvando a maioria o bom andamento da justiça.

Um desses grupos chamava a atenção pelo ar de misteriosa intimidade que o envolvia.

Tinha a palavra um moço alto, de compleição fraca, elegantemente vestido, e em tudo diferente dos habitantes do lugar.

— Se eu tivesse influência, dizia ele, obstaria por hoje a execução do Coqueiro.

— Era violar a lei, doutor; o código ordena que a execução se efetue no dia imediato ao da intimação da sentença ao réu.

— Sim, senhor; mas se o réu estiver tão doente que nem se possa levantar, se o réu estiver moribundo?

— Mas eu vi o Coqueiro quando chegou da corte e não me consta ainda hoje que ele esteja em tal estado.

— Pois esteve bem mal esta noite. Cedendo à vergonha ou ao desespero tentou suicidar-se, e para isso serviu-se de um pedaço de vidro com o qual fez um ferimento no pulso.

— E o que faziam os guardas?

— Não será uma fábula inventada pelos amigos?

— Não, senhor, fomos vê-lo, eu e o Dr. Silva, e ambos ligamos-lhe as veias.

— Embora, doutor, ele pode ser conduzido em uma padiola; e eu tenho de que não sairei hoje daqui sem vê-lo pendurado acolá.

Na direção indicada pelo interlocutor estava levantada a máquina sombria da justiça social.

A sua fealdade comovente, brutal encarnação dos sentimentos da população, pavoneava-se, entretanto, com o epíteto honroso de instrumento da desafronta pública.

Todos fitavam-na com simpatia, com estremecimento mesmo, e cada um buscava tomar posição apropriada a tê-la de frente.

Talvez pela imaginação exaltada do povo passassem as imagens das vítimas imoladas à sanha facinorosa dos seus matadores.

Diante da horrorosa construção, a memória popular avivava recordações de outros tempos, ouvidas em serões de família aos pais já finados.

— Ainda hoje isto é bom. Contava-me meu pai, que ouviu ao meu avô, que, no tempo de D. João VI, primeiro o carrasco desmunhecava com um golpe as mãos do padecente e só depois é que ele era levado à forca.

— Era o que esse precisava; eu sigo a letra do evangelho; quem com ferro fere com ferro seja ferido.

O gracejo por sua vez vinha pagar tributo à reunião piedosa de tantos corações justiceiros, que naquele momento se expandiam folgadamente numa espontânea conformidade de sentimentos.

De vez em quando toda a massa popular ondulava, afluía para um ponto e refluía depois.

Era uma voz que se levantava para apregoar que estavam rufando os tambores e que, portanto, em breve se desdobraria o painel ansiosamente esperado.

Serenava o sussurro; as mãos arqueavam-se em torno dos pavilhões das orelhas, e todos tomavam a atitude de quem escuta.

Tamanha ansiedade denunciava bem que, em meio de toda essa gente, não havia quem refletisse no que há de iniqüidade nessa desafronta do crime pelo crime.

A justiça, dinamizando a barbaridade, folga e jacta-se de dar aos descendentes dos ofendidos uma reparação, mas não vê que não será multiplicando a orfandade e o desamparo que ela chegará um dia a trancar as prisões.

A baba do sentenciado cai como indelével mancha negra sobre todos os seus; e não pode haver maior torpeza do que condenar a quem não mereceu a condenação.

Os magistrados e os que mandam executar essas bárbaras sentenças dormem tranqüilamente na paz de uma consciência honesta, porque entregam às mãos do carrasco as pontas da corda ou o cabo do alfanje.

A sociedade por sua vez aplaude, na magistradura e em si mesma, a segurança dos lares e o amor da justiça, no dia em que das alturas da forca pende mais um cadáver.

E todavia parece que há menos torpeza em um homem matar outro, do que em reunirem-se milhares para matar um só.

Não pensavam, porém, deste modo os grupos que estacionavam no Rossio no dia em que se devia executar os acusados pelo assassinato da família de Francisco Benedito.

Ao contrário: havia quase duas horas que do Rossio à cadeia andavam ansiosos à espera de ver consumar-se a execução.

Todas as janelas estavam cheias, e as mulheres, coradas pelo sol e excitadas pelo desejo de emoções, debruçavam-se nos peitoris espiando para o lugar de onde devia vir o préstito.

Um incidente inesperado veio pôr bem patente a aprovação pública ao decreto dos tribunais.

Espalharam-se dois boatos ao mesmo tempo.

Propalou-se que a munificência do poder moderador reservara-se para ir no alto do cadafalso tirar do pescoço dos padecentes o baraço infamante, e assim restitui-los à vida, ao remorso e ao arrependimento.

Ninguém quis dar crédito aparentemente, mas, em consciência, cada um sentiu-se profundamente despeitado e denunciava o despeito repetindo entre um sorriso: não é possível!

Daí a pouco, porém, ajuntava-se um complemento ao boato, e a população alarmou-se seriamente.

Divulgou-se que pessoas fidedignas tinham visto chegar a toda a brida um cavaleiro. Acrescentava-se que o recém-chegado era campista e desconhecido no lugar.

Podia bem ser mais um curioso, mas também podia ser o portador do perdão, visto que o segundo defensor de Motta Coqueiro era residente em Campos e prometera salvar o seu cliente a todo o custo. A notícia inspirou geral desagrado e ouvia-se em todos os grupos unissonamente dizer-se:

— Se fizerem isto, fica estabelecido que podemos de hoje em diante matar a quem nos aprouver, sem que possamos ser punidos. Quem perdoa Motta Coqueiro não pode condenar a mais ninguém.

Ainda os ânimos não tinham sequer contido o choque produzido pelo boato, e já um outro corria de ouvido em ouvido.

Este era ainda mais grave e mais próprio para irritar os justos instintos dos curiosos.

Afirmava-se o primeiro boato, e caso ele se não realizasse, nem por isso o principal sentenciado deixaria de burlar a sentença.

O meio empregado era simples. A corda fora embebida em aguarrás e portanto não poderia resistir ao peso do padecente.

Logo que ela arrebentasse, a bandeira da Misericórdia seria colocada sobre Coqueiro e os seus amigos impediriam a que a execução se renovasse.

— É um atentado sem nome, exclamava colérico o Sr. Luís de Sousa. Mas enquanto eu for vivo, veremos se faz-se ou não se faz justiça.

A última palavra de Luís de Sousa era a que pairava em todos os lábios, e a idéia que motivava a satisfação do povo.

Não se riam, não se alegravam por desumanidade; regozijavam-se crendo que se efetuava uma justa vingança.

Luís de Sousa era a imagem da indignação profunda e dos desejos da multidão, a que acabava de reunir-se mais um espectador.

Era Seberg que, sem saber por que, dirigira-se para o lugar onde lhe estava reservado um golpe tremendo.

Numa das continuas viravoltas que dava, Luís de Sousa esbarrou com Seberg, e comunicava-lhe o ocorrido, quando uma circunstância pôs-lhe ponto à narração.

Os ecos do clarim da força pública anunciavam o saimento do préstito.

A tropa, que estava postada na frente da cadeia, manobrou e dividiu-se em dois pelotões, formando alas à porta da prisão; e alguns soldados de cavalaria, andando a passo lento, começaram a abrir um claro por entre os espectadores.

 porta do malseguro e abarracado edifício, — que desempenhava as funções de calabouço, com exalações insalubres de enxovias sórdidas e compartimentos abafados e sem luz, — um irmão da Misericórdia movia compassadamente uma enorme campa, cujas badaladas tristes como que acordavam a comiseração nas almas dos circunstantes.

Semelhante a um bando de aves agoureiras, tendo pendentes dos ombros os seus balandraus negros, a irmandade da Misericórdia assomou na porta da cadeia e distribuiu-se em paralelas às alas dos soldados.

Alguns dos irmãos, segurando em uma das mãos uma vara de prata e na outra uma sacola negra, lá se foram pelo povo dentro a esmolar para os sufrágios do que ia morrer.

E aqueles mesmos homens, que ainda há pouco indignavam-se com a só idéia da possibilidade de um perdão, concorriam com o seu óbolo para que a religião se incumbisse de redimir na eternidade a alma daquele a quem atribuíam um crime, que justamente revoltava a todos os espíritos bem-formados.

Sublime contradição entre o homem religioso e o cidadão: este consente que a cabeça de um irmão vá ter às mãos do carrasco, aquele dá sinceramente o seu óbolo para que da ignomínia social passe o supliciado às felicidades sonhadas pela crença.

Tanto é verdade que, em consciência, o povo não quer as penas irreparáveis!

Após a confraria apareceu a bandeira santa, outrora símbolo de esperança, a que se dirigiam os olhares do condenado, que ao vê-la, através da memória afogueada pelas saudades da família, dos amigos, do trabalho e da pátria, contrapunha à imagem horrorosa do cadafalso o sonho consolador do perdão.

Mas a lei inexorável condenou desapiedadamente esta esperança, de maneira que é hoje um aparato vão o painel em que a pálida Maria, num abraço estreitado ao cadáver de Jesus, consorcia-se com o filho adorado para a conquista da redenção humana.

A religião no seu painel mostra que possui para as supremas desgraças o supremo perdão; a sociedade com o seu carrasco, alimentado com a lama das enxovias, diz-nos que para as acusações formidáveis ela só conhece o castigo iníquo e irreparável.

Seguia-se imediatamente ao painel um sacerdote tendo nas mãos uma grande cruz, na qual abriam-se os braços e confrangia-se o corpo lívido de um Cristo ensangüentado, cuja face voltava-se para o lado do padecente.

A poucos passos da cruz e lateralmente a ela, vinha o porteiro tendo nas mãos um papel, em que estava exarada a sentença lavrada pelo tribunal contra o réu.

Quando esta parte do préstito passou o limiar da prisão, o enorme derramamento popular, que assemelhava-se a um lago estagnado, tamanho era o seu silêncio e quietação — agitou-se inopinadamente, brotando num surdo murmúrio.

O murmúrio fez-se sussurro e o sussurro intenso rumor e ouviram-se gritos e choros de crianças.

E que na porta do calabouço, vestido com a alva funerária e acompanhado por um sacerdote, acabava de assomar o réu.

O seu nome era Manuel da Motta Coqueiro. Fora, havia três anos, um homem abastado, influência política de um município, um dos convidados indispensáveis nas melhores reuniões; agora não era mais do que um padecente resignado mas tido por perigoso e por isso espionado e guardado solicitamente pela força pública, enquanto que, olhado como um ente repulsivo, servia de pasto à curiosidade vingativa de uma sociedade inteira.

Com o andar vagaroso, porém firme, veio colocar-se no meio da clareira. Acompanhou-o o sacerdote, que em uma das mãos tinha um livro aberto e na outra um pequeno crucifixo.

Aos lados desses dois homens inermes viam-se o carrasco e oito soldados, com as baionetas caladas.

Pairava sobre este grupo a solenidade da morte.

Alto, magro, com as faces escaveiradas e ictéricas, marcadas por uma grande mancha arroxeada, as pálpebras entrecerradas, completamente brancos os compridos cabelos, as sobrancelhas extremamente salientes e espontadas, e as barbas longas de sob as quais pendia-lhe de volta do pescoço até a cinta, em torno da qual se enroscava, o baraço infamante; Motta Coqueiro tinha mais a aparência de um mártir do que a de um celerado.

Cruzados sobre o peito os braços algemados, a cabeça inclinada, os olhos fitos no chão, imóvel no meio daquela multidão agitada, que se colocava nas pontas dos pés para melhor fitá-lo; o seu porte solene, a compostura evangélica do seu semblante, fazia pensar ou na mais requintada hipocrisia, ou no mais inexplicável dos infortúnios.

Ao lado desse rosto, cuja expressão fora amortecida pela desventura, contraste enorme, aparecia o carão negro, estúpido e truculento do carrasco, surgindo de sob o gorro vermelho como um vômito fuliginoso da garganta de uma fornalha.

Fuzilava-lhe nas feições o garbo bestial do crime.

Com a mão esquerda colocada à ilharga e arqueado o braço seminu, espraiava pela mó de basbaques meio aterrorada, o olhar sanhudo, coado através de umas pupilas negras, borradas numa córnea injetada de sangue.

Pelas narinas carnudas e achatadas a sua boçal ignorância aspirava com o ar o alento necessário aos seus instintos de fera.

Após eles vinham o juiz municipal, revestido com a toga de magistrado, e o escrivão, trajado de preto.

Uma linha de praças fechava o préstito funerário.

O silêncio, instantes quebrado, foi para logo restabelecido e dentre ele só partia o soar agoureiro da campa, tangida em badaladas espaçadas, quando o porteiro começou a apregoar em voz alta a sentença pela qual Manuel da Motta Coqueiro era condenado a sofrer a pena capital, por ser mandante dos assassinatos de Francisco Benedito, sua mulher e seis filhos.

Ao termo da leitura, soaram os tambores e as cometas uníssonos com o badalejar lúgubre da campa, e o préstito desfilou.

Então, à semelhança de uma floresta que é tomada de assalto por um tufão e ao passo que se retorce e anseia, desfaz-se em sussurros e farfalhos prolongados, o povo, movendo-se para acompanhar os personagens da medonha tragédia, enchia o espaço de um ruído confuso.

Era como ouvir-se ao longe o roncar de uma cachoeira.

Contidos por algum tempo pela comiseração, as exclamações, os comentários, as pragas jorravam agora de todos os lados.

Alguns mais exaltados negavam-se à súplica que lhes era dirigida pelos caridosos irmãos da Misericórdia.

Desse número era uma velha, que tendo um dos braços passado ao redor da cintura de uma rapariguinha morena, de olhos esbugalhados e boquiaberta, via passar o préstito, parada a um dos cantos da praça Municipal.

A darmos crédito aos muxoxos que provocava aos vizinhos, a feia da velha era uma dessas beatas impertinentes que não se importam de incomodar aos mais contanto que elas não sejam ao de leve prejudicadas nos seus cômodos.

Quando Coqueiro passava-lhe defronte, a velha enrugando ainda mais as enregelhadas pelancas, que outrora tinham sido faces, taramelou para a companheira:

— Olha aquele pedaço de malvado; vai ali que parece um santinho. Credo! que mal-encarado.

— Oh! nhanhã, coitado, vai tão triste.

— Cala a boca, tola, resmungou a velha, ao passo que apertava um pouco mais o polegar e o indicador na cinta da pequena. — Ter dó dele, te arrenego, tinhoso; é pena que o malvado não tenha no pescoço tantas vidas quantas arrancou, para espirrarem-lhe todas nas unhas do carrasco. Deus lhe perdoe, mas está se vendo mesmo que foi ele.

— Ui! exclamaram noutro grupo, que carrasco tão feio, meu Deus!

— Oito mortes, oito, entre velhos e crianças, a vida dele só não paga. Eu, cá no meu pensar, entendo que se devia fazer o mesmo à família dele, para que ele soubesse se era bom!

— Deus te perdoe, Deus te perdoe! escapava mais adiante ao anônimo popular.

E o préstito caminhava, parando, porém, a todas as esquinas para dar lugar à leitura da sentença.

De cada vez que o préstito parava ouvia-se um como cicio partido dos lábios dos sacerdotes e do condenado.

Uma dessas vezes, pode-se distinguir algumas das palavras segredadas pelo ministro de Deus:

— Confesse toda a verdade, irmão, purifique a sua consciência na hora de comparecer perante Deus.

— Repito, meu padre; não mandei fazer tais assassinatos.

E duas lágrimas tardas e volumosas, dessas que só os hipócritas confessos ou os desgraçados sabem chorar, escorregaram pelas faces cadaverosas do padecente.

Ora envolvido no rufo rouco dos tambores, ora atravessado pelo badalejar da campa e pelo clangor das cornetas, o préstito seguiu vagarosamente pelas ruas mais concorridas da cidade, até parar em frente à igreja, onde o pregoeiro em alta voz leu ainda uma vez a sentença irrevogável, que devia manchar na cabeça de um homem o nome de toda a sua família.

Parte do préstito já estava dentro do templo; algumas das sentinelas, que custodiavam mais de perto o réu, já transpunham o limiar, quando um incidente inesperado veio pôr em alarma a todos os circunstantes.

Um homem desconhecido, com as faces macilentas, o olhar esgazeado, os vestidos em desordem, e entretanto revelando pelo seu traje, pelo próprio desespero, ser um cavalheiro, rompera à força uma das alas de praças e viera colocar-se em meio do préstito.

Agarrado pelos soldados, debatia-se nas suas mãos, exclamando:

— Deixem-me falar; deixem-me falar!

Os pulsos vigorosos dos agentes puseram-no fora; mas ele, sem conter-se, prosseguia, dizendo:

— Deixem-me falar ao Sr. juiz. Deixem-me! Eu sei...

É fácil imaginar a confusão que nesse instante reinou no interior do templo.

Os espectadores redemoinhavam, gesticulavam, apertavam-se em estreito em torno do desconhecido.

Este, vencendo a onda popular, pode de novo aproximar-se da ala, e caminhava em direção ao magistrado, quando parou repentinamente.

O sentenciado com os cabelos eriçados, a pele pergaminhada do rosto e os lábios contraídos, meio erguidos os braços algemados, fitava no desconhecido um olhar profundo, em que se misturava a súplica e a repreensão.

Todos pasmavam. O desconhecido, como se fosse instantaneamente petrificado, não deu mais um passo; a cabeça pendeu-lhe como que humilhada, ao passo que as lágrimas corriam-lhe em fios.

O juiz ia talvez ouvir o desconhecido mas ao passar pelo sentenciado, este, dirigindo-se ao sacerdote, murmurou:

— Peça que o deixem ir. É um homem de bem; estima-me; queria talvez dizer-me na hora da desgraça algumas palavras de consolo.

O préstito continuou a entrar no templo. Ninguém buscou interrogar aquele homem que soluçava, encostado à porta principal da igreja. Respeitou-se-lhe a dor, porque ela mostrava ser bem profunda e filha de um sentimento generoso.

A tropa descansou as espingardas enchendo o recinto sagrado do barulho produzido pelo choque das coronhas no assoalho.

O sentenciado ajoelhou-se, e os seus lábios começaram a ciciar uma prece, e o sacerdote que desde o incidente empalidecera ainda mais, e tomara um ar ainda mais contrito, ajoelhou-se também.

Ao mesmo tempo o povo que enchia o recinto começou a separar-se abrindo fileiras. Era o desconhecido que, trôpego e banhado em lágrimas, deixara a porta e caminhava em direção à capela-mor.

Chegado junto do altar curvou os joelhos e deixou pender a cabeça sobre os seus frios degraus.

Comovido por esta cena, o sacerdote, inclinando-se para o padecente, disse-lhe: como se desejasse não ser ouvido por mais ninguém:

— Há entre vós ambos um segredo sagrado; eu não o quero perscrutar. Resta-me apenas absolver-vos, meu irmão, em nome de Deus.

— Oh! obrigado, exclamou o sentenciado, que não pôde mais conter as lágrimas, e fitou os olhos amortecidos na imagem silenciosa do Cristo.

As seis luzes da banqueta do altar-mor, meio ofuscadas pela claridade do templo, cobriam de tons sangrentos a lividez do Homem do Calvário.

Dir-se-ia que se trocava um misterioso olhar de inteligência entre os dois sentenciados, e que os seus corações conversavam na lutuosa intimidade de um inaudito sacrifício: tamanha era a expressão do semblante do réu e tão animadora a atitude do divino mártir.

Entre eles estava baqueada a coragem do desconhecido, completando a desolada trindade de um martírio inenarrável.

Cousa singular, desses sofrimentos o que parecia mais sereno era o do moribundo, que de vez em quando levantava os braços algemados para embeber o pano da alva nas lágrimas perenes.

A impressão produzida por este quadro sombrio parecia ter apiedado a multidão, que se mantinha em sincero recolhimento.

Algumas pessoas visivelmente comovidas diziam já:

— Há uma voz que me diz que o Coqueiro não foi o autor dos assassinatos.

A isto objetavam outros, mas a maneira pela qual o faziam: as palavras de que se serviam eram muito mais comedidas.

Para o desventurado estava, porém, marcado o destino e apesar das inocentações de uns, das acusações de outros, dentro em pouco ele devia desaparecer do número dos vivos.

Teriam decorrido dez minutos após a entrada do préstito, quando um prolongado tilintar de campainhas, vindo do lado da sacristia, anunciou que o sacrifício da missa ia principiar.

Logo depois o sacerdote, paramentado com uma casula negra, orlada e listrada de largos galões amarelos, aproximou-se do altar-mor, e, em seguida á genuflexão, exordiou em alta voz o sacrifício pelo introibo in altare Dei.

Os sons enternecedores do órgão espalharam-se como um sopro de melancolia pelo âmbito sagrado.

E o celebrante, acompanhado pelos altos amens e et cum spiritu tuo do sacristão e os soluços angustiosos do desconhecido, prosseguiu resmuninhando o latim do missal.

A educação religiosa dos assistentes tinha neste momento extinguido quaisquer outros pensamentos que não fossem os de respeito pelo ato, que se efetuava.

Havia, porém, um homem em quem a solenidade singela do ofício divino não produzia a menor impressão. Era o carrasco, o monstro negro, que brincava distraidamente com o seu barrete, revolvendo-o entre as mãos.

Estátua informe da escravidão, cujas falhas foram cheias com o asfalto do calabouço, argamassado com o sangue que os açoutes lhe tiraram do corpo, o desgraçado folgava talvez na sua brutalidade de fera.

Os brancos fizeram dele uma vítima; proibiram-lhe que afinasse os sentimentos pela compreensão exata da família, da religião e da pátria; devia ser-lhe grato poder vingar-se de um dos seus opressores.

Revolvendo nas mãos o gorro vermelho iludia porventura a impaciência que lhe causava a demora da execução.

Negaças de tigre antes de dar o bote à presa.

O sacerdote acabava de rezar o prefacio, e a campainha do ajudante acompanhava a invocação dos santos, quando a campa funerária do irmão da Misericórdia apregoou a retirada do préstito.

O barulho dos que se levantavam para sair perturbou o recolhimento devido ao ato da celebração, e grande parte do povo já estava de pé e de costas, quando a Hóstia, levantada pelo celebrante, alvejou por cima do altar como uma estrela de amor, perdida na escuridão do ódio.

Lá fora rufaram as caixas os runruns contristadores, com que a justiça enluta ainda mais a perspectiva do túmulo; depois o pregoeiro declamou ainda ama vez a sentença, e o préstito seguiu o seu caminho.

A serenidade, que desde a saída da prisão não deixara de iluminar a fisionomia do condenado, persistia inalterada, porém a fraqueza do corpo desdizia a fortaleza do ânimo.

O desventurado quase não andava, arrastava-se; e algumas vezes o sacerdote teve de ir-lhe em auxilio, para que não desse em terra. Outras vezes o carrasco, impacientado pela morosidade do passo, impelia a vitima, que nem sequer dava mostras de censurá-lo por isso.

Já os irmãos da Misericórdia, no desempenho da sua caridosa missão, embarafustavam pelo meio dos curiosos que estacionavam no Rossio, e os soldados abriam caminho para a entrada do préstito.

Motta Coqueiro, desfigurado e trêmulo, ao ouvir os gritos que anunciavam a sua chegada, com a voz entrecortada disse ao sacerdote:

— Aconselhe-lhes, meu padre, que não zombem de quem vai morrer.

— Perdoa-lhes, irmão, eles não sabem o que fazem.

Na embocadura do largo o pregoeiro cumpriu pela penúltima vez o seu dever, e as caixas expandiram-se em rufos prolongados.

Pela cara angulosa do carrasco passou um vago estremecimento, semelhante aos frêmitos elétricos que percorrem os lombos dos tigres, e ao mesmo tempo tomou o aspecto metálico de uma camada de mercúrio.

— Coragem, coragem, meu irmão; é chegado o transe derradeiro; exclamou o sacerdote para o sentenciado.

— Peça a Deus por nós, meu padre.

E caminhou, seguro no braço pela calosa e rude mão do carrasco.

A poucos passos levantavam-se os dois esteios negros que sustentavam a máquina monstruosa da justiça humana.

Se a máquina tivesse alma devia estar bem desvanecida de ver a curiosidade que despertava a sua brutalidade, e procurar atitudes especiais para relevar ainda mais os seus toscos e hediondos contornos.

A parte superior dos esteios era ligada por uma grossa trave, e abaixo, mediando pouco mais da maior altura de um homem, corria um tablado, terminando, de um lado, rente com a face dos esteios.

Do tablado até o chão corria uma escada de degraus estreitos e roliços. Tudo tosco, brutal, como o fim a que era destinado.

Para aí conduziu o carrasco o homem aferretado pela condenação pública.

Ia enfim desdobrar-se a última cena do assassinato legal, esse que, mais digno de reprovação do que os outros, é feito a sangue frio, premeditado nos cômodos de uma cadeira de juiz de fato, de uma poltrona de desembargador, e confirmado pela irresponsabilidade do poder moderador.

Os juizes chegam ao tribunal com os estômagos cheios e os corações afagados pelos carinhos da família; riram ao almoço satisfeitos com a graciosidade dos brincos dos seus caçulas; riram à entrada do tribunal, alegrados pela jocosidade dos amigos; aplaudiram os tropos ardentes da acusação e da defesa e entusiasmaram-se com a arte revelada pelos juristas na elaboração do libelo e do contralibelo, e depois retirados para a saia secreta, submetem os quesitos, não ao critério formado pela sensata apreciação do entrecho do processo, mas aos preconceitos que em suas mentes de burgueses honestos foram arraigados pelos comentários e legendas abortados da ignorância popular, tão oficiosa em cooperar para o mal do próximo, quanto remissa para fazer-lhe bem.

O sentenciado chegara junto ao patíbulo.

Para juntar a ironia à malvadeza, uma bandeja com alguns pratos cheios de confeituras, um cálice e uma garrafa de vinho generoso foram apresentados ao preso, como símbolo da solicitude social, e da máxima e indizível piedade que vem cevar a vítima antes de imolá-la.

O réu voltou nobremente o rosto à injúria açucarada dos seus matadores, e, ou fosse pela dor que esta afronta lhe causasse, ou fosse pelo terror inspirado pela vizinhança do patíbulo, os joelhos vergaram-lhe, e teria baqueado se não fosse arrimado pelo sacerdote.

Não longe deste grupo uma face negra de mulher banhava-se em pranto copioso. Era o protesto de uma raça contra o procedimento de um de seus membros, por que ao passo que a boa da preta chorava, o carrasco esvaziava um cálice do vinho rejeitado pelo condenado, e apreciava-lhe o sabor dando estalinhos com a língua.

Despertado da prostação, revivido do desânimo pelos soluços da comiseração espontânea daquela mulher, o réu cobrou de novo forças, e voltou-se para a lacrimosa, dizendo-lhe:

— Chora, minha filha, porque eu morro inocente.

Para abafar a voz do condenado as caixas marciais rufaram prolongadamente, e fez-se sinal ao carrasco para começar a sua missão.

O monstro apertou então ainda mais o braço do lívido padecente; puxou-o para si em direção à escada, e colocando-se depois por detrás dele, fê-lo subir os degraus da forca.

Embaixo, os irmãos da Misericórdia e os sacerdotes, reunidos em torno da cruz, puseram o seu estandarte em posição de cobrir o sentenciado, caso arrebentasse a corda.

Era uma vá esperança: a corda fora especialmente mandada por uma autoridade elevada da província, e os abusos da própria confraria inutilizavam a sua intervenção a favor dos infelizes, votados à morte infamante.

O carrasco e o réu tinham chegado ao tablado. O pregoeiro leu pela ultima vez a íntegra da sentença que condenava à morte e às multas da lei o réu Motta Coqueiro, mandante dos assassinatos de Francisco Benedito da Silva, sua mulher, um filho de dezoito para dezenove anos, duas filhas maiores de quatorze, duas maiores de sete e uma de dois para três anos, e finda a leitura, o magistrado ordenou ao carrasco o cumprimento de seu dever.

O negro instrumento da morte, depois de conchegar à cabeça encarapinhada o gorro vermelho, e experimentar com violentos puxões a segurança das algemas do preso, tomou-lhe o capuz, que lhe pendia nas costas, e com ele cobriu-lhe o rosto.

Passou a desenroscar a corda da cintura do padecente e ajustar-lhe o baraço ao pescoço. Feito isto, conduziu o desventurado para uma pequena escada posta entre o tablado e a trave; assentou-o em um dos degraus, e foi prender a corda em dois ganchos de ferro pregados no alto do patíbulo.

Escarranchando-se na trave, ágil inclinou-se e segurando-se nela com um braço, com o outro empurrou violentamente o padecente, tirando de improviso a escada de sob ele.

O sentenciado ficou suspenso pela corda, esperneando, agitando os braços amarrados e balouçando como enorme pêndula.

Deixando então a primitiva posição, o carrasco, voltado para a multidão segurou-se com as mãos robustas na trave e pendurou-se no ar.

Em um dos vaivéns dados pelo corpo do sentenciado, os pés do carrasco alcançaram os ombros daquele.

Colado um pé sobre cada ombro, o monstro carregava sobre o moribundo e impelia-o em largos balanços.

Durante toda esta cena que aterrorava os mais exaltados, o negro executor ria a sua fereza através de uns lábios grossos e roixos.

Talvez sentisse nesse momento a satisfação de Quasímodo quando bambaleava-se no espaço, agarrado às orelhas do sino grande da Notre Dame.

Esta cena durou o tempo imenso que duram sempre as cenas horrorosas; minutos que parecem horas.

A um golpe dado na corda o cadáver do sentenciado bateu em cheio no tablado e o carrasco veio, de um salto, colocar-se sobre ele, carregando-lhe com a mão sobre a boca.

Estava desafrontada a sociedade. Rufaram os tambores, clangoraram as cornetas e o carrasco desceu para recolher-se de novo à fermentação silenciosa dos seus ruins instintos.

A confraria desfilou precedida pela sua bandeira e fechada pela cruz, onde a cabeça descorada do Cristo parecia ter-se inclinado ainda mais.

E que, desfeando-a, na história da humanidade redimida negrejava mais uma iniqüidade.

Uma hora depois, a praça do Rossio e as ruas principais de Macaé estavam completamente vazias e a cidade recaía no seu silêncio habitual.

No tablado do patíbulo viam-se, porém, quatro homens vestidos de luto, e com um sincero recolhimento colocavam dentro de um caixão mortuário o cadáver do justiçado.

Eram os amigos de Motta Coqueiro que tinham obtido da justiça, para dar a uma cova, os restos que ela condenaria à vala comum.

O desconhecido, que era um dos quatro que seguravam nas argolas do caixão, ao pousá-lo na beira da cova, disse para Seberg, que chorava: — Foi um homem de bem às direitas; e se alguns erros cometeu, o último ato de sua vida paga-os de sobra.

Um tapete de grama, desdobrado sobre uma larga área de terreno, viredecia de um lado uma vasta planície e de outro uma pequena colina, alegrando a aparência da localidade.

Aqui e ali erguiam-se do chão atapetado grandes moitas de arbustos, ou isoladas árvores corpulentas, copadas umas, fluas e esgalhadas outras, projetando sombras extensas ou sacudindo à viração longos flocos de musgo, postiças barbas brancas postas à velhice desses raros representantes das matas virgens.

Na orla horizontal do gramal, o rio Macabu, comprimido entre as margens cobertas de vegetação esplêndida, arrastava a sua pobreza de águas, ora juncado das mortas folhas amarelas das figueiras, ora branqueado pela caduca floração dos ingazeiros.

O cimo da colina servia de base a uma casa avarandada, cujo caio era de distância em distância colorido por uns quadrados e retângulos verdes, a que correspondiam outras tantas portas e janelas envidraçadas.

Cerca de duzentos passos desta casa chamada — a casa grande — estendia-se um lanço estreito, coberto de sapê, de paredes apenas barreadas, atravessadas de espaço a espaço por umas portas baixas e janelas que teriam três palmos de altura sobre dois de largo.

Era uma linha de senzalas, miserável habitação dos escravos.

Entre as senzalas e a casa grande — duas casas — a do feitor e a do fabrico de farinha, ou bolandeira, e além destas, do outro lado da casa grande, uma espécie de barracão coberto de telha, com o caio sujo e as paredes meio esburacadas, completavam o número das edificações, se exceptarmos algumas palhoças colocadas mais para trás e que serviam para guardar os animais domésticos.

Como grande mancha negra no matiz da colina, via-se o curral, cercado por uma curva de baixos paus-a-pique, nos quais prendia-se uma pesada cancela.

A casa grande estava quase sempre fechada, porque o seu dono, Manuel da Motta Coqueiro, residia em Campos e a maior parte do ano passava-a ai, ou então na sua chácara da barra de Macabu.

A alegria dos lugares habitados não era, pois, encontrada senão raramente neste local, onde a primavera desfazia-se em florescências esplêndidas sem que houvesse quem a contemplasse.

Quando o vento indiferente, enredando-se na copa das árvores, transformadas em ramalhetes monstros pela seiva vernal, esfolhava-os desapiedadamente, a chuva de flores e folhas caía sobre o gado, que fugindo à canícula, deitava-se-lhes à sombra, ruminando silenciosamente.

Quando o calor abrasava, colhidas as asas e ocultas na frescura da folhagem, as cigarras e as nuvens de passarinhos chilravam e gazeavam por ali como se estivessem em lugar completamente deserto. Também de vizinhança de homem, só dava sinal uma espiral de fumaça que se erguia por entre as negras telhas do casarão central.

Toda a vida e atividade estavam concentradas em outros pontos, e fácil era ir ter a eles tomando um caminho, que passava perto do curral, e seguindo por ele em direção ao ocidente.

A um quarto de hora de caminho estar-se-ia no meio de compridos aceiros, sombreados por enormes bananeiras que dividiam umas de outras as terras cultivadas.

Ouvir-se-iam então os cantos monótonos e ver-se-iam, com uma saia de riscado e alvas camisas de algodão, expostos ao sol os colos negros das escravas, e vestidos de calças de zuarte, os negros seminus levando para diante o eito, estimulados pelos gritos maquinais de arriba, arriba! bradados pelo feitor, encostado ao cabo do seu rebenque.

Se no meio dos cafezais e mandiocais não fosse encontrada a gente do sítio, o tantã, tantã compassado dos machados no cerne das árvores seculares anunciaria a sua estada nas matas circunvizinhas.

Às vezes o serviço era dirigido pelo senhor em pessoa; mas o aspecto da casa não se alterava, porque vindo só para o sítio, Motta Coqueiro apenas era visto em casa quando de manhã muito cedo ditava ordens ao seu feitor ou à noite ouvia dele a narração do serviço feito. Em face deles quedavam então os escravos alinhados e taciturnos.

Quatro anos antes da época em que nos achamos, primeiros meses de 1852, outra era a vida no sítio.

O campo era quase sempre percorrido por cavaleiros e homens a pé, os quais dirigiam-se de preferência para o velho barracão que descrevemos.

Por esse tempo, a pedido de um amigo, Motta Coqueiro recebeu como seu agregado um desses pobres homens do sertão, que vivem da pequena lavoura e sem meios para ter um terreno próprio, cultivam o alheio para usufruir-lhe as benfeitorias. Francisco Benedito, forte apesar da idade, que subia a mais de 40 anos, vira-se, havia alguns meses, sem um teto sob o qual abrigasse a numerosa família, e recorrendo a Coqueiro por um seu amigo, obteve concessão para estabelecer-se em terras do sítio de Macabu, onde levantaria para si uma casa e cultivaria o terreno que lhe aprouvesse, sem prejudicar o proprietário.

Foi, porém, temporariamente hospedado no barracão contíguo à casa grande até que terminasse os trabalhos preliminares do seu estabelecimento.

A beleza das três filhas mais velhas de Francisco Benedito, a intimidade por ele demasiadamente facilitada, fizeram logo da casa um ponto de reunião, principalmente dos ociosos da vizinhança.

Coincidiram com a chegada de Francisco Benedito e os primeiros tempos da sua morada na casa de Coqueiro as demoras deste e sua família no sítio.

Era causa dessas demoras ter Coqueiro, que negociava em madeiras, resolvido explorar as matas próprias para obter os preços elevados correspondentes à carestia do gênero no mercado.

Para acelerar o trabalho era necessário que ele estivesse presente ao serviço dos escravos e empregados. Isto obrigava-o a demorar-se no sítio e a sua esposa, para não constrangê-lo a ir visitá-la a Campos, resolveu acompanhá-lo.

Entre a família do agregado e a do proprietário travaram-se logo relações e Motta Coqueiro foi na primeira oportunidade escolhido para batizar o caçula de Francisco Benedito.

Cumpre, entretanto, notar que a senhora de Coqueiro manteve sempre uma certa reserva para com o compadre, que não obstante ser bom homem, muito respeitador e trabalhador, tinha o vício da bebida.

Entre os vadios que passavam as semanas assentados ao balcão da venda próxima, tocando viola e desfiando a vida alheia, o compadre assentava-se as vezes, e para matar o tempo e cortar o calor esvaziava tantos copinhos de aguardente, que o resultado era voltar para casa descrevendo ziguezagues.

Demais tinha relações com pessoas, que eram inimigos confessos de Motta Coqueiro, e que, segundo era fama, só não lhe bebiam o sangue porque não podiam.

Era deste número o André inspetor, e o subdelegado Oliveira, que se malquistaram com o compadre de Francisco Benedito desde umas eleições que ele venceu em Carapebus.

Salvo esta queixa, reinava a mais inteira cordialidade entre as famílias.

As filhas e mulher do agregado freqüentavam a casa grande e nunca saíam de lá sem que a senhora pedisse os lenços das pequeninas para amarrar uma trouxinha.

Por seu turno estas de vez em quando traziam uma cestinha cheia de ovos e acercando-se da dona da casa, depois de lhe beijarem a mão, diziam-lhe:

— Eu trouxe isto para a senhora.

A resposta era sempre, à chegada das canoas da cidade, um embrulho de cassa ou chita, ou uns lenços novos, enviados pela esposa de Coqueiro à casa de Francisco Benedito.

Se a consorte de Coqueiro assim tratava a família do seu hóspede, aquele por sua vez teve diversas ocasiões de carregar as suas sobrancelhas salientes, e tomar um tom de voz enérgico para responder aos que falavam do seu compadre:

— O que eu sei é que tirado o defeito da bebida, é muito trabalhador e a sua família é boa gente.

Todas as tardes ao voltar da roça ou da derrubada, Coqueiro parava junto da casa de Francisco Benedito, e ali esperava muitas vezes até a noite, mandando ao moleque, seu pajem, desencilhar o cavalo, porque só iria mais tarde.

Havia três indivíduos a quem tamanha familiaridade incomodava. Eram eles Manuel João, um mulatinho de vinte e poucos anos, bem apessoado e falante, — um pernóstico, segundo o Viana da venda; o Sebastião Pereira, robusto rapaz que morava perto das terras de Coqueiro, e muito conhecido pela perícia em tocar viola e cantar o desafio; e o Viana da venda já meio maduro — como dizia o André inspetor, e creio mesmo que ligado por laços matrimoniais.

Cada um desses três indivíduos suspirava muito em segredo por uma das morenas do Chico Benedito — por pena das pobres raparigas.

O porte airoso de Chiquinha, a filha mais velha, o seu olhar meio escarninho, meio melancólico, o confranger dos lábios para estalar um muxoxo penalizaram muito a Sebastião.

O compassivo rapaz levava a sua sensibilidade a ponto de visitar sempre o Chico Benedito.

A princípio, ao lusco-fusco, com a sua viola a tiracolo, e montado num ossudo cavalo, a que todos chamavam — pangaré, e só ele chamava-o — Suspiro, era visto marchando para a casa, que lhe entristecia o coração.

Mas, devido mesmo ao continuado trabalho, agravaram-se as mataduras do lombo do animal, e o Sebastião tomou o expediente de vir em uma canoa.

Um dia, ao chegar ao porto, Chiquinha estava lavando. O sol revestira-lhe de um anacardino intenso as faces graciosamente túmidas. Os cabelos negros como os frutos da baraúna, reunidos em duas tranças, que cingiam a cabeça pequena, afofavam-se em duas pastas, arqueadas por sobre as têmporas.

Entre as suas mãos delicadas alvejava uma peça branca de roupa, sobre a qual a moça inclinava-se, metida dentro do rio. A posição curva, que tomara, deixava ver pela altura do colo umas saliências pontiagudas, que faziam lembrar a forma dos pêssegos.

Demais a moça, antes de entrar no rio, colhera os vestidos até os joelhos, e atara-os à cintura com um lenço, e para não molha-los, apertou-os entre pernas, de maneira a formar com eles uma espécie de calções apertados.

O remador que ajudava com remadas viris o deslizar espontâneo da canoa pela correnteza do rio conteve a frágil embarcação, parou de remar e deixou que ela ficasse remanseando, enquanto ele envolvia num olhar ardente as formas esculturais de Chiquinha.

Esta, que disfarçadamente observava o canoeiro com um olhar contemplativo, deixou-se ficar curvada, ostentando a cintura fina, acentuada ainda mais pelos amplos contornos dos quadris.

A canoa, entregue a si mesma, pôs-se a boiar à mercê da correnteza, e como se mão misteriosa a guiasse, veio esbarrar num tosco banco de lavagem, que negrejava junto a Chiquinha.

— Que mau popeiro que vosmecê é, ó seu Sebastião, disse esta, eu não me embarcava com vosmecê, nem para o céu.

— Pois é pena, sá Chiquinha, porque eu iria com vosmecê até para o inferno.

— Era preciso que eu quisesse ir, respondeu Cluquinha, sorrindo.

— Está visto; eu não queria nem esta canoa cheia de ouro se fosse contra a sua vontade.

— Deveras? .

— Se duvida, sá Chiquinha, é só experimentar.

Ao pronunciar a palavra Chiquinha tinha-se sentido perturbada e para não trair-se levantou a alva peça que lavava para batê-la no banco, que tinha diante.

O seu braço foi, porém, delicadamente seguro pela mão de Sebastião, enquanto com a outra o moço tentava tirar-lhe a peça da pequenina mão.

— Não me segure, resmungou Chiquinha, fingindo-se amuada; me deixe.

— Não foi por mal, sá Chiquinha!... murmurava Sebastião, ao passo que deixava o braço da moça. que para bater a roupa é preciso força, e eu sou mais forte.

Chiquinha dando uma das francas risadas características dos filhos da roça, exclamou:

— Uê! seu Sebastião subiu a serra, gente!

O rapaz animado pelo dito e a risada de Chiquinha desembarcou, segurando nas mãos a corda que amarrava o banco da proa da canoa, e pôs-se a perfurar o barro do porto com o cabo do remo, dizendo:

— Eu pensei que você tinha-se zangado comigo.

— Não me zanguei, não; foi só para você não se meter no que não sabe.

— Então eu não sei bater roupa?

— Qual sabe o quê; isto não é viola.

— Pois fique sabendo que a gente quando quer sabe tudo; até amar.

— Ora isto. . . tem muito que saber..

— E tem mesmo; como eu você não acha outro.

— Agora, como se faz na caixinha dos três desejos, diga, seu Sebastião — a quem ama?

— A você! ...

— Gentes! como você está adiantado! exclamou Chiquinha, depois de ter contraído os lábios corados num temo muxoxo.

Desde esse dia, Sebastião Pereira começou a sentir grande pena pela família do Chico Benedito, e a ter manifesta aversão pela familiaridade de Coqueiro junto desta família.

A partir de uma noite em que, sobraçado o seu ponche de baeta negra, forrado de flanela vermelha; posto no alto da cabeça o chapéu-do-chile com largas fitas negras pendentes, o Viana da venda entrou na casa de Chico Benedito, a sua alma de tendeiro começou a pesar ouro fio os gêneros da vendola e a recordação de sá Antonica.

A sala sem assoalho, com o chão acidentado por altos e baixos, ornada por uns bancos de pau, umas caixas e uma mesa velha, em que assentava um oratório junto do qual espirravam dois candeeiros de folha-de-flandres; semelhante sala luzia na memória do homem com as cintilações de um paraíso de amor.

É que ao entrar fora recebido por uma estrepitosa ovação, e ouviu à Antonica chamar os seus quase quarenta anos um mocetão bonito.

Não há alma de tendeiro da roça, por menos vaidosa que seja, fortalecida para não penhorar-se com semelhantes saudações.

Naquela noite o Viana, naturalmente folgazão, levou as lampas aos mais pagodeiros; tinha metido no mesmo chinelo o Sebastião e Manuel João, que improvisavam estrofes com a fluência do jorro de uma cascata, e com as mesmas quedas.

Achava-se aí por ter merecido um convite de Francisco Benedito para uma brincadeira de Santo Antônio.

O programa da festa era uma ladainha, e em seguida um fado com muitas raparigas, um leitão assado, dois garrafões de aguardente, ou melhor — de boa cana, e um garrafão de vinho, o qual fora dado de presente à Antonica, pelo compadre capitão, o Motta Coqueiro, que fora passar a festa na cidade.

Na casa não havia nicas, era casa de pobre; e o Sr. Viana estava ali como se estivesse na sua venda. Podia também levar quem lhe aprouvesse.

Cantada a ladainha, começou calorosamente o fado. A viola retinia febrilmente ferida pelos dedos apaixonados de Sebastião Pereira; rufavam entusiasticamente os adufes, e os pares rodavam, sapateavam, peneiravam, enchendo a sala de palmas e castanholas.

Uma das rodas era formada pelo Viana e Antonica, Manuel João e Mariquinhas, a mais nova das três filhas moças de Francisco Benedito.

Era a roda em que se dançava melhor.

Maravilhava pela certeza dos meneios, pela precisa cadência dos sapateados e pela assonância das palmas, às vezes batidas junto da boca aberta, para repercutirem um som cavo, delícia dos dançarinos.

— Excitava-a o entusiasmo do amor.

Invejosos da maestria das damas, os cavalheiros de outros grupos, pela maior parte em mangas de camisa, tentavam freqüentes furtos, que eram habilmente repelidos pelos cautelosos pares.

Em vão, de um pulo, os invejosos realizavam os bem planejados assaltos; era-lhes frustrado o intento, porque encontravam a dama cobiçada bem amparada pela perna do par, inteiriçada e meio sumida entre as saias murmurosas da risonha defendida.

Os assaltos malogrados eram novo incentivo à fertilidade poética dos cantores. Manuel João vitorioso prendia a corrente do desafio, estrofes alusivas e dizia no seu ameno tenor:

— É capricho; hei de guardá-la
Qual na moita o passarinho,
Co'as lindas asas abertas,
Guarda os filhos no seu ninho.

Respondendo rapidamente à volta, o violeiro apaixonado tornava no seu barítono selvagem:

— Eu também morro de zelos
Por uma jóia querida;
— Os sorrisos de Chiquinha,
Cadeias da minha vida.

Continuavam a trocar os prontos improvisos, aludindo cada um à dama que o cativava.

— Quem tem jóias preciosas
Não as deixa assim roubar;
Meu tesouro é Mariquinhas,
Minha jóia é seu olhar.

Mas eu conheço outros olhos
Que têm um brilho melhor;
São negros, a gente os vendo
Fica perdido de amor.

E longo tempo persistiam os cantores rociando de ardentes galanteios os corações agradecidos das suas preferidas.

Descuidos contristadores deram, porém, ocasiões a separarem-se os pares prediletos. Pronta era, entretanto, a junção, porque à retirada dos cavalheiros seguia-se uma frieza visível nas damas; desapareciam os ademanes graciosos, os requebros francos e as zumbaias lascivas e elegantes.

Os intrometidos, despeitados pela súbita mudança, presto retiravam-se e se algum mais rusguento levava a imprudência até a fazer notar que percebera a má vontade das moças, elas, acudindo à censura com o seu melhor sorriso, respondiam com aparente ingenuidade:

— Credo! que luxo; não quer que a gente fique cansada.

Mas, em reaparecendo os dois, o cansaço extinguia-se milagrosamente; a frieza transformava-se em fogo, e a roda girava com tanto garbo, com tanta alegria que algumas das visitas, cobrando páreas à maledicência, resmungavam de mau humor:

— São muito faiscas estas moças.

Francisco Benedito havia-se aproximado do violeiro, e o alegre Sebastião, casando os ais da prima aos soluços do bordão, levantou as despedidas.

Cessou o rufar do adufe, o soar das palmas, e os pares separaram-se.

Era a ceia que vinha sustar por algum tempo o folguedo, e dar azo a expansões que, mal contidas, ameaçaram irromper inconvenientemente durante as alegres danças.

Todas as damas e cavalheiros retiraram-se, precedidos por Francisco Benedito, que não muito em linha reta, alumiava-os com um dos candeeiros que esclareciam a sala.

Só a travessa Antonica ficara, talvez maliciosamente, assentada a uma das caixas a pretexto de que não queria cear, e sim descansar.

A solicitude de Viana não podia resignar-se a mastigar o leitão da brincadeira, quando Antonica, bonita como o diabo, conforme ele dizia, ficara lá na sala sozinha e quem sabe se amuada consigo.

Assim pois, resolveu vir ter com ela acompanhado de um prato com as iguarias da mesa e um copo, o único que havia, até meio de vinho.

Apresentou-lhe o prato e o copo; a moça não quis servir-se, e pediu-lhe que a deixasse descansar.

— Oh! sá Antonica, eu fiz-lhe algum mal? interrogou Viana, ou sou algum bicho que lhe meta medo?

— Não é, não; mas eu não quero ouvir a boca do povo.

— Qual história, si Antonica, eles de mim não falam, porque todos eles têm a barriga lá em casa.

— Já sei, já, seu Viana; mas eu quero ficar sozinha aqui, ou então vou-me embora. Que aborrecimento, home!

— Está bom, eu vou, si Antonica. Mesmo pode estar aqui alguém que vá contar a ele, e depois...

— Contar a quem, seu Viana? não se dá esta? te arrenego!

— E olhe que não seria a primeira vida que ele mandaria tirar. Eu sou pobre e ele é capitão, é rico, é magnata.

— Olhe, seu Viana, eu chamo papai para ouvir o que é que está aí dizendo.

— Não precisa, não, si dona; depois não se arrependa.

— E, vocês todos são assim mesmo; eu dancei com você, e agora fica mal comigo.

— Qual zangado! não estou; é que penso; eu sei lá, o Manuel João é quem diz que você gosta do capitão, e eu já estimo você tanto ...

— E gosto, e agora? nunca me fez mal. Quem manda aquele coisa espiar os outros? Não é o capitão quem nos dá casa?

Vozes partidas do interior gritavam:

— Oh! Viana, onde está este diabo?

Galgando a janela de um salto, e tendeiro agachou-se e coseu-se com a parede correndo, e só depois de alguns minutos gritou de fora:

— Eh tá com o berreiro; já vou, já vou.

As pessoas que entravam na sala encontraram Antonica sentada muito tranqüilamente, e ninguém suspeitou, sequer, a cena que antes se passara.

Recomeçando o fado, o Viana mostrou-se por largo tempo menos expansivo; esquivava-se de dançar, dizendo-se fatigado, e só se achava bem junto dos garrafões, em companhia de Chico Benedito.

Antonica também não figurava nas rodas senão espaçadamente e tinha o ar de quem queria chorar.

O Sebastião Pereira, que ao lado de Chiquinha parecia ter-se alheado de tudo mais, não prestou a principio atenção ao mal-estar dos dois namorados, mas sendo obrigado a chamar alguém para substituir a sua vida que precisava sair, foi ter com Antonica, e as lágrimas represas da moça revelaram-lhe o segredo do seu afastamento e tristeza.

Dirigindo-se a Viana, Sebastião atacou-o logo de frente, sem meias palavras:

— Você parece criança; lá está a Antonica a chorar, seu Viana. O pai já está pronto e se vem a saber disto, temo-la tramada. Vá tirar a rapariga, e o mais corre por minha conta.

No dia seguinte ao retirar-se da casa de Francisco Benedito, o vendilhão levava a roupa e o coração igualmente machucados.

Combinando, porém, algumas palavras de Antonica, pôde abraçar-se a uma esperança, ao passo que dava de mão a uma teimosa soma debitada ao pai da moça.

O sacrifício de seus interesses e o de sua tranqüilidade puseram muito naturalmente o bom do tendeiro na contingência de condoer-se da sorte da família de Chico Benedito.

Mais apressado do que os seus dois companheiros de compunção, andou Manuel João na conquista da sua sensibilidade pela família de Mariquinhas.

A sua posição de feitor no sítio de Motta Coqueiro aplainou-lhe facilmente o caminho da familiaridade, de que ele serviu-se para conquistar o coração benévolo da moça.

Nunca tinha tentado sequer revelar aos quinze anos de Mariquinhas o que lhe ia de ansiedade pelo seu coração, quase sem esperanças.

Acreditava mesmo que seria uma loucura, ele, pobre feitor de roça, e demais disso homem de cor, ir afrontar os escrúpulos da família, quando Mariquinhas era tão bonita que fácil lhe era escolher um marido entre os robustos moços trabalhadores dos arredores.

Limitava-se a obsequiar generosamente, e facilitar a Francisco Benedito os meios ao seu alcance para melhorar as condições de vida no sítio.

Encostado ao seu rebenque, ele nem dava atenção ao serviço; perdera mesmo as asperezas do seu oficio e deixava que os escravos trabalhassem quanto lhes aprazia.

Estes, surpreendendo as distrações e a tristeza do feitor, segredavam-se no eito:

— Seu Manuel está com mandinga; é cousa feita pela gente do agregado.

Aos domingos, Manuel João, pondo a tiracolo o polvarinho e chumbeiro, pegava da espingarda e lá se ia mato dentro, precedido pelo farejar de alguns cães de caça.

Quando voltava, trazendo grandes enfiadas, nas quais misturavam-se a escura cor hidrargirada das asas das juritis, aos tons escarlates dos peitos dos tucanos; Manuel João parava sempre à porta dos fundos da casa de Mariquinhas e, depois de uma conversa, presenteava-a com a sua caçada.

Os presentes contínuos eram o único palpável indício da afeição do moço feitor, mas uma observação mais detida descobriria sem grande trabalho quão intensa lavrava a paixão por aquele espírito.

Quando acompanhava o seu amo, e via-o parar à porta do velho hóspede, ficava de mau humor, principalmente se com a família vinha Mariquinhas, em cujas faces Motta Coqueiro batia brandamente com as pontas dos dedos, exclamando:

— Está já moça, e pior do que isso, bonita.

A jovialidade do amo e o acolhimento grato que lhe fazia Mariquinhas incineravam todos os sonhos de felicidade do feitor: tinha então diante de si um suposto rival, tanto mais digno de ódio quanto era mais poderoso.

Em troca dessas injustiças sem eco, a bela Mariquinhas esmerava-se em patentear a sua simpatia pelo ciumento. Era ela quem lhe trazia a xícara de café, nas noites em que ele vinha conversar-lhe o pai, e dispensava-o do trabalho de fuzilar fogo ao isqueiro, apresentando-lhe um cavaco esbraseado.

Nos dias de brincadeira, só estava verdadeiramente alegre quando o tinha por par; ao contrário mostrava-se aborrecida.

Mas a própria bondade de Mariquinhas era um incentivo à prevenção do seu amante. Aferia o perigo, que julgava-a correndo, pela sua própria bondade, e nas horas em que, no silêncio de sua morada, revolvia os seus anelos e as suas dúvidas, exclamava com voz colérica.

— Ela é um anjo e aquele demônio pode perdê-la.

Há uma força misteriosa e fatal, que insensivelmente atrai e combina os esforços humanos: é a afinidade dos sentimentos e das opiniões.

Contra ela não são resistência séria nem os isolamentos sistemáticos, nem os temores profundos, nem as virtudes imaculadas; uma hora soará em que, ruindo em terra as barreiras, ela se imporá invencivelmente.

Foi por essa força que as afeições timoratas dos três secretos amantes das filhas de Francisco Benedito expandiram-se um dia em plena luz, e formaram um sombrio triunvirato entre o violeiro, o feitor e o tendeiro.

Era domingo de tarde, e três a quatro meses já eram decorridos depois da brincadeira de Santo Antônio.

Em cumprimento ao dever que se havia imposto, Sebastião Pereira dirigia-se à casa de Chiquinha, mas quis primeiro chegar à venda do Viana.

Esta visita tinha por fim premunir-se de contentamento e distração para o velho Francisco Benedito, que não buscava resistir ao sabor do vinho e da aguardente.

Pouco depois da chegada de Sebastião, parava no porto uma canoa, e dela desembarcavam Manuel João, o irmão de Chiquinha e um preto.

— Olé, exclamou Sebastião ao ver Manuel João, você agora aqui é ouro sobre azul.

— Então vá já dizendo quem morreu por cá.

O violeiro abaixando a voz, e aproveitando-se da distância em que estavam os companheiros do feitor, segredou-lhe.

— É cousa só entre nós três.

— Está entendido.

Manuel João interrompeu logo a conversação de Viana com o Juca Benedito, exclamando:

— Aviem-se, rapazes; faz-se tarde e é melhor ir de dia do que de noite. Vocês têm de remar rio acima.

Uma piscadela de olho pôs de sobreaviso o Viana, que tratou de despachar com presteza os fregueses.

Um quarto de hora depois estes despediam-se levando uma encomenda do violeiro, e o Manuel João, que simulara querer ir com eles, fingiu que cedia a insistência de Sebastião e Viana, e disse aos que partiam:

— Vão, vão; estes demônios não me deixam agora, e o melhor é ficar um pouco por aqui.

Estavam sós, Sebastião Pereira, depois de acender o cigarro, convidou os dois companheiros para debaixo de uma mangueira, e começou a falar.

— Vocês me conhecem e eu lhes conheço. Aqui o Viana está pelo beiço com a Antonica e o mestre Manuel João arrasta a asa à Mariquinhas.

— Não senhor, respondeu de chofre o feitor, é menos verdade.

— Deixemo-nos de partes, seu Manuel João, os outros não são cegos.

Manuel João não replicou, e o violeiro continuou.

— Eu cá, se a Chiquinha não for minha, não há de ser de mais ninguém por mais pintado que seja.

Ao dizer estas palavras, a sua mão estava posta sobre a cintura e logo uma grande faca polida luzia fora da bainha, e Sebastião exclamava, brandindo a faca.

— Varo seja Deus, seja o diabo.

— Vocês não ignoram que o malvado do capitão tem maus fins com aquela gente; vamos, pois, acabar com isso. Se vocês ajudarem-me, ele não leva o bocado à boca; ou eu não sou eu.

— E o que havemos de fazer? perguntou Viana.

— Escutem: o Chico já há de ter percebido que nós gostamos das filhas; vamos lá hoje; eu peço a Chiquinha e vocês, se houver vaza, falam logo a ele de estucha.

— Mas nós não nos podemos casar já, resmungaram Manuel João e Viana.

— E quem foi que disse que vocês casassem? Dizer não é fazer. Eu também agora não tenho jeito; mas é um modo de atrapalhar o capitão. Cada um puxa a brasa para sua sardinha.

— Assim vá lá, disse Viana.

— Pois, eu assim não quero: não hei de enganar a moça; tudo menos isso, interveio energicamente o feitor.

— Assim mesmo pedaço de tolo, não queiras; o Manuel João tem boa boca, seu Viana; os outros comem a carne e ele rói os ossos.

— Por Nossa Senhora das Dores, vocês estão zombando. Eu arranco a língua àquele cachorro, se ele se atrever; vá ele para as profundas do inferno. Escoro-o no caminho e mando-o desta para a melhor. E sabe o que mais, o que você quiser que eu faça é só dizer.

— Está dito; está fechado; a ofensa de um é a ofensa de todos: juremos!

— Juramos!

Ao anoitecer estavam os três na casa de Francisco Benedito, que já dava freqüentes risadas, graças à chegada do seu filho, e de umas garrafas que ele trouxera de parte do Sebastião.

Os visitantes foram recebidos somente pelo velho e sua mulher, porque as meninas, desde manhã estavam na casa do compadre.

Depois das primeiras conversas, Sebastião Pereira disse ao velho que vinha a uma cousa de interesse acerca da qual queria falar-lhe, sendo ouvido somente pelos dois amigos.

— Pois venha de lá este gole; disse o velho que tinha nas mãos uma caneca; molhe-se a palavra primeiro.

Sebastião começou por fazer ver que tinha o seu pedacinho de terra, que era bom falquejador, remador e trabalhador de enxada. Nunca tinha passado misérias e ao contrário quando metia a mão no bolso tinha sempre seu vintém. Se não era rico, também não lhe faltava a graça de Deus, e a moça que se casasse com ele não ficaria de mau partido.

— Ora, eu tenho amizade a si Chiquinha, filha de vosmecê, e fazia gosto em casar com ela, se vosmecê quisesse.

O velho, depois de arregalar muito os olhos, e coçar a cabeça, respondeu vagarosamente:

— Homem, eu sei lá, isto é com vocês crianças. A rapariga pode não se arrumar e quem fica mal sou eu, e... no fim de contas, seu Sebastião, eu estou aqui de fresco, e sem fazer escândalo, perdoe que lhe diga, eu não conheço bem você.

— Pois tire indagações, seu Chico; olhe não lhe hão de dizer que eu sou desordeiro, nem ladrão, nem que tenha feito mortes.

— Eu lhe digo já, seu Sebastião, pelo que você me parece, está feito, mas sempre quero ouvir o que me diz o... uma pessoa.

Aquele uma pessoa proferido pelo velho causou um estremecimento nos três; Manuel João principalmente quase perdeu os sentidos.

O velho, porém, ora coçando a cabeça, ora esfregando as mãos desfez a meio a impressão desagradável, murmurando:

— Com que seu Sebastião quer que a gente coma doce breve?

— Sim, senhor, seu Chico, se não tiver contra mim alguma receita de gente de boca amargosa.

— Qual, não há de ser tanto assim.

Um aceno de Sebastião levou o Viana da venda a tartamudear para o Chico Benedito:

— E que diria vosmecê, seu Chico, se eu viesse nas águas de Sebastião?

— Sem escândalo, respondeu o velho com uma longa risada; dizia que a vista faz fé.

— Muito obrigado, seu Chico, eu é com sá Antonica, se vosmecê fizer gosto.

— Olé, quer ver que vocês todos três querem me depenar a casa?

E pôs-se a rir muito, sendo imitado pelos três, e em seguida levantou-se, encheu a caneca e apresentou-a aos triúnviros rústicos.

— Vá este codório à boa harmonia. Eu nada decido; mas vá à saúde.

Na sala imediata ouviram-se neste instante risadas, cochichos, e o rufe-rufe de saias engomadas.

— Oh! meninas venham falar aqui, exclamou o velho.

Ao mesmo tempo entraram na sala Mariquinhas e Antonica, enquanto o velho murmurava com bonomia:

— Andem lá, suas matreiras, velhaquetes de uma figa; aonde está a que falta, fugiu?

— Não senhor, responderam as moças ao mesmo tempo que lhe beijavam a mão; vem aí com seu capitão!

Um pigarro impertinente começou a impacientar Sebastião Pereira, e este inclinou-se na janela para escarrar, porém logo voltando-se para dentro, disse:

— Mas eu não os vejo por aqui.

— É que nós fomos à roça, respondeu Mariquinhas; eles ficaram mais atrasados colhendo limas, e nós com a família de seu capitão viemos andando. Mas eles já devem estar ai pela baixada.

— Qual o quê, quando vierem, vieram, respondeu o velho. Está em muito boas mãos.

— Lá isso é, acrescentou Sebastião inteiramente despeitado e olhando para os seus companheiros.

— Aquele compadre é um folgazão, riu o velho, que fazia uma libação à caneca; brinca com essas raparigas como se fossem todos crianças.

— E é bem de ver, rosnou Sebastião.

— Está vendo, Mariquinhas, aquele malvado tem dor de canelas; resmungou Antonica.

— Deus esteja nesta casa, exclamou fora a voz grossa de Motta Coqueiro; licença para dois.

Chiquinha entrou apressada e foi beijar a mão paterna e em seguida cumprimentar os hóspedes.

Estes de pé responderam à saudação da moça e a de Motta Coqueiro que, parado ao limiar, todo vestido de branco, arrimado com a mão esquerda a um polido manguá, e tendo na direita o chapéu-do-chile, deixava ver o seu alto porte e a cabeça ao mesmo tempo simpática e severa, ornada de cabelos e barbas grisalhas, esbatidas em faces magras, porém coradas, uma delas marcada por um sinal roxeado e longo. Por debaixo das sobrancelhas salientes as pálpebras meio cerradas coavam-lhe um olhar penetrantemente bom e por entre os bigodes grisalhos riam-lhe os lábios finos um sorriso despretensiosamente austero.

Voltando-se depois para as irmãs, entre risonha e séria, disse-lhes Chiquinha:

— Vocês fizeram da boa; vieram e deixaram-nos sozinhos.

— Moleque, chamou Motta Coqueiro, entrega as limas das moças e leva as outras para casa.

E continuou logo sorrindo:

— Está entregue; agora vou cantar noutra freguesia. Boa noite, meus senhores.

Saiu risonho e aparentemente satisfeito, mas quando estava um pouco distante da casa; repetia em voz baixa: aquele compadre não tem um pingo de juízo.

Logo que se acharam sós, exclamou Chico Benedito para as filhas:

— Então o que andam vosmecês fazendo, que me vêm hoje dois pedidos de casamento aqui; isto é modo, meninas?

As moças nada disseram, e o velho prosseguiu:

— A velhaca da Chiquinha, quem diria que gosta do Sebastião, e a sonsinha da Antonica do seu Viana?! Sua alma, sua palma. Fico ainda com a Mariquinhas e as três pequenas.

— Mas falta ainda a receita, seu Chico, resmoneou Sebastião.

— Não falta nada, gargalhou o velho que tinha esvaziado mais uma caneca. Sabem que mais? conversem pra aí com a mulher e deixem-me ir a um negocio.

Os três acompanharam o velho até a porta e aí permaneceram por algum tempo.

Enquanto a boa da velha entrou para trazer o café aos hóspedes, os três acercaram-se das moças e cada um começou a conversar com a sua predileta.

Manuel João, com a voz trêmula, dizia para Mariquinhas, que empalidecera desde que ouviu ao pai dizer o motivo da visita de Sebastião e Viana:

— Só sá Mariquinhas é que ainda não tem noivo.

— Eu não posso obrigar ninguém a querer casar comigo, e eu mesma não quero.

— Talvez, si Mariquinhas, haja quem queira e não possa.

— Boas; quem quer pode sempre.

— E se fosse um pobre feitor, sem eira nem beira.

— Eu também não sou princesa, e, trabalhando nós dois, havíamos de viver.

— E se seu pai não quisesse; se ficasse zangado com vosmecê?

— Paciência; mas eu queria sempre.

Esta ingênua revelação do amor puro de Mariquinhas quase enlouqueceu o desventurado feitor; sorria enquanto que as lágrimas lhe escorregavam pelas faces. Por sua vez Mariquinhas tinha os olhos pregados no chão e com as pontas do indicador e polegar beliscava o vestido sobre os joelhos.

Não havia dúvida, o feitor era amado, e isto era para ele a maior de todas as venturas.

— Ficou zangada comigo, pelo que eu fiz, si Antonica? murmurava Viana.

— Eu o que não quero depois é estralada; vocês voltam a cabeça da gente e depois... passe muito bem, porque os pobres não regulam.

— Não diga isto, si Antonica; o diabo não é tão feio como se pinta.

— Não digo, não: está lembrado do que me disse na brincadeira de Santo Antônio? Case e depois comece com histórias.

— Naquela noite eu estava meio tonto, minha negra; águas passadas não moem moinho.

— E... quem ouve agora o capeta!

Debruçados na janela, conversavam Sebastião e Chiquinha. O violeiro esforçava-se por convencer a moça de que devia ceder a um pedido que lhe fazia.

Tinha cousas que dizer-lhe mas não queria que o ouvissem.

— Ó Chiquinha, dizia ele; que diabo de medo é este? eu não sou bicho; e já pedi você.

— Não é por isso; é que papai pode ficar zangado; você bem sabe o gênio dele, em cismando está tudo perdido.

— Mas ele está lá com o compadre e seca-o toda a noite. Você diz que vai dormir e sai pelos fundos da casa: eu estou no cajueiro da baixada.

— Veremos...

— Eu espero.

A velha consorte de Francisco Benedito entrou trazendo duas xícaras de café, ao passo que Mariquinhas saía da sala e para logo voltava com uma outra xícara, que ofereceu a Manuel João.

— Meu pai foi cavaleiro, disse Sebastião; eu já me fazia na picada e assim aproveito.

— Tão cedo? ...

— Nem todo o dia é dia santo, e amanhã tenho serviço.

Sebastião despediu-se e após meia hora de palestra os outros retiraram-se também.

Lisonjeado com o pedido feito pelo violeiro e pelo tendeiro, dupla face da independência sonhada para as filhas no rendimento de uma vendola e na posse de um sítio, Francisco Benedito quis logo saber o acolhimento que este fato merecia de seu compadre Motta Coqueiro, que melhor conhecia os pretendentes.

O velho firmara-se no propósito de nada resolver, senão de acordo com o seu benfeitor, fosse embora prejudicado, fosse mau grado seu, obrigado a dar de mão à risonha perspectiva de felicidade, que lhe dominava o cérebro aguardentado.

— É minha obrigação, dizia ele; amparou-me e tem sido meu amigo apesar das más línguas; não houve cão nem gato que não me metesse o dente, e ele fez a todos ouvidos de mercador. Hoje, nas horas de Deus, tenho onde meter a cabeça, e com os diabos, se eu não ouvir o compadre não devo ouvir mais ninguém. Tais eram as disposições do velho agregado ao dar o clássico —ó de casa — à porta da sala de jantar da casa grande.

O bom humor de Motta Coqueiro e os modos prazenteiros de sua esposa receberam alegremente a visita em meio da família reunida em torno da mesa de jantar.

Vieram primeiro a narrativa do passeio e os elogios à prosperidade das roças do agregado, tudo isso meio exagerado pela amizade que a dona da casa dedicava às meninas do seu hóspede, que lhe respondia agradecido:

— A gente vai fazendo o que pode, sá comadre; somos só dois a trabalhar: eu que já não presto para nada e o Juca, que ainda não se pode dizer que é um homem. Na plantação e na colheita é que as raparigas e a minha velha ajudam. Mas vai-se vivendo, conforme Deus é servido.

Uma crioula pousou na mesa, em frente a Francisco Benedito, uma xícara de café. O velho despejou o café no pires, e ao levá-lo à boca, demorou um pouco o braço no ar, dizendo para Coqueiro:

— Eu queria que seu compadre e sá comadre me dessem uma palavra à parte.

— As mulheres não podem ser padres, meu compadre, e não sabem também guardar segredo.

— Mas não todas, sá comadre; a minha velha é das tais, que o que se lhe diz é como jogar num poço.

— Vamos ao caso, compadre; disse Motta Coqueiro, que se havia levantado e tomava o corredor que comunicava a sala de jantar com a de visitas.

Chegados aí e sentados, o velho referiu miudamente a visita de Manuel João, Viana e Sebastião Pereira, o pedido que esses dois últimos lhe fizeram e concluiu:

— Eu estou velho, não tenho nada de meu, não disse que sim, nem que não; fiquei assim; vosmecês o que acham?

O embaraço interceptou por algum tempo a resposta; mas afinal a senhora de Coqueiro rompeu o silêncio para expender uma evasiva:

— Eu não posso dizer nada, meu compadre, o senhor sabe que não moramos aqui; eu estou sempre na cidade, e, quando venho para o sítio, não saio de casa; portanto nada posso dizer.

— Sá comadre tem razão de não querer falar; respondeu o velho, mas seu compadre pode me dar um parecer.

— O melhor é você fazer o que entender, compadre, respondeu o interpelado.

— Não, senhor, eu preciso de saber do parecer de seu compadre. Sou novato aqui; debaixo de Deus só devo a seu compadre a casa em que estou morando e as terras em que trabalho. Quem dá o pão, dá o castigo; quem me avisa meu amigo é.

— Ouça bem, compadre, o que eu lhe vou dizer: nem o Viana, nem o Sebastião querem casar com as meninas. Eu não pretendia dizer palavra, porque não gosto de envolver-me nestas coisas; mas enfim, não quero que você tenha razões de queixa, quando se arrepender. Eu no seu caso o que faria era dizer-lhes que não me viessem em casa, e se as meninas teimassem em querê-los para maridos, só lhes abriria a porta no dia do casamento.

— Ora vejam só que biscas aquelas, disse o velho sacudindo a cabeça; e me prosaram com uma venda, com um sítio...

— É verdade que o Viana tem uma venda, mas vive com uma mulher e parece até que é casado com ela. O Sebastião tem umas terras, mas não as cultiva e não gosta de trabalhar. A vida deles é fados e namoros. Eis o que tenho a dizer; o compadre é livre, faça o que entender.

— O diabo é que eu vejo as cabeças das raparigas meio viradas para eles..., um inferno; não há nada pior do que ser pobre.

A última consideração do velho denunciava uma quebra de propósito com que entrara na casa de Coqueiro: a imagem do sítio e da venda sufocava-lhe a reflexão. Além disso tinha esvaziado alguns canecos de aguardente, e o arrastado da língua e o cuspinhar contínuo denunciavam uma anormalidade nas suas faculdades.

Motta Coqueiro, como se se tivesse arrependido, mostrava-se contrariado, e mais ainda do que ele a sua esposa, que aproveitou, para retirar-se, o ensejo que deu-lhe a longa pausa sucedida às últimas palavras de Francisco Benedito.

Logo que a senhora retirou-se, Motta Coqueiro reatou a conversa a respeito dos esponsais das filhas do seu compadre, porém, procurando desviá-la e fixá-la em outro ponto, e tanto mais decididamente quanto mais o velho mostrava-se propenso a não atender o seu conselho.

— E sem que se dê por isso, compadre, vai quase para dois anos que você está aqui conosco.

— É verdade, meu compadre, e em tão boa hora o diga, ainda não tenho uma queixa de nenhum dos donos da casa.

— Muito obrigado. O que você devia, compadre, era cuidar de fazer a sua casa. A em que você mora, está velha, e muito longe do seu trabalho.

— É verdade, meu compadre, mas as plantações têm-me atrapalhado. Agora se esses dois rapazes quiserem ajudar-me, eu, o Juca e eles sempre somos quatro e a cousa vai depressa.

Não havia dúvida; Francisco Benedito já falava dos seus genros, os dois rapazes, e contava com eles.

— Pois faz muito bem: aproveite-os para alguma coisa, disse Motta Coqueiro, levantando-se.

O velho compreendeu que eram horas de retirar-se.

Enquanto esta cena se passava na sala da casa grande, tendo por únicas testemunhas algumas cadeiras vazias, e uns aparadores de jacarandá, lá fora, no campo do sítio outra se desdobrava ao luar, no silêncio e no ermo.

O triunvirato de amantes dissolvera-se por aquela noite, mas um deles apenas, o Viana, retirara-se imediatamente para a sua morada.

Os outros podiam ser encontrados nas circunvizinhanças da casa do velho agregado.

Sebastião Pereira, conforme tratara com Chiquinha, foi esperá-la na baixada. Era um lugar apropriado para uma entrevista; os amantes ali ficavam pela própria natureza recatados aos olhares curiosos.

Uma grande entrada quase circular, coberta de grama, levantava-se do sopé ao cimo da colina. Dai um enorme cajueiro vergava todos os seus galhos sobre a entrada, cobrindo-a com uma espécie de cúpula. Um banco de pau ornava o silencioso e pouco freqüentado recinto.

Deixando a casa do velho, Sebastião Pereira tomou cautelosamente o caminho que conduzia à baixada e deitou-se no banco, cobrindo o rosto com o chapéu. A sua imobilidade, o nenhum ruído da sua respiração represa faria crer a qualquer sertanejo, que ali entrasse, não serem mentirosos os contos de almas penadas e fantasmas de que lhe falavam desde a infância.

Aos segundos sucederam os minutos, e a estes os quartos de hora, tardos como afiguram-se a quem espera. Nenhum gesto de sofreguidão foi, entretanto, feito pelo violeiro; nem ao menos puxou pelo isqueiro e o cigarro, inseparáveis companheiros dos homens do sertão. Continha-o a paciência do mal, inalterável nos seus planos.

Passada meia hora, um leve ruído de saias engomadas produziu em Sebastião o efeito de um choque elétrico; pôs-se em pé de um salto e, conchegando o chapéu à cabeça, guindou-se como um gato, pela face do escondrijo.

Quando já as mãos do violeiro tocavam o cimo da colina, a voz de Chiquinha, trêmula e fraca, disse de manso:

— Não está aqui, meu Deus, não está.

— Psit: sibilou Sebastião; e continuou com voz gutural: espera!

A moça sem dizer palavra caminhou para debaixo da copa do cajueiro.

Quem a visse ai parada, ao passo que ainda de dentro do escondrijo só haviam saído os braços e a cabeça de Sebastião, que tinha o resto do corpo pendurado, julgaria ver a presa magnetizada e imóvel diante da serpente enorme, que lhe vai dar o bote.

O violeiro conseguira sair; e caminhando apressado para Chiquinha, prendeu nos braços e beijou a face da moça que o repelia, dizendo quase a chorar.

— Me deixe, me deixe; não foi para isso que eu vim cá.

— Falou certo, sá dona; eu é que não lhe devia tratar bem.

— Por que; eu lhe fiz mal?

— Escute só! — disse o brutal amante segurando e puxando pelo braço a amedrontada Chiquinha.

— Onde é que você quer que eu vá, seu Sebastião? fale aqui mesmo.

— Não quero; podem ver-nos de lá; vamos para a baixada.

— Não quero ir; mamãe pode me procurar; papai pode chegar; as outras pedem dizer; não quero; não posso demorar-me; me deixe.

De feito, a leviana rapariga, para aceder ao convite de Sebastião, que desvairou-a com os seus versos de desafio e os repenicados da viola, tinha dito à sua mãe que se ia deitar por estar muito cansada, e não podendo iludir às suas irmãs, que foram consigo para o quarto, dissera-lhes que ia fora um instantinho falar com o noivo.

Nada objetaram estas, cuja educação não se opunha a que os noivos tivessem as maiores familiaridades. Todavia estranharam que Sebastião tivesse deixado de conversar em casa, e recomendaram à irmã que voltasse logo.

As observações de Chiquinha não produziram nenhum efeito sobre Sebastião: ele continuava a segurá-la e a puxá-la para si. Forcejando contra ele, e tentando com o braço, que tinha livre, abrir o círculo que lhe fizera a mão do amante em volta do pulso, choramingava tristemente.

— Não vou, não vou!

Segurando-a pelos dois pulsos, Sebastião trouxe-a violentamente para junto de si, e depois impeliu-a de chofre.

A moça caiu sentada na relva acompanhada na queda por uma injúria.

— Pode ir, pode ir, minha sapeca; eu já sei de tudo. Ainda há de estar cansada; tem medo que eu lhe faça o mesmo que o santinho do capitão. A moça levara a mão aos olhos, e soluçando deixara-se ficar sentada.

— Pode ir, continuou o desapiedado; ele pode sentir falta e vir procurá-la, eu sou quem já se vai.

E foi se pendurando novamente na borda do escondrijo, e deixando-se escorregar pela grama.

Como se fosse vítima de uma alucinação inopinada, a atemorizada Chiquinha deitou a correr pela encosta em direção ao escondrijo, e aí, soluçando, lançou-se nos braços do violeiro. Afluíam-lhe as desculpas.

— É mentira; é mentira; eu não. O moleque Carlos bem viu, nem seu capitão disse nada. Que falsidade, meu Deus!

— Pois então, por que você me fez ficar zangado? Olha que eu sou capaz de esfaquear um diabo por sua causa; seja seu pai, seja quem for. Que quer? eu estimo tanto você; raios me partam se assim não é; parece feitiço.

Entontecida pela revelação calorosa da paixão do seu amante, e ao mesmo tempo traspassada de susto, Chiquinha não desviava a face dos lábios, nem tentava fugir dos braços de Sebastião.

A sua voz fraca, como se tentasse não ser ouvida pela própria moça, murmurava maquinalmente desculpas para acomodar o amante, enquanto este, dando asas à sedução, inundava-a de frases namoradas.

A esta sobreexcitação, seguiu-se um profundo silêncio; depois saíram silenciosos, e caminharam para o casarão, em cuja porta trocaram-se adeuses em voz sumida.

O suspeitoso Manuel João concebeu a respeito da demora de Chiquinha e do capitão na colheita das limas a mesma idéia, que atravessou a lúbrica imaginação do violeiro e ocasionou a entrevista na baixada.

Era seu dever tirar a limpo a verdade, impunha-lho o juramento que. havia poucas horas, empenhara num pacto de solidariedade inquebrantável, e, tanto como o juramento, o próprio conceito que levedava-lhe a paixão no mais azedo ciúme.

A desconfiança, esse feio ouriço que se nos revolve interiormente, espetando-nos nas suas minadas de espinhos a alegria, a boa fé, a benevolência e a tranqüilidade, sangrava-o no mais íntimo, no mais sagrado do seu afeto.

Na conspiração horripilante, mas sem eco, célere nos movimentos devastadores, mas silenciosos, o hediondo monstro moral, com as secreções purulentas como o vômito do tísico, manchava quanto o amor podia fantasiar mais estreme, e a dedicação requintar mais esplêndido.

Onde estava um brocado superpunha um andrajo; onde clareava um fanal urdia uma emboscada; onde brilhava um raio de luar estendia um bulcão; e, em vendo vicejar uma flor, lembrava cavilosamente a das ninféias que se nutrem das águas pútridas dos brejos.

Contrastado pela suspeita, o feitor via no lhano entregar-se de Mariquinhas, não uma prova da bondade daquele coração ingênuo, mas a cilada indecorosa da mulher decaída, que planeja a reabilitação na profusão dos afagos.

Os preconceitos haviam-no por várias vezes esmagado, porque pertencia à raça mista, à raça a que traçam raias ao coração e aos afetos.

Mariquinhas devia partilhar a opinião geral e, portanto, a sua aquiescência ao amor, que lhe votara, devia ter um móvel ou muito generoso ou miseravelmente baixo.

A primeira ponta do dilema não feria a imaginação tresvairada de Manuel João; malferia-o, porém, a segunda.

— É bonita demais para um homem de cor, dizia ele, e ficava a cismar.

Um observador perspicaz, ao ouvir estas palavras, compreenderia imediatamente que na memória de Manuel João desenhava-se na suavidade do seu amorenado a pedir uma paixão selvagem, indômita, a imagem de Mariquinhas.

Parava como em êxtase, deixando adivinhar que no seu espírito coava-se o olhar macio da moça, filtrado através de uns cílios negros, sedosos; olhar de pouco brilho, despretensioso, animador — uma gota de óleo contendo um raio de luz, a derramar-se em inundação diáfana sobre um rosto oval, de linhas harmônicas, transparecendo singeleza e sinceridade.

Mariquinhas era realmente bela; arqueavam-se-lhe sob as narinas finas os lábios semelhantes às asas do tigé no sangüíneo colorido, e orlavam-lhe a testa pequena bastos cabelos negros, descendo em ondas lustrosas a envolver-lhe dois terços da estatura mediana. Seu colo igualava a curva de um arco bem talhado, de que partissem à pequena distância as extremidades pontiagudas de duas setas.

Quando nas horas de trabalho ela com as mãos aristocráticas conchegava ao corpo a saia de chita, esta compressão e a justeza do corpinho faziam lembrar os contornos de uma estátua.

O moço feitor fascinara-se desde logo pela sertaneja encantadora; e agora que o ciúme assolava-lhe as faculdades, ele, para concluir que havia uma torpeza no desapego de Mariquinhas por si própria e pelos preconceitos sociais, punha-se em paralelo com ela.

Refletia-se no seu despeito sem causa e via-se bem diferente do harmonioso conjunto da sua amante.

Seu rosto modelado pelo tipo indígena tinha a cor do jenipapo; seus olhos grandes, à flor das pálpebras orladas de sobrancelhas negras, lançavam olhares ásperos, amplos e incisivos. Por sob o cheio buço ondeavam-lhe em horas de ternura uns sorrisos atoleimados, embora através de duas linhas de dentes claros. As suas mãos eram calosas demais para ameigarem-se numa carícia, e o seu porte desenvolvido ostentava a musculatura rija e abundante do homem de trabalho.

O que tinha, pois, em si que pudesse atrair a mais linda das filhas daquele sertão?

Podia bem ser que ela só visse nele um nome de esposo, para encobrir alguma fraqueza dos quinze anos, e a falta de piedade de um fazendeiro rico.

Seria, porém, baldado esse intento, porque saberia surpreender o ardil, e desmascará-lo.

Ruminando sinistras conjeturas chegou o feitor a sua casa, depois de ter pedido na senzata vizinha um tição, com o qual acendeu o candeeiro.

Chegou para junto da mesa um mocho e assentou-se, cruzando os braços sobre os quais deitou a cabeça, na borda da mesa, e absorveu-se nos seus pensamentos.

Só se lhe ouvia de espaço a espaço, levantando a cabeça e dando uma forte punhada, exclamar:

— Não pode ser; aqui anda coisa, por força.

E recaía no silêncio e na primitiva posição.

Com um tabuleirinho, em cuja tábua viam-se um bule de lata, uma xícara e um prato com tapiocas, um molecote desempenado, de semblante alegre e meneios francos, assomou na porta do feitor, gritando:

— Oh! seu Manuel João, está aqui a ceia.

Quando acabou de falar, já o tabuleirinho estava sobre a mesa.

Manuel João levantou-se como quem acorda sobressaltado; mas em vez de assentar-se de novo à mesa, caminhou direito à porta, fechou-a a chave, e depois veio colocar-se ao pé do moleque.

— Oh! Carlos, disse ele; tu queres ganhar uns cobres?

— Se vosmecê me der, eu gosto bem.

— Estão aqui, disse o feitor, que tirara do bolso do paletó uma nota de dez tostões.

Carlos arregalou os olhos e tartamudeou sorrindo:

— Qual é a empreitada, seu Manuel João?

— Jura primeiro que não contas a ninguém o que vou te perguntar?

— Por Deus, disse o moleque, cruzando dois dedos e beijando-os.

— O amo, a ama, Os meninos e as filhas do Chico Benedito foram passear hoje de tarde...

— Sim, senhor, e eu também fui, por sinal que apanhei aquelas limas que vosmecê viu...

— E isto mesmo. O amo ficou com só Chiquinha e os outros vieram andando, não é?

— E sim, eu logo vi que havia de dar na vista.

— O quê? eles onde ficaram?...

— Não houve nada, não senhor; mas é que é feio.

— Escuta bem, Carlos, não me enganes; fala a tua verdade.

— Não houve nada, não; senhor e só Chiquinha ficaram sentados na pedra, e eu trepei na limeira. Se houvesse alguma cousa eu via tudo, que eu bem que estava assuntando.

— Nem um beijo.

— Qual o que, seu Manuel João; senhor já está velho; e ele não gosta de só Chiquinha, não senhor, que ainda agora eu ouvi lá na mesa ele estar falando com a senhora por causa do Sebastião.

— Então ele gosta de alguma?

— É de sá Mariquinhas, porque ele estava dizendo que é a mais sossegada de todas, e de mais juízo.

À revelação do moleque correspondeu uma explosão colérica do feitor; estava fulo de raiva, espumava:

— Pois olhe, ele que se divirta, aquele velho sem-vergonha; racho-o de meio a meio, faço-o voar na boca de um bacamarte, o traste. Quem o vê; se ela tem juízo, ou não, que lhe importa? Não é filha dele...

— Mas não é por mal, seu Manuel João, é porque as outras são faíscas.

— E ela é a mais tola e por isso ele vai-se chegando para ela, mas Deus o livre, eu não sou de brincadeira...

— Pode ser! ...

— Você me espie o sujeito, Carlos; qualquer cousa que veja, venha ter comigo; deixe estar que não perde o tempo.

— Deixe por minha conta!

O moleque dirigiu-se à porta, abriu-a e saiu; Manuel João sentou-se à mesa e começou a tomar café.

Carlos havia de estar chegando à casa grande, quando um outro interlocutor veio substituí-lo junto ao feitor.

Era uma crioula de dezesseis para dezessete anos, exalando sensualidade dos olhares maliciosos e através do crivo da camisa branca.

Desde que Manuel João empregara-se como feitor no sítio de Motta Coqueiro, íntimas relações foram travadas entre eles. Separados durante o dia em virtude de suas posições, ela — escrava do eito e ele — feitor, reuniam-se à noite na igualdade do amor, e ceavam juntos entre risos e carícias.

Ninguém suspeitava sequer esta aliança: a crioula morava na primeira senzala, e para entrar na casa do feitor bastava dar alguns passos.

O moleque que trazia a ceia para Manuel João, com o seu grito à porta do feitor, advertia a crioula de que eram horas de reunir-se ao seu amante. Ficava então à espreita e logo que este se retirava, fazia ela a sua entrada.

Quando o senhor não estava no sítio ainda mais fácil tornava-se a reunião. A parceira incumbida de aprontar a comida mandava pela amante o tabuleirinho da ceia do feitor.

Na noite em que nos achamos a rapariga pôs-se à espreita do moleque, segundo o hábito, e surpreendida da demora, veio pé ante pé encostar o ouvido à porta para ouvir, e de vez em quando espiava pela fechadura para ver o que se passava.

A principio foi-lhe impossível formar um sentido com as poucas palavras soltas, que excediam o diapasão do diálogo à meia voz; mas persistindo na sentinela, pôde para o fim saber ao certo do que se tratava.

Contendo o primeiro ímpeto, a crioula manteve-se no seu posto até que o moleque saiu. De um pulo, colocou-se no vão entre a sua senzala e a casa do feitor, para logo voltar à entrevista de todas as noites.

Ao entrar fechou a porta sobre si, e foi como de costume assentar-se no mesmo banco ao lado do feitor. Este, porém, recebeu-a friamente, sem levar-lhe à boca a xícara para dividir com ela o café que tomava.

— Que é isso, o que é que lhe fez a sua Carolina? perguntou ternamente a dissimulada crioula.

— Estou doente hoje, respondeu secamente o feitor.

— Se é quebranto, eu sei rezar. Eu curo-o hoje e de hoje em diante vosmecê traga no pescoço uma figuinha para livrar de mau-olhado.

— A doença que eu tenho você não cura, sorriu tristemente o feitor; é moléstia para outro doutor.

— Então já não está aqui quem falou.

Calaram-se ambos; Carolina pôs-se a beber pela xícara de Manuel João, enquanto este picava sobre a mesa o fumo e ajustava uma palha de milho para fazer o cigarro.

Enquanto bebia, a crioula fitava de soslaio o seu amante, e o seu colo, negro como as penas do anum, arfava larga e tumidamente. Rompeu por fim o silêncio:

— Sabe do que estou me lembrando, seu Manuel?

— Sim...

— Da primeira vez que vosmecê falou comigo no aceiro, quando eu passava com o barril dágua para a gente.

— E por que lembrou você isso?

— Vosmecê estava debaixo das bananeiras, tirando fogo do isqueiro; chamou-me e deu-me de presente um lenço branco. Quando isto foi, ainda não era nascido o caçula de senhor; e daí para cá vosmecê tratou-me sempre bem; ficava alegre quando me via...

A crioula enxugou duas lágrimas que lhe deslizavam pelas faces, e Manuel João, prendendo-a com o braço pela cinta, exclamou:

— De que é que você está chorando, Carolina?

— Pois não é assim; eu não lhe sujei as suas barbas e vosmecê já não faz caso de mim.

Manuel João tinha-se inclinado para Carolina e os seus lábios quase roçavam os grossos lábios da amante, quando se pôs de pé, de um salto, como se uma oculta força o houvesse repelido.

— Não estou zangado, não; exclamou contrariado, mas hoje quero estar sozinho.

As lágrimas secaram-se nos olhos de Carolina; e a dignidade da amante ergueu-se de pé e solene diante do feitor.

— Escute bem, seu Manuel João; eu não lhe estimo nem por medo nem por ganância. Quero-lhe bem, está aí tudo. Desde que lhe estimei, ninguém se pode gabar de ter visto os dentes desta negra. Não pense, não, que eu deixando vosmecê vou andar por aí. Pode perguntar ao Juca Benedito como é que eu lhe respondo, e não hei de mudar, não, ainda que o senhor passe a feitoria para o pai dele.

— O quê? o que é que você acabou de falar?

— Digo que não hei de mudar, ainda que seu Chico Benedito fique sendo feitor.

— Você está mentindo; o amo ainda não se mostrou zangado comigo: não pode despedir-me assim, sem mais nem menos.

— Todo o mundo já sabe que o senhor vai chamar seu Chico; pergunte, para ver se é mentira.

Dando este golpe certeiro no amante infiel, a crioula saiu vitoriosa, apesar das rogativas de Manuel João.

— Anda, dizia ela, lá fora; vê quem vale mais, se são as brancas ou as negras.

— Feitor! feitor! ele, o pai! exclamava de vez em quando Manuel João; não há dúvida, uma das filhas é o pago de tanta amizade.

Chegando à sua senzala a crioula conservou-se algum tempo sentada na grossa esteira do seu leito miserável, sugando de seu cachimbo negro densas fumaças opaladas.

Um caco de barro vidrado, em cujo fundo espessava-se uma camada de escuro azeite de mamona, dentre a qual partia, para a borda do caco, uma torcida de algodão embebida do óleo e acesa na extremidade, dava luz ao cubículo.

Por únicos ornatos via-se ai uma velha caixa de madeira, uma corda estendida num dos cantos do quarto, na qual penduravam-se as saias brancas engomadas e o vestido de cassa domingueiro.

Pouco acima da cabeceira do leito, pendia da parede um quadro envernizado, em cujo fundo o artista desenhou uma bela mulher, de semblante sem tristeza, mas também sem sorrisos, na calma inefável da pureza. Rosto encantador, cuja testa debruavam crespos cabelos negros que lhe desciam até os ombros; o corpo de perfeição irrepreensível, vestia-o uma túnica amarrotada em pregas caprichosas, e sotoposta a um manto azul salpicado de estrelas. Os pés pequenos pousavam sobre uma grande nuvem da alvura das camélias e amparada por ombros e cabeças de anjinhos alados. Todo o conjunto emoldurava-se numa elipse de nuvens brancas, afastadas por um clarão.

A religião tinha santificado este quadro, consentindo que se escrevesse sob ele: Nossa Senhora da Conceição.

Diante dessa mulher imaculada, Carolina como que não se atrevia a dar som aos seus pensamentos sombrios: evaporava-os silente nas baforadas de fumo.

À semelhança dos pântanos que dissimulam a existência da lama de suas bacias, mostrando a superfície azulada coberta de grandes ilhas flutuantes, virentes e tocadas de flores; a desditosa recalcava no coração os ódios vingadores, enquanto que nos olhos merejavam-lhe as lágrimas, essas tristonhas flores em que desabrocha o sofrimento das almas delicadas.

De súbito, porém, arrancou dentre dentes o cachimbo, pousou-o no chão junto da cama, levantou-se e abriu a velha caixa que lhe estava em frente.

De dentro de um grande escaninho tirou algumas peças de roupa. Eram umas toucas de lã, umas camisinhas para recém-nascidos e alguns panos de algodãozinho.

Depois de desdobrá-los entre as mãos e torná-los a dobrar, a preta veio colocar-se diante do quadro da Virgem; e as lágrimas até então contidas rolaram-lhe em fios para logo estancarem-se.

No rosto de Carolina a expressão pungente foi então substituída pela da mais sombria raiva. As roupas foram feitas em tiras, calcadas e cuspidas, e a negra amante do feitor, depois de assoprar o candeeiro, saiu apressadamente do seu domicílio sem conforto.

Cosida com a parede das senzalas seguiu até a quinta janelinha e, pondo o queixo sobre o peitoril, chamou com voz abafada:

— Oh! tia Balbina, oh! tia Balbina; faz favor de abrir.

Lá dentro soaram uns estalidos de palhas secas comprimidas; a janelinha abriu-se.

— Que é que você quer com tia Balbina, quando o galo não tarda a cantar?

— É por muita precisão, tia Balbina; deixe-me entrar.

E Carolina, apoiando-se no peitoril da janelinha, pulou por ela para dentro da senzala.

— Que é que foi; deixa acender o candeeiro.

A luz encheu o quarto, e deixou ver a interlocutora de Carolina.

Era uma preta alta, corpulenta, de olhos maus, injetados de sangue, nariz grosso e beiços túmidos.

Atava-lhe a cabeça um lenço de chita vermelha com frisos brancos, e vestia-a até a cintura uma camisa branca de algodão trançado, e daí até os tornozelos salientes uma saia da mesma fazenda.

Era cabinda e chamava-se Balbina. Havia pouco tempo que se achava no sítio entre os escravos de Motta Coqueiro, entretanto a sua autoridade sobre eles era maior do que a de seu senhor.

Ouviam-na como a um oráculo e as suas ordens eram atendidas como se fossem decretos.

Afável nas horas de bom humor, rindo umas risadas expansivas, todavia nenhum dos seus parceiros atrevia-se a requestar-lhe a reluzente frescura da sua pele de trinta e tantos anos.

O ascendente sobre os crédulos e broncos escravos do sítio foi conquistado por Balbina pelo dom especial que ela tinha de conhecer as ervas eficazes no curativo de todas as moléstias e ainda mais aquelas que tinham certas virtudes especiais, tais como amansar os senhores, apatetar os brancos, e assentar o juízo dos amantes volúveis.

Diziam que ela tinha nas suas mãos a vida e a morte de todos, e para dá-las bastava apenas um olhar ou um assopro.

No eito tinham-na por vezes visto chegar-se junto as cobras adormecidas, ou enraivecidas, e enxotá-las. Os répteis fitavam-na, agitavam as línguas e as caudas, tomavam mesmo a atitude de dar o bote, mas de chofre acovardavam-se e corriam amedrontados à voz da negra que lhes ordenava a retirada imediata.

Alguns tímidos denunciaram a tia Balbina como feiticeira, e Motta Coqueiro, depois de descobrir em poder da preta os instrumentos próprios de tal arte, para prevenir os envenenamentos possíveis, fez castigar severamente a escrava.

O castigo germinou no coração de Balbina um ódio encanecido, e ela desde então só fitava o senhor de través.

Acesa a vela, a feiticeira insistiu na pergunta:

— O que é que você quer com a tia Balbina, quando o galo não tarda a cantar.

Carolina começou a falar:

— Vosmecê sabe que eu estou pejada, mas não sabe de quem é.

Balbina, abaixando a gola da camisa, deixou ver o seu colo carnudo, onde se desenhava grosseiramente um olho aberto:

— Balbina sabe tudo, exclamou a feiticeira; casa não tem parede, gente não tem segredo, bicho não tem maldade para Balbina. Filho de você é de Manuel João; mas o pai não se importa mais com a mãe de seu filho.

O espanto avassalou a crioula, que se debulhou em lágrimas.

— Não chora, não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos brancos, Balbina foi boa para o menino. Quando o filho dos brancos estava doente, Balbina sentia como se fosse filho dela. Menino já está grande; os brancos jogam fora Balbina; põem a escrava de outro dono no meio dos escravos dos brancos. Língua má corta em Balbina, brancos dão ouvido; Balbina é surrada, como negro ladrão. Balbina sofre calada, porque maior é Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que não é filho de Balbina. Podia soprar a casa grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o sangue que correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada.

— Mas eu não quero sofrer assim, tia Balbina; não quero dar meu peito ao filho de Manuel João, basta que eu veja ele casado com aquela faísca.

— Bico! disse a feiticeira, levantando um dedo aos lábios. Você está dizendo pecado. Escuta primeiro a voz do chocalho de Balbina.

A feiticeira abriu de novo a janela e espreitou para fora, depois tornou a fechá-la cautelosamente. Tirou de um gancho de pau pendente do teto por uma corda uma cesta de taquara; pegou do candeeiro e do braço de Carolina e dirigiu-se para a repartição interior da senzala.

Colocou o candeeiro numa espécie de prateleira pregada à ombreira da porta do interior, e ordenou a Carolina que se conservasse de costas para ela.

Voltou então ao lugar em que estiveram e abriu uma caixa de onde tirou uma trouxa coberta com uma baeta vermelha, e tornou para junto da crioula.

Desdobrou então sobre o chão a baeta, e espalhou sobre ela umas figas negras, uns rolos de enxofre, uns maços de cabelos lanosos, um pequeno boneco disforme de feições gateadas e foscas, e uns ossos amarelados.

De dentro da cesta tirou um embrulho de arruda seca e um chocalho feito do esferóide de um cuité, tendo por cabo uma haste de taquara.

Depois de ter queimado um galho de arruda, e vendado com um lenço os olhos de Carolina, a preta acocorou-se e pôs-se a tanger o chocalho perto da orelha, dizendo:

— O chocalho fala que Carolina há de dar três patacas para ele e uma vela para Nossa Senhora das Dores, outra para S. Benedito e outra para S. Miguel.

— Faço, sim senhora, tia Balbina.

A feiticeira tangeu de novo o chocalho.

— O chocalho está dizendo que o filho de Carolina tem de sofrer cativeiro do mau senhor. Brancos podem surrar, podem vender o filho da sua escrava, e a escrava há de chorar e tomar ojeriza dos brancos. Antes o filho não nasça, se há de passar tantos trabalhos; antes vá para os anjos no tabuleiro com rosas e girassóis. A cobra zangada ou morde a quem a zanga, ou morde o seu corpo dela. A mãe que tem de ficar sem o filho, que é seu sangue, é como a cobra zangada.

— Sim, sim, tia Balbina.

— Escuta ainda, criança, continuou a africana, tangendo sempre o chocalho; — a coral briga com o lagarto; a cobra faz rodilha e sacode a língua de fogo; o lagarto pára, estica a cabeça chata e espera. A cobra dá o bote, o lagarto faz roda e chicotela, e quando é mordido sabe no mato a erva contra a dentada, que mata. Zambi, que está lá em cima, foi quem lhe ensinou o remédio. Carolina foi mordida no coração, Zambi lhe ensina o remédio.

De manhã, em jejum, o caldo do limão corta, a cinza do borralho come.

— Sim, sim, tia Balbina.

— Mas é pelo mau senhor, que morre o filho de Carolina, que devia ser bonito como seu pai, com seus cabelos cacheados e pele de capixaba.

Carolina pôs-se a soluçar.

— A mãe chora porque tem bom coração, mas tem também mau senhor. Se é pelo feitor não tem que sentir. O Chico, pai da que tirou o sossego de Carolina, entrou na casa dos brancos em tempo de lua nova. A semente que se planta nesta lua, morre, a madeira que se corta, racha e apodrece. A lua aparece um bocadinho e entra logo, e tudo fica escuro.

A camaradagem de Chico com a casa grande dura pouco; veio na lua nova. As filhas do agregado gostam de gente de que o macota tem queixa, e quando ele souber, briga com o agregado.

— Já sabe, já, tia Balbina, exclamou Carolina, que tinha ouvido a conversa do moleque com o feitor.

— Melhor para Carolina e para nós todos. O mau senhor disse a Fidélis que Manuel João não puxava pela gente, e que o melhor era dar a feitoria ao Chico, de quem a gente resmunga. Mas a gente não terá tal feitor, porque eles já estão rusgando. Fidélis há de chamar seu senhor para mostrar o que o agregado faz na roça dos brancos, e o Chico não terá mais feitor, porque ele é soberbo.

Balbina viveu na casa grande de seu primeiro senhor, e sabe como são os brancos. O moleque Carlos vai contar ao senhor que vem toda a noite gente de fora pousar na casa do Chico, a mucama diz à senhora o que fazem as filhas, e tudo está acabado entre o agregado e o mau senhor.

Carolina vai primeiro do que os dois junto de seu senhor, dizer que tem um filho do feitor, e Manuel João perde a feitoria e a filha de Chico volta logo as costas para ele. Carolina conta também a Manuel João que o Chico anda pedindo a feitoria, há briga entre os dois e Manuel João não volta mais à casa do pai da moça de que ele gosta. Balbina faz o resto.

— Está direito, tia Balbina; eu faço tudo.

Houve uma pausa, a feiticeira levantou-se e foi queimar outro galho de arruda. Depois revolveu a cesta e tirou de dentro dela uns búzios e uma bolsa de pano toda cosida e pendente de um cordão preso nas extremidades da bolsa, e colocou-a no pescoço de Carolina.

Acocorando-se de novo, sacudiu na mão por três vezes os búzios, atirou-os sobre a baeta, e agitou o chocalho ainda uma vez. Ergueu-se então, e pegando de um dos rolos de enxofre chegou-o à chama do candeeiro, enchendo desta forma o recinto de um cheiro nauseabundo.

Depois lançou novamente os búzios, e enrolou a baeta com os instrumentos cabalísticos, e desatou a venda dos olhos de Carolina, dizendo-lhe solenemente:

— A cobra, quando vai lavar-se e beber água no rio, lança o veneno na folha da erva que está mais perto. Pode morder agora que não tem veneno para matar. Carolina ouviu o segredo do chocalho, está nas mãos da criança perder tia Balbina. Como o carreiro bota a canga no pescoço da junta de boi, o mau senhor mandará pôr o tronco pesado nos pés da feiticeira. De madrugada na revista, o chicote tirará sangue das costas da má escrava, e Carolina ficará querida.

Mas a cobra, que perdeu o veneno, faz a rodilha junto do brejo; o sapo vem pulando e gritando e ela olhando o bicho puxa-o, puxa-o para a boca e dele tira novo veneno. Carolina não pode dizer nada do que ouviu ao chocalho; será seu o mal da tia Balbina.

Depois de afirmar muitas vezes à feiticeira que guardaria o maior segredo, a crioula saltou de novo a janela e retirou-se para a sua senzala, onde, refocilada na perspectiva da vingança, adormeceu facilmente.

O candeeiro continuou aceso na senzala de Balbina, e quem espiasse pela fresta da janela, e aplicasse atentamente o ouvido, vê-la-ia sentada, com o cachimbo negro à boca. De vez em quando, porém, ela tirava o cachimbo e pronunciava estas palavras agoureiras.

— Hum, hum, os brancos? A negra criou o menino; era a mãe preta, e eles não deram nem um canto da casa grande para ela morar. Tomaram o menino das mãos da negra e meteram nelas a enxada. Depois o chicote fez feridas nas costas da feiticeira, e o menino nem olha mais para ela. A ririo machucada morde, a escrava desprezada mata.

O canto do galo tão apregoado por Balbina fez-se ouvir afinal, e a preta que estremeceu ao ouvi-lo, deitando-se presto, apagou o candeeiro.

Ao passo que nas senzalas das duas pretas e na casa do feitor o despeito, o ciúme e o ódio coligavam-se em ameaças medonhas e planos temíveis; na casa grande desfizera-se já a passageira contrariedade motivada pela consulta do velho agregado.

Motta Coqueiro substituiu o mau humor pela piedade, e ao voltar à sala de jantar para o meio da família, conversando a respeito dos esponsais, refletia à sua senhora:

— Quem sabe se eu não teria evitado os casamentos se houvesse dado ao compadre a feitoria do sítio?

— Qual o quê, Sr. Motta, respondeu-lhe a senhora, o compadre está tão namorado como as filhas pelas cantigas de Sebastião, e além disso é necessário não esquecer o vício da bebida.

— Foi o que impediu-me e hoje se eu lhe desse tal lugar, os genros mudavam-me até o sitio com as casas e tudo.

— Agora é que é aturar o compadre; se ele sem motivo nenhum andava sempre em grande gala, quanto mais agora que tem razão para estar alegre.

— É verdade; há de ficar insuportável; o que vale é que eu já lhe disse que tratasse de fazer a sua casa.

— E será bom falar-lhe sempre; não deixá-lo dormir.

A conversa desviou-se deste ponto sendo substituída pelo das trivialidades domésticas, e algumas medidas urgentes, no entender da senhora.

Uma delas sustentada com mais calor e aferro era a de apressar-se o corte da madeira. A razão oculta do entusiasmo da senhora na sustentação desta urgência era a sua antipatia pela residência no sitio, obrigatória agora pelos interesses pecuniários da casa, muito respeitados pela senhora.

— Descanse, afirmou-lhe Motta Coqueiro, dentro em quinze dias hei de começar a carrear a madeira, e com certeza dentro em um mês poderemos mudar-nos para a cidade.

— Deus o permita; não pode haver lugar mais triste no mundo do que este sítio; parece um lugar amaldiçoado. Por minha vontade, Motta, você desfazia-se destas terras.

— E o resultado era não encontrar facilmente outras com tão boas madeiras.

— É o que não falta por ai.

Sempre que a conversa sobre tal assunto chegava a este ponto, os esposos por uma inspiração do bom senso passavam a ocupar-se de outras matérias, quando não a interrompiam de todo.

Na noite em que nos achamos a conversação teve o seu ponto final no da última frase da senhora, e a família, levantando-se da mesa, cada um de per si, foi para os seus aposentos.

Daí a pouco o sono fez silenciar toda a casa, exceto uma saleta onde o moleque Carlos, deitado de costas sobre uma esteira, posto um dos braços sob a cabeça, com a boca escancarada roncava forte e continuadamente.

Cinco dias decorreram sem que nenhum sucesso importante viesse articular-se aos que deixamos narrados. A feiticeira e a crioula pareciam ter esquecido o plano de combate traçado em palavras cabalísticas. No eito e à noite ao voltar â casa não se trocavam senão as saudações usuais, e isto mesmo friamente.

A astuta africana prevenia assim quaisquer suspeitas, que porventura pudessem gerar-se no pensamento do feitor, que todo absorvido nos seus projetos de surpreender os imaginados amores de Coqueiro e uma das filhas de Francisco Benedito, talvez a Mariquinhas, nem sequer reparara que a zelosa Carolina já não o visitava mais.

Durante todos esses dias Manuel João não se tinha encontrado com os seus companheiros e nem podia atinar com a empresa a que tinha ido o violeiro.

Também a sua preocupação especial era vigiar estreitamente os passos do amo e os das filhas de Francisco Benedito.

Como o jacaré, no tempo do choco, vai colocar-se a alguma distância, e de lá, olhos atentamente fixos, ouvidos solicitamente prestados, todos os sentidos, enfim, aguçadamente aplicados, vigia o ninho de onde há de nascer-lhe a prole, e ao menor estremecimento, ao menor ruído acode pronto como um ralo, feroz como uma pantera, decidido a atacar, e a morrer ou a matar; Manuel João, entregue à conflagração dos zelos e à guarda da sua amante, seguia os menores e mais insignificantes movimentos do seu amo e resolvido a puni-lo desapiedadamente.

Às vezes, pelas estreitas picadas da mata virgem passava tranqüilamente o fazendeiro, cortando com o facão de mato os galhos inclinados sobre o trilho. Dirigia-se ao lugar onde os seus escravos e jornaleiros trabalhavam no falquejar da madeira e na derrubada das árvores seculares.

Os seus gestos maquinais, comuns a todo o homem do sertão quando caminha, provavam que ele estava bem longe de desconfiar de uma emboscada e prevenir-se contra ela.

Entretanto, diversas vezes à beira da estrada, oculto por detrás dos trançados de cipós e das enrediças de unhas-de-gato, alguém, escondido, espreitava-o. Era o feitor; que, de espingarda engatilhada, vacilava em disparar-lhe a arma.

O transeunte desapercebido era defendido apenas por um resto de consciência, que ainda sobrevivia límpida na alma rebolcada do feitor, e que lhe aconselhava verificar primeiro a existência de causa justa para tamanha vingança.

A fria premeditação do feitor espojava-se então na hediondez dos instintos sanguinários, como o porco farto no lamaçal do chiqueiro. e como no focinho alongado e negro do animal ficam a branquear as duas longas presas curvas, no rosto do assassino intencional ficavam sempre à mostra o despeito e o ódio.

Automaticamente o emboscado deixava cair cautelosamente o cão sobre o ouvido da espingarda e afastava-se por entre o mato.

Não era porém um arrependimento o que o decidia; a reincidência provava que esta resolução era um simples adiamento da sua fixa decisão.

No sábado da semana a que nos reportamos, uma triste contrariedade veio pôr em movimento toda a família de Motta Coqueiro.

Pelas nove horas da manhã apareceu em casa, arquejando de cansaço e lavado em suor, o preto Fidélis, pedindo a toda pressa um lençol para improvisar com ele uma rede, e assim conduzir Carolina que estava caída no aceiro a estrebuchar com um ataque Dava gritos como o uivar dos cães à noite e o seu desejo era principalmente esganar se e despedaçar a roupa Esforçava se para levantar-se e em seguida cairia em cheio no chão, se dificilmente não a contivessem os parceiros, que tinham deixado o serviço para socorrê-la. Depois de uma série de movimentos bruscos, a doente ficou imóvel, inteiriçada como um defunto, mas logo crispando-lhe o rosto ininterruptas contrações, começou a prantear como se fora uma criança, e renovou os fenômenos assustadores.

A narração dos sintomas, feita pela geringonça do preto, encheu de espanto a família de Coqueiro, e este ordenou ao escravo que montasse a cavalo para que o socorro chegasse mais pronto à enferma.

Passada cerca de uma hora de ansiedade, entravam na casa grande três pretos e o feitor, dois dos quais traziam aos ombros a rede; os outros tinham vindo revezando.

Tirou-se de dentro da rede Carolina desfigurada, sem sentidos, inerte, um quase cadáver. O seu rosto tinha perdido o reluzente brunido da saúde e substituíra-o a feia cor dos panos pretos mofados. O suor borbulhava-lhe inestancável por entre a pele da testa e das grossas narinas.

A dona da casa principiou logo a ministrar os mais sérios cuidados, e os mais eficazes remédios caseiros que tinha à mão.

Andava para lá e para cá; aqui estendia um sinapismo, ali pisava no almofariz umas sementes. Gritava por uma escrava para que trouxesse a água quente para o escalda-pés, e a outra que fechasse a janela para não entrar o ar. Era uma dobadoura.

No meio da inopinada tarefa, a boa da senhora não perdera o tino administrativo de que era dotada; harmonizou logo os cuidados à enferma com os cuidados diários da casa.

Disse a Manuel João que não voltasse para o serviço antes de almoçar, porque assim poupava-se o trabalho de arrumar o seu almoço entre o dos pretos.

A um dos escravos que vieram, o preto Domingos, ordenou que esperasse um pouco para levar o cesto do almoço da gente e despachou os outros para a roça.

Graças a tanta habilidade e sangue frio, os trabalhos domésticos retomaram todos a sua marcha habitual, e logo foi aviado o preto Domingos.

Ágil e expedito, e ainda mais acossado pelo apetite, o africano chegou prontamente à roça e chamou os seus companheiros para a refeição.

Era um caráter nobre o do preto Domingos. A resignação tomava-lhe simpático o rosto chato e feio. Amadureceram-lhe os anos e até certo ponto a própria severidade do seu senhor o instinto da obediência. Tinha a fidelidade do cão, e a passividade da besta de sela. Investia contra os que atacavam a casa grande e os brancos, e resfolegava e recuava diante do abismo de perversidade dos seus parceiros, que muitas vezes tinha-se-lhe aberto diante, atraindo-o com sugestões iníquas.

Depois de tirado o eito, os escravos com as enxadas ao ombro dirigiram-se para o aceiro, onde sentaram-se, depondo os instrumentos de trabalho.

Domingos distribuiu por eles as diversas cuias, onde uns pequenos quinhões de carne-seca assada sobressaíam da alvura do pirão de farinha de mandioca.

Feito isto, o preto, honesto e discreto, afastou-se do grupo e foi sentar-se distante sobre um largo toco à sombra de uma laranjeira.

O acaso fez com que no centro do grupo ficasse a tia Balbina, que modificara os trajes em que vimo-la na sua senzala apenas em trazer hoje uma saia de zuarte.

Acompanhando com os olhos o preto que se retirava, a feiticeira provocou a hilaridade dos parceiros dizendo:

— Bem faz Domingos, foge dos maus escravos para não perder a carta de forraria.

— O nome dele está sempre na boca da senhora; exclamou Fidélis, chasqueando.

Todos começaram a comer com o sadio apetite de homens de trabalho. Alguns juntavam à refeição da casa as iguarias que prepararam de véspera, e as ofereciam fraternalmente aos outros.

— Quer um pedaço deste gambá ensopado, tia Balbina?

Peregrino, o parceiro que fez a pergunta, acompanhou com os olhos a interrogação, e exclamou em seguimento a esta:

— Ué, o que é que tia Balbina tem, gente?

Todos olharam para a feiticeira. Balbina, pousado o queixo na mão e apoiado o cotovelo no joelho, olhava distraída para o céu. A sua ração estava intacta diante de si.

Sabiam todos que semelhante posição correspondia sempre às grandes dores ou preocupações da cabinda, e por isso perguntaram em coro:

— O que é que tem, tia Balbina?

— Não é nada, crianças. Estou imaginando na minha vida.

— Qual; vosmecê tem alguma cousa.

— Para não falar mentira, estava imaginando outra cousa. Carolina está muito doente ...

— É verdade, parece cousa posta; que moléstia tão ruim! disse Fidélis.

— É verdade, respondeu o coro.

— Carolina está para morrer porque está com um filho de Manuel João, que anda agora às voltas com a filha do agregado. A crioula tem sangue de cobra, ficou tinindo quando soube. Depois lembrou que o filho há de ser escravo; nasce para o chicote e para o eito. Não quer mais que o filho abra os olhos, coitada! Ela pode ir-se embora também, se Balbina não for salvar a crioula de seu senhor.

— Antes morra, se há de ficar boa para sofrer.

— Que tem que ela sofra? Nós vamos sofrer, e ela é nossa parceira. O agregado vai ser feitor; senhor disse, Fidélis ouviu. Homem mau, seu Chico, homem mau aquele! Enche a boca de negro cativo; hoje ele não é ainda feitor, mas diz: — vou falar com o meu compadre para mandar meter o chicote no negro. A feitoria vai para seu Chico, ou Manuel João fica mais bravo para nós. De hoje em diante nenhum me passa daqui (a preta assinalava com o dedo o pescoço); tão bom como tão bom. Fidélis podia bem livrar a gente; senhor fala com ele. Era dizer: Manuel João não está mais na roça uma hora inteira; Chico Benedito furta as roças de senhor. O macota bufava, e a gente estava livre.

— Isto é que é falar certo, exclamou Peregrino, um dos pretos do grupo.

— É verdade.

— Eu sei lá; vocês depois dizem a senhor que Fidélis é que não gosta dos dois.

— Nós? ...

— Quem é que vai dizer aí? interveio tia Balbina; céu está vendo nós; onde vai quem disser? O gaio quando canta é vida para o que faz bem e morte para o que faz mal; tia Balbina entende o canto do galo. Onde vai Fidélis? Vai salvar os escravos do macota; é bem para todos. Onde vai quem falar contra Fidélis? Vai perder seus parceiros; é mal para todos.

Balbina adivinha; o céu vê; Zambi castiga. E está muito direito.

— Pois, diabos me levem! no primeiro jeito eu arrumo a cama para os dois.

Teve toda a razão a dissimulada Balbina quando considerou gravíssima a enfermidade de Carolina.

Atentando contra a vida do filho, conforme o expediente aconselhado pela feiticeira, pôs em risco a própria vida.

Dir-se-ia a revolta da natureza indignada contra a degeneração dos sentimentos da mulher, que deu de mão aos sonhos maternais, mundos róseos e brilhantes, onde branqueiam asas de arcanjos através de irradiações de amor.

A inocência condenada parecia pedir à dor as mais aguçadas puas para com elas broquear asselvajadamente o organismo enfraquecido da crioula.

Não havia abonançar-lhe o sofrimento: o dia inteiro passou-o ela debatendo-se em ânsias dolorosas bem semelhantes às da agonia derradeira.

Os remédios, como se fossem uma injeção cáustica, longe de acalmarem-lhe, exacerbavam-lhe as dores.

Era o cadáver da vingança galvanizado por padecimentos horríveis, ou melhor, pela eletricidade da dor. Ora quedava inerte, quase álgida, com a respiração imperceptível, inundada em suor viscoso; ora levantava-se sobre os punhos, com a cabeça pendente, o corpo descrevendo sobre o leito um ângulo obtuso, e, arquejante, prorrompia em gemidos agudos, compungentes.

Era o prenúncio do ataque assustador, medonho, com as contorções da serpente, e as unhadas do jaguar; com o ganido dos cães leprosos, e o ranger de dentes dos condenados eternos.

Qual fosse a moléstia ninguém estava habilitado a diagnosticar; inclinavam-se todos a uma idéia — o feitiço.

— Carolina amanheceu boa, diziam; alegre, como sempre andou, febres não eram, porque não teve os calafrios das sezões, andaço na localidade; não tinha nenhuma chaga; não era pleuris porque não se queixava de dor no peito; logo era feitiço.

Todos involuntariamente lembraram-se da tia Balbina, sem todavia atribuir-lhe maus intentos para com a crioula, que nunca foi por ela maltratada; mas ao contrário sempre querida.

— Talvez a Balbina conheça, dizia a dona da casa; o melhor é mandá-la vir, não é, Motta?

Depois de relutar, não só quanto às gerais manifestações sobre a moléstia, mas ainda quanto à vinda da Balbina, Motta Coqueiro cedeu afinal, e a feiticeira trancou-se sozinha no quarto com a doente.

Sentada à borda do leito, esperou tranqüilamente a ocasião oportuna para falar-lhe.

Ninguém que a visse aí poderia suspeitar que a feiticeira contemplava a sua obra sombria de vingança; estava serena, nada denunciava sequer um traço de remorso.

Quando lhe pareceu chegado o momento de falar, começou:

— Carolina vai sair daqui e vai contar a sua senhora porque é que a crioula está doente. Mas não diz que tomou remédio da tia Balbina; conta outra cousa.

A crioula fez com a cabeça um sinal afirmativo.

— Carolina está sofrendo, mas o pai do seu filho há de sofrer também. Tia Balbina há de vingar a crioula.

A feiticeira saiu e revelou à senhora a moléstia de Carolina: era um aborto.

Infelizmente este conhecimento nada aproveitou à tranqüilidade da família; malograram-se todas as esperanças de melhoras, e alta noite creram todos que a doente não amanheceria.

Resolveu-se então que se Carolina não morresse nessa noite, logo pela manhã a senhora acompanhá-la-ia para a cidade a fim de serem prestados os socorros médicos à crioula.

Esta inopinada mudança do sítio seria entretanto definitiva. O corte da madeira estava quase concluído e brevemente Motta Coqueiro podia deixar de residir aí. A senhora, portanto, não precisava mais de voltar para contrariar-se em residir em um lugar, com o qual antipatizava.

No dia seguinte efetuou-se a mudança, e uma canoa, vigorosamente remada por braços robustos, voava em direção a Campos.

A casa grande caiu na mais sombria tristeza; dir-se-ia que a torturavam saudades amargas ao recordar-se dos dias em que repercutiam sonoras as alegrias da família.

Alguém no entanto contrastava com esta tristeza; era Manuel João, que aplaudia-se por ter agora ocasião de vigiar de perto os passos do seu amo.

Ficando só, Motta Coqueiro passava as poucas horas de lazer na casa do compadre, mas, com grande espanto de Manuel João, nunca penetrava no interior do casarão. Assentava-se à porta ou conservava-se a cavalo enquanto entretinha-se a narrar cousas banais e ao paladar dos ouvintes.

Um dia, porém, o feitor teve ocasião de recordar-se do que lhe dissera Carolina no dia em que cortaram as relações.

— Compadre, disse Motta Coqueiro; eu vou começar amanhã o carreamento da madeira e precisava que você e seu filho ajudassem-me.

— Eu sei, compadre; mas, eu já estou velho e o Juca para que diabo serve?

— Então vocês não prestam nem para amarrar uma balsa? Saiba, comadre, a qualidade dos homens que tem.

A família riu-se muito e Motta Coqueiro continuou:

— E eu que tive tenções de chamar este meu amigo para feitor; estava bem arranjado!

— Mas isto era outra coisa e se o compadre quiser...

— Veremos; por agora quero somente que vocês se ocupem de embalsar a madeira.

A larga faca de Manuel João luziu fora da bainha; o despeito esbraseava-lhe as faculdades revoltas; não pensava, não discernia; o cérebro exalava-lhe espessas labaredas de ódio e de cólera.

Surgindo dentre uma espessa moita de pexiriqueiras, colocada perto da parede do casarão e que lhe servia de escondrijo, o feitor seguiu pé ante pé, e teria realizado os seus fins se não se desse uma circunstância feliz.

Motta Coqueiro que se conservara a cavalo, enquanto conversava com o compadre, ao dizer-lhe as últimas palavras, tinha-se feito ao largo.

O feitor, para atacá-lo, devia investir de frente; mas era bastante cobarde para não tentar semelhante cometimento.

Indignado contra si próprio e contra a falsidade que sempre defendia o seu rival imaginário, o feitor tomou o caminho da venda do Viana.

Ao chegar, o vendeiro que descobrira nas feições descompostas o tumultuar dos sentimentos do amigo, perguntou-lhe sobressaltado o que tinha havido no sitio.

— O diabo, um inferno, mil raios me partam; maldita a hora em que eu entrei para semelhante casa!

— Mas o que foi, homem, desembuche!

— Quer saber, seu Viana, eu estou aqui e estou na cadeia; não aturo desaforos; por onde anda o diabo do Sebastião?

— Espera um pouco; oh! com os diabos, você parece maluco; o Sebastião não há de tardar por aí; acomode-se

O vendeiro, hipócrita como todo um mosteiro e astuto como cinqüenta raposas; percebeu logo que a situação do triunvirato era perigosa.

Desde o domingo em que pela última vez esteve na casa de Francisco Benedito, refletindo com madureza, resolveu impedir com todas as forças o violeiro e o feitor e conservar-se em uma distância, que o preservasse de ser tido como cúmplice em algum ato reprovado dos dois.

Sabia ele já a que fora o violeiro quando os deixou no casarão; sabia mais que Sebastião ia todos os dias ao sítio e aí encontrava-se com Chiquinha, ora no porto, ora na baixada.

Conhecendo de perto o caráter de Motta Coqueiro nas suas asperezas e nas suas delicadezas, evitava o seu desagrado; era a isto levado por uma questão moral mas principalmente por uma questão econômica.

Supina imprudência seria irritá-lo e indispô-lo contra si, quando por outro lado o Chico Benedito nada valia, nem apresentava dificuldades sérias.

O vendeiro pensando em Antonica via simplesmente um breve afastamento; as circunstâncias aplainariam as dificuldades, e o borrador e as prateleiras da vendola dariam a última demão ao problema.

As palavras de Manuel João impressionaram entretanto a alma do calculista, fria como o chumbo oxidado dos pesos da sua balança enferrujada.

Tomando um copo e enchendo-o de vinho, Viana caminhou para Manuel João, e pondo-lhe um braço sobre o ombro, enquanto com o outro apresentava-lhe o copo, resmungou:

— Então com que você quer nos deitar a perder, seu homem; isto não é por força que vai, é preciso jeito. Vá lá o codório e depois vamos à fala.

— Beba você primeiro, seu Viana.

— Não senhor; venha de lá.

Manuel João bebeu, e a convite do vendeiro sentou-se com ele no balcão.

— Então com que o cabrinha está com o diabo na pele? quer pôr o mundo abaixo? interrogou Viana, que tirava de sobre o pavilhão da orelha um cigarro e levava a ele o isqueiro.

— Você está com caçoada, seu Viana, e eu hoje não estou para graça. Falemos sério, o Sebastião vem aqui, ou não vem? Se ele não vem, eu vou à casa dele.

— É verdade que o demo está tardando, respondeu Viana já impressionado; o melhor é irmos à casa do bicho. Espera, eu vou buscar os remos.

— Vamos mesmo, porque eu sou capaz de fazer uma asneira.

Passados alguns minutos, Viana fechava a porta da vendola e os dois com os remos ao ombro caminhavam em direção ao porto.

Era a hora serena do crepúsculo, hora em que as sombras invadem o céu e as consciências, em que surgem as estrelas e os salteadores dos seus escondrijos; em que o firmamento começa a inundar-se de luar; e os viajantes a mergulharem-se no temor das emboscadas; em que a poesia desdobra-se em quimeras e o crime espraia-se em torpezas.

Manuel João entrara pela pequena canoa que estava no porto, e Viana já a havia desamarrado de uma estaca, quando ouviram o prolongado oh! com que os canoeiros anunciam a sua aproximação de alguma casa conhecida.

— Ouve; é ele, disseram os dois ao mesmo tempo.

Passado algum tempo, toda a confusão que porventura pudesse haver desapareceu. A voz sonora e agradável do violeiro, repassada da suave melancolia das músicas sertanejas, ergueu estas estrofes prediletas:

Quando chega a primavera
Abre-se a árvore em flores;
Quando chega a mocidade
Veste-se o peito de amores.

Pois que amar é sorte nossa
Quero pagar meu quinhão;
Não dou ouro à minha bela
Mas lhe entrego um coração.

A proa da canoa, bordada pelas ondas espumantes que abria e levantava no rio, apareceu na curva da corrente, e ouviu-se o estalo forte da pá do remo batendo em cheio na superfície das águas.

— Olé, bradou o violeiro; o frade saiu hoje do seu convento, vem dar notícia do batizado.

— Qual, respondeu o vendeiro; está bravo como um cão danado.

Manuel João nada disse.

O canoeiro desembarcou, assoviando, e foi reunir-se aos dois.

— Então que novidades há no beco, seu Manuel João; melhor cara tenha o dia de amanhã.

— Sabe que mais, Sebastião; você veja o que faz, respondeu o feitor; eu já não posso mais; eu estouro; certo?

— Credo, isto agora é que não é do trato. Ó seu Viana; este bicho está certo?

— Não é graça, não; aqui anda cousa; vamos ao caso, Manuel João.

O vendeiro via talvez pelos ares a sua vendola e queria o mais brevemente possível saber o que devia fazer.

Foi prontamente satisfeito, porque o feitor começou a narrar a conversa que ouvira aos dois compadres, e concluiu dizendo:

— Olhe, seu Sebastião, eu saio dali, mas vou para a cadeia, porque eu tiro a vida ao patife do capitão.

Os dois guardaram silêncio durante a narração; quando o feitor concluiu, Sebastião tomou a palavra.

— Você não me faça tolice, seu Manuel João; que tem você com o Coqueiro? se ele faz roda à pequena; seja você fino. Eu cá não serei logrado; faça o que eu fiz.

— Mas o que é que você fez? deixe-se de rodeios...

O violeiro chegou-se para mais perto do feitor e segredou-lhe algumas palavras; depois, levantando a voz, disse sorrindo:

— Olha, o Viana não se amofina também; mais dia, menos dia... Você anda por aí como um palerma. Veja que não vá morrer de fome se sair da casa do Coqueiro.

Manuel João tinha os olhos em fogo, e as narinas infladas; parecia alucinado.

— Seu Viana, interrogou ele com esforço depois de uma grande pausa, é verdade o que disse Sebastião? você é capaz?

— Ora, tire o cavalo da chuva, respondeu o vendeiro, você ou é um tolo ou é um brejeiro de conta. Olhem que santinho!

O desgraçado feitor nada respondeu; talvez tivesse vergonha das palavras que devia proferir.

Até então nada podia provar que ele aderisse ao segredo soprado aos seus ouvidos pelo violeiro, tinha até nos olhos uma onda de lágrimas, as derradeiras lágrimas puras que ele choraria em sua vida, se após elas não viessem as do arrependimento.

Mas ao retirar-se compreendia-se que a sua cólera tinha asserenado e que se ele não levava uma resolução, afagava ao menos uma esperança.

Quando Manuel João distanciou-se, o vendeiro disse para o violeiro:

— Aquele demônio é bem capaz de perder-nos.

— Não pense nisto, respondeu Sebastião, aquilo é um covarde.

Ao voltar ao sítio o feitor foi recebido por uma repreensão áspera de Motta Coqueiro.

É que, saindo precipitadamente, esquecera de que dispunha de horas de trabalho, consagradas a uma séria obrigação — fazer a revista.

À noitinha os pretos vindos da roça depuseram na cozinha os feixes de lenha, e encostando os machados e as enxadas da parte de fora, postaram-se em linha no terreiro.

Depois de esperar por largo tempo, a conselho de Fidélis, levantaram a saudação usual: — louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Só então Motta Coqueiro apareceu na janela, e admirando-se de não ver Manuel João, responderam-lhe que ainda não tinha chegado em casa.

— Ele não esteve assistindo ao serviço? perguntou Coqueiro.

— Já há muito, respondeu Fidélis, que quando o senhor vem embora, seu Manuel João acompanha o senhor.

— Está bom; podem ir.

A delação era grave e a censura foi-lhe proporcional, mas nem assim alterou o bom humor em que ficou o feitor depois da consulta ao astucioso violeiro.

Sentado à soleira da porta, cousa que não fazia havia tempo, Manuel João pôs-se a tocar viola, cantarolando quadras amorosas, até que veio interrompê-lo o moleque Carlos, que lhe trazia a ceia.

— Olé, exclamou o moleque, seu Manuel João está adivinhando passarinho verde.

— Mais respeito, seu vadio, nós não somos da mesma igualha.

— Já estou na moita, meu branco, disse o moleque e já se fazia de volta, quando o feitor agarrando-o por um braço inquiriu-lhe sobre novidades.

— Tudo velho, respondeu Carlos, hoje é que eu hei de ver cousa nova.

— Boa ou ruim?

— Eu quero ver para acreditar; tia Balbina diz que viu lá na baixada, quando foi procurar uma erva para Carolina...

Pelas palavras de Sebastião, ditas em segredo, e a última resposta do Viana, o feitor suspeitou qual seria a visão da Balbina, e como não lhe conviesse que o segredo fosse aos ouvidos do amo, tratou de dissuadir o moleque.

— Balbina é uma tonta, disse ele, pode ser peta e você perde o tempo.

— Qual peta, seu Manuel, ela diz que viu uma das filhas de seu Chico entrar.

— É que ela estava passeando.

— De noite? Sozinha? Al! que seu Manuel João é o meco, atinei!...

— Mau, mau! faça ponto na graça, e já lhe digo que estas cousas não são da sua conta.

— Mas foi vosmecê quem me mandou que espiasse...

— Mas é então o senhor? interrompeu o feitor sobressaltado.

— Qual senhor, nem meio senhor; pobre do velho.

— Está bom, Carlos, você está se adiantando demais; fica o dito por não dito.

Carlos nada respondeu, mas ao sair passou a mão pela cara e depois agitou-a brandamente no ar, voltando-lhe a palma para a casa do feitor.

É o sinal de que se servem os roceiros para dizer que vão tirar desforço da ofensa que lhe foi feita.

Simples mímica da vingança, ela é muitas vezes o começo de uma complicada trança de ardis, cada qual o mais temível, até chegar muitas vezes a um desenlace fatal.

Manuel João ficou visivelmente preocupado com as palavras do moleque; tinha certeza de que à comunicação deste fato a Motta Coqueiro, que sabia da sua amizade com a família do agregado e podia dar-lhe a autoria, seguiria como conseqüência a perda da feitoria, já iminente.

Depois da ceia, começou a medir a passos lentos a sala, andando de um para outro lado, e afinal saiu cautelosamente. Rodeou as senzalas aplicando-lhes o ouvido às paredes, principalmente na em que residia Balbina.

Reinava completo silêncio, ninguém podia vê-lo nem interrogá-lo, a não serem as minadas de estrelas que tremeluziam no céu, e os vivos e rápidos meteoros que se despenhavam de vez em quando, mudas interjeições de luz, que talvez Deus enviava dos céus aos arcanos daquele espírito.

Certo de que estava só, o feitor dirigiu-se para a baixada.

Quando estava perto, deitou-se na relva e, rastejando, chegou até o cajueiro, pelo qual trepou ligeiro, tomando entre a ramagem uma posição onde não podia ser visto.

Aboletado no seu escondrijo, não tardou muito que se visse obrigado a desalojar-se. Um vulto apareceu da parte oposta e para aproximar-se da baixada serviu-se do mesmo expediente posto em execução pelo feitor. Mas em vez de entrar no ponto da entrevista, o vulto arrastara-se até uma pequena moita próxima e conservara-se deitado.

— É ele, pensou o feitor, e chamou a meia voz. ó Sebastião, ó Sebastião!

Longe de obter resposta, reparou que o vulto tentava esconder-se cada vez mais entre os arbustos.

— Que patife, resmungou o leitor, até a mim quer enganar, finório! .

À proporção que falava, o feitor deixava-se escorregar pelo cajueiro, e, na firme convicção de que era o violeiro que por gracejo buscava esconder-se, rastilhou em direção à moita.

Dentre a moita o vulto surgiu arrastando-se imperceptivelmente e quando Manuel João chegou ao lugar em que ele se achava, não o encontrou mais, nem pôde descobri-lo quer no escondrijo, quer ao longe no campo.

A natureza supersticiosa do feitor acordou-se então em sobressalto, porquanto entendia ele que era impossível a quem estivesse oculto na moita desaparecer ante seus olhos.

Demais o ar há pouco inodoro impregnava-se agora de um intenso cheiro de arruda, a planta predileta do demônio.

Assoviando baixinho, para dissimular o susto, o feitor subiu a encosta da colina e tomou o caminho que costeava os fundos da casaria.

De espaço a espaço olhava para trás, impressionado com o som dos próprios passos, e por fim trocou o trilho pelo gramal, que lhe abafava o ruído do caminhar.

Só cobrou ânimo quando chegou ao casarão em que morava o Chico Benedito.

Encostando-se à parede, tirou do isqueiro e pôs-se a ferir fogo, e, uma vez aceso o cigarro, foi apalpar a porta dos fundos e depois a de uma janela, que olhava para a banda da baixada.

Com grande espanto seu, sentiu que a janela cedia ao leve impulso que lhe imprimira, e abria-se com o fino guincho das dobradiças sem óleo.

O feitor estremeceu como se o percorresse um calafrio. O que não se pode dizer é se ele atemorizara-se ou se relutava contra algum desejo de súbito incendido.

A qualidade do ofício que tinha no sítio impunha-lhe até como dever esse percurso no turno em volta da casaria, e o amo que saísse fora e o encontrasse ali, não podia censurá-lo, antes teria motivo para elogios.

A janela aberta explicava-se facilmente; para isto bastava dizer a verdade, e o resultado seria uma profusão de agradecimentos.

Mas nem por isso a posição do feitor era menos embaraçosa. O que havia de fazer? acordar a família? prender a janela por fora?

A notícia, dada a Francisco Benedito, seria motivo para uma explosão tremenda contra as filhas; subir ao peitoril para daí puxar a porta da janela e prendê-la, era demasiado arriscado.

Se passasse alguém e encontrasse-o em tal posição, não atribuiria por certo a uma idéia nobre o que visse, e a difamação corresponderia à expulsão do sítio.

O feitor recuou involuntariamente, mas como se obedecesse a uma força mágica de atração veio novamente colocar-se junto à janela.

Aí conservou-se a princípio em uma imobilidade de montanha, contendo a respiração, para depois exalá-la numa onda. Era a estátua da voluptuosidade profanando com o seu hálito o santuário do pudor.

O cicio do resfolegar das moças, que dormiam no quarto, derramava-se no ambiente numa cadência mágica, e, se pode dizer adesiva.

A mão aveludada e macia que se esmera numa carícia, o olhar meigo que se enlanguece numa súplica, ou se abandona num consentimento, o lábio que se entrega morno de amor, são fontes de delírios indizíveis, de sonhos inenarráveis. O respirar da mulher amada, ouvido pelo amante, fala primeiro à imaginação, penetra-o suavemente de uma sensação que tem alguma cousa de angélica e ao mesmo tempo de infernal. Como um condensador elétrico atrai e repele; é ao mesmo tempo um incentivo à afoiteza e um anteparo à resolução. Faz pensar ao mesmo tempo na profanação e no cavalheirismo, e envolve o espírito em uma rede incômoda onde se misturam, matizados pelo mesmo colorido, fios que nos guiariam ao crime, a outros que nos levam até a abnegação.

É que se imagina que o hálito exalado vem impregnado dos anseios do coração amado, das imagens que lhe povoam o cérebro, que desejamos se estreite para tudo mais que não seja o pensamento do nosso amor; e esse imaginar sobreexcita-nos o egoísmo, que conta com o perdão e atreve-se por ele, ao mesmo tempo que a consciência levanta-se tentando combatê-lo e vencê-lo.

A pouco e pouco o feitor foi movendo-se, a princípio tomou a posição de quem escuta, mas logo desejou mais do que ouvir. Colocou a cabeça sobre o peitoril e pôs-se a olhar.

A tíbia claridade da noite deixava apenas perceber a alvura dos lençóis aderidos às curvas formadas pelos corpos das adormecidas, mas a fantasia, esse clarão indiscreto que inunda os mais recônditos arcanos, esta divisou talvez mais, muito mais.

Gradativamente erguendo-se o feitor chegou a colocar até meio corpo dentro da janela, e a firmar-se nos pulsos, para realizar o salto dentro do quarto, mas o estalar das articulações obrigou-o a descer sobressaltado, e a recuar de novo.

Arrastou-o, porém, a vertigem do crime, e resoluto voltou ao lugar de onde saíra.

Apoiando-se então afoitamente sobre os punhos e erguendo-se vagarosamente, sentou-se no peitoril. Então levantou jeitosamente as pernas para passá-las pela janela. Mas a extrema cautela não pôde prevenir um desastre; as pernas bateram na porta da janela e esta foi, guinchando, esbarrar na parede. O miserável escalador conteve-se em meio do salto e atirou-se para fora precipitadamente.

Uma palavra, um grito podia perdê-lo aos olhos de Motta Coqueiro e este, se sabia relevar com brandura, sabia também punir com severidade.

Levantando-se de pronto, o feitor deitou a correr como se fora perseguido.

Entretanto só o perseguia a consciência da infâmia que tentou levar a efeito.

Meio acordadas pelo barulho, as moças apenas revolveram-se nos leitos, voltaram-se e continuaram a dormir.

Na carreira que levava, o feitor costeou sem tropeço o casarão e a casa grande, mas, ao sair do vão entre esta e a casa em que residia, foi obrigado a deter-se.

A luz que saía de uma das senzalas, cuja porta estava aberta, deixava ver um vulto de mulher.

O cansaço embargou por algum tempo a voz do corredor; demais, falar era no mesmo instante dar lugar a uma suspeita contra si, caso alguém da família de Chico Benedito houvesse acordado ao barulho que fizera na escalada.

Por outro lado a autoridade que exercia no sítio obrigava-o a falar, sob pena de ver perdida a sua força moral.

Depois de descansar um pouco, Manuel João caminhou ainda arquejante até à porta da senzala, e dissimulando o espanto com uma admiração, fingidamente benévola, perguntou:

— O que é que você faz aí, tia Balbina?

— A negra perdeu o sono, veio sentar na soleira da porta, para ver o céu de Deus.

— Mas por que é que você perdeu o sono? não trabalhou hoje, não é? amanhã há de ser dobrada a doze.

— A negra veio cansada, sim, e foi para a sua cama dormir. Mas o canto da coruja veio com seu agoiro tirar o sono de Balbina. A lembrança de Carolina, que foi quase morta parar nas mãos do doutor, veio apertar o coração da negra. A pobre da crioula devia ter um filho bonito, e o filho vai morrer também. Balbina, que sabe, tem pena de mãe e de filho, e a negra chorou e não pôde dormir.

— Está bom, tia Balbina; veja se vai dormir.

No timbre da voz de Manuel João traía-se uma profunda angústia; era um soluço do remorso articulado no tom da bonomia.

Balbina, porém, não apiedou-se do sofrimento que percebeu e replicou-lhe pela ferocidade de uma ironia cruel:

— Vosmecê pode dormir, porque nada tem com a crioula, nem com o filho dela; Balbina, não; ela estima Carolina como se fosse sua mãe.

Manuel João calou-se e seguiu para a sua morada. Quando a luz do candeeiro deixou verem-se-lhe as feições, havia nelas o cunho da extenuação e do sofrimento.

Os sucessos da noite enchiam-no de um pânico supersticioso; vigiava-se como se julgasse seguido e não ousava apagar o candeeiro.

Num contínuo vaivém, o desgraçado ora apertava a cabeça entre as mãos, ora segurava a larga faca polida, que lhe pendia da cintura, e brandia-a.

Adivinhava-se que aquele espírito nutava entre o suicídio e o remorso.

Num acesso de fúria o feitor, com os olhos injetados de sangue, os lábios e as mãos trêmulos, segurou, entretanto, resolutamente da faca, que parecia fasciná-lo.

Olhou para o teto e em seguida levantou o braço tendo a ponta da faca voltada contra o peito; mas o instrumento assassino caiu-lhe da mão e o desgraçado caiu sobre um mocho, colocado junto à mesa, e escondeu a cabeça entre os braços.

Entre o silêncio gemeram os pios agoureiros da coruja.

Sobre tamanha angústia a noite passou descuidosa, como a criança que brinca junto de um leito de moribundo. É que a natureza é surda e cega para a pequenez humana: carregada de sombras ou inundada de luz, a vida do soberano dos seres criados não desvia uma linha a prescrita ordem da criação.

Para recompensar-nos ou punir-nos só nos resta a serenidade do bem ou as torturas do mal que praticamos.

O céu ou o inferno edificamo-los nós mesmos diariamente a jorros de honesto heroísmo ou a golpes de infame covardia: para o primeiro a consciência, tranqüila, nebulosa, cria as constelações da paz e da virtude; para o segundo espessa-nos a memória as trevas relampeantes do remorso.

Ao romper do dia ninguém poderia dizer quão amargurosas tinham sido as horas da noite para o contraditório caráter do feitor.

Despertado ao torpor, que o avassalara, pelo barulho dos escravos, Manuel João acompanhou-os até o terreiro com aparente bom humor, levando o seu recalcar de sofrimentos ao ponto de sorrir benevolamente à repetição da censura, que na véspera lhe havia sido feita pelo amo.

Este ordenou-lhe que no mesmo instante desse providências para começar o carreto das madeiras, a fim de serem embalsadas por Francisco Benedito, seu filho e outros empregados que mais tarde contrataria.

Ao concluir a ordem, Motta Coqueiro, misturando a aspereza à longanimidade, disse para o feitor:

— Mas veja bem, Sr. Manuel João, é preciso não perder tempo; não faça como ontem.

— Um dia não são dias, respondeu-lhe Manuel João, e meu amo o verá.

Desde esta hora a gente do sítio pôs-se em atividade e quando o sol a pino elevava intensamente a temperatura do ambiente, os bois já não eram vistos, ruminando tranqüilamente à sombra das árvores anosas; ao contrário,

com os músculos distendidos, as grandes e roxas línguas pendentes, as grossas ventas desmesuradamente abertas, caminhavam a passo lento e regulado, arrastando após si imensas zorras, que sulcavam o campo ao peso de enormes toras falquejadas.

Na casa de Francisco Benedito o dia correu através de comentários acerca da janela aberta.

A maioria opinava por uma explicação muito natural aos espíritos educados na mais grosseira superstição.

— Isto, dizia a velha, há de ser aviso de algum conhecido que morreu ou não tarda muito a morrer.

Chiquinha, porém, conservou-se impressionada desde o amanhecer, e sendo naturalmente risonha, não tivera uma expansão durante o dia.

— É muito medrosa esta Chiquinha, diziam-lhe as irmãs, ficou com medo do tutu.

Nem o gracejo, nem os carinhos das irmãs conseguiram dissipar a tristeza da moça que, no isolamento, chegava até as lágrimas.

Numa das ocasiões em que achava-se só, Chiquinha depois de absorver-se em prolongada meditação, ao enxugar as lágrimas que lhe borbulhavam, exclamou resolutamente:

— Não quero mais enganar os meus; vou acabar com isto.

No dia seguinte devia começar a executar-se o contrato feito entre Motta Coqueiro e seu compadre, para o embalsamento da madeira, e o fazendeiro foi portanto lembrá-lo ao agregado.

— Amanhã não me falte, está ouvindo, compadre? eu tenho pressa do trabalho.

— O compadre está desejoso de matar saudades, mas olhe que não há tanto tempo assim que ficou sem a comadre.

— É isto, mas também outras razões, e eu quando for agora para Campos não torno cá tão cedo.

A família de Francisco Benedito, que assistia à conversa, interveio então para mostrar-se penalizada com a nova. Antonica levou, porém, a demonstração de pesar a tal exagero, que não passou despercebido a Motta Coqueiro.

Conhecedor dos seus agregados e do comum dos roceiros nas mesmas condições, Motta Coqueiro, reatando a conversa, dirigiu-a de modo que pusesse bem patente as suas intenções.

— Este trabalho que faz-me grande conta, disse ele, é também um adjutório que o compadre tem para fazer a sua casa. Eu vou-me embora, e o compadre bem sabe o que são negros; em eu voltando as costas pintam a manta por aqui.

— Lembra muito bem, compadre, eu tenho de ir hoje ao Viana e lá falarei com ele sobre o negócio.

Depois do jantar Francisco Benedito disse a sua mulher que ia à venda buscar provisões.

— Vamos agora para o serviço do compadre, e ele é amo com quem não se brinca; começada a obra não há arredar pé.

Pouco depois da saída do pai, Antonica pediu a sua mãe que a deixasse ir até a casa grande falar com a Isabel cozinheira, que lhe ficara de dar uma camisa, para fazer-lhe por ela uma gola de crivo.

— Eu quero ver se mando vir pela canoa um vestido para o Ano Bom, e quero segurar estes cobres, mamãe.

A velha mãe não opôs obstáculo ao pedido da filha.

Motta Coqueiro estava sentado na sala de jantar da casa grande, quando Antonica passou tão apressada como se não desejasse ser vista.

— Então vai fugida, perguntou ele; parece um pé-de-vento.

— Vim falar com a Isabel.

— Então não perca tempo; faz-se noite e por aí andam lobisomens.

— Que me importa, respondeu a moça; é cousa de que eu não tenho medo.

Antonica passou pelo fazendeiro e entrou pela primeira porta. Depois de algum tempo, quando talvez Motta Coqueiro já não pensasse nela, a moça apareceu na porta do corredor; e disse com voz suavemente modulada:

— Isabel foi buscar uma camisa para servir de molde à que ela quer que eu faça.

Motta Coqueiro, que estremecera ao ouvir as palavras de Antonica, voltou-se entretanto, disfarçando a comoção, exclamou com intimidade:

— Ah! você faz camisas para vender; eu hei de lhe mandar pano para você fazer-me também uma de peito bordado.

— Ora, seu capitão tem muito quem faça, não precisa de uma matuta feia.

— Não pregue mentiras que é o que é feio.

— Então eu não sou feia? E como é que ninguém gosta de mim?

— Ai! que você é uma grande mentirosa, Sra. Antonica. O seu pai já disse-me as cavalarias altas que lá vão por casa com o... o... Para que está ficando vermelha; levante os olhos, deixe o lenço sossegado... Ah! sonsinha.

Antonica experimentou, de feito, uma sensível mudança quando Motta Coqueiro revelou-lhe que sabia de seus esponsais com o vendeiro.

Com os olhos baixos, as faces em brasas, e as mãos a enrolarem as pontas do lenço, que lhe cingia o pescoço, a moça estremecia como se fora presa de renitentes calafrios.

Não querendo aumentar a perturbação de Antonica, o fazendeiro calou-se. Entre eles estendeu-se o silêncio elétrico que precede as grandes explosões do coração, como o relâmpago precede o fulminar do raio.

Juntava-se a este silêncio a solidão e melancolia do crepúsculo a cercarem esse encontro inesperado.

Como se copiasse o palpitar contido daqueles corações, um velho relógio de parede movia a pêndula, batendo compassadamente.

Antonica foi a primeira a romper o silêncio, e, dando à voz a brandura da pelúcia, ponderou:

— Mas se o seu capitão quiser eu não me caso.

— Eu, filha? Eu nada tenho com isto.

— Nada?! perguntou ela admirada.

Mas a compreensão de Motta Coqueiro não iluminou-se apesar de ouvir esta dolorosa interrogação, em que a moça parecia haver encarnado a alma inteira.

Nesta simplíssima palavra encerrava-se toda uma história de padecimentos indescritíveis, e expandia-se a confissão queixosa de um segredo, que ninguém jamais percebera, guardado pela mais refletida precaução, calculado hora a hora para coroar-se com a vitória.

Entretanto uma desilusão amarga, fria e acerbamente repreensiva vinha malograr todo o trabalho de longo tempo, e esvaecer a esperança que morosamente fecundara-se, e, crescendo dia a dia, olhava como certa a realidade.

Durante todo esse padecer o coração de Antonica, fugindo de exibir-se à luz, só uma vez não pôde conter-se e deu forma aos seus sentimentos.

Foi na noite festiva de Santo Antônio quando o violeiro pronunciou desatenciosamente o nome de Motta Coqueiro.

Nesta mesma ocasião, porém, mascarou com a gratidão o seu amor, e teve daí em diante força para não permitir nunca a mais leve franqueza a sua paixão, que para satisfazer-se não mediria conseqüência, não obstante procurar esmagar-se de encontro a um casamento de conveniência.

Para dissuadir-se e esquecer-se, aproveitava a ausência de Motta Coqueiro, as quebras temporárias do magnetismo do seu olhar, para dar ouvidos e provocar os galanteios de outrem.

Assim era que tinha animado os desejos de Viana, saindo-lhe ao encontro com uma lisonja, e favoneando-lhe a esperança com um medido abandono.

Mas esta resolução inconsistente e aérea desaparecia logo, e a moça recaía no tédio e na abstração.

Era tão zelosa do seu ideal, que percebia ao longe a mais imperceptível sombra que se dirigisse para ele; e só ela interpretou quanto havia de travoroso na ironia do violeiro, apreciando a demora de Chiquinha e do capitão.

Naquela alma tão trabalhada, e que de repente viu-se forçada a quebrar o sigilo que se impusera, o despeito chegou até a alucinação.

A princípio quedou imóvel com a cabeça encostada à ombreira da porta, mas em seguida caminhou para Motta Coqueiro.

Santificava-lhe o desalinho das feições a solenidade da tristeza e recatava-lhe a desenvoltura da frase a eloqüência da dor.

— Então, disse ela, não se importa que eu me case com outro; não vê que eu não quero, que eu não serei feliz? Não tem nada para me dizer; nada? nada?

Motta Coqueiro levantou-se estupefato; esta cena era tão inesperada que ele temeu que estivesse diante de uma louca, e só pôde dizer a Antonica:

— Pois se você tem tanta aversão a este casamento não ceda, minha filha; deixe estar que eu falarei com seu pai e hei de protegê-la.

Ao dizer as últimas palavras um dos braços do fazendeiro tinha cingido a moça que soluçava.

Antonica deixou pender a cabeça sobre o peito de Motta Coqueiro, e levantando para ele os grandes olhos negros, murmurou:

— Sim, sim, não deixe; eu lhe juro, não gosto dele.

— Descanse, filha, descanse, seu pai não há de obrigá-la; você há de casar com quem quiser.

— Se seu capitão soubesse, continuou Antonica, as dores que eu tenho passado, como tenho escondido de todos o que eu sofro! Ninguém pode desconfiar apenas. Eu tinha medo de lhe dizer; vosmecê me estima só como a uma criança, e não vê...

— O que é que eu não vejo, Antonica...

Como uma fera, que, sendo desapiedadamente fustigada, avança contra o agressor, mas é contida no ímpeto pelos ferros da jaula; assim enraivecida, Antonica, levantando os punhos cerrados e rangendo os dentes, fitou os olhos esgazeados na face pálida de Coqueiro, que recuara instintivamente.

A moça quis falar, mas não pôde; tentou avançar, e caiu arquejante e lívida.

Entre o susto e a piedade, o circunspecto fazendeiro tomou-a nos braços, e os lábios pousaram na fronte descorada de Antonica.

Depois conduziu-a para um canapé que estava próximo, e deitou-a, pousando-lhe a fronte sobre os seus joelhos. Era um pai velando uma filha doente.

— Não tem culpa do que faz, murmurou Coqueiro, depois de contemplá-la longamente; é a inexperiência que a impele.

— É a ingratidão que me mata, respondeu Antonica, e, levantando-se de chofre, saiu sem lançar sequer um olhar ao seu honrado guardador.

Apenas Antonica saiu, uma voz vinda do corredor que desembocava na sala perguntou humildemente:

— Senhor, quer que acenda o candeeiro?

— Deixa-me com mil demônios, patife; ninguém te chamou cá, respondeu Coqueiro.

A extemporânea pergunta, que dizia claramente que alguém tinha presenciado pelo menos o final da cena que procuramos descrever, era feita pelo malicioso Carlos.

O diabrete negro tinha visto Antonica entrar na casa grande e veio disfarçadamente colocar-se, a princípio, numa saleta próxima à sala de jantar, e em seguida pôde esconder-se por detrás da porta, que separava esta última sala do corredor, e daí espreitou quanto se passava.

A curiosidade guiara-lhe os passos e ele regozijou-se interiormente, certo de que a narração do que vira lhe reconquistaria a familiaridade rendosa do feitor.

— Moleque, gritou Coqueiro, depois de algum tempo de silêncio.

O moleque com os braços cruzados sobre o peito veio postar-se diante dele.

— Ouve bem, continuou o senhor, só vosmecê entrou aqui a esta hora; se uma palavra só, das que se disseram aqui, for sabida, eu mando-te surrar e atiro-te para a enxada; não serás mais meu pajem.

Carlos afastou-se silencioso.

Antonica entrou em casa fingindo-se extremamente contrariada com a escrava a quem acusava de tê-la feito esperar por muito tempo e finalmente adiar para o dia seguinte a solução do negócio.

O ardil produziu o desejado efeito, porque ninguém reparou na desfiguração que lhe causara a violência das paixões eruptas durante a malfadada entrevista.

A fortuna, que ainda havia pouco lhe fora tão adversa, protegia-a agora milagrosamente, proporcionando-lhe meios de esconder o seu sofrimento.

Chiquinha, dizendo-se indisposta, retirou-se para o quarto; Mariquinhas fora para o interior da casa preparar o trem para fazer o café para o seu pai, quando voltasse; o irmão era o companheiro obrigado do velho; e a religiosa mãe de Antonica, assentada a cochilar numa banquinha de costura, quitava-se com a Virgem, de quem era devota, desfiando em o seu louvor o rosário de grandes contas negras.

Para poder dar curso às lágrimas, que não se continham, a moça sentou-se a coser junto à velha mesa da sala.

Seriam oito horas da noite quando Francisco Benedito, empurrando estouvadamente a porta, entrou em casa, gritando com voz arrastada:

— Oh com seiscentos: já dormem por aqui, suas malandras?

Antonica e Mariquinhas, deixando os seus trabalhos, vieram beijar a mão ao pai, e a velha resmungou lá no seu canto:

— Ave Maria, que modos estes, seu Chico.

— A água é que já estava lá dentro ressonando de tanto ferver; ronca como peão dormindo, acrescentou Mariquinhas.

— Bico, sua poeta; não seja respondona; eu quando falo é porque sei; onde está Chiquinha?

— Está doente, papai.

— Diga-lhe que o Sebastião esteve comigo na venda e quer os enxovais prontos para o Natal, senão vai tudo raso.

As moças afastaram-se e Chico Benedito foi atirar-se sobre um mocho como um corpo inerte.

O abuso das bebidas alcoólicas tinha-o posto no lastimoso estado de não poder perfilar-se, e a língua trôpega mal podia prestar-se à fala, que era justamente o sestro do agregado, quando se embriagava.

— Oh! senhora, exclamou ele para sua mulher, isto por aqui não me está cheirando bem. Ainda agora o Viana pregou-me lá um sermão de quaresma por causa da Antonica, e disse-me que amanhã quer fechar o negócio; ou casa ou não casa!

A velha nada respondeu; continuava pachorrentamente a rolar entre os dedos as contas do seu rosário.

— Oh! rapariga? bradou Francisco Benedito, deixa lá esta costura e vem para o pé de mim.

Antonica obedeceu e colocou-se junto ao pai que, segurando-lhe das mãos, continuou:

— Olha bem para teu pai; amanhã há de vir cá o Viana, você não se ponha com piegas; trate-me bem ao rapaz, senão ponho-te pela porta fora, porque não estou para desaforos. Fica entendido; ponho-te os quartos na rua. Pode ir...

Estas últimas palavras foram acompanhadas por um safanão brutal e Antonica silenciosa voltou para a sua costura.

— O que foi? perguntou lá dentro a boa Mariquinhas ao seu irmão.

— Ora o que havia de ser, histórias do casamento. Papai falou com o Sebastião e o Viana para ajudarem a fazer a casa e Sebastião disse que sim, contanto que pelo Natal ele havia de estar com Chiquinha em seu poder, e o Viana fez uma cama de Antonica.

— Veja só este papai; então Antonica é que há de ir ver seu Viana lá na venda.

— Eu não sei, o que eu ouvi foi o Viana dizer que papai já deve na venda vinte mil réis de mantimentos e que, se Antonica não tem de ser dele, quer o seu dinheiro, porque não está para trabalhar para o bispo.

— Esse desavergonhado; e tem uma carinha de santo; eu se fosse papai não queria mais que ele casasse com a mana.

— Ainda você não sabe tudo; ele disse que, se Antonica não quiser casar com ele, haja o que houver, ele há de mandar citar papai e fazer penhora nas benfeitorias; do céu venha o remédio.

Mariquinhas, depois de ter servido a seu irmão, foi à sala levar o café a seu pai, que continuava a repreender severamente a mísera Antonica.

Então pôde confirmar a exatidão das palavras de seu irmão, porque ouviu a Francisco Benedito esta frase expressiva:

— E sabe o que mais, minha malandra, lá está uma conta de vinte mil réis, que vocês comeram; eu não tenho dinheiro agora; o que vou receber do compadre é para a casa; senão quiser casar com o Viana, você tem um remédio, pague-lhe os vinte mil réis.

— Vão para dentro, meninas! gritou a velha mãe, ao passo que tomava a xícara das mãos de Mariquinhas. Você também lembre-se que tem de trabalhar amanhã, seu Chico, ou eu mando chamar o compadre.

Depois de rogar inúmeras pragas, e romper nas mais torpes obscenidades, Francisco Benedito caminhou cambaleando para o seu quarto, e enfim a casa caiu em absoluto silêncio, à exceção do quarto em que dormiam as moças.

Aí ouviam-se soluços abafados, mas perenes; era a desditosa Antonica, que encostada ao braço da marquesa pranteava inconsolavelmente.

De manhã, ao levantarem-se, suas irmãs encontraram-na no mesmo lugar; dormindo o sono da extenuação.

Apesar do cuidado das moças para não acordarem-na, Antonica estava de pé dentro em pouco.

Cobria-lhe o rosto uma palidez mortal, mas os seus olhos não tinham lágrimas, nem uma queixa sequer escapava-lhe dos lábios.

Pelas dez horas da manhã só Antonica e sua mãe estavam em casa; o pai e os irmãos tinham saído todos para o porto; Chiquinha e Mariquinhas para lavar a roupa, Francisco Benedito e seu filho para a empreitada do embalsamento da madeira.

Antonica, que de vez em quando ia espiar à janela, viu no campo o sisudo fazendeiro, que vinha a cavalo, em direção à casa. Após ele corria o moleque Carlos, e caminhavam a passo os escravos, tocando os bois ajoujados.

Depois de amarrar o cavalo, do qual o senhor tinha apeado no terreiro, Carlos correu até o casarão e comunicou à Antonica que seu pai pedia para que lhe mandassem o almoço no porto.

Sob o sol ardente, a moça, com um cestinho à cabeça e um longo e fino caniço deitado sobre ele, atravessou o campo em direção ao porto, onde assentado à sombra de uma enorme figueira brava esperavam-na o pai e os irmãos.

Com um sorriso ela repreendeu as irmãs, lembrando-lhes que bem podiam ter ido almoçar em casa, para não a obrigarem a trazer tanto peso.

À proporção que falava, Antonica assentava sobre a grama os pratos que tirava do cestinho, e afinal, segurando no caniço, pôs-se a desenrolar-lhe a linha e a experimentar-lhe a estrova e o anzol.

— Eu como já almocei, disse Antonica, vou pescar um bocadinho.

— Eu logo vi que você falava de barriga cheia, interveio o irmão.

A moça foi assentar-se à margem do rio em frente a um lugar onde as águas negras e morosas remanseavam, abrindo em rodomoinho silenciosos sorvedoiros.

Estava a pouca distância dos seus, que em grupo riam e conversavam, ora menoscabando, ora elogiando a refeição e o aparelho.

— Como estão bem lavados os pratos!

— E as facas como estão amoladas; parecem navalhas.

— Este quitute foi temperado por Antonica.

— Vocês assim espantam-me os peixes, gritou Antonica.

— É gosto, observou Mariquinhas, não façam barulho que eu quero assar no dedo a pescaria.

— Pois, sim senhores; de criada vai o Viana bem arranjado; é papa fina.

Esta consideração, formulada por Francisco Benedito, foi recebida com uma longa risada dos filhos, que assim demonstravam aprovar o gracejo paterno. Quem estivesse ao pé de Antonica, veria, porém, que ela bem longe de acompanhar o acolhimento jovial ao gracejo, impressionara-se dolorosamente com ele.

Não sorriu mais os seus tardos sorrisos e a palidez como que se lhe aumentou nas faces.

Os olhos amortecidos e avermelhados prenderam-se-lhe como que fascinados na superfície da corrente, e, apesar das amigáveis provocações que lhe eram dirigidas, nada respondia.

A linha, cujo anzol boiava à flor das águas, deixava evidente que Antonica não prestava a mínima atenção à pesca. Outro cuidado a impressionava, e este brotou-lhe no soluçado de um canto:

— Moço fidalgo da corte
Se encantou de D. Branca;
A moça foge aos amores,
O seu pranto não se estanca.

Já tem véu, já tem grinalda,
Tem sapatos de cetim,
Da cor que tem a nebrina
E as asas do querubim.

Chega o dia do noivado
Branca triste inclina a fronte,
Mas pede para mirar-se
No claro espelho da fonte.

Ouve o canto da Mãe d'água
Dentre os lábios de coral,
E na harpa de fios de ouro
Sobre concha de cristal:

— "Vem a mim, filha querida
Vem findar as tuas dores;
Eu tenho ricos palácios
Para guardar teus amores".

Em casa todos procuram:
D. Branca onde estará?
O noivo já no seu carro
Na porta de casa está

Pobre pai, os teus rigores
Vão mudar-se em fundas mágoas,
Da tua filha só resta
O véu branco sobre as águas. —

Ao fim da última estrofe, Antonica, toda inclinada para o rio, olhou tristemente o céu e deixou-se precipitar na corrente.

Ao som do baque nas águas um grito de desespero respondeu no grupo:

— Socorro, Socorro! gritaram todos.

Francisco Benedito e seu filho, rápidos como um tufão, atravessaram a pequena distância que mediava entre o rio e o lugar em que se achavam, e precipitaram-se ao mesmo tempo, ao passo que as moças no auge da aflição gritavam a plenos pulmões:

— Socorro! Socorro!

Ao mesmo tempo vieram à tona os dois nadadores e a pálida Antonica, que se debatia quase sufocada.

Francisco Benedito, porém, já não tinha forças para resistir à correnteza e foi desviado pelo redomoinho das águas, e só o seu filho pôde aproximar-se de Antonica, no momento em que ela submergia-se de novo.

O corajoso rapaz mergulhou no mesmo ponto, e, quando subiu à flor do rio, trazia segura pelo corpinho do vestido a moça já sem sentidos.

A aflição cresceu nos espectadores; a pouca idade do mocinho não lhe fornecia a força necessária para levar à cabo a empresa; era um joguete da correnteza, prestes a ser esmagado por ela, que lucraria assim mais uma vítima.

O velho pai, agarrado ao galho de um ingazeiro, via, entre as torturas da impotência, esta dupla ameaça feita pela morte ao seu coração angustiado.

Mas de repente uma esperança consoladora luziu em todos os espíritos; a violência das águas cedeu diante da robustez de um nadador decidido.

Era o Motta Coqueiro.

Ouvindo os gritos de socorro, e vendo o grupo correr em direção ao porto, o prestativo fazendeiro sentiu atravessar-lhe o espírito a lembrança das palavras de Antonica: — é a ingratidão que me mata — e adivinhou logo o que se passava.

Montando no possante alazão em que sempre andava, e cravando-lhe desapiedadamente os acicates, Motta Coqueiro pôde em alguns minutos arriscar a sua vida para salvar a moça.

Nadou direto a ela e segurando-a com um dos braços, com o outro remou à mercê das águas até poder agarrar-se a um dos galhos da vegetação da margem.

Dentro em alguns minutos Motta Coqueiro deitava sobre a grama o corpo imóvel de Antonica.

A viveza encantadora de seu rosto fora substituída pela morte-cor de uma longa síncope; a luz suave e sedutora dos seus olhos fora trocada no brilho estagnado, próprio dos olhos dos cadáveres, e além de tudo isso os braços, quando eram levantados, caíam com o abandono da inércia.

— Está morta! está morta! minha irmã! minha filha! pobre moça! exclamavam todos chorando.

Só o fazendeiro não havia até então perdido o sangue frio entre a mó de parentes, escravos e agregados que cercavam Antonica.

Ajoelhando-se junto dela, pôs-lhe a mão sobre o coração, e sentiu que ele ainda batia.

Então como se fosse presa de uma loucura instantânea, tomou nos braços o corpo molhado da moça, apertou-o contra si, e cobriu-lhe de beijos a face lívida.

A vizinhança do túmulo santificava esta explosão indômita do coração e longe de provocar estranheza serviu apenas para aviventar uma esperança.

— Ela vive ainda, não é verdade, compadre; minha filha não morreu.

— Vive, sim, para nós, para o seu amor, para a sua felicidade; respondeu Motta Coqueiro, que não tinha mudado de posição.

Depois, como se acordasse de um sonho, levantou-se e gritou para os escravos e os circunstantes:

— Estamos aqui todos pasmados; vamos, levemo-la para casa; Deus a salvará.

Durante mais de uma hora de ansiedade e trabalho, ninguém, â exceção de Motta Coqueiro, alimentou a mais fugitiva esperança de ver salva a moça.

Todos abanavam a cabeça, exprimindo assim a certeza que tinham de que eram baldados os esforços feitos pelo fazendeiro, que sobreexcitado aconselhava e tomava ao mesmo tempo múltiplos expedientes.

Antonica jazia desacordada na imobilidade das estátuas, e apenas com um leve respirar correspondia à robustez da esperança do seu incansável salvador.

À proporção que desanimavam de todo, as pessoas da família retiravam-se para ir mais longe derramar as lágrimas, que Motta Coqueiro não queria ver correr.

Havia já largo espaço que, a sós, o fazendeiro velava junto à cabeceira de Antonica, quando esta pela primeira vez, depois da frustada tentativa de suicídio, abriu as pálpebras roxeadas.

Tudo quanto há de mais infantil e mais amoroso, de mais santo e louco passou pelo espírito e encarnou-se no olhar e nos gestos de Motta Coqueiro.

Veja se dorme, se descansa, murmurou ele; não deve falar, não deve fazer nenhum movimento. Oh! que susto que nos pregou!

O olhar de Antonica, misto de espanto e de pudor, continuou fixo a envolver o seu solícito velador, enquanto que no canto do lábio pairou-lhe na ironia de um sorriso toda a amargura da sua situação.

— Por que não me deixou morrer, por que não teve ânimo ao menos para passar em paz sobre a minha cova.

— Mas, minha filha, repare que esta exaltação lhe faz mal; descanse, isto há de passar; você verá, há de passar.

As pálpebras de Antonica cerraram-se de novo e pelos seus cantos as lágrimas começaram a deslizar.

Um incidente veio impedir, talvez, que uma involuntária quebra de resolução maculasse o papel digno que Motta Coqueiro desempenhava junto da moça.

Francisco Benedito, de pé na porta do quarto em que esta cena se passava, disse a meia voz:

— Oh! compadre, não será bom acordá-la e dizer que está aí o Viana; talvez...

Cedendo à comoção que lhe causaram estas palavras, o fazendeiro repetiu alto:

— Talvez...

— Neste caso eu vou chamar o rapaz. O compadre se o visse; está lá fora a chorar e a praguejar.

Logo que Francisco Benedito retirou-se o sorriso irônico de Antonica reapareceu-lhe nos lábios e as pálpebras descerraram-se-lhe para lançar um olhar penetrante ao já sereno Coqueiro.

— Quero mostrar que não sou ingrata, seu capitão, murmurou ela, hei de tratar muito bem ao meu noivo.

— E para ter mais franqueza, eu retiro-me, respondeu Coqueiro, levantando-se e dirigindo-se à porta.

Depois que o fazendeiro saiu, Antonica, que se assentara no leito, envolveu num sorriso um grito do coração:

— Vai; não és tão indiferente como finges.

— É cá, venha por cá, dizia lá fora Francisco Benedito, não façamos barulho.

A estas exclamações acrescentou logo uma pergunta e uma observação:

— Acordou-a sempre, compadre? São sempre assim, mesmo morrendo... Oh! meu Deus, foi um milagre.

A última exclamação foi feita à porta do quarto, e era motivada pela posição de Antonica.

Caprichoso no desempenho do seu papel o vendeiro entrou precipitadamente emitindo frases em aluvião:

— O que foi isto, sá Antonica? que diacho de cousa! quase que foi para a cova; vejam que brincadeira.

— Ora o que foi? um banho, respondeu Antonica.

Toda a família veio para o quarto a chamado de Francisco Benedito, que não podia conter-se de alegria.

Choveram comentários do perigo e manifestações de regozijo.

— Só você podia curá-la, seu Viana; abaixo de Deus, o compadre valeu-nos muito, mas não é o noivo.

A vaidade lisonjeada do vendeiro operou alguns requintes do estilo da modéstia forçada, a divindade universal que tem altares desde o sertão até os mais civilizados centros, e afinal caiu inanida do esforço no mais parvo mutismo.

Tendo dado franqueza às expansões, Motta Coqueiro assomou à porta no momento em que Antonica, para desafiar os enconjuros de sua mãe, dizia:

— Era bem bom que o banho fosse até o fim.

— Já não há perigo, disse o fazendeiro; agora parto para o meu trabalho.

Um coro de agradecimentos rompeu de toda a família; só Antonica fez exceção, e dirigindo-se ao fazendeiro, verteu todo o seu despeito numa pergunta:

— O que seria melhor para uma pessoa, seu capitão, morrer ou querer morrer por alguém que não merece?

— Conforme, respondeu ele; se a pessoa for moça, o melhor é casar-se com quem mereça.

A conversa continuou animada junto do leito de Antonica, mas já não colaborava nos ditos de alegria e espírito a voz da doente.

Concentrando-se a pouco e pouco, e respondendo ao acaso, Antonica terminou por dizer que se sentia pior, e pedir que falassem mais baixo.

Alguns minutos depois deitou-se queixando-se de dores na cabeça e calafrios.

— Parece que tenho febre, disse ela, e pediu às pessoas que estavam no quarto para que se retirassem.

Ficou apenas no aposento a velha mãe de Antonica, que para logo teve de pedir auxilio, porque a moça começou a convulsionar, como se fora morrer.

Esta recaída inopinada agravou-se assombrosamente e de novo a família julgou perdida irremediavelmente a enferma.

Ataques violentos obrigavam aos maiores cuidados e a quase contínuo excesso de força para impedir que durante eles a doente não se magoasse ainda mais, ou fosse vítima de algum dos seus bruscos movimentos.

Neste honroso empenho, durante dois dias e duas noites, velou a família de Francisco Benedito à cabeceira da Antonica, mas o cansaço diminuiu por fim a boa vontade e dedicação.

Estavam todos extenuados.

Dois oferecimentos espontâneos apressaram-se em pedir à família o encargo dos quartos à enferma, Motta Coqueiro mandou uma de suas escravas, e Manuel João ofereceu-se para velar com ela.

Por hora adiantada da noite um acesso violento obrigou os bons serviços de Manuel João e da escrava, e além deles apareceu no quarto a bondosa Mariquinhas.

Apesar do baralho, que foi feito pelas vascas da doente, ninguém mais acordou, o que provava quão pesado era o sono dormido pela família.

Passado o acesso, a escrava foi sentar-se a um canto do quarto, Mariquinhas sentou-se para os pés do leito e Manuel João à cabeceira.

A escrava não velou por muito tempo; em breve ouviu-se o seu franco ressonar.

Estavam, pois, sós Mariquinhas e o feitor.

Os seus olhares embebiam-se reciprocamente na mais expressiva ternura, trocando as frases que o respeito à enferma impediam de pronunciar-se.

Pelos lábios de Mariquinhas serpeavam esses sorrisos indefiníveis da mulher que se crê amada, quando vê-se contemplada pelo seu amante; sorriso feito de um tom de vaidade sobre esplêndido colorido de gratidão e que é o melhor coroamento do amor.

Para se deixar fitar mais à vontade, em toda a franqueza e sedução dos seus encantos, a moça colocou o braço no da marquesa e na concha da mão pequenina deitou a face morena.

Contrastando com a imobilidade do busto, Mariquinhas balançava distraidamente uma das pernas, com um movimento compassado e lânguido.

Talvez para mais encantar o contemplativo feitor, a moça de quando em quando cerrava as pálpebras nacaradas, para suspendê-las depois no raio úmido e amplo do seu olhar aveludado.

— Por que não vai dormir, sá Mariquinhas; eu e a rapariga bastamos para qualquer cousa.

— Estou bem aqui, respondeu Mariquinhas.

Fizeram ambos silêncio em seguida, porque a doente revolvera-se no leito. Foi este um pretexto para que Manuel João se levantasse e logo inclinado sobre a face de Mariquinhas, com os lábios quase a roçarem-lhe o delicado pavilhão das orelhas, lhe segredasse:

— Vá dormir, sim? olha que me está fazendo mal.

Quanta felicidade não devia ter derramado nalma ingênua da amante de quinze anos esta solicitude respeitosa e acariciante.

— Está bom, respondeu Mariquinhas; eu vou aqui para a sala, se precisar de alguma cousa, chame.

Mais de um longo quarto de hora tinha-se já escoado após a saída da fascinadora amante do feitor, quando este depois de observar de perto o rosto de Antonica, levantou-se com precaução.

Com menos ruído não desliza a lágrima de resina pelo córtex do pessegueiro.

A passos lentos caminhou até junto da escrava adormecida e chamou-a por três vezes; a preta não deu o mínimo sinal de ter acordado.

Manuel João caminhou então para a sala com a mesma cautela.

Deitando um braço sobre a mesa e a cabeça sobre ele, Mariquinhas ressonava brandamente através dos lábios virgíneos o sono do cansaço e da f confiança.

O lencinho branco, que diariamente trazia ao pescoço, havia-se desatado, e o corpinho, formando pela posição contrafeita da moça uma abertura côncava, deixava ver o colo moreno. Assim as pétalas da rosa superpõem-se de modo que não só deixam entrever-se mutuamente, mas flanqueiam ainda à vista a dourada região dos estames.

Um tosco e mal limpo candeeiro bruxuleava ao lado de Mariquinhas, como se tentasse apagar-se para não dar lugar a que um olhar profano se atrevesse a devassar tamanhas perfeições.

Pé ante pé o feitor aproximou-se e parou junto da adormecida. Contemplou-a com avidez; correu-lhe de leve a mão desde o alto da cabeça até a meio de uma das tranças que acompanhava o arfar do colo imaculado, e finalmente ajoelhando-se, roçou nos lábios entreabertos da moça um beijo, que alava-se no temor.

O sonho de Mariquinhas era profundo como soem ser os da fadiga; a profanação pôde continuar.

Ao primeiro beijo, seguiu outro e ainda outro, até que menos pela grosseria do atentado do que pela suscetibilidade do pudor, a moça despertou sobressaltada.

Ao ver de joelhos o seu amante, ela que não podia adivinhar a torpeza de que ele era capaz, não teve uma queixa a vibrar-lhe, mas antes uma carícia para perdoá-lo.

— Eu não sabia que era santa, está fazendo oração? Olhe o oratório está aqui, eu abro-o.

O crime espojou-se diante de tão graciosa impunidade; e à semelhança de um forçado que, evadindo-se da prisão, encontra diante dos seus instintos maus, não a mão pesada do carcereiro, mas um dia límpido como o éter, um céu sereno e uma tranqüila floresta suspirando a bafagem farfalheira de um vento sem rancores, e ecoando o gazeado mavioso de milhares de passarinhos; e então ri aos planos sombrios de novas empresas; o feitor encontrando, ao retrair-se da sua baixeza e olhar velutino de Mariquinhas e a suavidade da sua palavra, riu interiormente a uma esperança lasciva.

— Não fale alto, que podem ouvir. Deixe que ao menos hoje eu esteja junto de você; é tão difícil isto.

— Deveras? pois você não vem sempre aqui.

— Mas nunca tive uma vaza de dizer-lhe que lhe estimo muito, muito, como a ninguém neste mundo.

— Pois agora já disse; o que quer mais?

— Quero que você diga que também paga-me essa amizade com a mesma força; que é capaz de fazer tudo por ela, sem medo, nem de Deus, nem do mundo.

— Ai! ai! você está a dizer pecados, vá fazer o quarto e deixe-se de partes.

— Não brinque, sá Mariquinhas; eu não saio hoje daqui sem saber se devo viver ou morrer. Eu não vim cá por sá Antonica; eu vim para certificar-me de que você me estima. Quero que jure-me, que repita uma, cem vezes: eu só serei tua, só tua...

Estas palavras seguiu-as o feitor com os movimentos precipitados da paixão, e quando pedia à moça que jurasse já a tinha cingido e beijava-a apesar do esforço que ela fazia para libertar-se do assalto.

— Deixe-me, deixe-me, exclamou Mariquinhas, você está abusando, eu chamo a rapariga.

Dita a meia voz, mas com o acento imponente do pudor e da dignidade, a frase de Mariquinhas repeliu para longe o feitor, não amedrontado, mas alucinado.

O seu plano de sedução malogrou-se, era mister levar a cabo o segundo: o da violência.

Levou a mão a cinta; estava desarmado; voltou então para junto de Mariquinhas e, travando-lhe do punho, disse-lhe com um acento que a fez tremer:

— Uma palavra mais, e eu que te estimo como um doido, arranco-te a língua como um malvado. Olha que já há noites que eu penso nisto; enforquem-me depois, mas eu hei de chamar-te minha hoje, já... Uma palavra mais e... esta casa tem armas e no meu pulso há força.

— Para que há de ser mau pra mim; murmurou Mariquinhas, que esperava abrandá-lo pela humildade.

Foi porém um novo incitamento. De chofre Manuel João apertou sobre os lábios de Mariquinhas a sua mão vigorosa, enquanto com o braço, que lhe passara à cinta e um esforço brutal, fazia vergar-lhe o corpo delicado.

O candeeiro, talvez pela agitação do ar durante a luta, deixou de iluminar a sala.

A moléstia de Antonica deu lugar a mais uma intimidade perigosa na sua família.

Na qualidade de mezinheira foi chamada a tia Balbina para debelar o mal que assombrosamente devastava o organismo da moça.

A feiticeira tinha para insinuar-se a maciez da dissimulação e, apesar das asperezas do seu exterior, o trato, refalsadamente humilde, era agradável como o contato do pêlo da lontra.

Esperando pacientemente a oportunidade para arriscar uma palavra, penetrando até o fundo das consciências com o seu olhar que possuía a calma perspicácia da vingança, Balbina era dotada de uma espécie de talismã fatídico que atraía para si todos os espíritos que se lhe acercavam.

Dois fatos chamaram prontamente a atenção da cabinda, que andava sempre à cata de elementos para com eles; fortalecer a teia em que buscava enredar os seus senhores: foram a tristeza de Chiquinha e um visível apatetamento que obscurecia as faculdades de Mariquinhas.

Chiquinha chegou-se um dia à Balbina e queixou-se-lhe de que passava os dias opressa por uma tristeza inextinguível ora povoada de sobressaltos, ora de visões encantadoras e carinhosas.

— Não sei o que tenho, tia Balbina, parece que estou sempre sonhando...

— Além disso, continuou Chiquinha, tudo me aborrece e tudo me preocupa; não tenho vontade de comer e se alguma força faço sobre mim calo num enjôo, que só se acaba por vômitos. Vou emagrecendo a olhos vistos.

Os sintomas dados por Chiquinha eram claros demais para a arte da feiticeira e assim podia esta falar com toda a segurança.

Mas o poder de Balbina era o mistério e a dubiedade de sentido das suas palavras, que lhe deixava sempre aberta uma saída. Preferia o labirinto à linha reta.

Segundo os seus hábitos Balbina respondeu à queixosa:

— O coração da gente bate às vezes com força; os olhos não vêem, o corpo não foge. À hora da lua o mata-pasto de flor amarela fecha, como os cativos seus olhos cansados, as folhas que são o relógio do escravo. Mas o coração não deixa de bater, não quer se trancar dentro do peito; quer voar como o vaga-lume.

De manhã, quando o sol nasce, a folha é que se abre então, e o coração é que muitas vezes fica fechado. Balbina não pode proibir que o grilo verde roa a folha que se abriu ao sol, nem que a tristeza more no coração que se abriu aos raios da lua.

— Mas quem é que lhe disse que meu coração se abriu na hora da lua? perguntou-lhe a moça admirada.

— Carolina gemia; a alma de Balbina ficou triste como o carneiro que vai morrer, e a cabinda saiu para pedir às ervas de Deus o sossego da crioula. Na baixada cresce a erva-de-são-joão com o seu cheiro bom e com a sua penugem de pombo novo. A cabinda queria trazer a erva para remédio da doente. No meio da colheita Balbina se assustou, porque viu um vulto branco como a boneca da paina...

— E quem era este vulto? interrogou a voz trêmula de Chiquinha.

— A negra não é quem pode dizer à filha dos brancos, respondeu Balbina lançando à moça um olhar, que a fez envermelhecer. A negra viu o vulto branco, mas não pôde saber quem era o outro, que tomou pelo caminho da baixada.

— Mas diga, tia Balbina, diga o que é que eu tenho; diga pelo amor de Deus.

— Balbina só pode falar dentro do ouvido de sá Chiquinha; escute.

A preta começou então a segredar, e à proporção que ela falava, Chiquinha empalidecia.

Quando Balbina terminou, as lágrimas corriam em borbotões pela face da moça, que só teve forças para exclamar.

— Oh! meu pai do céu, salvai-me por que eu estou perdida.

— O pai do céu é bom; se a filha dos brancos disfarçar, se não ficar sempre triste, pode esconder dos olhos de seu pai, até que possa aparecer com seu marido. Sá Chiquinha não há de ser infeliz como Carolina, que foi quase a morrer parar nas mãos do doutor, porque o pai desprezou o filho da crioula.

Chiquinha começou desde esta hora a esperar o dia em que devia ter uma fatal certeza, e Balbina continuou na sua tarefa gratuita de tudo observar.

Antonica tinha entrado em convalescença e já passava horas inteiras a conversar com sua mãe e irmãs.

Através do amuo inerente à enfermidade já escapavam-lhe do coração para os lábios uns fugitivos sorrisos.

Ainda uma extrema fraqueza impedia-a de levantar-se sozinha, e todavia os serviços de Balbina foram dispensados pela família do agregado.

Esta venceu por fim, deixando aquele ansiar prostrado na liça.

Interpretando como um acolhimento benévolo e digno o silêncio de Mariquinhas, Manuel João continuou ainda mais submissa e humildemente:

— O amor é assim mesmo, sá Mariquinhas; às vezes fica-se doido. Quem ama deve perdoar.

Ditas estas palavras, o feitor achegou-se vagarosamente de Mariquinhas e curvou-se para profanar-lhe mais uma vez as faces morenas.

Tudo quanto a dignidade tem de mais solene quando uma provocação iníqua vem sobrelevá-la, irrompeu da fraqueza de Mariquinhas.

Pondo-se de pé, com os punhos cerrados, os lábios trêmulos e a voz repassada de ameaçadora amargura, recuou para logo avançar corajosamente até o feitor.

— Escute bem, seu covarde; exclamou Mariquinhas; eu já lhe estimei muito, mas hoje tenho até nojo de você, seu malvado. Deixe-me passar.

E adiantou-se para passar. Foi, porém, tolhida pelo feitor, que segurara-lhe o braço, exclamando.

— Perdoe, sá Mariquinhas; eu hei de me casar com você.

— Nunca! exclamou a moça, que se pôde livrar; prefiro morrer; pode fazer o que me disse; mate-me.

Manuel João ficou de pé com o ar boçal de um larápio surpreendido enquanto Mariquinhas se afastava.

Deliberava-se talvez a segui-la, mas no mesmo instante passou por junto dele a tia Balbina, sobraçando um feixe de gravetos.

Balbina tinha ouvido quanto era bastante para compreender que um ato de violência tinha sido cometido pelo feitor contra a moça, e Manuel João por sua vez convenceu-se de que a feiticeira estava de posse do seu segredo.

Era de seus dias no sítio a descoberta dos instrumentos de feitiçaria em poder da escrava e portanto fácil lhe foi atinar com um meio que, no seu entender, frustraria toda a importância das acusações que ela, porventura, tencionasse fazer contra si.

Confiado na solução razoável que engenhou para a sua melindrosa situação, o feitor esperou a oportunidade para pô-la em obra.

A convalescença de Antonica adiantava-se com felicidade e rapidez, graças a um tratamento de pronta eficácia, a medicação da esperança.

Motta Coqueiro aliava, no fino quilate do seu caráter, duas qualidades de todo o ponto heterogêneas, mas por isso mesmo de fácil combinação, a bonomia e a austeridade.

Foi a segunda qualidade a que recebeu a declaração de Antonica, mas quando o fazendeiro viu as conseqüências da sua recusa franca e digna, o seu ânimo essencialmente benévolo increpou-o rispidamente, dando-lhe a responsabilidade da tentativa de Antonica.

O resultado foi Motta Coqueiro resolver-se a contemporizar com aquela paixão ardente e que resolvera fazer-se impor pela própria loucura, ou respeitar-se pelo remorso.

Em uma das remissões da febre delirada da filha do agregado, esta ao abrir os seus grandes olhos amortecidos encontrou o olhar com a observação comovida de Motta Coqueiro.

O quarto silenciava numa triste penumbra, só, destoada por um listrão impalpável de luz, coado pela fresta da porta semi-aberta e no qual turbilhonavam sem ruído inúmeras partículas de pó.

Neste ponto foi fixar-se o olhar da moça.

— Tive ainda agora um sonho, disse ela depois de uma demorada contemplação; como ali eu vi uma grande faixa de luz, onde em vez de poeira subiam e desciam anjinhos. Entre eles e sobre a luz boiava eu como uma folha no rio. Eu tinha os olhos abertos, via, mas nem podia mover-me nem falar. Ia à mercê de um empurrão invisível, mas de repente parei, meu corpo havia-se encostado sobre o peito de alguém. Se este sonho se realizasse eu preferia morrer.

— Isto foi um delírio, minha filha; não pense mais na morte, e não terá destes sonhos. Veja se pode acalmar-se; eu estou aqui ao seu lado.

— E há de estar sempre?

— E por que não hei de estar? Pensa que não lhe estimo muito, muito...

— Como estima a toda a gente, que precisa que se lhe faça bem.

— Mais do que isso, Antonica; é a estima que se dá a um coração, que sabemos que bate por nós. Se você morresse, eu nem sei o que seria de mim.

— Eu tinha vontade de morrer, porque sei que seu capitão ficava descansado.

— Quem sabe do futuro, Antonica! talvez eu não sobrevivesse muito.

O egoísmo incandescente do amor espanejou-se triunfante no coração de Antonica; revelou-o eloqüentemente a ternura de seu olhar. Uma alegria infantil dourou a pausa que houve no diálogo, alegria de um moribundo, que voluntariamente escondia na sombra de um túmulo as mais risonhas ilusões, e que de súbito afasta a sombra ominosa e sente inundar-se dos esplendores da ventura.

— É mentira minha, é mentira, exclamou Antonica; eu estava sem tino, o que eu quero é viver, seu capitão, viver!

— Sim. você há de viver para seus pais, para mim, que tenho na sua amizade o melhor prêmio do pouco bem que tenho feito.

Este único aceno amistoso ao ideal de Antonica, róseo colorido de alvorada em céu borrascoso. reanimou-a, ou melhor ainda, ressuscitou-a.

As simples frases de benévola consolação foram o esplêndido fiat no vácuo do existir de Antonica; decompuseram-se e transformaram-se em outras tantas estrelas, asterismos tranqüilos, convergindo os raios em um único foco — a possibilidade do amor.

Efetuou-se a cura radical da loucura pela polarização da luz da esperança.

O restabelecimento caminhou desassombrado e rápido e o amor atulhou com pétalas de flores a sepultura já hiante aos pés da desventurada amante.

Os serviços de Balbina foram definitivamente dispensados e a escrava tomou para os ingratos labores do eito e para o meio da consideração supersticiosa dos seus parceiros.

O feitor era agora inexorável e exigente até a insensatez. Por maior que fosse a agilidade dos escravos achava-os sempre morosos, e não raras vezes vibrava o chicote sobre as costas nuas dos miseráveis trabalhadores.

A sua atenção voltava-se peculiarmente para a tia Balbina, a quem alcunhou-a marralheira.

— Arriba! arriba! gritou ele um dia, à medida que estalava o chicote sobre as espáduas da preta; não dormes de noite ocupada com a feitiçaria e de dia estás a cair de preguiça. Vê se ficas asseada com este espanador.

Nem um ai escapou aos grossos beiços da feiticeira, amargou calada a vingança, a ruminar a desforra.

À noite a preta foi de novo surpreendida pela cólera do feitor, que veio passar-lhe revista à senzala. Achou somente uns registros de santos, porque o mais a prevenida Balbina tinha posto em lugar seguro.

Mas nem por isso o feitor julgou-se quite com a feiticeira; na hora da revista matutina, cônscio de que Motta Coqueiro acreditá-lo-ia, Manuel João lavrou carregando as cores um libelo contra a escrava.

— Não se pode aturar, disse ele, não quer trabalhar, continua com as feitiçarias e já me contaram que ela quer que o meu amo mande-a para a casa do seu senhor; porque — diz ela — vosmecê está comendo o suor alheio com o trabalho dela.

— Então ainda não te desenganaste, negra? bradou o fazendeiro; eu vou dar-te o senhor e o feitiço. Fidélis! Peregrino! agarrem-me aquele demônio.

Balbina não articulou uma queixa, nem uma desculpa, deixou-se ficar com os braços cruzados e a cabeça baixa. Os dois escravos obedeceram e fizeram-na chegar até junto de Coqueiro.

Principiou então uma destas cenas repugnantes e iníquas; os escravos ataram os pulsos de Balbina e amarraram-na pela cintura a um dos esteios do terreiro e cada um empunhou um azorrague.

O castigo ia ter lugar com a barbaridade de que são sempre alvo os feiticeiros, entes malditos e execrados pelos homens do sertão.

Pelo braço de Mariquinhas apareceu, porém, no terreiro a agradecida Antonica. Ao ver Balbina em semelhante posição; lavando-se em lágrimas a moça pediu que perdoassem a escrava, que tão prestativa lhe fora na enfermidade.

O fazendeiro atendeu.

— É assim que se botam a perder os negros, resmungou Manuel João; mas eu hei de mostrar.

Motta Coqueiro ouviu o resmungar do feitor e resolveu examinar com os próprios olhos a causa que motivava tanto azedume contra Balbina.

O sol era ardente, o calor abrasava. Era a hora em que o canavial inclina as folhas como as penas de um cocar enorme; em que a cigarra chilra tanto quanto fala um energúmeno, sem pausa, sem termo; em que a araponga-branca, à semelhança de um soluço de espuma sobre o verde-mar do oceano, tine entre a folhagem do ipê vestido de novo os seus cantos agudos e tristonhos.

Voam as nuvens de tiés e guaxás piando, tontos de calor, e as tiribas gárrulas coçam as asas de esmeralda entre a sombra rarefeita das embaúbas.

Sob a copa das grandes árvores do descampado, o chão acolchoado de folhas assemelha-se a uma praia coberta de conchas de ouro, mas conchas sonoras, como pequenas marimbas cujas cordas dedilhasse o tênue sopro da aragem. E a multidão dos canários que aí se abriga da crueldade da canícula.

No meio da floresta ouvem-se todos os sons conhecidos; desde o uivo soturno da turubina em atividade, imitado pela cachoeira que ao longe se despenha na grota, até o tilintar do martelo na bigorna imitado pela araponga; desde o som do cornetim tocado ao de leve, fingido pela alegria curiosa dos galos-da-serra, até o gemido profundo, soluçado pelas juritis.

É a glorificação da sombra pelo mais harmonioso dos coros, e a mais cadenciada das orquestras, regidos pela natureza.

Os escravos de eito não se abrigavam, porém, senão sob a copa rendada das sambabaias, e as alas de cafezeiros.

Manejando as enxadas polidas, como o sacristão maneja a campainha na hora da elevação da hóstia, ofereciam aos céus, entre os cantos monótonos, o maior de todos os sacrifícios, o grande sacrifício do trabalho.

O eito subia rápido e já estava em mais de meio. Lavada em suor Balbina encostou a enxada a um cafezeiro e dirigiu-se ao feitor participando-lhe que ia beber água.

Dentro de alguns minutos a cabinda estava de volta, para não dar pretexto à explosão da raiva de Manuel João.

— Oh! tia, bradou ele, a água tinha espinhas?

— Balbina não demorou, respondeu a preta; o eito ainda não andou nem o cabo de uma enxada. A carreira de café que Balbina limpa, ficou sem adjutório, porque ela pediu aos seus parceiros. Balbina há de chegar com eles ao fim do eito.

— Vamos! continue com o seu palavreado; eu estou ouvindo.

— Vosmecê perguntou, eu respondi.

Manuel João incumbiu ao seu rebenque a contradita à lógica da escrava, mas ainda não tinha descarregado a segunda lambada, quando foi sustado por um grito.

Motta Coqueiro tinha acompanhado a distância a gente e, escondido, seguia todos os movimentos do feitor e da preta Balbina.

Certo de que uma injustiça era a motora do castigo, o homem que só se inspirava na retidão e que só por ela era severo, indignou-se e fulminou na mesma hora o culpado.

— Sr. Manuel João, está desobrigado da feitoria do meu sítio; eu quero castigos mas não vinganças.

O miserável rapaz ficou por muito tempo estatelado sem poder pronunciar uma única silaba.

— Mas, meu amo, observou ele por fim; eu não posso sair hoje daqui; não tenho para onde ir. Se meu amo não está satisfeito comigo como feitor, deixe-me ficar por enquanto como trabalhador.

Motta Coqueiro tinha-se voltado para os escravos e caminhava para eles, simulando não ter ouvido ao confuso Manuel João.

— Oh! lá, vocês ficam por ora às ordens do Fidélis; é com ele que têm de se entender.

Olhando, porém, para o ex-feitor, Motta Coqueiro fraqueou na resolução de fazê-lo sair imediatamente do sítio.

O homem, que por vezes tinha-lhe feito emboscadas, cujo rancor pelo fazendeiro era extraordinário, quedava covardemente após tão grande desfeita na mais humilde posição.

Tinha o chapéu de lebre sobre o cabo do rebenque e os braços cruzados sobre este.

O rosto exprimia simplesmente o vexame que o acabrunhava, mas nem de leve um indício de cólera; parecia resignado a cumprir a pena, que a sua imprudência havia provocado.

Completamente desarmado pela atitude inesperada do ex-feitor, Motta Coqueiro, querendo dissimular a própria falta de energia, dirigiu-se a ele, dizendo:

— Eu preciso de trabalhadores; se quer ficar, faça o que entender; mas lembro-lhe que o sítio está a cargo do Fidélis.

Era a melhor evasiva encontrada de pronto pelo explosivo, e ao mesmo tempo bondoso coração do fazendeiro.

Em rápido raciocínio convencera-se de que Manuel João não se decidiria a submeter-se à autoridade de um escravo sobre o qual ainda havia pouco tinha poderes discricionários.

A proposta, pensou Motta Coqueiro, irritá-lo-á e assim evitarei que ele continue. Mas a baixeza de caráter do ex-feitor excedia todos os limites imagináveis.

— Não importa, não, meu amo; o que eu quero é trabalhar, ao menos até arranjar outra casa.

Retiraram-se ambos, o fazendeiro quase arrependido da severidade com que punira o empregado e este com o desembaraço do homem desbrioso.

Os pretos ficaram sós, mas nem por isso a atividade diminuiu nem o trabalho desacalorou-se.

Um desafogo íntimo substituiu a pressão moral que os oprimia, e agora podiam livremente medir o esforço para o obrigado labutar, sem fim na vida, como a montanha de Sísifo.

As bagas mornas de suor como que se converteram em estrofes, aladas em sons melancólicos de monotonia pungente, inspiração de poetas desconhecidos, talvez mártires de igual destino, e por isso mesmo privando a intimidade de todas as tristezas, desilusões, desalentos, queixas e suspiros da escravidão.

Um desses cantos era assim:

Nasce a flor, rebenta o fruto,
Seca o fruto, a folha cai,
Ai!

Mas a água do ribeiro
Rolando, rolando vai,
E se espedaça na grota,
Porém das bordas não sai.
Ai!

Corre a enxurrada roncando
Grita aos rios: — transbordai!
Ai!

Mas a água do ribeiro
Rolando, rolando vai.
Suspira e chora na grota,
Porém das bordas não sai.
Ai!

Some-se a lua na aurora,
No sol a estrela se esvai,
Ai!

Mas a água do ribeiro
Rolando, rolando vai;
Em vão soluça na grota,
Porque das bordas não sai.
Ai!

Triste sorte a do cativo
Seja filho, ou seja pai,
Ai!

E triste como o ribeiro
Que sempre rolando vai,
E se espedaça na grota
Porém das bordas não sai,
Ai!

A tia Balbina, mais do que nenhum outro; deixava transluzir no semblante o júbilo que lhe ia nalma. Duas vezes vitoriosa elevava-se ante o ex-feitor e isto firmava cada vez mais os seus créditos de invencível.

Às horas do jantar, contentes como bons amigos que se banqueteiam. os infelizes riam alegremente diante das cuias, e adubavam a refeição com lisonjeiras observações.

— A tia Balbina matou dois coelhos de uma só paulada.

— Tem mão certa.

— Quando ela diz uma cousa acontece por força.

A feiticeira recebia prazenteira as manifestações amistosas dos parceiros, preconizando a proteção dos céus para os inocentes, e a sua punição para os injustos.

A refeição ia já no fim, quando chegou ao lugar o novo feitor, o destemido Fidélis, tipo completo do negro de fazenda, com todas as suas virtudes e defeitos; trabalhador e intrigante, supersticioso e vingativo.

Não tinha-lhe favoneado a vaidade a inopinada distinção que mereceu ao senhor, odiava os brancos e sabia que, distinguindo ou castigando, o senhor só tem em vista tirar o maior proveito possível de seu escravo.

Recebeu a investidura de feitor pela mesma razão por que levantava-se de madrugada para a revista, e em seguida trabalhava do sol nascente ao sol posto; recebeu-a porque era escravo e para este só há uma lei — obedecer.

No mais era uma criatura da tia Balbina, que o considerava a ponto de rir-se para ele.

Por isso mesmo a sua nomeação foi recebida com entusiasmo pela gente de roça, convencida de que ia melhorar de sorte. Assim é que foram cordialmente recebidas as primeiras palavras da nova autoridade, pondo em exercício as suas funções. Mandando recomeçar o trabalho, Fidélis disse com lhanura a seus parceiros.

— Vamos, rapazes! é preciso mostrar que não é necessário chicote para se fazer o serviço; o negro não é boi, que precisa de carreiro e ferrão.

E os escravos voltaram alegremente aos seus cantos, e a manejo das suas enxadas operando verdadeiros prodígios de trabalho.

A cabinda começou então a dar o plano infalível de que resultaria a total derrota e perda de Manuel João.

Era o mais simples dos planos atacá-lo pelo coração, que suspirava ardentemente por uma palavra de esperança, por um consolo no perdão.

Carlos se incumbiria de dizer ao ex-feitor que Mariquinhas o esperava para falar-lhe, Fidélis trataria de surpreender com o maior comprometimento a entrevista.

Balbina reservou-se a parte mais difícil, a de fazer com que Mariquinhas se encontrasse com Manuel João.

Antes, porém, o feitor faria saber ao seu senhor todo o movimento da família de Chico Benedito, conhecido pela feiticeira.

O plano de Balbina mereceu inteira aprovação de Fidélis, que tratou logo de pôr Motta Coqueiro de sobreaviso. O fazendeiro não viu, porém, nas comunicações do feitor mais do que a realização das suas suspeitas acerca das intenções dos noivos, tão caros ao seu compadre, e mais um motivo para insistir com ele a apressar a construção da casa longe da em que estava agora.

Estava quase a findar-se o trabalho do embalsamento e brevemente Motta Coqueiro devia retirar-se. Urgia, portanto, tomar todas as providências para que o sítio ficasse em paz durante a sua ausência.

— Compadre, disse um dia Motta Coqueiro a Francisco Benedito; eu vou demarcar as terras em que você há de levantar a casa.

— A falar verdade, compadre, respondeu o agregado, isto não me está cheirando bem. Parece que me quer pôr fora de sua casa, e não tem franqueza de dizer.

— É uma desconfiança para que não lhe dei causa, compadre; o que eu quero é que você cumpra o trato; no caso contrário é outra cousa.

O modo brusco pelo qual Francisco Benedito respondeu ao fazendeiro e depois o amuo com que o tratava, contrariaram no extremamente Motta Coqueiro percebeu que as suas relações estavam estremecidas e desde logo retirou-se também de familiaridades com a família do agregado.

Antonica voltou de novo a exaltação da sua insensata paixão e já agora não tratava de ocultá-la. Um dia em que o Viana veio à sua casa rompeu desabridamente com ele, pondo assim a descoberto as benfeitorias do pai, e respondeu rudemente a este, dizendo-lhe que não o temia, porque teria por si a proteção do fazendeiro.

Arrependida de ter assim procedido, a moça tentou em seguida remediar o mal causado, reatando a amizade entre a sua família e o fazendeiro e foi procurá-lo à casa grande.

A alucinação impedia que Antonica pensasse na impropriedade da hora escolhida, e Manuel João que, louco também, farejava os arredores do casarão, viu-a sair e seguiu-a.

Quando à tardinha o fazendeiro, montado no seu alazão, revistou o serviço do dia, ficou cheio de pasmo: tinha-se feito três vezes mais do que ordinariamente.

Enquanto de modo tão expressivo os escravos festejavam a saída do ex-feitor, este amargava em silêncio bem tristes decepções. Andava como que envolvido numa gargalhada geral, desdobrada pelo céu límpido, pela aragem tranqüila, pelas árvores virentes, e o que mais lhe doía, pela própria Mariquinhas.

Era, porém, uma gratuita injustiça feita ao caráter da moça, a quem a notícia da demissão do feitor, se alguma cousa causou, foi dó.

Corrido diante dos seus próprios olhos, Manuel João não tinha forças para ausentar-se do sítio; ligava-o aí o casarão, a imagem de Mariquinhas e a própria infâmia que contra ela praticou.

Acabrunhado pela infelicidade nem ao menos lembrou-se dos seus companheiros e conselheiros; não arredou pé do sítio, temendo talvez que isto lhe custasse a perda do próprio lugar de trabalhador, que lhe dava ocasião de ver a mulher que o apaixonava.

Foi justamente esse apego a causa da sua pronta expulsão.

Balbina não podia sofrê-lo nem mesmo depois de vê-lo assim decaído; a sua presença era uma ameaça ao seu bem-estar e ao dos seus parceiros, e além disso ela tinha dado palavra à Carolina de punir o seu abandono.

Resolveu, portanto, perdê-lo de uma vez aos olhos de Motta Coqueiro, cousa facílima agora que Fidélis era o feitor da casa.

Uma noite a feiticeira convidou o feitor para a sua senzala e dirigiu-lhe a palavra.

— Balbina, disse ela, queria falar ao seu parceiro que é hoje feitor.

— Eu quero escutar, tia Balbina, se bem que vosmecê deve estar zangada comigo pelo que se deu naquele dia de manhã no terreiro.

— Balbina não se zanga com o galho de maricá, cheio de espinhos, que atiraram no caminho, e espetou o pé da negra. Fidélis ia ferir Balbina como o galho de maricá.

— Bem contra a minha vontade, eu juro por Deus.

— A cobra que largou a casca, prosseguiu a feiticeira, nem por isso perde o veneno. Outras escamas novas vêm-lhe cobrir o corpo e ela continua a seguir a sua vida. O senhor não despediu o feitor para sempre e pode trocar Manuel João por outro. O mal fica do mesmo feitio.

— Qual! não é assim, não, tia Balbina; o senhor está contente com o serviço.

— Tolo! o branco muda de pensar como a mangueira muda de folhas. O demônio anda nos olhos das filhas do agregado como o canto da coruja que adivinha morte. Quem sabe se é na casa grande, quem sabe se é na senzala do cativo. Fidélis é preto e o branco terá sempre má fé com ele. E preciso ganhar a amizade e o respeito do seu senhor.

Ponderando que as moças não deviam afastar-se por muito tempo de Antonica para conversarem com ela e ajudá-la a mover-se, Motta Coqueiro quis que Balbina continuasse no casarão, e a preta foi incumbida da lavagem da roupa e dos trabalhos da cozinha.

Francisco Benedito e seu filho voltaram ao trabalho do embalsamento, ao qual reuniu-se mais um novo empregado, Faustino Silva.

Homem de má nota nos arredores, Faustino guardava entretanto o aprumo do respeito diante do capitão Motta Coqueiro, a quem dava mostras da maior consideração.

Filho do lugar, esteve por longos anos fora dele por ter sido condenado a 20 anos de galés, por um assassinato.

Madrugava-lhe ainda a mocidade quando cometeu esse crime, e a convivência de celerados, combinada com a própria índole, converteu-lhe o coração numa pedra lascada e arestosa, cujo contato feria, ou ao menos escoriava.

Robusto e varonil, com quarenta anos de semi-ociosidade e de vida gargalhada na ignomínia da grilheta, e depois nos requebros dos fados, Faustino era um desses produtos comuns da ignorância, que tanto abundam pelos sertões.

Lia-se-lhe no rosto trigueiro, cercado por uma grossa barba negra, nos olhos mal-encarados, a torpeza de sua alma, e todos que o conheciam terminavam as suas apreciações acerca do novo trabalhador, dizendo: aquilo sempre é homem que mata os outros por dinheiro.

Tal era Faustino, segundo dizia o povo, que muitas vezes, que o maior número das vezes, exagera os defeitos do indivíduo.

Um irmão de Faustino, o Bento Silva, contava a seu respeito uma passagem romanesca.

Uma noite, à hora da revista, em uma das fortalezas do Rio de Janeiro, tocou-se a rebate pela fuga de um dos condenados.

Pôs-se tudo em atividade para efetuar-se a sua captura imediata, mas todo o esforço malogrou-se.

Os escaleres expedidos seguiram todos na direção da terra, da parte que ficava mais próxima à fortaleza, mas o preso mais atilado seguiu em direção oposta. Nadou ao largo da baía.

Só pela madrugada conseguiu pôr pé fora das ondas, mas estava salvo. Ninguém o perseguiu, e ele pôde embarcar como marinheiro a bordo de uma escuna, que partia para Macaé.

Aí despediu-se do navio, e internou-se para Macabu, seu torrão natal, onde levava a vida de trabalhador.

Entre Faustino e Francisco Benedito manteve-se a reserva que há sempre entre indivíduos, que reciprocamente se conhecem.

Nenhum deles gozava de boa fama, porém cada um considerava-se melhor do que o outro, e tinha escrúpulos na familiaridade.

Francisco Benedito nunca, por deferência ao menos, convidou o seu companheiro para ir à sua casa, fato que, ofendendo profundamente o desalmado Faustino, fazia com que ele dissesse quando falava-se no agregado:

— Aquilo é um cachaça; um dia eu parto-lhe os ossos e mais ao magarefe do filho. Vai tudo raso; porque eu não gosto que me torçam o focinho.

Mas apesar da recíproca antipatia, os homens harmonizavam durante o trabalho, e isto bastava.

Na casa do agregado ficavam apenas as mulheres. Para espairecer da funda hipocondria que lhe ia minando a existência, Mariquinhas costumava sair à hora da sesta e ir sentar-se com a sua costura à sombra de uma árvore que ficava perto.

Ai estava guardada pelo movimento das pessoas de casa e podia dar de mão ao temor que tinha de poder ser outra vez assaltada pelo feitor.

Um dia, porém, foi surpreendida justamente pela pessoa a quem queria evitar a todo o transe.

A voz do feitor plangente e submissa, buscando rodeios namorados, veio abalar-lhe a apatia íntima em que vivia.

— Ainda não me perdoou, sá Mariquinhas.

A moça não respondeu, mas abaixou ainda mais a cabeça, e pôs-se a cantarolar entredentes.

As suas feições tinham, porém, tomado um acento solene — a gravidade do pudor ofendido, e era bem fácil compreender a causa desta mudança.

Mariquinhas amava sinceramente o feitor. Dera-lhe as primícias imaculadas dos seus sonhos dos quinze anos, bando louro de miragens a entrançar-se em coréias festivas para desfazer-se afinal nos vapores róseos de um anelo indefinível, que lhe dominava o coração enchendo-o de um sussurro longínquo de saudades sem causa, de anseios sem objeto. Fizera das faces trigueiras de Manuel João o horizonte do seu viver modesto, e imaginara-se muitas vezes na sua casinha de sapê, a estender no terreiro a roupa de trabalho ou o seu fato domingueiro ao lado da camisa de morim, que se lhe apertava contra os seios, opressa pelas barbatanas do seu vestido.

À tardinha iria esperá-lo à porta, ou a meio caminho para acabar num beijo um sustozinho que se lhe ia alevantando com a aproximação da noite.

Custar-lhe-ia tanta felicidade, talvez, o desafeto de seus pais, porque o seu amante era homem de cor, e pobre; mas tudo isso compensar-lhe-ia o seu amor.

Um coração feminil vive de tanta quimera aos quinze anos!

Esse feixe facetado e iriante de ilusões desatou-o brutalmente o feitor na noite em que, acicatado pela lubricidade, três vezes covarde, atirou-se como fera esfaimada sobre a candura, o amor e a fraqueza de Mariquinhas.

Ao acordar do pesadelo atroz daquela noite, em vez dos sonhos inocentes em que se balouçava, Mariquinhas só pôde desde então ver dentro em sua alma um pugilato medonho entre o amor e a dignidade.

Tanto bastou para que os ciúmes veementes do ex-feitor se reacendessem num incêndio devastador. Então passou-lhe pela razão desvairada um argumento criminoso, que lhe explicava o afastamento e o ódio de Mariquinhas.

Antonica tinha tratado núpcias com o vendeiro; tinha-a visto dar ao seu companheiro as mais claras provas de afeto na sempre lembrada noite de Santo Antônio, tão cheia de doçuras para ele; e não obstante o ex-feitor via a noiva do seu amigo acobertar-se com a noite para entrar sozinha na casa grande.

Quem poderia desconvencê-lo de que igual cena não era representada pela preferida de sua alma, causa de todos os dissabores que lhe entristeciam agora a existência?

Esporeado pelo desejo de vingar-se de Motta Coqueiro, o ex-feitor correu até o casarão, mas em vez de bater à porta quedou estatelado.

Neste homem tão malvado quanto apreensivo, a covardia excedia a todos os defeitos morais, que o convertiam em um ente execrando.

Ponderou talvez quão tremenda era a odiosidade que o seu passo ia provocar e recuou diante dele, sem lembrar que, atenta à idéia que fazia da visita da moça à casa grande, era um perjúrio o seu silêncio.

Não foi só para o ex-feitor que a visita de Antonica teve uma interpretação pouco lisonjeira; o próprio Motta Coqueiro deu-lhe uma explicação injusta.

Recordando-se das informações que acerca da família de Francisco Benedito lhe foram ministradas por Fidélis, o fazendeiro viu apenas no ato de Antonica um ardil vergonhoso para que o agregado pudesse continuar a residir no casarão.

Naturalmente atencioso para com todos, Motta Coqueiro foi entretanto desabrido para com Antonica, e sem dar crédito aos protestos da moça, que se desfazia em prantos e desculpas, concluiu por dizer-lhe:

O seu pai faz muito mal em pô-la a serviço de seu pouco juízo; eu não sou o homem que ele pensa. Pode dizer-lhe que se serviu de maus recursos. Estes são para o Viana, o Sebastião e o Manuel João. Arrependido estou eu de ter consentido que ele viesse para as minhas terras; bem razão teve o Dr. Manhães. Isto já passa de escândalo e eu vou acabar de uma vez.

A visita foi pouco demorada e só alguns minutos haviam decorrido depois que Manuel João assistiu a entrada de Antonica, quando viu-a sair soluçando.

O zeloso amante retirou-se então para casa, e, sem poder explicar o que vira, perguntava a si mesmo se não desvairava num pesadelo. Um recado, que muito cedo lhe foi transmitido pelo moleque Carlos, veio tirá-lo da ansiedade em que se achava.

Mariquinhas convidava-o a ir imediatamente encontrá-la, enquanto não havia quem os visse. Ela esperava-o por detrás das casinholas dos fundos da senzala.

O ex-feitor correu prontamente e com efeito aí encontrou Mariquinhas, graças à tática da tia Balbina; o que, porém, não pôde gozar foi a efusão de afetos com que o desgraçado contava.

A cólera irrompeu-lhe erriçada e brutal, e Mariquinhas seria por ele estrangulada, se um socorro inesperado não o impedisse.

Fidélis apareceu de súbito no momento em que espumando, como um cão hidrófobo, Manuel João puxando pelas tranças de Mariquinhas, fê-la tombar em terra.

O preto não disse uma palavra, mas, vibrando vigorosamente o cabo do rebenque sobre os punhos do agressor, conteve-o na sanha feroz.

O cobarde deitou a fugir pelo campo do sítio.

Na verdade foi alumiado por uma boa estrela, quando fugia miseravelmente, sem reagir sequer pela palavra contra o castigo que recebeu.

Uns minutos mais de demora ser-lhe-iam mais desastrosos, senão de todo fatais, porquanto fora mister haver-se com o amo possante e justiceiro e agora quase alucinado ao saber do repugnante atentado.

Chegando ao lugar em que Mariquinhas tinha sido duplamente desacatada por Manuel João, Motta Coqueiro, ao ver a moça com o rosto sumido entre as mãos e a soluçar inconsolavelmente, acendeu-se em uma cólera turbilhonante, indômita, assombrosa e querendo punir o agressor, que fugira, ordenou, com gritos frenéticos, que lhe trouxessem o alazão.

A circunstância da hora impediu o pronto cumprimento da ordem; ainda o valente animal de largo fôlego e carreira tempestuosa pastava namorando com relinchos galanteadores o lote que o cercava.

Em vão daí a pouco aos repetidos upas do cavaleiro, o alazão, quase cosido com a grama, mediu à brida solta o campo do sítio e depois em rápida andadura o caminho que ia ter à venda do Viana.

O brutal agressor tinha podido ocultar-se em lugar seguro e daí observar sem ser visto todo o movimento dos escravos e de Motta Coqueiro para capturarem-no.

Entretanto Manuel João não tinha corrido até grande distância; achava-se a meio caminho da venda e daí podia iludir todas as pesquisas.

Quando estas afrouxaram, Manuel João, deixando seu esconderijo, caminhou cautelosamente até o lugar onde o pressentimento conduzira também, havia poucas horas, o fazendeiro.

Como uma aranha enorme no centro de imensa teia, Viana estava no meio da vendola sentado num caixão e com o tronco recostado em um saco de milho.

A ociosidade zumbia-lhe em tomo a desafiar-lhe bocejos e pairava-lhe já nas pálpebras, que pestanejavam morosamente.

Fora chilravam as cigarras e estalava ao calor um pano de frutos de mamona estendido ao sol.

Manuel João penetrou de um salto no interior da taberna e antes que o vendeiro tivesse tido tempo de espairecer o susto, já o hóspede tinha entrado para uma saleta que se abria sobre a sala da venda.

— Veio alguém procurar-me aqui? perguntou o ex-feitor.

— Temos novas artes, brejeiro? quem é que havia de vir procurá-lo? Tu andas procurando uma farda para estas costas.

A alegria hospitaleira do prudente vendeiro foi logo obrigada a retrair-se. Manuel João tomara a palavra e, depois de narrar todos os seus sofrimentos e torpezas, acabou por interessar vivamente o vendeiro:

— Agora escute bem, seu Viana, eu ao menos tenho uma glória, é que hei de vingar-me daquele demônio. Deixe-me pensar e verá. Ele me fez uma; há de pagar-me com juros, ou não estou falando com você.

O vendeiro, vivamente impressionado com o que acabava de ouvir, ficou meditando por largo espaço. Tinham-se-lhe extinguido os bocejos, e as pálpebras como que se lhe paralisaram. Temia que fosse descoberta a sua familiaridade com Manuel João de quem fora até certo ponto o instigador.

Diversas vezes o vendeiro levantou os olhos e cravou-os no rosto do ex-feitor, mas, encontrando as feições decompostas do amigo, desviou o olhar. Visivelmente o Viana temia emitir a sua opinião.

— Quer dizer-me alguma cousa, seu Viana; fale porque eu tenho ouvidos.

— Você não se zanga?

— Pode dizer para ai.

— Falando verdade, Manuel João, você foi um desastrado, e a cousa pode custar caro.

— Pois sim; se não fosse por isso era por aquilo; o diabo andava-me com sede.

— Mas se você não provocasse.

— Deixe passar o tempo; você não há de falar mais deste modo, pode ir pondo as barbas de molho. Lembra-se do dia em que sá Antonica ia-se afogando?

— Tenho de cor.

— Nesse dia foi que se descobriu qual das três era a que ele estimava; beijou sá Antonica à vista de todos.

A testa do vendeiro enrugou-se.

— Depois, continuou Manuel João, com estes olhos que a terra há de comer eu vi muitas vezes sá Antonica entrar na casa grande, sozinha e de noite.

— Ora ele é como pai delas; interrompeu o vendeiro profundamente despeitado; não estranho que ela o procure.

— Mandou uma negra fazer quartos a sá Antonica e, quando esta piorou, mandou para lá a Balbina, o estupor da feiticeira.

— Tudo isso não prova nada.

— É verdade; mas o que prova é que há muito tempo que você pediu sá Antonica, e o pai não ata nem desata, e ela mesma não faz caso de você.

Manuel João tinha tocado a chaga que sangrava o fingido vendeiro. Viana sentiu-se mordido pelas presas afiladas do despeito, quando Antonica maltratou-o positivamente, e desde então ruminava no isolamento a desforra ao desabrimento da moça.

Fechava-se com esta idéia e não queria vê-la transpirar ainda à custa da própria vida, pensava que ninguém tinha ainda percebido a frieza de Antonica para consigo e por isso contemporizava. Agora porém sabia de improviso que outros olhos, outra perspicácia devassaram a causa das suas meditações de vingança.

— E o que tem você com isso? exclamou o vendeiro. Cuide de si e olhe que não lhe sobra tempo.

— Eu já sabia que havia de ficar sozinho, atalhou Manuel João; mas não sou eu quem é o noivo de sá Antonica e portanto não sou também eu quem mais raiva mete ao capitão. Não tome tento não e eu lhe mostro.

Certo do efeito das suas palavras, Manuel João retirou-se da taberna, deixando Viana entregue às mais assustadoras conjeturas acerca do seu destino.

No sítio de Motta Coqueiro duas pessoas padeciam horrivelmente; eram Antonica e o fazendeiro.

O acaso parecia divertir-se em aglomerar contrariedades em torno de Motta Coqueiro e esbarrá-lo de encontro a elas.

A canoa que levara a família para a cidade tinha voltado e uma carta escrita pela esposa de Coqueiro veio colocá-lo em posição embaraçosa.

Na carta, a Sra. D. Maria, depois das expansões peculiares a uma ausência de consorte, ocupava-se com a moléstia de Carolina, nestes termos:

— A rapariga está salva, graças aos cuidados do médico, mas ainda está muito abatida. Vou, porém, comunicar-lhe uma cousa curiosa a respeito:

O médico, admirado do desvelo com que tratava-se Carolina, disse-me que ela não o merecia, porque a doença não era natural, mas sim provocada pela escrava.

Como era de meu dever interroguei-a e, depois de muito negar, confessou por fim que era verdade o que o médico revelou-me, e contou-me o seguinte:

"No dia em que adoeceu, acordou-se mais cedo do que devia e, para não ser enganada pelo sono e assim faltar à revista, resolveu-se a não tornar a deitar-se.
Como o luar era claro como o dia, diz ela que, para matar o tempo, saiu e pôs-se a passear por perto das casas da fazenda. Assim foi andando até a casa do compadre.
Aí tomou um violento susto porque inesperadamente estacou diante de dois vultos.
Estes, percebendo a sua chegada, correram e ela pôde reconhecer Manuel João e uma das filhas do compadre, que lhe pareceu ser a Mariquinhas, aquela Mariquinhas, que nós tínhamos por uma santa.
O choque sofrido por Carolina fez-lhe mal e quando voltou para casa sentiu já os primeiros sintomas da moléstia, que quase matou-a.
Não querendo dar parte de doente, porque se envergonhava de dizer o que tinha, decidiu-se a tratar-se por si mesma, tomando um chá que lhe disseram que era bom.
O remédio, porém, longe de fazê-la melhorar, deu em resultado o trabalho que temos tido para curá-la, e o susto que tivemos de perdê-la.
Vim depois a saber por uma das mucamas que Manuel João era amante de Carolina e ela confirmou-mo.
Avalie quanto estes fatos devem ter-me incomodado. Eu sempre tive escrúpulos das relações com a família do compadre, e agora impressiona-me extraordinariamente a lembrança das suas familiaridades com essa gente.
Há por força um fundo de verdade na confissão de Carolina e péssima vista fará a sua convivência em uma casa, que dá guarida aos caprichos dos feitores."

Depois destas considerações e de recomendações familiares, havia na carta este post scriptum:

— O embalsamento da madeira parece que não terá fim tão cedo.

Da primeira leitura Motta Coqueiro compreendeu apenas que havia esperdiçado os seus sentimentos generosos, quando encarregou-se espontaneamente de punir o que ele chamava um miserável abuso do ex-feitor.

Também da sua memória varreu-se a lembrança de Manuel João, por isso que o seu ato apareceu-lhe então ante a memória revestido com as rudes mas justificáveis asperezas de uma cena violenta de arrufos.

Nasceu-lhe, porém, uma repugnância invencível para com a família do compadre, a quem por piedade dias antes recomeçara a tratar brandamente.

Um incidente veio ainda agravar esta aversão.

Vizinho às terras do sítio morava Lúcio Ribeiro, alcunhado o capadócio. Era um mulatinho de vinte e dois anos, franzino, de modos bruscos e palavras atrevidas. Desde longa data entre a família de Lúcio e Motta Coqueiro reinava a mais irreconciliável desavença.

Lúcio vivia de ser votante, uma profissão muito rendosa e uma posição muito respeitável na roça. Somente é preciso saber fazer o oficio de votante, que tem calos bem doloridos.

O votante é o guarda-costas da autoridade e da influência do lugar; deve expor por eles a própria vida, como os antigos germanos expunham a sua pelos seus chefes.

Quando algum indivíduo incomoda de qualquer forma a influência ou a autoridade, estas esmeram-se em acobertar o seu ressentimento e impelem contra o indivíduo votante — espécie de cão de fila que dorme-lhes à porta.

A diferença entre os dois animais é que — um ataca de frente, corajosamente, navalhando e dilacerando com os dentes amolados; — o outro assalta traiçoeiramente e maneja a espingarda ou a faca, pelas costas da vítima.

Lúcio, havia algum tempo, tinha servido para significar a Coqueiro o desagrado em que tinha incorrido para com o subdelegado de Macabu, honrado conservador que dominava o lugar, e que, para avigorar-lhe a dedicação, ameaçava constantemente o fiel Lúcio com um espectro horrendo — a praça.

O resultado obtido pelo rapaz foi ganhar uma inimizade, e esta demonstrava-a claramente o fazendeiro negando a Lúcio e a todos os seus parentes passagem pelo seu sítio.

A proibição tinha sido respeitada por muito tempo, mas agora acontecia o contrário; Lúcio, a pretexto de visitar Francisco Benedito, fazia do sítio o seu caminho.

Conhecida por Motta Coqueiro a quebra da pena que tinha imposto a Lúcio, e informado de suas relações com Francisco Benedito, o fazendeiro fez disso um motivo para renovar, mas já em tom de intimação, o pedido ao compadre para que fizesse a sua casa.

— Ouça, compadre, disse ele a Francisco Benedito; você pensa que é por lhe querer mal que eu insisto em querer que você faça a sua casa; e no entanto quero apenas evitar questões. Ainda hoje disseram-me que o Lúcio faz caminho pelo sítio e desculpa-se com visitas à sua família. Eu não posso proibir que você se dê com este ou aquele, mas não posso consentir que entre pela minha casa dentro um indivíduo que insultou-me gratuitamente. Em todo caso, quando voltar ao sítio, desejo achá-lo mudado.

Francisco Benedito nada objetou.

O silêncio de Francisco Benedito foi apreciado por Motta Coqueiro a boa parte, e o fazendeiro entendeu que estava resolvida a grande questão da mudança.

Por esse lado creu estar descansado e continuou a cuidar nos seus trabalhos para terminá-los o mais prontamente possível e deixar o sitio que tanto incomodava-o agora.

Pensava em Antonica maldizendo a fatalidade que arraigara tão intensa paixão para a qual nem por um fugitivo pensamento ele quisera contribuir, e no entanto colaborara com a esperança.

A moça vingava-se do desabrimento com que foi tratada na última vez que tinham falado, deixando delir a sua formosura por uma consumpção rápida e fatal.

Como a nuvem negra que, embora carregada de aguaceiro, desliza sem ruído pela face do céu, Antonica, embora avergada ao sofrimento, vivia sem um ai ao lado do eleito dos seus sonhos.

Procurava evitá-lo sem afetação, sem uma só aspereza de despeito, mas, às vezes vencida pelas necessidades do coração e ao mesmo tempo contida pelo orgulho do amor desprezado, guardava um meio-termo que aliciava-lhe os olhos e sopitava-lhe o tormento.

Quando à tardinha o fazendeiro se sentava no terreiro da casa grande ora a ler, ora a fumar distraidamente, ela colocava-se junto da moita que ficava ao lado do casarão e, pelas malhas do trançado dos arbustos, contemplava-o extática. Só a noite tirava-a do seu observatório.

Uma tarde esta contemplação foi percebida por Motta Coqueiro, que se apiedou do desditoso afeto a que ele, por sua honra, não podia bafejar.

Teve sinceramente piedade de Antonica e duas vezes agitou o lenço chamando-a para junto de si.

Uma recordação proibitiva interpôs-se-lhe, porém, aos sentimentos compassivos, lembrou-se da carta de sua esposa, e uma força invencível impeliu-o a relê-la.

O só contato do papel fê-lo estremecer; parecia ter entre mãos uma sentença cruel. O pressentimento tornou-lhe maior a avidez da leitura, que antemão assim abalava-o.

Os primeiros períodos desfizeram quase totalmente o estado moral que o abatia, e Motta pôde sorrir às veladas insinuações da sua esposa. Para o fim da carta a impressão foi bem diversa e o fazendeiro chegou a repetir alto os dois períodos.

"Avalie quanto estes fatos devem ter me incomodado. Eu sempre tive escrúpulos das relações com a família do compadre, e agora impressiona-me extraordinariamente a lembrança das suas familiaridades com essa gente.
Há por força um fundo de verdade na confissão de Carolina e péssima vista fará a sua convivência em uma casa, que dá guarida aos caprichos dos feitores."

A odiosidade de que vivia cercado em Macabu, as provocações de que era alvo para que desorientassem-no dos caminhos da prudência e perdessem-no numa precipitação; as calúnias que arrebentavam do anônimo, à semelhança de uma nuvem de mosquitos de um pântano, assediavam-no entre zunidos importunos e mordidelas incômodas; as ciladas que a todo o momento enredavam-lhe os passos; o seu viver de isolamento que, averbado de misantropia, abria largo e atraente campo às intrigas as mais abstrusas, tudo isso borbulhou da memória do fazendeiro e, escoando-se pelos raciocínios exaltados, alagou-lhe o coração de uma inundação de fel.

A carta caiu-lhe com as mãos sobre os joelhos, ao passo que o olhar se fixava no céu.

A pouco e pouco, porém, as rugas da testa e a saliência exagerada das sobrancelhas, que lhe davam uma aparência de intratabilidade antipática, foram esvaendo-se e o semblante retomou a simpática seriedade habitual.

É que a paz da consciência asserenava-lhe os temores, e a ingênua confiança da honestidade espancava com os seus clarões os fantasmas evocados pelo receio.

Via-se-lhe na fisionomia, misterioso livro onde a consciência nos escreve dia a dia, hora a hora, a história de nossos atos; lia-se-lhe na fisionomia uma série de interrogações e respostas, no passar repentino da serenidade para a perturbação.

Ninguém, salvo má vontade extrema, poderia encontrar nos seus atos para com a família do agregado uma nódoa sequer, tinha sabido repelir a princípio com brandura e depois virtuosa rudeza, o coração que lhe oferecia, e se alguma culpa tinha na pertinácia do afeto de Antonica, devia ser lançada à conta da compaixão.

— Não há um só coração bem formado que possa por um momento fazer-me semelhante injustiça, disse convictamente o fazendeiro.

Os olhos abaixaram-se-lhe de novo, sobre o papel, que parecia magnetizá-lo, e, tomando-o maquinalmente, Motta Coqueiro continuou a leitura.

Agora encontrava ai um bálsamo para a ferida que daí mesmo tinha partido.

As letras ameigavam-se combinando-se em palavras de amor e carícias; recordações sagradas das alegrias e saudades de seus filhos e além delas gravavam o nome da esposa, o querido nome da companheira de infelicidades e de venturas.

Entretanto, como uma cascavel oculta sob flores, negrejava sob a assinatura o maldoso post scriptum: O embalsamento da madeira parece que não terá fim tão cedo.

Apesar da aparente despretensão da frase, Motta Coqueiro surpreendeu a suspeita que nela delicadamente se envolvia.

De feito, a moléstia de Antonica tinha ocasionado uma demora no trabalho, por isso que era impossível exigir de Francisco Benedito que abandonasse a filha gravemente enferma e se consagrasse aos interesses do fazendeiro. Demais o próprio Motta Coqueiro não zelou tais interesses, porque maior cuidado o absorvia.

A crise moral reapareceu no espírito já abonançado do homem que se infelicitava pelo bem alheio.

Havia pouco descansara na confiança de que ninguém de boa fé poderia julgá-lo mal, e agora via diante de si, representando este juízo, a pessoa por quem devia ser mais conhecido, a sua consorte.

Como explicar-lhe a demora pela moléstia de Antonica? A explicação, que era bastante para justificar Francisco Benedito, era inteiramente desarrazoada para si e serviria apenas para agravar as suspeitas.

Assoberbado pela dificuldade da sua posição, Motta Coqueiro perdeu-se num pélago de soluções, as quais repelia logo por improcedentes e comprometedoras.

A noite veio encontrá-lo no mesmo lugar e longo tempo correu sobre ele, profanando com a indiferença da aragem e do luzir das estrelas aquele padecer injusto.

Havia bem perto alguém que padecia igualmente, alguém que, pela presciência do amor, adivinhava que o fazendeiro sofria.

Era Antonica. Postada no seu ponto de observação, ela via sempre Motta Coqueiro retirar-se do terreiro logo ao cair da noite. Hoje, porém, o fazendeiro parecia nem sequer aperceber-se de que havia muito que a melancolia do crepúsculo tinha dado lugar ao mortiço tremeluzir das estrelas.

Sem saber como nem por que, Antonica veio insensivelmente aproximando-se do fazendeiro, e, quando já perto dele, teve a dolorosa certeza de que uma dor profunda o acabrunhava e absorvia.

Com os braços cruzados sobre o peito e as pálpebras fechadas, a cabeça descaída para trás, Motta Coqueiro jazia em imobilidade de cadáver.

É fácil descobrir qual o fio dos pensamentos da amante diante do homem que fascinou-a. O amor leva seu egoísmo a atribuir-se todas as felicidades e desventuras do ente amado; imagina que o riso ou a lágrima só ele tem força para provocá-los, só ele tem o condão de metamorfosear a existência em bulcões ou luares, em abismos trevosos ou em firmamento constelado.

Uma injustiça pungente sangrava ainda o coração de Antonica; ela, que se abandonava somente à correnteza de uma fascinação, ao deslumbramento de uma paixão, tinha sido acusada como instrumento ignóbil manejado por seu pai.

Não seria o arrependimento de tão amarga injúria a causa do abatimento do homem que involuntariamente havia monopolizado a tranqüilidade do seu existir?

Tal pensamento atravessou talvez o cérebro da moça, e, como ainda mais do que as próprias, torturavam-lhe as dores do fazendeiro, Antonica aproximou-se para levar-lhe o perdão.

Faltaram-lhe, porém, por muito tempo as forças; a voz sumia-se-lhe, enquanto que os lábios eram atraídos pela palidez da fronte do pensativo.

Afinal, derramando uma ternura infinita, Antonica murmurou timidamente

Sofre muito, seu capitão? Quem lhe faz mal!

A voz da moça repassava-se de um filtro irresistível de paixão; era o perdão dando-se espontâneo, sem ao menos uma súplica; era o consolo a implorar que o recebessem as mágoas sobranceiras que se fechavam no próprio travor, como se nisto se receassem.

Também o fazendeiro, como se já esperasse a inopinada consolação, respondeu-lhe sem sobressalto.

— Sim, padeço muito.

A resposta foi recolhida na tepidez de um suspiro, ao passo que a ansiedade apressava-se em ouvir uma confissão lisonjeira.

E sou eu a causa! eu que não tenho juízo! Meu Deus, para que me fez tão má!

As exclamações de Antonica, se é possível dizê-lo, eram feitas de lágrimas volatilizadas; cunhavam-nas uma imploração suave e uma piedade indizível. E como não ser de outro modo se ela, que daria, para que o fazendeiro tivesse um sorriso bom, a sua mocidade brunida pela formosura, os seus sonhos que ainda não tinham voado ao limiar dos vinte anos; se ela, amante apaixonada, tinha-o ante os seus olhos... sofrendo.

As palavras da moça não foram respondidas e Motta Coqueiro ensurdecia-se na letargia da dor.

E eu que, há tanto tempo, estou a vê-lo dali, continuou Antonica, e que não descobri logo que sofria. Não estava como nos outros dias, e eu não vim. Pensei que estava zangado comigo. Só fiquei certa de que seu capitão estava triste, porque já tão noite e ainda está aqui fora.

Como quem desperta por uma sacudidela brutal, o fazendeiro levantou-se e correu os olhos em torno de si, e depois para as mãos, em uma das quais tinha a carta amarrotada.

Antonica, assustada por esses movimentos, ficou imóvel, como se os pés se lhe tivessem grudado ao solo, e já começava a repreender-se da nova imprudência, esperando uma das explosões de gênio, tão fáceis em Motta Coqueiro.

Mas em vez de censura temida, encontrou a benevolência e se as mãos, se os gestos não se aveludaram em afagos, a voz transudou uma compaixão grata e amiga.

— Você faz-me pena, disse Motta Coqueiro; não conhece a vida, e vai até o precipício, querendo arrastar consigo aqueles a quem estima. Deixa-me em paz, Antonica. Ninguém melhor do que eu pode avaliar o seu sofrimento, mas tenho necessidade de ser cruel. O contrário era a minha desonra, o desassossego de toda a minha vida e a sua desgraça, Antonica. Hoje você ficaria satisfeita com as minhas carícias; porém amanhã, quando os seus pais lhe fechassem as portas, quando todos apontassem-na entre mofas e escárnios, teria de amaldiçoar-me. Nem você imagina quanto algumas palavras que lhe tenho dito custam-me em arrependimento. Julgo-me criminoso ante os meus filhos e minha mulher, e entretanto a minha estima por si não é senão a de um pai. Tenho dó de si.

— Mas, meu Deus, que desgraça é a minha que não posso nem estar ao pé de vosmecê um instante, sem que logo me mande embora; seu capitão pode ficar horas inteiras a olhar para um papel e não pode me ver nem um instantinho.

Buscando comover, a moça não fez mais do que avivar ainda mais na mente de Coqueiro a responsabilidade que lhe cabia na cena que se passava.

O papel preferido era a carta em que estava gravada a suspeita da consorte do fazendeiro, e lembrá-lo importava justificar a delicada repreensão que no papel ocultava.

— Não deve consentir, continuou o fazendeiro, porque tenho família, porque tenho dignidade. Basta já de comprometimentos; é a sua e minha perdição. Se alguém aparecesse agora, este papel que você vê teria toda a razão, e minha mulher poderia com justiça acusar-me.

— E que tem sua mulher e seus filhos com a minha amizade? Pois que me matem.

— Louquinha, faz-me pena.

— Paciência, mas é assim; matem-me se quiserem, mas hei de estimá-lo sempre.

O silêncio permeou a tristeza desses dois corações.

Passado algum tempo, Motta Coqueiro, como se houvesse encontrado uma solução decisiva para a sua situação, pegou da mão de Antonica e perguntou-lhe com voz comovida.

— Então estima-me muito, Antonica.

A moça respondeu movendo afirmativamente a cabeça.

— E é capaz de fazer tudo quanto eu lhe peça.

— Sim, respondeu alegremente Antonica.

— É o maior sacrifício da tua vida, mas será tua tranqüilidade mais tarde, e o sossego dos meus. Promete fazer-me?

— Diga, diga já.

— Eu juro que hei de velar por si, como se fosse seu pai, mas você há de fazer a vontade à sua família, aceitando o casamento com o Viana.

— Ah! meu Deus; isto é demais.

Enquanto Motta Coqueiro assim dedicava-se ao zelo pela reputação de Antonica e pela tranqüilidade do lar, três homens tratavam de minar sem ruído o edifício de paz que ele tentava construir em roda de si.

Um juramento de mútua defesa vinculava a recíproca dedicação coligando-lhes os esforços. Esses homens eram Manuel João, Sebastião Batista ou melhor Sebastião Pereira — apelido que o violeiro herdou a um seu antigo amo; e o Viana, o mais conhecido dos vendeiros da vizinhança.

O ex-feitor do sítio de Macabu, o covarde Manuel João, e o violeiro conspiravam por uma causa razoável; tinham levado a infâmia à casa do agregado e temiam a punição desse ato, punição que eles imaginavam tremenda, porque esperavam-na fulminada por Motta Coqueiro.

A situação do violeiro agravara-se de forma que para qualquer parte que ele olhasse não descortinava senão trevas e perigos.

Em uma das entrevistas com Chiquinha o ânimo destemido do violeiro havia enfraquecido e baqueado mesmo.

Sustando-lhe intempestivamente as expansões, cortando-lhe de um golpe o fio dos galanteios sedutores, a moça perguntou-lhe um dia:

— Você pensa que é muito feliz?

Sebastião riu-se com a boa vontade de quem tem por horizonte o gozo desassombrado de uma afeição que se dá, sem pedir, como retribuição mais do que uma hora de bom humor, e algumas condescendências amigas.

— Boa pergunta esta, Chiquinha, respondeu Sebastião; nem eu tenho razão para pensar de outra maneira.

O semblante tristonho de Chiquinha inundou-se da tristeza comovente da desesperação represa. Era mister entrar em uma revelação dolorosa que perturbaria necessariamente a felicidade alardeada alacremente pelo seu amante.

A delicadeza do amor pedia-lhe que se calasse, o melindre do pudor acovardava-a, mas o perigo da sua posição de filha-família exigia que ela fizesse o sacrifício e desvendasse aos olhos de Sebastião o futuro que a esperava.

— Você vive feliz, não é verdade? gemeu a voz da moça; pois eu vivo bem triste.

— Ora essa agora, sá Chiquinha; e quem foi que matou as suas pucas?

Esta nova resposta de Sebastião convencia pungentemente à moça de que bem longe estava do pensamento do seu amante aquilatar a extensão da desgraça que exauria-lhe a pouco e pouco a existência.

As lágrimas denunciaram-lhe o sofrimento que por muito tempo se refolhara na esperança, à semelhança de um besouro negro no cálice de uma açucena.

Aquelas grossas e tardas lágrimas eram a série dessorada das ardentes ilusões de outrora, hoje frios cadáveres; corriam estriadas pelo sangue de um coração ulcerado; impunham respeito, e testemunhavam a sinceridade da dor de quem as chorava.

Sebastião foi compassivo ao encontro da tortura que tanto alquebrava a moça.

Conchegou amorosamente ao seu o tronco emagrecido de Chiquinha, e deitou-lhe a cabeça sobre o seu ombro.

— Vejam só isto, disse ele ternamente; está aflita assim e não me disse nada. Diga quem é a causa de seu choro? eu fiz-lhe alguma cousa? alguém lhe ofendeu?

Prorrompendo em soluços angustiosos, que entrecortavam-lhe as palavras, Chiquinha arrancou do íntimo de sua alma este grito desolado, que lhe maltratava o coração, como se fosse uma bala encravada.

— Não é isto; é uma desgraça; há já dois meses talvez que eu sou mãe.

A dor de Chiquinha repercutiu intensa no coração do violeiro; era a erupção vulcânica que, ao passo que esbraseia a cratera, cobre o espaço de filmo, clarões e vômitos vermelhos e faz estremecer todo o solo em derredor.

Depois de uma longa pausa, que pesou como uma barra de ferro sobre o coração da moça, Sebastião com os olhos baixos e a voz afinada na entoação da angústia.

— Só há um remédio, murmurou; fugirmos.

— Fugir, mas meu pai, meu irmão hão de perseguir-nos; mas você prometeu casar-se comigo. Não quero fugir, não devo.

O violeiro estava de feito comovido, e não era com o fim de furtar-se à responsabilidade que propusera o alvitre à Chiquinha; era o meio mais expedito para subtrai-la às iras da família.

— Você disse muito bem, sá Chiquinha, é uma desgraça, soluçou o violeiro. O que não vai ser de nós; esse maldito capitão, seu pai; é uma desgraça, e o único remédio é este, fugir. Mais tarde eu remediarei o mal, juro. Prometa-me que sairá desta casa.

— É o que quiser, respondeu Chiquinha; eu já não sei o que faço.

Desde então os amantes esperavam somente a oportunidade para levar a efeito o expediente desesperado.

O violeiro, certo da gravidade do passo que ia dar, julgou-se desde logo irremediavelmente perdido aos olhos de Motta Coqueiro e ateve-se resignando-se ao seu infortúnio.

Neste estado de espírito foram encontrá-lo no dia em que Manuel João tinha sido forçado pelas circunstâncias a deixar o sítio.

Sebastião era a cabeça que dirigia todos os planos astuciosos do triunvirato. De improviso ele achava os meios para obviarem-se dificuldades consideradas insuperáveis, e além disso integrava com a coragem temerária a covardia dos seus companheiros. Era o Tirteu no meio daqueles dois lacedemônios irresolutos.

Manuel João procurou o seu valioso amigo somente na qualidade de hóspede, porquanto não tinha outra pessoa a quem recorresse. Também limitou-se a narrar o que se passava com ele, deixando à margem as relações do fazendeiro com Antonica.

Vingava-se desta sorte do vendeiro que, em vez de consolá-lo na sua desventura, achara azada ocasião para censurá-lo. Certo de que o Viana nada resolveria por si só, encobrir a Sebastião o que dizia respeito ao vendeiro importava torturá-lo ao menos por alguns dias.

Mas infelizmente para o ex-feitor o seu cálculo foi de relance burlado; duas horas depois da sua chegada à choupana do amigo, o Viana gritava à porta o familiar — olé de casa! e entregava ao critério do protetor e guia comum as suas mágoas e sustos.

O violeiro ouviu com o maior sangue frio a exposição dos acontecimentos que se atropelavam a favor dos três conjurados, respondendo apenas à ansiedade do Viana com um freqüente — continue.

Quando Viana concluiu a narração e aflitíssimo começou a dar aos diabos o pensamento de possuir Antonica, o violeiro desatou numa gargalhada estridente e franca e exclamou com uma alegria feroz.

— Então o Tebas está pelo beiço pela Antonica! É verdade mesmo, o diabo não abandona os seus.

Não era isto o que os dois interessados esperavam ouvir de Sebastião; a calma do violeiro percutiu-lhes a derradeira esperança e ambos bradaram furiosos:

— Com os diabos! Você está sempre a ver motivo para risadas, mesmo quando o caso não é para isto.

— Poiso que e que vocês querem, continuou Sebastião ,que não parava de rir-se; estou com o melro seguro. Vocês vão ver.

Após a expansão estrondosa, que sobremaneira desnorteava os dois timoratos conjurados; Sebastião, assumindo um ar grave, pôs-se a passear de um para o outro lado da sala desornada.

Durou pouco a meditação. Acercando-se de Viana disse o violeiro seriamente:

— Isto de amizade do mais arranjado com o pobre é sempre uma boa pulha. Diga portanto cá, seu Viana; você quer gastar alguma cousa ou não quer?

— Assim como vão as coisas, respondeu o vendeiro, há de ir tudo pelos ares. Estou pronto para a despesa.

— Pois dê-me de cinco a dez mil réis, e deixe rolar o dado por minha conta. Vá para a sua bodega sem medo, porque se o. indivíduo não lhe mandar tirar a vida pelos escravos, há de pagar-nos com língua de palmo.

— Mas o que é que você vai fazer? homem.

— Isto é segredo, escorrupiche o cobre, que é o que serve.

Satisfeita, não sem escrúpulos e pesar, a exigência de Sebastião, o vendeiro tomou para a sua vendola, cujas portas teve a precaução de especar sólida e cuidadosamente.

No dia seguinte pela manha, o violeiro, esganchado sobre a ossada do — Suspiro, ao qual o micuim convertera o couro em um arquipélago, marchava para a casa de Lúcio Ribeiro.

Depois dos cumprimentos ao capadócio, o recém-chegado, arranjando uma entoação de gracejo, perguntou-lhe de súbito:

— Então como vai de amizade com o tutu cá da terra, o grande capitão?

— Mudemos de conversa, respondeu Lúcio; aquilo é biscazinha que nunca me passou da garganta.

— Isto é fumaça, seu Lúcio; se o homem ficar com o governo, você há de mudar.

— Veremos; mas ali fica a serra dos Olhos d'Água e a minha espingarda não nega fogo.

— E se alguém mostrasse um meio de livrá-lo do bicho, você tinha coragem?

— Experimente, respondeu resolutamente o capadócio.

— Se tens coragem, meu velho, põe os arreios ao teu punga e vamos ao Licério. Tu és também da autoridade e o Licério é unha e carne do subdelegado.

Dentro em alguns momentos os dois trigueiros pernósticos marchavam em direção à casa do amigo do subdelegado.

Joaquim Licério, conhecido pela alcunha cigano, tinha grande influência na localidade, pela sua dupla posição de negociante e chicaneiro.

Os moradores do sertão confiavam-lhe todas as suas causas e embora as perdessem, diziam convictos a seu respeito:

— Aquilo é que é um homem para pendências.

Branco, ele não desdenhava sentar-se à mesa com os genuínos da raça africana, nem com os filhos do seu cruzamento; fazia este sacrifício a bem de seu negócio. Também era ele quem apresentava no mercado campista o melhor peixe salpreso da Lagoa Feia, e a melhor garapoca das matas de Macabu. Trabalhavam-lhe a rasto de barato.

Ativo, diligente, intrigante, tudo a bem do negócio, estava sempre trabalhando, porque dizia ele — a família vai crescendo, é preciso agüentá-la.

Devotado de alma ao subdelegado, a quem chamava — o meu homem — só havia uma afeição que lhe era mais cara — qualquer transação comercial por menor que fosse; a esta consagrava-se em alma e corpo.

Quem fosse a Licério e lhe acenasse com uma nota do tesouro ou do banco, podia descansar, que, se ela chegasse para o preço, estava servido.

Tal modo de pensar congraçava em torno do negociante rábula uma clientela imensa e devotada.

A sua casa de negócio, sortida de todos os gêneros, desde o medicamento até a carne de charque, desde a ferragem até as finas cassas, adaptava-se ao verso e reverso da vida humana: era para a saúde e para a enfermidade.

Ali reunia-se a guapa rapazia do lugar, os galhardos dançadores do fado, amantes do murro, das brigas de galo e apostas de natação, e o empório, graças a este ajuntamento diário, assemelhava-se a uma oficina de toques e cantilenas.

Licério animava a freguesia, e demorava com anedotas e intrigas aqueles que se queriam afastar; a causa era o borrador, o seu caro borrador.

Tais eram homem e casa procurados pelo violeiro para desfechar o golpe em Motta Coqueiro.

Recebido pela amabilidade de Licério, o violeiro cortou as expansões do negociante, bradando:

— Eta lá, meu branco; eu não vim para a prosa, mas para serviço; aqui está uma de cinco e entre para o escritório.

— É requerimento, seu diabo, já sei; alguma citação para conciliar; eu tempero a cousa.

— Qual requerimento, interrompeu Lúcio; é uma carta de recomendação para o bom capitão, o nosso amigo Coqueiro.

— Cáspite! exclamou Licério, que percebia o sentido das palavras de Lúcio, e a quem é que se vai recomendar a jóia?

— À pessoa que há de gostar muito da festa; porque o bicho deu em passarinheiro depois dos quarenta; quero recomendá-lo a quem se interessa por esta nova.

Rindo muito amistosamente, os três interlocutores, depois de um a libação a um copo de vinho, entraram para o escritório de Licério.

De volta da casa de Licério, o violeiro congregou os seus companheiros para efetuar a distribuição dos papéis, que não tardaram muito a ser desempenhados.

As operações deviam começar com a partida de Motta Coqueiro para Campos e esta efetuou-se alguns dias depois, pela influência dolorosa que teve no espírito do fazendeiro a carta de sua esposa.

Na véspera da partida, protegido pela certeza que todas as pessoas do sítio nutriam de que ele não ousaria aproximar-se do seu ex-amo, Manuel João conseguiu falar a Carlos.

Vinha pedir-lhe uma coisa muito simples: ser portador de uma carta para a Sra. D. Maria.

Um generoso porte captou imediatamente a boa vontade de Carlos que, não obstante, teve medo da empresa por uma circunstância que lhe foi adicionada...

— Você leva a carta, disse Manuel João, e lá um dia deixa a ficar na cestinha da costura ou em qualquer outra cousa em que a senhora tenha de mexer.

Qual o quê, seu Manuel João, eu entrego mesmo na mão da senhora; é mais certo.

— É verdade, mas como o amo anda zangado comigo pode se aborrecer com você por levar uma carta minha à senhora, e afinal você vem a sofrer.

O moleque, lembrando-se da ameaça do seu senhor na noite da primeira entrevista de Antonica, aceitou plenamente a observação, e concordou com o expediente mostrado pelo ex-feitor para que a carta chegasse ao seu destino.

Estava desfechado o primeiro golpe, cuja profundidade o tempo e os acontecimentos incumbiram-se de mostrar.

A oportunidade para o segundo não tardou a apresentar-se. Ofendido pela intimação de Motta Coqueiro, o agregado tratou de angariar elementos para a construção da casa, e alguns dias depois, graças a empréstimos de dinheiro por parte do subdelegado e dos serviços oferecidos por Lúcio, o inspetor André, Sebastião e Viana, começaram-se a fincar os esteios.

Lisonjeado pelo acolhimento que recebeu dos seus vizinhos, Francisco Benedito convenceu-se logo, o que era fácil ao seu caráter, estar invulnerável diante do seu compadre, fossem quaisquer os abusos que para contrariá-lo praticasse.

Assim, contra a vontade do feitor, e zombando até das ameaças deste, lançou mão de bois do sítio para carregar a madeira que tinha necessidade e provia-se dos cereais de que precisava nas roças do seu compadre.

Essas represálias continuadas punham patente a mudança de Francisco Benedito no modo de pensar a respeito do seu protetor, e pela sua gravidade mesma não podiam passar despercebidas aos olhos do violeiro.

O vendeiro foi logo posto em campo para extremar de uma vez esta situação.

Já a nova casa, como um grande esqueleto, erguia-se completa no seu madeiramento. Ao lado dela avultavam grandes pilhas de sapé, que eram destinadas a cubrirem a cumeeira; e junto das pilhas, em enormes buracos, revolviam-se as enxadas amassando o barro para sopapar as paredes.

O vendeiro, que tinha contribuído assaz para a rápida prontificação da casa, travou conversa com Francisco Benedito a respeito do casamento.

— Então, seu Chico, é desta ou da outra que há de sair o casamento.

— A sair, seu Viana, há de ser daqui, com o favor de Deus. Aquela amaldiçoada casa não me vê mais dentro de oito dias.

— Está-lhe com muita gana hoje, mas já gostou bem dela.

— O passado, passado. Hoje até me parece que se o casamento saísse de lá vocês haviam de ser infelizes, tem-me acontecido ali o diabo; estou com os cabelos brancos.

— Na verdade deu-lhe água pela barba.

— Adoeceu-me a Antonica, prosseguiu Francisco Benedito, que desde a queda no rio nunca mais teve saúde; Chiquinha está que parece opilada, e se ela já tivesse ido à igreja bem se podia dizer ao marido que era tempo de tratar das toucas de lã; a minha Mariquinhas, que era dantes um gaturamo, que passava os dias cantando, anda-me agora com uma cara de poucos amigos, bisonha e aborrecida.

— Mas então posso contar com o sim da sua parte, seu Chico? perguntou Viana.

— Palavra de honra! e vai ver como isto se decide hoje, respondeu o agregado.

À noite voltaram para o casarão e Francisco Benedito, chamando sua mulher, disse-lhe que tratasse de ver o que se havia de fazer para os enxovais de Antonica.

A moça, que estava cosendo a um canto da sala, interveio dissimuladamente na conversa.

— Mas eu não tenho vontade de casar-me, papai; estou muito criança ainda.

— Ora vá daí, atalhou bruscamente Francisco Benedito; quem sabe se você deve ou não deve casar sou eu; pode meter a viola no saco.

O que passou no coração de Antonica é indescritível, mas, a julgar pelo seu semblante, o golpe foi tremendo. Ela nada respondeu, mas o seu olhar fulminou, com a indignação e o desprezo, o perturbado vendeiro.

Convencido de que Antonica submeter-se-ia à vontade de seu pai, Viana esmerava-se em multiplicar obséquios ao agregado, todos os dias de manha vinha encontrar-se com ele no casara-o e daí acompanhava-o à casa nova, onde não se poupava no trabalho do embarreamento.

Era chegado o dia em que se devia dar a última demão à obra; faltava apenas embarrear algumas paredes interiores e assentar as portas e janelas, que não eram muitas.

Todos os amigos de Francisco Benedito apresentaram-se logo de manhãzinha para, em companhia da família deste, festejar o final da construção.

Em rancho festivo partiram para a nova casa, acompanhados pelo agregado, sua mulher, o Juca e Mariquinhas. No casarão ficaram Antonica e Chiquinha, cujo estado de saúde impedia-as de caminharem através do campo, das picadas dos capoeirões ainda orvalhados.

Pouco tempo depois da partida do rancho, chegou ao casarão, silencioso, o vendeiro que trazia as mãos carregadas de garrafas e o coração cheio de alegria.

Antonica veio recebê-lo à porta e noticiou-lhe secamente a partida da família.

Contrariado pela frieza da recepção, Viana apressou-se em despedir-se. Quando já se havia afastado alguns passos do casarão, Antonica fê-lo parar e aproximou-se dele, dissimulando o ódio que lhe gerara a persistência do vendeiro no desejo de recebê-la como esposa.

— Oh! seu Viana, exclamou ela, vosmecê está se enganando por seu gosto, ouvindo o que papai lhe diz. Eu não quero esse casamento; e não se deve obrigar ninguém para esse fim.

Isto é criançada que há de acabar com o tempo, sá Antonica; respondeu Viana dando às suas palavras uma pungente entoação de mofa. — Quer saber, eu apanhei outro dia uma juriti no ninho; levei-a para casa, e prendi-a num viveiro. Que bonito pássaro é a juriti, não é? Pois esteve bravo e quase morreu, tanto bateu com a cabeça nas tábuas do viveiro. Hoje está mansinho como um cordeiro e macio como um veludo. As mulheres todas fazem como as juritis; amansam-se. Bom dia, sá Antonica.

A dor de tamanho escárnio encheu de desânimo a debilitada Antonica. Às contínuas vigílias pranteadas, que eram o seu viver desde que ouviu a seu pai a sentença que tanto lhe torturava o coração, a moça debatia-se em meio das mais atrozes angústias.

De um lado flagelava-lhe o seu amor prudentemente rejeitado, de outro a imposição cruel feita a toda a sua vida. Do meio desse flagelo elevava-se o espírito para logo desmaiar em acerbas inconseqüências.

Já não sabia resolver-se, bolava à mercê de esperanças, à feição de ilusões caducas. Imaginara muitas vezes que as suas lágrimas teriam forças para convencer o vendeiro de que ele só conseguiria fazer a sua infelicidade, e então deleitava em sonhar a piedade desse homem comovendo-se diante da sua sinceridade, e salvando-a de um martírio sem fim.

Assim, pois, em vez de romper como era de esperar do seu gênio fogoso, Antonica apenas desculpou-se e suplicou.

— Nem sempre as juritis se amansam, às vezes as coitadas morrem de desespero. Pensa que eu não lhe estimo? E mau pensar; não lhe estimaria mais uma irmã. Pois se vosmecê foi sempre bom para mim... e a prova é gostar ainda de uma pessoa que já lhe maltratou. Mas escute, eu juro-lhe por Deus que nos está ouvindo, se eu pudesse ... mas não está em mim, é um feitiço; tenha dó, vosmecê teve mãe e pai, pelo amor que lhes teve me perdoe. E que eu nunca viveria contente.

Estavam claramente provadas as afirmações de Manuel João; o vendeiro ouviu no soluçar da súplica de Antonica a revelação de um amor profundo, arraigado, mortífero.

Não era igual a esta a afeição que ele votava à moça; era uma cousa que impressionava às vezes, mas que nunca lhe ensombrara a razão sequer um momento; nunca lhe arrancara lágrimas e soluços; nunca lhe diminuíra ao menos o apetite.

Molestou-o, é verdade, o mau trato que recebeu da sua noiva, mas do mesmo modo que o molestava a firmeza de um freguês quando, para não chegar ao preço, ia fazer negócio em outra venda. Demais ele não pensou nunca em triunfar senão em virtude da sua posição de negociante e credor do pai de Antonica. O seu casamento foi sempre, no seu entender, um problema que, mais do que o coração, a gaveta do seu balcão podia render.

Ao dar de face com esse mundo de agonias plangentes, a sua inata grosseria, a sua alma semelhante às prateleiras da sua vendola, pouso e atração do mosqueiro, a sua falta de sensibilidade enfim só encontrou uma pergunta bestial, e uma condição miserável.

— E a quem é então que sá Antonica estima? Se me disser o nome talvez eu ceda.

O pudor da moça cobriu com um véu róseo o nome pedido, e o seu olhar inflamado, convergindo para o colo, para esse espesso invólucro do coração, fazia pensar na espada de fogo do arcanjo velando às portas do Éden. Aqui o paraíso era o coração de Antonica habitado pela imagem do fazendeiro.

O pudico silêncio da infeliz deu azo a uma nova grosseria.

— Então não temos nada feito; riu desdenhosamente o vendeiro. Afinal não vale a pena fazer mistério daquilo que todo o mundo sabe.

— Quem? interrogou Antonica, é um segredo só meu, e por isso mesmo deve-se ter dó.

— Sim, eu tenho dó de seu pai, que vive enganado e desonrado pelo malvado do capitão.

— E falso; é uma calúnia. Eu já não lhe peço nada. Faça o que quiser. Digo-lhe só isto: não hei de dobrar-me à vontade de meu pai; não hei de ir aturar as suas maldades, seu malvado; só se quiser casar com uma defunta.

Viana pôs-se a rir desaforadamente, e a sacudir o corpo com um movimento convulso; depois parou de chofre e perguntou entre uma gargalhada.

— Fica mesmo aqui no casarão, ou o capitão manda fazer casa nova?

A veemência do insulto ocasionou um verdadeiro acesso de loucura na humilhada Antonica. Com uma temeridade inaudita, a sua mão pequena agitou-se no ar e, certeira, inesperadamente espalmou-se na face do vendeiro.

A larga faca polida, a companheira inseparável dos roceiros, luziu vibrada pela mão possante do vendeiro; que vomitou colérico uma pungente injúria.

Antonica imóvel, braços cruzados sobre o colo ofegante, o olhar vivaz e percuciente, esperou impassível o desfechar do golpe sem pôr dique à sua cólera indomável.

— Podes matar-me, seu miserável; antes o casarão do que a casa de um covarde. E até um benefício; mate-me de uma vez. Mate-me porque é a vontade: eu amo, sim, ao capitão e só ele, que não é miserável como tu, infame, homem que julga desonrada a mulher com quem quer casar, malvado.

Apesar da provocação, em vez da lâmina polida o violeiro desfechou sobre a moça uma gargalhada, três vezes pior do que o golpe.

— Descanse, Sra. Dona... não há de perder a sua vez; por ora é cedo; mas não ficará para semente.

A crueldade dos desdéns de Viana contiveram a desgraçada moça. Ao passo que o insultador, despeitado, afastava-se ela quedava perplexa, não adiantava. Havia desfeito entre eles um grande charco de lodo; — era o caráter do vendeiro.

A sua fotografia perfeita foi feita numa frase de Antonica relembrando o insulto que foi vibrado por Viana, quando lastimou a desonra paterna pelo Capitão. Era o requinte da hipocrisia fundabulando com a mais negra das torpezas.

Depois da longa quietação, semelhantemente ao que sacode um pesadelo, e porque ainda ante os olhos vê as larvas truculentas que o afligiam, foge ao lugar em que dormia e não se liberta da impressão desagradável senão ao ouvir uma voz humana; Antonica, ao recuperar a calma após a luta violenta com o vendeiro, correu até o quarto em que, suspirando à vergonha, e carpindo o seu erro, Chiquinha madornava a prostração moral que a extenuava.

Aí, como a criança amedrontada, subiu apressada ao leito e conchegou a cabeça afogueada ao colo de Chiquinha. As lágrimas desencadearam-se-lhe, e, com elas, um soluçar nervoso.

A enferma sofria assaz para saber compreender as dores alheias, porque desgraçadamente é preciso a dor para aferir a dor.

Com a voz úmida de ternura e compaixão, escondendo nas palavras o espanto, Chiquinha, anediando os cabelos de Antonica, perguntou-lhe com a delicadeza que os sentimentos fraternais emprestam à mulher:

— É possível, minha irmã, que também você seja tão desgraçada como eu?!...

— Mais ainda, Chiquinha, soluçou Antonica, eu amo, e nem devo dizer — amo.

Uma cena tocante de amor fraternal, consórcio de sentimentos puros na desgraça, sem estudo, sem arte como a fusão das águas de dois afluentes em um volume único, largo, majestoso, correntio e limpo, seguiu-se às primeiras palavras das duas moças.

As lágrimas, o sagrado batismo do infortúnio, lustravam-lhes o passado, onde as douradas ilusões do amor converteram-se a pouco e pouco em fantasmas ominosos, cuja projeção assombrava-lhes o presente e agourentava-lhes o futuro.

A comunicabilidade das dores sinceras estabeleceu-se prontamente entre as duas irmãs, e daí a pouco nenhuma delas tinha segredos para a outra. Chiquinha não tinha pintado exatamente a sua situação; mas sobre o que ocultou impunha-lhes silêncio o pudor.

Seriam duas ou três horas da tarde quando Sebastião, que na qualidade de homem entendido em carpintaria tinha desempenhado o papel de mestre da obra, pegou de um martelo e repicando com ele sobre um banco de carpinteiro anunciou o completo acabamento da casa.

Francisco Benedito, que desde a chegada ao lugar da nova habitação testemunhava a sua alegria repetindo visitas às garrafas, ergueu no ar um caneco cheio de vinho e agradeceu os serviços dos trabalhadores por um brinde lacônico e sincero: vivam os bons amigos!

Todos acompanharam a expansão e, rindo alegremente, foram sentar-se à sombra de uma copada angelineira que bracejava a ramagem' robusta perto do terreirinho do edifício rústico.

Sobre o chão estofado pela folhagem morta e caída da árvore, a mulher do agregado estendeu sobre uma toalha, da alvura da albumina, o banquete comemorativo do acontecimento.

A casa nova, imóvel, apresentava ao norte a frente rasgada até meia altura por uma porta estreita e duas janelas a pouca distância desta; parecia um conviva irresoluto no bródio sertanejo.

Três janelas laterais abriam-se para o oriente e outras tantas para o ocidente. Ao fundo, como uma asa caída, declivava do teto uma meia-água que era destinada a desempenhar as funções de cozinha. Tudo vestia-se de duas cores apenas — o avermelhado do barro e o pardacento do sapê e da madeira das portas e janelas não pintadas.

Em torno da casa adensava-se a mata, só rareada em uma largura de duas ou três braças, as quais davam lugar ao leito da estrada, que se alongava a perder de vista, em plena franqueza de suas curvas caprichosas como as do serpear da cobra.

Sobre tudo isso reinava a eterna rotina da natureza; os mesmos garganteios acontraltados do nhambu, os pios e chilros da passarinhada, os zumbidos dos insetos, o murmur dos veios d'água nas grotas, o azul intenso das serras próximas e o desmaiado azul do firmamento e da cordilheira distante.

Alegres e lisonjeados pelas provas de gratidão que recebiam, os hóspedes e protetores de Francisco Benedito sentavam-se à mesa com o desembaraçado apetite de quem acaba de trabalhar braçalmente. Demais erguiam-se das terrinas uns vapores traindo adubos esmerados e conscienciosos.

Cumpre notar que o contentamento geral não privava todavia a solicitude hospitaleira da família e assim foi que não passou despercebido o mau humor de que dava mostras o Viana da venda, um dos que mais tinham contribuído para o feliz êxito da construção e para a aparência lauta do banquete.

Além disso, Antonica e Chiquinha, que tinham chegado por último à reunião, conservavam-se visivelmente tristes, e mantinham tão grande reserva com os circunstantes que foi necessário explicar pela moléstia este fato inesperado.

No fim do jantar o subdelegado Oliveira, a quem já o gárrulo agregado havia anunciado o próximo enlace de Antonica com o vendeiro, admirado do afastamento requintado entre os noivos, acercou-se do inspetor André e disse-lhe muito à puridade:

— Oh! seu André, não lhe parece que anda caça escondida neste mato?

— V. S. que o diz é porque é; mas também se há é tão arisca que há de custar a sair da toca.

— Pois bem, fique você na espera, com todos os cinco sentidos, enquanto eu vou pôr-lhe os cachorros.

— Mais fácil é ser mordido por uma jararaca do que arredar pé um momento, respondeu o inspetor, aproveitando o encaixe para um riso apigarrado de adulação.

Á pouca distância destes interlocutores conversavam muito intimamente o vendeiro e o violeiro. Graves questões debatiam a julgar pela gesticulação animada e um certo ar de irresolução que envolvia o vendeiro.

O subdelegado tomou nota do que se passava entre os dois e bem assim do olhar atento com que Antonica os seguia, não obstante parecer completamente absorvida em uma conversação com Chiquinha.

Batendo as palmas jovialmente, Oliveira achou-se logo cercado por todas as pessoas presentes, e começou no tom mais cordial de memória de homens:

— Para aqui junto de mim, Sr. Chico! eu não meto prego sem estopa. Diga-me cá, não se fazem os convites para o recebo a vós? Ande lá que parece querer deixar-me ficar no tinteiro?

— Bem falado, meu senhor, muito bem falado, respondeu o agregado; mas eu não sou o dono da festa, a culpa é toda do Viana que, sempre que a gente fala no caso, fica estranhão como uma criança de peito.

— Pois isto não se faz aos amigos, Sr. Viana, continuou o subdelegado, à medida que caminhava para o vendeiro.

Pondo-lhe depois as duas mãos sobre os ombros e sacudindo-o amigavelmente prosseguiu:

— Já tem padrinhos, seu maganão? O segredo nestes negócios é grande toleima.

Viana, porém, não deu em resposta senão o riso alvar da aquiescência contrafeita e Antonica denunciou claramente a repugnância que lhe causava a audição de palavras referentes ao consórcio.

— É novo isto, exclamou Oliveira, os noivos parece que se zangam com a gente porque lhes fala no casamento. O Viana está macambúzio como um boi mordido de cobra, e a Antonica amarelou como uma flor de abóbora. Está bom, está bom, não se casam, não; quem é que disse que vocês se casavam? Ora é boa, não faltava mais nada; calúnias! Há muito rná-língua neste mundo.

Uma risada estrondosa acolheu o gracejo do subdelegado, que regozijou-se interiormente com a certeza de ter descoberto o segredo dos noivos, e, satisfeito com essa vitória da sua perspicácia, multiplicou os epigramas, com o fim de conseguir pela irritação o que não podia obter espontaneamente.

— Já havia-me passado pela cabeça uma idéia, disse ele; era servir de padrinho ao Viana, se isto fosse do seu agrado, e não houvesse pessoa mais considerada já convidada. Depois eu disse com os meus botões: não, não me ofereço; o Chico é lá agregado do capitão e há de querer que ele seja o padrinho; já lhe deu a batizar uma filha...

— Mas hoje, interrompeu o agregado, não lhe dou por meu gosto nem um coco dágua. É bichinho que entra com pés de lã e depois arranha e morde.

— Isto é o que você pensa agora, mas antes ele era o seu deus; e o Viana ainda hoje não tem razão de queixa. Não é verdade, santinho?

— Queira perdoar vosmecê, seu subdelegado, mas eu hoje estou um pouco doente e vou-me chegando à casa, respondeu o vendeiro.

— E dispensa uma companhia? interrogou Oliveira.

— Está visto que não, até gostarei.

— Pois neste caso eu vou consigo; a conversa abrevia muito as viagens.

O melhor é irmos todos, ponderou Sebastião; não há nada mais a fazer aqui e para palestrar estamos muito melhor lá no casarão.

Quando o farrancho ia a entrar na casa do agregado, o violeiro, apontando para o porto, chamou a atenção geral para essa parte do campo.

— Parece que chegou canoa da cidade e se não me engano aqueles que lá estão no porto são o Faustino Silva e o Pelegrino.

Dentro em alguns minutos não houve mais dúvida; as pessoas que estavam no porto, com os remos às costas e cestos à cabeça, tomaram a direção da casa grande.

— Agora não sai ninguém daqui, exclamou o agregado; o Faustino há de candongar por força ao amo e eu quero meter-lhe ferro por saber que vocês estiveram comigo. É uma pagazinha dos desaforos que me tem feito.

— É direito, muito direito; acrescentou o violeiro; mostre-se àquele inchado capitão que a gente não morre de caretas.

Todos concordaram com a resolução do agregado, patrocinada pela arrogância do violeiro, ainda que não muito por vontade do subdelegado e inspetor, que só ficaram para não mostrarem-se medrosos.

Na porta do casarão, com o chapéu de lebre na mão e rosto carrancudo, assomou Faustino Silva, que apenas saudou o agregado e seus hóspedes, e logo retirou-se depois de ter entregado a Francisco Benedito uma carta que lhe era dirigida pelo capitão Motta Coqueiro.

Um movimento de surpresa descorou todos os rostos e ainda os mais corajosos estremeceram involuntariamente. De feito, era singular que em tão pouco tempo de ausência já o fazendeiro tivesse motivos urgentes para dirigir-se ao seu compadre.

A pedido de Francisco Benedito, o subdelegado colocou os seus óculos, quebrou a obréia da carta e leu com voz pausada:

"Compadre.
Ao sair do sítio tinha-lhe pedido que se apressasse a fazer a sua casa no lugar que demarquei para servir-lhe de situação. O tempo que o compadre gastou para levar a efeito esta condição do trato que de viva voz fizemos, quando entrou para nossa casa, faz-me crer que o compadre ainda não começou o trabalho, ou que não o terá muito adiantado. Aconselho-lhe agora que ou não comece, ou pare a construção.
A razão por que lhe aconselho isto é ter deliberado montar melhor o meu sítio, e tirar proveito dele de todos os modos.
Sabe o compadre que o sitio não tem grande extensão e por isso não posso mais dispensar terras para estabelecimento de agregados; ao contrário preciso de adquirir maior terreno.
Proponho-lhe um negócio que lhe será vantajoso; o compadre passar-me-á por uma avaliação as suas benfeitorias e ficará morando no casarão até que eu lhe possa arranjar um outro fazendeiro que tenha terras devolutas.
Recomendo-me a todos e faço votos para a inteira cura da Antonica."

— Não se pode crer em tanta infâmia, exclamou o subdelegado, ao terminar a leitura.

— Eu já esperava por esta, ajuntou Sebastião; ele é capaz de mais ainda.

Francisco Benedito vociferava como um possesso contra o compadre, e lastimava-se ao mesmo tempo, e concluiu por uma interrogação e uma ameaça.

— Eu só queria saber quem foi o demônio que me indispôs desta sorte com o diabo do malvado; havia de moê-lo a pauladas; desse no que desse.

— Nada é mais simples do que descobrir a causa, interveio Viana; procure bem por aqui mesmo; indague bem dentro de sua casa e verá.

Todos olharam-se espantados, e cada um sentiu-se vexado como os apóstolos quando o Cristo anunciou a sua próxima traição por um dos que com ele se reuniam no Cenáculo.

Antonica foi quem sofreu o golpe mais rude; tinha a certeza dolorosa de que as palavras de Viana eram o prólogo de uma vingança desapiedada e inexorável. Sentiu faltarem-lhe as forças e não pôde retirar-se da sala, como era seu desejo.

— Eu vou contar uma história, exclamou Sebastião no meio da perplexidade de todos; é uma história que me contaram há muito tempo. Havia um trabalhador já idoso que tinha muitos filhos, entre os quais algumas moças, que todos diziam ser muito bonitas. Um dia o velho achou-se meio do mato sem casa onde morar, sem trabalho; uma desgraça. Um fazendeiro da vizinhança mostrou ter dó dele e chamou-o para a sua casa, mas infelizmente o velho tinha filhas que eram umas jóias, e o fazendeiro gostou delas. Queria deste modo cobrar-se do favor que tinha feito. O que houve, o que não houve entre as moças e ele não sei, não me contaram; o certo é que desde que as moças foram pedidas em casamento o fazendeiro começou a maltratar e a perseguir o pai a quem tinha antes protegido.

Ora eis aí como foi o caso; entrou por uma porta, saiu por outra e manda el-rei que conte outra.

A aplicação da história contada pelo violeiro era fácil demais para que todos imediatamente não a fizessem. O subdelegado que desde o princípio do conto percebeu onde ele ia bater, desejoso de tomar mais explícita a censura, que tanto infamava Motta Coqueiro, reteve a erupção da cólera de Francisco Benedito, ponderando ao violeiro:

— Ora, outro ofício, Sebastião, isto é uma história da carocha.

— As vezes são verdadeiras, respondeu o violeiro, e esta é, eu lho juro.

Viana que, depois de atirar a suspeita, se havia calado, colocou-se então na frente de Francisco Benedito, cujas mãos segurou, e disse, voltando-se primeiro para o subdelegado e depois para o agregado:

— Infelizmente há histórias da carocha que são verdadeiras, e aqui temos uma prova. Seu Chico, escusado é ir longe buscar o seu inimigo; Antonica pode dizer o que há com o capitão.

O efeito das palavras do vendeiro excedeu à mais calculada expectativa: a amarelidão cadaverosa que tingiu as faces de Antonica, o tremor convulsivo que a obrigava a tiritar, o estupor chispante que estagnou-lhe o olhar faziam pensar a todos os circunstantes não em um protesto doloroso a uma ofensa pungente, mas em uma confissão extorquida de súbito a um sigilo que se julgava inviolável.

E tinha justificação eloqüente a perturbação da desventurada moça; pobre pérola perdida em um esterquilínio de caracteres em decomposição, sentia-se alinhavada nos farrapos sórdidos de uma vingança baixa e vila, que, sem coragem para um desforço não já em uma luta de honra, mas sequer em uma emboscada, lançava mão da intriga e por ela espojava-se em uma alegria insensata.

Uma intuição perspicaz escobrir-lhe-ia no espírito, de pé, solenes e iguais na estatura, a revolta da mulher pura insultada, e a vergonha da amante ao sentir em nudez profanada o íntimo da sua alma povoada de perdões e esperanças; de mágoas e abnegação; dor santa e veneranda porquanto, nessa hora em que a iniquidade consumava tanta torpeza, ela estava só, indefesa, entregue à indignação da boa fé paterna ilaqueada e aos golpes rudes do despeito triunfante.

Via todos os olhos cravados na sua perturbação inevitável, cheios de crueldade e de interrogações aviltantes, agora que a sua consciência chorava as amargas lágrimas do pudor angustiado, e, o que mais penoso era, via essas lágrimas serem grosseiramente confundidas com as do brio feminil acordado de chofre de uma letargia moral por uma sacudidela de censura.

Os lábios negavam-lhe uma única palavra, porque as combinações do alfabeto e dos sons falecem irremediavelmente nas horas das grandes crises dos sentimentos. Também de que lhe serviria falar, se todos os argumentos estavam de antemão condenados, se um grito de desespero seria julgado uma explosão de vexame ou refinamento de hipocrisia'?

Com a boa vontade de um sequioso que farta-se a beber água salobra, o vendeiro saciava neste martírio a sua desforra indigna; corvejavam-lhe jubilosos, sobre a hediondez do caráter, os instintos da perversidade fria e calculista.

— Anda de lá, velhaca; bradou bruscamente Francisco Benedito, conta-me, antes que eu perca o tino, as tuas sapecarias, sonsa dos diabos, que desonras as barbas do teu pai, fala enquanto não te esgano, que é quanto tu mereces.

— Calma! tenha calma, seu Chico, disse ameigando a voz o subdelegado; ela não é a mais culpada.

O prudente Sr. Oliveira já a esse tempo braçara-se com o agregado, que, vociferando, forcejava por desembaraçar-se e dirigir-se à filha, a quem cercavam suas irmãs e mãe, banhadas em pranto.

— Homem, escute, arrazoou Sebastião para o possesso pai; não é perdendo o siso que você há de deslindar a meada. Não esteja também fazendo futuros maus. Você é criança ou é um pai de família? Atenda primeiro, com seiscentos mil raios. Está a descompor à toa a rapariga.

Vencendo a pertinaz resistência do agregado, o Sr. Oliveira e Sebastião conseguiram tirá-lo para fora da sala e acalmá-lo um pouco.

Feito isto, o violeiro, que impressionara-se vivamente com o estado de abatimento de Antonica e ainda mais com os olhares súplices de Chiquinha, ou melhor pela evocação dos seus atos, segurou Viana por um braço, e falando-lhe à parte, disse-lhe terminantemente:

— Fique sabendo que o negócio é só com o capitão; deixe-se, portanto, de acusar a rapariga. Faça carga no bicho e poupe os mais, ou então eu parto para a cidade e vou na presença do capitão desarmar toda a igrejinha.

— Mas já lhe contei o que ela me fez, respondeu colérico o vendeiro; eu não sou homem para agüentar desaforos.

— Está bom, está bom, seu Viana; nenhum de nós engana um ao outro; você não quer nem queria casar-se com Antonica e podia fazer como nós, não quis por tolo. Venha daí e veja se acomoda o velho. Nós temos sido amigos até hoje e não devemos brigar por cousas de pouca monta. A zanga da menina há de passar; assim seja você bom para ela agora.

Os escrúpulos de consciência, o sonho da vitória do amor pelo amor, nascem da sinceridade do afeto e da limpeza das intenções, quando, porém, a paixão limita-se ao desejo da posse material da mulher, quaisquer que sejam os meios são sempre atraentes e exeqüíveis.

Acresce que as paixões desta ordem vegetam sempre nos corações apodrecidos pelo vício ou pela ignorância, do mesmo modo que certas parasitas preferem as árvores mortas para se proverem de seiva.

O vendeiro não podia ser classificado senão na última das duas classes de amantes, e por isso mesmo condescendeu com a esperança dada por Sebastião.

Sentando-se ao lado de Francisco Benedito, começou a asserená-lo, quando lhe pareceu oportuno.

O velho, já vencido pela argumentação tersa do subdelegado e pelas meias palavras consoladoras de Sebastião, havia ponderado criteriosamente.

— Quem pode dizer se eu tenho ou não motivo para danar é o Viana, ele é quem sabe do negócio, mas está aí calado como um garrafão lacrado; é que ele pensa comigo.

— Tem seus conformes, seu Chico, observou o vendeiro; eu ainda não falei nada.

— Pois safe-se daí logo com o que sabe, gritou o violeiro; é preciso a gente saber a quantas anda. Vamos por ora às apalpadelas.

— O que eu sei é isto: quando si Antonica por um triz que não se afogou, o capitão veio depressa em seu socorro, mas em vez de se portar como um homem sério beijou muito a coitada. Foi pelo menos o que me contaram...

— A verdade é esta, entende, meu senhor; interrompeu o agregado dirigindo-se ao Sr. Oliveira.

— Depois, continuou o vendeiro, eu vi com estes olhos o cuidado do capitão durante a doença de Antonica. Mandou escravas servi-la e ele próprio passava horas esquecidas velando a doente.

— Posso jurar nos Evangelhos como tudo está sendo dito direito, observou Francisco Benedito.

— Ninguém desconfiava nada, prosseguiu o comentador, porque o capitão é compadre da casa e um homem de idade. Depois de passada a doença houve, porém, quem visse Antonica ir por diversas vezes à casa grande sozinha, e quase sempre de noite.

— E ainda não querem vocês que eu tire das costas daquela sirigaiata os passeios sem licença dos seus pais?!

— Eu por minha parte nada suspeitei nunca, mesmo depois que me contaram o caso, mas hoje si Antonica me fez uma partida que me fez pensar muito sério. Depois de tudo tratado, disse-me sem mais nem menos, que não me estima já, e que por vontade dela não se casa. Enfim eu não digo nada, mas uma cousa destas tem muito peso.

Apesar de atenuada de alguma forma a culpabilidade de Antonica, todavia o agregado não se mostrava propenso a forrar-se da suposição desairosa para com sua filha. A tática do violeiro tomou-se necessária, indispensável, para multiplicar a queixa do seu inseparável amigo.

— Pela parte de sá Antonica pode descansar, seu Chico; ela é incapaz virar a cabeça. Há testemunha de vista de um caso. O Manuel João foi despedido daqui por causa disso e disse-me tudo tintim por tintim. É deste jeito.

Uma noite o capitão viu passar sá Antonica sozinha por defronte da casa grande e foi divertir-se com a menina. Esta, porém, não só ficou muito amofinada, mas até ameaçou de vir dar parte a você; está entendendo, seu Chico. Portanto, o que é que tem si Antonica a ver aqui.

— A mim também parece que, se houvesse alguma cousa, o capitão não quereria que você fosse morar para mais longe; ponderou o Sr. Oliveira.

— Está visto. Se há alguma cousa, é raiva do capitão por não ter conseguido os seus fins; isto está saltando aos olhos. O que admira é que o cismático do seu Viana venha aqui contar histórias ainda. Quanto mais se faz menos se merece.

A argumentação frouxa e descabida mesmo dos interlocutores abrandou a cólera superficial do agregado, cólera que rompia mais diretamente de um grau já bastante elevado de alcoolismo do que de um sentimento nobre.

Por fim Francisco Benedito falava com menos calor na maculação das suas barbas brancas e com veemência, com ódio na força do seu compadre e na própria fraqueza.

— Ser pobre é o mesmo que ser boi de ajoujo, repetia freneticamente o agregado; trabalha um homem e de uma hora para outra não tem mais onde meter a cabeça, porque tudo quanto se tem é pouco para a goela do rico.

Solícito em desvanecer esta derradeira nuvem que pairava sobre o espírito de Francisco Benedito, o subdelegado Oliveira resolveu dar-lhe por virtude da sua autoridade local uma prova inequívoca de zelo e de poder, que teve força de renascer a confiança do agregado.

— Quanto às terras, Sr. Chico, ponderou o subdelegado, corre por minha conta; basta você fazer-se duro por elas e o seu compadre há de ver-se tonto. Ele não o pode deitá-lo fora assim como quem enxota um cão; são necessárias certas formalidades da lei; por exemplo, requerer ao juiz de paz, etc., etc. Ora, o juiz de paz é um amigalhaço do Coqueiro, não iria nem para o céu em companhia dele. Vê, pois, você que está seguro.

— E se ele lançar mão da força, o que hei de eu fazer senão ceder? interrogou o agregado.

— Amor com amor se paga, e uma mão lava a outra. Se ele tem muitos capangas e escravos, você tenha jeito para tomar um despique. Pela minha parte dou-lhe carta branca, e digo-lhe até mais: será um benefício para este pobre povo ver-se livre de tal monstro. Em resumo, Sr. Chico, vou dizer-lhe a minha última palavra sobre isso: há certas questões que só se liquidam a pau.

— Quase sempre o cacete é a melhor justiça, confirmou todo risonho o inspetor André; não há melhor cadeia neste mundo do que uma camisa de grumarim.

— O mais que lhe posso oferecer, acrescentou o violeiro, é o adjutório do meu braço, caso os do seu Chico e seu filho não cheguem.

Após estes oferecimentos feitos por todos, à exceção do Viana, a reunião dissolveu-se a maldizer e desfear a causa da mudança de humor de Motta Coqueiro para com o seu compadre.

A meio caminho de casa e quase extremo cansaço do magro suspiro, o violeiro foi detido por Lúcio Ribeiro que, a largo e contínuo galope, vinha ao seu encontro.

O capadócio narrou miudamente que havia mais de duas horas que estava sôfrego a esperar o violeiro para comunicar-lhe uma conversa que tinha ouvido a Faustino.

— Ouvi, disse ele, ao demônio do caboclo, que faz rendimento de tirar a vida dos outros, dizer que o capitão está lá na cidade arranjando-me três côvados de pano para as costas. Dê no que der eu hei de ir para a praça.

— E você esqueceu, com o susto, o caminho da serra dos Olhos d'Água e as bibocas destes morros, forte medroso.

— Depois o Faustino contou também que o homem dá você aos diabos e promete-lhe castigo. O Faustino logo se ofereceu ali à vista de todos ficar a cargo dele o serviço contra você. A dúvida é o capitão dar-lhe cem mil réis; se ele chegar ao preço, o Faustino diz que é bem capaz de tirar a vida não só a você mas ao Chico Benedito e à família inteira. Eu quis logo avisá-lo porque o Faustino é homem de dizer e fazer.

— Mas ainda não se lhe deu o dinheiro.

— E o menos para o capitão, e, se não me engano, já há um dinheiro para o Faustino por um vale do capitão.

— Ora adeus, Lúcio; eu não estou dormindo.

Depois de separarem-se, o violeiro perdeu a aparência de calma que o revestia sempre nas situações perigosas. Ia à mercê do Suspiro que, abanando as longas orelhas, retardava cada vez mais a sua marcha lerda.

Quando entrou em casa, respondeu à ansiedade de Manuel João com um subterfúgio e foi sentar-se calado e a fumar em um canto da casa.

— Que tem você para ficar assim emburrado, homem, fale porque isto diz-me também respeito; perguntou o ex-feitor.

— Cale-se dai, seu maricas, isto é o fruto das suas trapalhadas.

Os dois recaíram em absoluto silêncio, e assim conservaram-se por largo tempo. Afinal surdiu através do incômodo de ambos a alegria expansiva do violeiro.

— Estou ficando tiro ruim como vocês; assusto-me por pouca cousa. Contaram-me uma fábula que é a minha felicidade, e no entanto eu fiquei amedrontado. Mas passou; vamos à prosa, seu Manuel João.

Os dois sentaram-se a fumar descansadamente, enquanto o violeiro narrava os sucessos do dia.

O plano magistralmente urdido pelo violeiro produziu resultados tão exatos e precisos quanto graves e terríveis.

A calúnia, a intriga e a dissimulação, entrançadas em uma teia consistente, enlaçaram-se como um baraço assassino ao sossego e descuidos íntimos das duas famílias, e estrangularam-nos desapiedadamente.

A existência de Antonica, verticiliada em risos e ilusões juvenis, transformou-se em uma série de humilhações pungentes, e o fazendeiro viu também suceder às prazenterias do lar o retraimento da esposa, ferida pela desconfiança na sinceridade do seu afeto.

Para Motta Coqueiro só houve, depois do penoso conhecimento da afeição de Antonica, alguns dias de tranqüilidade: foram os que se seguiram logo à chegada à sua chácara em Campos.

Lançando um olhar retrospectivo à consciência descobriu ai algumas sombras tristonhas, mas tão delgadas e diáfanas que desde logo acreditou que para desfazê-las bastava um sopro de raciocínio e resignação.

O isolamento em que vivia no sítio e que constrangia-o a diminuir até a atenção intelectual para que pudesse ser compreendido pelas pessoas com quem estava em imediato contato; semelhante isolamento foi substituído pela convivência polida e delicada de uma sociedade inteligente e desdobrada em pensamentos para a família e para a pátria.

Desde a manha era visitado por amigos que intermeavam as conversações familiares com observações judiciosas acerca do movimento social, e assim chamavam-lhe o espírito para a atividade sadia dos espíritos educados.

Vivia numa espécie de aturdimento intimo; tal era o atropelo das questões que era obrigado a discutir e apresentar solução, e força é dizer que semelhante estado agradava-lhe, porquanto redundava-lhe em um como soterramento das mágoas domésticas.

A chegada de Motta Coqueiro era esperada com ansiedade porque uma viravolta política tinha abalado o partido conservador campista, do qual o fazendeiro era membro proeminente e influência decidida.

O abalo tinha sido produzido por uma desastrada mudança na chefia do partido, não por serviços prestados, mas por um simples despacho do governo, que dava a direção da família conservadora da localidade a um novo juiz de direito nomeado.

Esse homem, que começava então a sua carreira política, pensando em tirar da sua posição proveito, mais útil à sua pessoa do que aos interesses do partido, inaugurou a sua direção concentrando em si toda a atividade sobre os correligionários.

Graças à sua inteligência superior e ilustração acatada e reconhecida por todos, o juiz de direito pôde em pouco tempo dizer: o partido conservador sou eu.

Mas como sempre essa absorção da coletividade promoveu dissabores que foram intumescendo silenciosamente a princípio, e mais tarde prorromperam em protestos enérgicos, reduzidos a fatos e estereotipados em uma dissidência irreconciliável.

Motta Coqueiro, cordato por índole, achou-se por isso mesmo a braços com grandes e insuperáveis dificuldades, visto como insistia no congraçamento dos campos dissidentes, único meio de fortalecer o partido.

Nada, porém, conseguiu a não ser trabalhos, sacrifícios e decepções.

Enquanto absorvia-se todo no serviço político, a sua atenção não voltou-se especialmente para os modos descomunais da sua consorte, e no entanto eles eram por demais sensíveis.

A Sra. D. Maria, desde três dias depois da chegada de Coqueiro, não era a mesma. O seu coração parecia andar envolvido numa atmosfera de gelo, e uma frieza quase indelicada recebia por ela todas as comunicações mais expansivas do marido.

Um dia em que, ao de leve, o fazendeiro apercebeu-se da indiferença da Sra. D. Maria, e lha observou com benevolência, a ressentida senhora, escondendo no aveludado da palavra uma censura amarga, respondeu-lhe com aparente simplicidade.

— O senhor não tem razão para enfadar-se; é preciso que eu preste toda a minha atenção aos interesses de nossa casa, agora que o senhor se ocupa exclusivamente com os estranhos.

Motta Coqueiro tinha, de feito, achado ocasião para a advert6Encia amistosa no meio de uma conversa relativa ao partido Foi ao terminar a descrição de um ataque decisivo ao rei da situação política de Campos que a sua vaidade fi-lo notar a indiferença da Sra. D Maria.

Longe de irritar se com a resposta, Motta Coqueiro procurou acalmar a esposa e prometeu-lhe, rindo com o desembaraço da confiança, livrar se o mais depressa possível dos enredos partidários aos quais atribuía o mau humor que lhe tinha sopitado o entusiasmo descritivo.

O fazendeiro, porém, enganava-se radicalmente quanto ao verdadeiro motivo de queixa da sua consorte.

A fonte da desarmonia conjugal era uma esperteza do moleque Carlos, em dar conta de uma empresa a que se comprometera com Manuel João.

Entrando sorrateiramente no quarto de dormir da sua senhora, o moleque depositou sobre o lavatório a carta que lhe tinha sido confiada. A curiosidade feminil incumbiu-se de tornar bem sucedido o ardil do triunvirato para a satisfação dos seus cálculos ulteriores.

A Sra. D. Maria ao ver a carta representou a eterna cena de Eva diante do pomo proibido.

Habituara-se, desde os primeiros tempos de casada, a abrir toda a carta que lhe fosse dirigida, em presença do seu marido. Era uma obrigação que voluntariamente se impusera e que desempenhava satisfeita.

Ao ver, porém, aquela carta misteriosamente colocada em lugar reservado, a Sra. D. Maria sentiu quebrar-se-lhe a cadeia do passado e afogueá-la uma nova resolução.

Rasgou sofregamente a sobrecarta e leu avidamente as linhas tortuosas lançadas sobre um papel ordinário.

Terminada a leitura, a senhora conservou-se por muito tempo no quarto, de pé diante do movei, pálida como se a tivesse acometido uma instantânea anemia. De vez em quando erguia a carta e repassava alguns dos períodos em voz baixa e trêmula.

Quando saiu aceitou com triste boa vontade as carícias inocentes dos seus filhos, e apertando ao colo o caçula disse-lhe, como se pudesse ser por ele entendida.

Deves querer muito bem a tua mamãe, filhinho, porque teu pai já não a estima.

O mistério da tristeza da Sra. D. Maria foi, porém, surpreendido por Motta Coqueiro quando ela menos esperava.

Joaquim Licério vinha freqüentemente a Campos para efetuar transações indispensáveis ao seu negócio, e por isso chegou também a Campos uma semana depois de Coqueiro.

Sendo forçado a demorar-se por mais tempo do que desejava, resolveu despachar os seus empregados por ser este expediente aconselhado pela boa economia, e ficar só na cidade.

Partiria depois em qualquer canoa que fosse para Macabu, o que não era difícil porque havia sempre grande número delas em viagem para lá.

Infelizmente, na oportunidade da partida, Licério não encontrou a sair senão as canoas das balsas de Motta Coqueiro, mas nem por isso julgou o obstáculo custoso de remover-se.

Lembrando-se da carta que havia escrito e que devia ter chegado às mãos da destinatária, entendeu que o melhor meio de captar a benevolência do fazendeiro era informá-lo das ciladas que lhe armavam.

Certo da procedência deste meio, procurou encontrar-se com Motta Coqueiro.

Pensando achá-lo indisposto contra si, Licério admirou-se de ser recebido afavelmente e o seu pedido receber lisonjeiro deferimento.

Para retribuir a bondade do fazendeiro, o rábula de Macabu entendeu que devia reduzir à obra a resolução, e no correr da conversa perguntou a Motta Coqueiro:

— Se não é indiscrição, V. S. poderá dizer-me como arranjou as cousas para aquietar o Chico Benedito?

— De forma alguma, porque até esta data não tem havido nada que valha a pena entre nós.

— Pois não é isto o que se diz por lá; o que consta é que V. S. e seu compadre já andavam queimados um com outro.

— Sabem mais do que eu; salvo se o compadre zangou-se porque lhe ordenei que fizesse prontamente a sua casa.

— Não é este o caso, respondeu Licério; com franqueza, Sr. Capitão, V. S. não tem notícia de uma carta que foi escrita à Sra. D. Maria?

— Ah! exclamou o fazendeiro admirado, então escreveu-se uma carta a minha mulher?

— Sim, senhor, eu conheço a pessoa que a escreveu, e sei também que foi mandada escrever por um dos genros do Chico, se não me engano, o Sebastião, e sei mais que nesta carta fala-se em V. S. e na menina Antonica.

— O senhor está bem informado, bradou surpreendido o fazendeiro?

— Por estar é que lhe aviso; queira indagar e certificar-se-á.

Açulado pela responsabilidade que via desempenhar-se de chofre sobre si, Motta Coqueiro dirigiu-se a Sra. D. Maria, resolvido a liquidar a intriga.

— A senhora vai fazer-me o obséquio de mostrar-me uma carta que recebeu de Macabu, disse ele secamente à esposa, a quem tinha convidado para um gabinete afastado do maior movimento da família.

— A carta dizia-me só respeito, respondeu friamente a esposa; li-a e rasguei-a.

— Então tenha a bondade de dizer-me o que lhe mandaram dizer.

— Já não me lembro; mas o senhor se quiser saber bem pode ir passar mais um mês no sítio e confirmar com a sua presença o que me comunicaram.

Esta resposta denunciava claramente qual a gravidade da acusação, e por ela Motta Coqueiro concluiu que não era possível que sua senhora tivesse rasgado a carta em que a acusação tinha sido feita.

Intimou portanto a sua esposa à imediata entrega do libelo escrito contra a sua pessoa e obteve-o depois de um chuveiro finíssimo de ironias.

Podia-se dizer que a maldita carta tinha o laconismo de um punhal brandido por um matador profissional.

Trêmulo de cólera o fazendeiro leu o seguinte:

"V. Ex. não tem necessidade de saber quem lhe dirige estas linhas, é um conselho da prudência esconder o meu nome. Devo entretanto afirmar que fala-vos um homem de bem, e um amigo agradecido, que se julga obrigado a dar-vos um desgosto para evitar mal maior.
O agregado, que o marido de V. Ex. admitiu no sítio, entendeu que devia retribui-lo com a pessoa da menina Antonica, hoje convertida em amante do Sr. capitão.
A ausência de V. Ex. incitou-o a não guardar as conveniências e hoje todo o mundo em Macabu conhece essas relações criminosas de um pai de família altamente colocado com a filha de Francisco Benedito.
Só V. Ex. poderá evitar as conseqüências que poderá ter este fato; as exigências não satisfeitas do agregado podem ter sérias conseqüências.

Um amigo de V. Ex."

— E a senhora acreditou nesta infâmia? perguntou Motta Coqueiro.

— E o senhor por que temeu tanto a vinda desta comunicação que chegou a descobri-la?

Para não faltar à consideração devida a sua esposa, o fazendeiro retirou-se sem responder-lhe a pergunta.

Depois de oscilar num oceano de alvitres, achou um que pareceu-lhe o mais acertado: tratar de despedir do sítio o compadre, que tanto o incomodava. Escreveu então a carta cuja leitura foi feita pelo subdelegado na casa de Francisco Benedito, carta que devia acomodar também a sua esposa.

De feito a Sra. D. Maria concordou com o expediente tomado.

No domingo da semana em que a carta de Motta Coqueiro foi recebida por Francisco Benedito, efetuou este a mudança para a casa nova.

A família achava-se agora aumentada por mais um membro, verdadeiro monstro encanecido desde o nascimento, feroz, sanguinário. O seu nome era o ódio, o seu caráter a perfídia, o seu culto a vingança. Cego e surdo corria por toda a parte, desgrenhado, brutal, insultuoso, a provocar intermináveis querelas com uma sanha inquebrantável, com um desgarro revoltante.

Era agora este o fiel conselheiro do agregado e o seu inseparável companheiro. Pregava a destruição e incitava para realizá-la a natural petulância de Francisco Benedito, presentemente exagerada pela proteção do subdelegado e do inspetor que lhe garantiam a impunidade para todos os abusos que fossem cometidos em prejuízo de Motta Coqueiro.

A gente do sítio era diariamente alarmada pela pilhagem acintosa exercida nas roças e no campo do sítio. Nada estava seguro, porque sempre o furto, o roubo, a depredação espiava o gado, os cafezais, as matas e assaltava-os para destruí-los. Além desses meios de vingança outro mais temível foi posto em prática; a sedução dos escravos.

Aconselhavam-nos para que fugissem, acenando-lhes com a perspectiva do descanso, acordando-lhes a eterna aspiração do espírito humano — a liberdade.

Em vão a tenacidade inesperada de Fidélis tentava opor diques a esta desenfreada torrente de cólera, que inundava de desordem e ruínas a propriedade do seu senhor. A franca resistência do escravo encontrava a astúcia precavida dos inimigos de Coqueiro, de maneira que era impossível puni-los.

As vezes, aos clarões suaves dos crepúsculos de setembro e outubro, os grandes capoeirões começavam a fumegar desdobrando no espaço uma enorme e negra cortina de fumo; logo depois, vermelhas como um ferro em brasa, ameaçadoras labaredas principiavam a trepar pelo horizonte, a inteiriçar-se e a correr um imenso reposteiro de fogo, que ameaçava os cafezais, os mandiocais e milharais contíguos.

O contínuo arrebentar dos taquaruçus, estrondoso como uma descarga de artilharia, dava rebate medonho, que obrigava a gente do eito, cansada pelo trabalho de um dia inteiro, a acumular fadigas penosíssimas ao seu cansaço.

Outras vezes grande parte da madeira que estava amontoada no porto amanhecia afundada nas águas, e a gente era forçada a ficar, logo de manhã, por largo tempo molhada para não deixar perdidas as grandes toras de árvores preciosíssimas.

Não havia, enfim, ato por mais iníquo e detestável, que não fosse cometido para desafogo do ódio do agregado.

Fidélis, o resoluto feitor, só dispunha de dois recursos: ameaçar os provocadores e participar essas desagradáveis ocorrências a seu senhor.

Tais meios eram escrupulosamente utilizados, porém tornavam-se improfícuos porque o agregado não temia ser constrangido pela severidade da lei a coibir-se, nem também que a arbitrariedade arreliadora de que se servia fosse retribuída por igual.

Motta Coqueiro, preso em Campos pelas suas ocupações e pela suspeita, contida mas não extinta, de sua mulher, apenas podia repreender por meio de cartas os desmandos do seu compadre, que sempre que recebia ordem de não continuar a fazer benfeitorias nos terrenos do sítio multiplicava-as por acinte, preferindo sempre afastar-se da zona que lhe fora marcada.

Os avisos eram também um incitamento aos estragos.

Verdade é que esta violação do contrato tinha sido posta em prática desde o primeiro dia da desavença: a casa ergueu-a o agregado no lugar em que lhe aprouve.

Uma circunstância veio por algum tempo diminuir a petulante intensidade da luta aberta por Francisco Benedito. Foi uma temporária falta de combustível à máquina da vingança, cuja pressão era regulada pelo ódio e pela impunidade.

Sebastião, o amigo predileto e obsequioso do agregado, tinha desaparecido da sua intimidade, deixando após si um rasto indelével, a desonra do lar do amigo.

Um dia a família de Francisco Benedito foi torturada por um acontecimento cruel. Chiquinha, que saíra a espairecer a sua enfermidade, passeando pelos aceiros das roças, não tinha voltado à casa.

Bateram-se todas as circunvizinhanças, mas debalde; a moça não apareceu.

A primeira idéia que assaltou o espírito do agregado foi a de ter sido vítima de uma cilada de seu compadre, que pelo aprisionamento de Chiquinha tentava impossibilitá-lo de continuar a vingar-se. Se tal hipótese procedesse era medida tão justa como a que antigamente tomavam as nações, exigindo reféns, para conter as invasões das outras.

As pesquisas do subdelegado e do inspetor provaram, porém, que semelhante suposição era mais um produto monstruoso da imaginação encandecida do agregado, e fizeram-no ver claramente a verdadeira causa da ausência de Chiquinha.

A moça tinha sido raptada pelo violeiro.

Em consciência, este desgosto tinha sido dado à família de Francisco Benedito mais por vontade da raptada do que pela do sedutor.

A tia Balbina advertiu a moça de que ela não poderia ficar nem mais um mês na casa paterna sem que o seu estado fosse conhecido por todos.

De feito, o próprio Francisco Benedito repetia por vezes o gracejo acerca da moléstia de sua filha:

— Era caso para perguntar-se quando era batizado, se o Sebastião já tivesse efetuado o recebo a vós.

E frase ainda mais significativa disse o inspetor André na noite da mudança para a casa nova.

Para testemunhar o seu júbilo pela entrada de Francisco Benedito no número dos pequenos proprietários da localidade, o inspetor não só compareceu à brincadeira, que foi preparada, mas também concorreu com uma leitoa.

Ao entregar o presente ao agregado, o dissimuladíssimo André disse através de sua galhofa maliciosa e perene:

— A minha brinquinho deu-me nada menos de uma dúzia de leitões dessa barrigada: dois deles são para esta casa; um cá está, o outro virá no dia que sá Chiquinha sabe.

Ainda a impressão destas palavras não se havia desfeito, ainda a insinuação impiedosa que tinha feito feria os brios de Chiquinha, e novo golpe, e este mais certeiro e profundo, foi desfechado pelo inspetor.

Acercando-se da moça, André segredou-lhe com a maior ingenuidade possível:

— Os nomes que mais assentam em crianças bonitas são Francisca e Manuel.

Não havia, pois, nenhuma dúvida para Chiquinha. Olhos demasiado curiosos e ânimos pessimistas já penetravam o seu segredo, e as palavras destacadas, e os epigramas aparentemente despretensiosos acabariam por despertar a atenção geral e perdê-la no conceito de seus pais.

Apegou-se, pois, a uma derradeira esperança: consultar a tia Balbina; mas da consulta resultou a certeza dolorosa de que não era possível iludir por muito tempo. Então, impelida pela vergonha, insistiu com Sebastião para abreviar o consórcio, e finalmente submeteu-se à única solução que o violeiro achava razoável — a fuga.

Certo da deslealdade do amigo, Francisco Benedito descortinou por alguns dias a série de males que o esperava, compreendeu que não tinha junto de si o apoio decidido e leal com que contava, e nem ousou vingar-se de Sebastião, nem a continuar com as provocações ao fazendeiro.

Sentia, tarde já, que a inimizade com o seu compadre punha-o inteiramente a descoberto dos insultos de toda sorte, ao passo que os seus amigos Oliveira e André adiavam sempre a punição deles.

Não tinha em quem confiar. O Viana tinha cortado completamente as relações consigo e sem que Francisco Benedito, por uma insignificância qualquer, lhe tivesse ofendido, perseguia-o pela dívida contraída na sua vendola.

Os seus amigos, autoridades do lugar, longe de promoverem a conciliação dos dois, tinham até concordado com o Viana que o melhor meio de cobrar a conta era obter penhora dos bens do agregado.

Além desta queixa uma outra veio esfriar a confiança entre os amigos.

Uma tarde Mariquinhas desceu para um ribeirão que serpeava algumas braças distantes da casa.

Antonica e sua mãe, sentadas no terreiro e ocupadas em costurar, ouviram o cantarolar monótono da moça, que tinha ido dobrar a roupa lavada.

De repente, a monodia esvaeceu-se e alguns minutos depois era substituída por gritos de socorro soluçados do lado do ribeirão.

Correndo apressadas para lá, Antonica e sua mãe receberam nos braços Mariquinhas, pálida de susto e ofegante de cansaço. O corpinho do seu vestido estava quase todo dilacerado e pelo pescoço da moça merejava o sangue, dentre arranhões extensos.

Quando Mariquinhas recuperou a calma e pôde falar, interrogada pelos seus insistentemente, respondeu, fundindo-se em pranto.

— Foi... foi ... um quilombola!

O irmão de Mariquinhas, assim como seu pai tinham corrido imediatamente atraídos pelos gritos, mas ao passo que Francisco Benedito correu para a frente da casa, Juca Benedito dirigira-se para os fundos.

Quando chegou à casa, o rapaz perguntou se não tinha estado aí o ex-feitor.

— Não! respondeu Antonica, admirada.

— Pois não se me dava jurar que eu vi Manuel João correndo para dentro da mata, e até lhe fiquei obrigado pelo serviço. Você não o viu por lá, Mariquinhas?

A moça meneou negativamente a cabeça, mas os seus soluços como que dobravam de força.

Convencido de que era o ex-feitor o autor dos ferimentos de sua filha, o agregado foi pedir providências ao seu amigo inspetor, mas este respondeu-lhe serenamente:

— Descanse, seu Chico; eu por ora não posso fazer nada; as eleições estão próximas e eu não hei de recrutar o rapaz que já me prometeu votar conosco. Em passando as eleições fale comigo.

O desengano era por demais expressivo e não havia contar com a punição do ex-feitor.

Todos esses acontecimentos que sobremaneira entristeciam o agregado tinham influência bem diversa no espírito de Antonica.

Firme na sua afeição pelo fazendeiro, cujo caráter nobre e generoso conhecia perfeitamente, cada uma das decepções que seu pai recebia cada ofensa que faziam-lhe os seus supostos amigos eram motivo de alegria para a moça que desta sorte via vingado o eleito dos seus sonhos.

As suas faces que tinham perdido a cor agradável da saúde, iam agora readquirindo-a, e os lábios, que pareciam ter desaprendido as crispações leves dos sorrisos joviais, já abriam-se agora, rubros como pétalas de rosa, para darem passagem a francas risadas.

Os olhos, amortecidos outrora, tinham presentemente o brilho peculiar da tranqüilidade e os olhares escarninhos e ousados que lhe eram congênitos.

Dava-se em Antonica uma verdadeira ressurreição: as cinzas tristes do coração da moça, as mortas quimeras da mocidade recompunham-se e afeiçoavam-se pelo divino galvanismo do amor.

Antonica era de novo feliz, porque não contava com a inconstância da fortuna.

A amizade do violeiro e do agregado não demorou a reatar-se por vínculos indissolúveis na vida. A necessidade recíproca era o nó que os prendia e desdá-lo era um perigo cujas conseqüências funestas já a experiência podia aquilatar.

A inatividade, em que Francisco Benedito jazeu durante o tempo da indisposição com o violeiro, provava exuberantemente o acerto da aliança, e por isso mesmo o pai de Chiquinha não duvidou aceitar as desculpas que lhe foram oferecidas pelo amigo.

Bem simples foram estas.

Sebastião confessou-se culpado de lesa-amizade, mas atenuando a sua culpa pela impossibilidade dê resistir à torrente das circunstâncias que o arrastou na sua onda vertiginosa.

Chiquinha padecia a olhos vistos: não tinha mais a frescura da mocidade, já no seu semblante não brilhava o plenilúnio da paz íntima que se esbatia em sorrisos descuidosos, em galanteios delicados.

Ao contrário: as lágrimas destruíam-lhe a pouco e pouco a graciosa carnação do corpo, e, como os depósitos sedimentares a contextura primitiva do mundo, alteravam-lhe a harmonia dos contornos, e a regularidade feérica das feições.

Semelhante ao pássaro cujas asas foram molhadas pela tempestade, e sem tentar um vôo queda tristemente pousado no galho seco de um pequeno arbusto; Chiquinha, sentindo as suas aspirações presentemente cercadas, conservava-se resignada no seu desconsolo.

Mas o pássaro entristecido lamenta-se em pios plangentes; assim também a moça desventurada carpia a sua desdita em flébeis suspiros.

Havia só dois caminhos para mim, acrescentou ainda o violeiro, ou abandonar a infeliz Chiquinha, o que seria a sua morte; ou adotar um meio qualquer para aviventar-lhe a esperança, até que seja possível efetuar o consórcio.

Prevenindo a objeção muito procedente: — ninguém na casa de Francisco Benedito impedia-lhe as visitas e familiaridades, o violeiro defendeu-se logo com a conversa que Lúcio Ribeiro disse-lhe ter ouvido a Faustino.

O resultado das explicações do atilado Sebastião foi não só o perdão, mas também o reconhecimento do agregado pela coragem com que o seu amigo se expunha aos golpes do fazendeiro.

— Já vê, seu Chico, as cousas como se passaram: eu mandei dizer a D. Maria o que fazia por cá a jóia do marido; ele já sabe que fui eu quem mandou escrever a carta; por força há de ter dado ordem, ou há de mandar dar ordem aos escravos para me fazerem uma espera. Livra-te dos ares que eu te livrarei dos males; foi o que eu pensei. Indo todos os dias à sua casa, seu Chico, era fácil uma escora e depois quem perdia a vida era eu, porque o diabo tem muito dinheiro para comprar a justiça.

— Não falemos mais nisso, Sebastião, decidiu Francisco Benedito; o que lá foi lá foi, tratemos do dia de amanhã.

O armistício involuntário que tinha sido concedido ao fazendeiro estava definitivamente findado pela volta de uma das potências beligerantes ao pacto de guerra.

Cumpre, entretanto, afirmar que as novas operações reduziram-se a simples escaramuças com o fim de arranjar provisões.

Um sério conflito, que evitou-se por uma felicidade quase milagrosa, acirrou os ódios e reacendeu o fogo dos cometimentos.

O feitor Fidélis acompanhara alguns dos seus parceiros ao mandiocal, para arrancar-lhe as raízes nutritivas. Aí encontrou o Juca Benedito provendo-se indevidamente; e este, longe de desculpar-se, continuou no seu furto sem dar a menor importância ao feitor.

— Olá, exclamou Fidélis, isto é então roupa de francês, ou casa de viúva?

O rapaz, sem responder palavra, e fingindo não ter visto os recém-chegados, nem mudou de posição. Todavia como tivesse arrancado um pé de mandioca, em vez de quebrar simplesmente o caule frágil, tirou da cintura uma larga faca de mato e com ela decepou as raízes. Em seguida tomou a rama do arbusto e a repetidos golpes partiu-a em pedacinhos. Feito isto passou a arrancar outro pé.

— Formiga quando quer se perder cria asas, resmungou Fidélis; e levantando logo a voz, bradou: oh! seu Juca, você errou o seu mandiocal, este é de meu senhor.

O mesmo silêncio provocador foi guardado pelo filho de Francisco Benedito.

Fidélis compreendeu que o desejo do rapaz era brigar, e, justamente ofendido na sua autoridade e qualidade de representante do proprietário lesado, rompeu por sua vez a provocação.

Chegando-se para mais perto de Juca Benedito, começou a atirar-lhe pequenas pedras a princípio e depois outras, que podiam perfeitamente ferir o intruso.

Oh! negro, gritou Juca Benedito, não me obrigues a fazer com que conheças o teu lugar! Olha que o subdelegado ainda tem bacalhaus em casa para quebrar a proa aos perrengues malcriados!

O feitor ouviu calmo a terrível ameaça, e por única resposta arremessou um projétil que foi cair junto a Juca Benedito.

— Eu vou mostrar-te se estou brincando ou falando sério, gritou este

Impelido pelo calor dos dezoito anos, o rapaz empunhando a larga faca deitou a correr para Fidélis, que o esperou serenamente.

Quando separavam apenas alguns passos o agressor e o agredido, este, levando ao rosto uma espingarda que tinha escondida por detrás de si gritou com acento escarninho.

— Arreda-te dai, filho de cobra, ou eu faço-te o braço em dois pedaços.

Acovardado pela perspectiva da morte que se lhe antolhava, o rapaz voltou costas, e abaixando-se para encobrir-se com a folhagem do mandiocal, desapareceu rapidamente.

Entretanto era dispensável tamanha rapidez. Quando o feitor levou a arma ao ombro, um pulso vigoroso havia prendido o cão da espingarda e assim impedira o tiro.

Tal movimento de prudência efetuou-o o preto Domingos, que acompanhava o feitor e que assistia às provocações com a fleuma natural que o caracterizava.

— Ora está aí a cousa, veio buscar lã e saiu tosquiado, disse Fidélis. Pai Domingos! vá buscar a mandioca arrancada pelo ladrão.

O preto obedeceu, mas de volta parou junto do feitor e disse-lhe com o tom de uma inabalável resolução:

— Fidélis, eu não quero mais vir trabalhar com você nestes lugares; você acaba dando trabalhos ao meu senhor.

— Vamos com histórias, pai Domingos, respondeu o feitor, faça o que se manda e dê ao diabo o que sabe.

O incidente, que acabamos de esboçar, foi o novo rastilho às explosões de ódio por parte do agregado, e os acintosos desmandos deste foram de novo levados ao conhecimento do fazendeiro, que em sucessivas cartas exprobava-lhe tais atos e concluía por um estribilho invariável:

Se o compadre não está bem no sítio, nada mais fácil do que abrir preço às suas benfeitorias. Assim evitaremos questões.

Nenhuma resposta era dada às judiciosas considerações e benévolos conselhos de Motta Coqueiro. Com referência aos negócios do sítio tinha por último sabido que Fidélis já se vira obrigado a apontar a sua espingarda contra o filho do agregado.

A gravidade de semelhante noticia decidiu Motta Coqueiro a passar alguns dias no sítio, para certificar-se da verdade dos acontecimentos que lhe eram comunicados.

A Sra. D. Maria acompanhou-o a esta viagem com o intuito de avigorar a energia do marido, quando a compaixão o viesse enfraquecer.

Chegando à noite e inesperadamente o fazendeiro não deu tempo a Francisco Benedito para prevenir-se porque no dia seguinte de manhã, antes que se soubesse da sua chegada, dirigiu-se logo à casa nova.

A Sra. D. Maria, que conhecia melhor do que seu marido o gênio traiçoeiro dos habitantes do interior, não permitiu que o fazendeiro fosse inerme e sozinho à entrevista com o seu compadre; fê-lo acompanhar por dois pretos de confiança e robustos: Domingos e Peregrino.

A presença de Motta Coqueiro na casa do agregado foi para este um choque de pavoroso sobressalto.

Tratou-se das benfeitorias e dos abusos, e o fazendeiro condenou severamente o procedimento desleal de Francisco Benedito, terminando por apresentar-lhe a única solução razoável.

— O compadre está mal acomodado aqui, desconfia de mim, e não pode dar-se bem com os escravos. Venda-me as benfeitorias, que lhe pagarei com vantagem, e mude-se. Eu ofereço-lhe já duzentos mil réis. Serve-lho o preço?

Humilhando-se miseravelmente Francisco Benedito apenas pediu tempo para pensar quanto ao preço, porque estava também deliberado a mudar-se. Bastavam-lhe somente dois dias de espera, no fim dos quais ele diria o que lhe convinha.

— Pois bem, compadre, respondeu o fazendeiro; ande com isso por bem para evitar a entrada da justiça neste negócio.

O agregado ouviu tudo submisso, mas logo que o fazendeiro saiu, mudou radicalmente de modos. Chamou sua mulher e pôs-se a blasonar com ela:

— Viste, mulher, já está manso como um cordeiro. Há de pagar-me bem o trabalho, se quiser que eu me mude. Agora vamos ver quem é que pode mais. Apronte-me a roupa, mulher, que eu vou entender-me com o subdelegado e o inspetor.

Daí há pouco Francisco Benedito saía de casa vestido com uma calça de ganga amarela e um paletó de riscadinho cor-de-rosa abotoado sobre uma camisa que o anil tomara cor de sanhaçu. De um maguá atravessado sobre o ombro, pendia-lhe o par de sapatos ingleses, cujo seio envaidava-se com o colorido azul desmaiado das meias.

Depois de alguns passos, voltou novamente à casa.

— Ó Juca, bradou ele, põe nova carga à espingarda e não arredes pé do terreiro.

Dirigindo-se depois à Mariquinhas, que viera com sua mãe espiá-lo à porta, sorriu mostrando os dentes escuros, e, estendendo a mão que a moça beijou, disse:

— Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doentes. Eu não quero que você volte-me de novo arranhada para casa, e a cousa fique sem castigo.

De novo afastou-se da casa e andou cerca de dez braças; mas parando de chofre bradou sobressaltado:

— Ó mulher! onde está a Antonica? Não lhe pus hoje a vista em cima... Mande-a cá para lançar-lhe a bênção.

O velho havia parado junto de um touceira de bananeiras que abriam como um leque as suas folhas novas e inteiriças, ainda cobertas de um verniz de pérola devido ao rocio da manhã.

Saindo de trás da touceira, com voz trêmula e melancólica murmurou Antonica:

— Estou aqui, papai, a bênção!

— Então fez madrugada hoje? por onde andava?

— Eu fui lavar o rosto no ribeirão.

— Estás com cara de quem fugiu com medo do compadre; e deixa lá que tinhas razão.

Antonica abaixou os olhos silenciosa; e o velho pôs-se logo a caminho, levando a certeza de ter compreendido a razão do movimento dos olhos de Antonica.

Enganava-se. Ao ouvir a voz de Coqueiro, Antonica sentiu a alegria que é fácil imaginar; a alegria de rever o ente amado, que ausente mesmo ia-lhe a pouco e pouco absorvendo pela saudade toda a existência.

Quis primeiro vir à sala falar-lhe, mas refletiu a tempo que este expediente traí-la-ia.

Lembrou-se então das bananeiras; daí podia fitar ternamente o fazendeiro, nutrir-se à farta de sua imagem, com isenção, com avareza, sem temer que indiscreta curiosidade a viesse surpreender.

Tomando uma toalha, saiu pela porta lateral e foi colocar-se no lugar de onde foi tirada pelo chamado de seu pai.

Daí voltou para casa onde sentiu ir-se-lhe esvaecendo a alegria, ao passo que se lhe aumentava a melancolia.

Passaram os dois dias do prazo fixado por Francisco Benedito para a solução definitiva.

Mais de metade do dia 7 de dezembro de 1851 esperou Motta Coqueiro pela chegada de seu compadre para que se concordasse o preço da paz e da tranqüilidade de ambos.

Vã expectativa. Na véspera o agregado voltara à casa, após a consulta às autoridades locais, e declarou-se decidido a não ceder a sua posse e a não entrar em ajuste algum razoável.

A causa desta resolução deu-a ele à sua mulher, que, apesar de discordar, não resistiu-lhe.

— Bem me estava palpitando o coração, disse o agregado, assentando-se em um mocho da sala da entrada; aquele demônio o que quer é ferrar-me uma logradela, mas eu já não caio, e hei de ensinar-lhe o bom caminho.

— Duzentos mil réis valem a pena, seu Chico, e é melhor você pegar no trato e ficarmos descansados; advertiu a fleumática mulher.

— Você não entende de negócios, senhora; pergunte ali ao Sebastião se é logro ou não, e pense bem no caso.

O violeiro que, tendo chegado com Francisco Benedito, fora sentar-se a um canto da sala, respondeu com a sua natural vivacidade:

— Nem é preciso perguntar, isto está a entrar pelos olhos dentro. Só a casa pela madeira de que foi construída vale mais do que a oferta. Agora ajunte-lhe um cafezal de mais de quinhentos pés, roças de mandioca, milho, etc., e veja quanto o capitão deve pagar. Tolo será seu Chico se estiver pelo que o bicho quer.

— Mas o compadre não disse que os duzentos eram a sua última palavra, talvez dê mais uns trinta ou cinqüenta.

— Qual, mulher! se ele não escarrar quinhentos, ou ao menos, ao menos quatrocentos, não leva o meu suor. É rico, pode pagar; e há de pagar, exclamou o agregado.

À vista de tão descabida exigência a boa mulher sacudiu os ombros e retirou-se.

Eram horas de sossego e repouso; já havia muito que de envolta com o crepúsculo tinha cessado o gazear das aves, e que haviam acordado com as estrelas os zumbidos dos grilos importunos e da mosquitada impertinente.

Mora estes ruídos, o fraquíssimo silêncio, o religioso remanso da natureza, a solene afonia da noite.

— São horas de dormir, meu velho, disse o violeiro pouco depois que a mulher de Francisco Benedito se retirou. Precisamos acordar cedo; salvo se você já não está pelo que tratou comigo.

— Palavra é pedra, respondeu o agregado; o que ficou assentado, está assentado.

A sala ficou em absoluto silêncio.

De manhãzinha já Sebastião estava de pé, agitava-o uma impaciência febril. Abriu as janelas da sala, cantarolou, mediu a passos o recinto e afinal saiu para o terreiro.

Ai achou em breve com quem falar para espairecer a sofreguidão, e aproveitou o ensejo com a sua inata jovialidade, ironia e dissimulação.

— Fez madrugada hoje, sá Antonica?

— Tal qual como vosmecê, respondeu secamente a moça.

— Mas eu é porque tenho de fazer uma viagem grande e preciso adiantar.

— E eu porque sempre acordo a esta hora.

— Deve ser assim mesmo, sá Antonica; é para não desmentir o verso:

Quem tem amores não dorme,
Quem dorme não tem pensão.

— Seja o que vosmecê quiser; sabe mais da minha vida do que eu.

— Eu só lhe digo que se farte bem de vê-lo hoje; faça matalotagem para a sua saudade, porque amanhã... porque amanhã o sítio já há de estar vendido.

Uma risada prolongada acompanhou as últimas palavras do violeiro, enquanto que as faces de Antonica vestiam de uma lividez cadaverosa, que exagerava ainda mais a cor, os discos de ametista que serviam de pálpebras aos olhos tristes.

O violeiro tinha compreendido a justa causa da madrugada de Antonica; vinha com efeito beber com os olhares ternos o filtro da sedução que a assenhoreara e ao qual ela não ousava resistir.

— Veja se quer governar-me também, respondeu despeitada; e lembre-se que ainda vem a esta casa porque há homens que não merecem este nome. Não se satisfez com desgraçar uma das filhas do amigo, quer difamar a outra. Pode continuar.

Há uma força invencível sobre a terra, é a dignidade nas suas explosões sinceras. Antonica, por intermédio dela, pôde retirar-se, fazendo calar a mofa do violeiro.

Francisco Benedito veio daí a pouco tomar mais agradavelmente junto de Sebastião o lugar deixado pela moça.

— Então, já está pronto? perguntou o violeiro.

— Estou, mas devemos sair com horas diferentes, para não haver suspeita.

— E se ele vier primeiro?

— Qual; há de esperar que eu vá lá falar; o agregado é o mesmo que um escravo.

— Aonde então hei de ficar à sua espera?

Francisco Benedito meditou um pouco e depois respondeu vivamente:

— Nos taquaruçus; ali não pode falhar.

— E como esperar um veado no rio.

O violeiro não demorou muito; despediu-se da família e partiu.

Ao ver o seu gratuito apoquentador retirar-se, Antonica pôde enfim respirar.

Tal presença incomodava-a duplamente: nunca lhe perdoara o desgosto por ele causado à sua mãe pelo rapto de Chiquinha, e além disso seria testemunha da Sua perturbação, e um vigia a pôr-lhe obstáculos.

Rápido contentamento; maior contrariedade do que a presença do violeiro veio logo turvar-lhe a alegria que sentira ao despertar.

O seu egoísmo de amante regozijava-se com a exigência paterna, descomunal embora. E que via aí uma demora no ajuste e portanto maior espaço para contemplar o fazendeiro.

Mas estava marcado, talvez pelo destino, que para ela não haveria mais estabilidade; todo o sentimento grato devia esvaecer-lhe como um sonho.

Francisco Benedito, segurando o seu forte manguá, saiu depois de ter dito à mulher que ia dar a resposta ao compadre e que depois seguiria incontinenti a conciliar-se com o Viana.

A resolução do agregado foi uma punhalada cravada no coração de Antonica: frustrava-lhe a ocasião de ver o fazendeiro, e, perdida esta, quando se apresentaria outra?

Era mais de meio-dia quando Motta Coqueiro, cansado de esperar pelo agregado, resolveu ir procurá-lo para obter a decisão do negócio que tanto interessava ao seu bem-estar.

A Sra. D. Maria, sempre prevenida para com os sertanejos, queria que o seu esposo levasse em companhia dous escravos para defenderem-no de qualquer assalto, porventura planejado; mas o corajoso fazendeiro, referindo o que se tinha passado dous dias antes, os modos humildes, e a deliberação em que Francisco Benedito fingiu estar acerca da venda do sítio, negou-se a ouvir o conselho que se lhe dava e partiu só, cavalgando o seu fogoso e célere alazão.

Não obstante a resistência do marido, a cautelosa senhora não abandonou a sua prevenção, e pouco depois de Motta Coqueiro fez sair Carlos no seu encalço.

O moleque, obedecendo a meio a ordem recebida, seguiu a princípio a galope, porém logo depois na vagarosa marcha do animal, guiando-se pelas pegadas das patas do alazão.

Para atalhar caminho, o fazendeiro entrou pelo interior das suas roças, conduzido ora pelo galopar largo, ora pela andadura veloz e uniforme do seu corredor, distanciando-se assim cada vez mais do seu pajem.

Não tardou muito a achar-se diante da casa de Francisco Benedito, onde foi informado de que este saíra justamente para decidir a venda.

— Então não há tempo a perder, observou Motta Coqueiro; vou encontrar-me com ele em caminho.

Dando de rédeas ao valente alazão, tomou pela estrada geral, que apresentava o seu lombo vermelho no meio do capoeirão, como disforme coral estendida a fio comprido sobre um capinzal.

Quando ele sumiu-se na grande volta do caminho, Antonica veio encostar-se ao umbral, embebidos os olhares lamentosos na direção tomada pelo cavaleiro. Transluzia-lhe no semblante a eloqüência arrebatadora da saudade, e logo se lhe deslizou do coração aos lábios uma queixa, repassada de tristeza:

— Nem perguntou por mim: soluçou baixinho a sua voz comovida.

Parecia que as forças haviam-na abandonado, tornando-se-lhe impossível dar um só passo. É que a dominava um desfalecimento hipocondríaco, um desses espasmos morais que entorpecem os músculos e concentram todas as faculdades em um ponto único, semelhantemente a um abajur à luz de um foco enorme em superfície restrita.

De súbito, porém, eletrizada por um pressentimento, voltou-se para dentro perguntou à sua irmã:

— O capitão não disse se hoje falou já com papai?

— Não, respondeu Mariquinhas distraidamente, perguntou somente por ele.

— Meu Deus, meu Deus! eu sinto tanto medo, parece-me que vai acontecer alguma desgraça, murmurou Antonica.

— O que é que você está dizendo, mana?

— Ah! sim, gritou a infeliz; eu dizia que é mais certo que papai tenha ido primeiro visitar Chiquinha.

— Há de ser isto.

Antonica terminou o diálogo saindo apressada e cautelosamente, e quando já não podia ser vista correu incansavelmente até a margem do ribeirão atoladiço que espreguiçava o seu dorso limoso algumas braças distantes do fundo da casa.

Atravessou-o animosamente por sobre uma tora estreita que se lhe superpunha e, trepando pela margem oposta, resfolegou, para de novo correr por uma picada do capoeirão até à beira da estrada.

Pensava que, por maior velocidade que pudesse obter do seu invejável alazão, o fazendeiro não podia ainda ter passado por ali.

De feito a topografia do lugar fundamentava esta suposição. O vale, servindo de escoadouro a enormes brejais, obrigava a estrada a uma volta alongadíssima e extremamente caprichosa, acompanhando mais ou menos a fralda dos morros vizinhos.

Para bem figurar o traçado, imagine-se uma secção feita pela altura de um cone, cujo vértice era ocupado pela casa nova.

Quando chegou a estrada estava deserta.

Amedrontada por sua própria coragem, Antonica, ofegando de cansaço, não atreveu-se a ir adiante; ficou oculta entre os arbustos marginais da estrada.

Pendiam-lhe sobre ela, carregados de cachos vermelhos, os ramos de enorme aroeira; em torno e em cima estendia-se o silêncio do céu a transbordar de luz; da natureza asfixiada pela canícula.

Para distrair-se e disfarçar o temor, Antonica puxou um dos ramos pendentes e, cortando com os dentes um dos cachos de frutos, começou de arrancá-los repetindo baixinho, bem-me-quer, mal-me-quer.

O estrupido de um próximo galopar veio tirá-la prontamente da sua distração, precisamente no momento em que se despegava o último fruto, correspondendo a uma grata lisonja: bem-me-quer.

Impelida pelo coração, sentou-se à beira do caminho e, derribando os olhos, esperou por aquele a quem se sacrificaria sem escrúpulos.

De chofre o som do galopar extinguiu-se, e uma voz alegre fez ouvir.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, sá Antonica.

Ainda Antonica não tinha voltado a si da profunda decepção, quando Carlos, que era quem a saudava, continuou:

— Senhor já passou por aqui?

Esta pergunta chamou Antonica ao triste pressentimento que a trouxera até ali, e acudiu de afogadilho:

— Vai, vai já, Carlos; um momento mais e talvez... vai, vai já.

O moleque, talvez recordando a cena a que tinha assistido na sala de jantar, não se deixava comunicar pela ansiedade da moça; ficou frio e perguntou em tom escarninho:

— Há onça pelo caminho ou algum boi bravo?

— Não, não há, mas pode haver coisa pior, muito pior; Carlos, uma emboscada e teu senhor morrerá.

Neste momento atroou, reproduzindo-se por longo tempo no eco, a detonação de um tiro.

Quem neste momento estivesse cerca de um quarto de légua de distância do lugar em que se achavam Antonica e o pajem, assistiria a uma cena da mais cruel desumanidade.

Sobre a estrada pouco espaçosa inclinavam-se, formando uma abóbada folhuda e virente, as ramificações e as pontas dos estípites de taquaruçus gigantescos.

Uma contínua escuridão entristecia o lugar, porque a estrada, estreitando e encurvando-se como um pescoço de cisne, fazia com que as árvores marginais quase entrelaçassem os galhos, improvisando uma espessa cobertura.

Os raios do sol apenas coavam-se, desenhando no solo um crivo de sombra e luz que, oscilando à mercê da viração, ora abria as grandes malhas lúcidas, ora adensava as largas manchas de sombra.

Aí, desde o amanhecer, estavam emboscados à espera do fazendeiro o agregado e o violeiro, para executarem um assalto conforme o plano traçado por este.

Era de feito o melhor lugar; não só a estrada estreitava-se, mas ainda fazia uma depressão, erguendo de um lado um alto barranco. O declive ia terminar num brejo que estendia o seu atoleiro até meio da estrada.

Qualquer transeunte era, portanto, obrigado a aproximar-se muito dos taquaruçus para não atufar-se no lodo.

Aquele que se emboscasse entre a enorme touceira das grandes taquaras podia sem perigo acometer sem temor de represália: defendia-o uma couraça tresdobrada.

Quando Motta Coqueiro, no largo e descuidado trote do seu alazão, ia costeando o meio da grande curva da estrada, Francisco Benedito desfechou-lhe a primeira paulada, que foi bater no ombro do fazendeiro.

O alazão estacou de súbito, e o seu dono tomou a atitude de defesa. Engatilhou rapidamente a pistola, e esperou com o sangue frio que lhe era peculiar.

O agregado apareceu então sobre a ribanceira.

— Mata-me, sedutor e ladrão da gente pobre; acaba assim a tua infâmia, não será primeira que tenhas feito.

— Ora, compadre, você nunca tomará juízo, homem? Vá para casa dormir que é do que você precisa. Eu perdôo-lhe por esta, mas a menor cousa que me conste eu lhe farei as contas. Passe bem.

Confiado na arma que empunhava, e ainda mais no seu possante alazão, Motta Coqueiro tentou seguir.

— Bêbado, não é? estou bêbado; esta é a resposta.

O manguá vibrado pelo agregado levantou-se sobre a cabeça do fazendeiro, que disparou a sua arma, ao mesmo tempo que esporeou o animal.

O manguá foi arrebatado pela bala das mãos de Francisco Benedito, mas ao mesmo tempo o alazão esticou-se em rápido arranco e Motta Coqueiro foi varejado em terra.

Um novo inimigo veio colocar-se-lhe em frente, e este, mais pujante e mais temível, era Sebastião Pereira.

Fora ele a causa da queda do fazendeiro.

Manejando um grosso cacete arrancou as rédeas da mão do cavaleiro, que foi inopinadamente arremessado pelo alazão.

Começou uma cena horrível; um homem inerme era forçado a defender-se contra dois outros que tinham a favor não só as armas, mas também a fria premeditação do crime.

— Eis-nos agora em frente, demônio, exclamou o violeiro; ou morres desta ou hás de guardar sinal para toda a vida. O fazendeiro não respondeu; todo o seu cuidado era defender-se para impedir a derrota inevitável.

Uma paulada, vibrada por Sebastião, lançou-o por terra afinal, inundado num lago de sangue.

Upa, upa ouviu-se neste momento, ao mesmo tempo que o estrépito de uma galopada.

— São os escravos do malvado; não há minuto a perder; fujamos, seu Chico.

Os dois miseráveis galgaram preste o barranco e internaram-se na mata, alados pelo temor do castigo.

De feito, não se haviam enganado.

Ouvido o tiro disparado por Motta Coqueiro, um grito desolador, arrancado pela paixão ao coração de Antonica, santificado pelo sofrimento, misturou-se à detonação, que transudava do seu roufenho arruir um pensamento de morte no espírito da moca.

A desventurada amante caiu de joelhos, e com voz quase sumida, murmurou:

— Meu pai matou seu capitão!

— Malvado, bradou o moleque, hei de matá-lo também.

Curvando-se sobre o cavalo esporeou-o e partiu à brida solta, gritando com o duplo fim de anunciar o próximo socorro e incitar o corredor na sua disparada.

Era uma tosca imitação do despeamento indomável do tártaro de Mazepa. Os arbustos, como que amedrontados, passavam semelhantes a relâmpagos por diante do cavaleiro, e o ar, vibrado violentamente, assoviava o cântico irônico da vertigem.

Atoleiros, pequenas pontes, tudo era passado de súbito. O chio e os cascos do animal formavam uma engrenagem invisível, rodando com o movimento do turbilhão.

Não era uma corrida, mas um vôo; as asas emprestavam-nas o temor e a dedicação.

— Upa, upa, bradava continuamente o cavaleiro; upa, valente!

Ao entrar na grande curva do caminho, empinando-se bruscamente sobre as patas traseiras, o corredor obstinou-se a não seguir e, tomando o freio entre os dentes, voltou na mesma desfilada.

Era impossível resistir-lhe; Carlos pulou resolutamente e correu.

A poucos passos do lugar em que o cavalo refugara, jazia Motta Coqueiro estendido sobre a estrada e banhado em sangue.

— Socorro! socorro! mataram o meu senhor, bradou Carlos dando de face com o corpo do fazendeiro.

Só o eco incumbiu-se de repetir-lhe, como por escárnio, as palavras cunhadas pela sua aflição, e quando o som da sua voz extinguia-se em sucessivos sussurros gradativamente esvaecidos, sobrevinha o profundo silêncio da mata, que exagerava a tristeza do quadro.

— Meu senhor, meu senhor! continuava o pajem; sou eu, Carlos, o seu escravo Carlos.

E o aflito rapaz apalpava e sacudia o desmaiado com uma impaciência febril.

— Ah! meu Deus; podem pensar que fui eu. Socorro!

A mão de Carlos colocou-se sobre o coração do fazendeiro.

— Está vivo; meu senhor! diga que não fui eu; diga a todos.

O infeliz pajem delirava e estafava os pulmões em gritos de socorro, disfarçando desta sorte principalmente o temor de ser considerado o assassino do seu senhor.

Alguém veio dentro em pouco tempo segundar os seus esforços para chamar o fazendeiro à vida.

Ofegante, com os olhos avermelhados e as mãos trêmulas, Antonica desceu correndo a pequena ladeira, e veio sentar-se junto dele, colocando sobre o seu colo a fronte ensangüentada do fazendeiro.

— Morto! os covardes mataram-no por minha causa, por mim que o amo.

— Não, não diga, o coração de meu senhor está batendo, veja.

Felizes aqueles que sabem amar: têm na própria desventura, nas horas da maior angústia, alegrias indizíveis. Para serem venturosos basta-lhes somente a esperança.

Antonica certificou-se de que ainda batia um coração sob o peito do eleito de sua alma, e depois fez os seus lábios testemunharem de que ainda por entre os lábios dele passava o sopro da vida. Nasceram-lhe espontaneamente os desvelos de mãe, e, solícita, tratou de prestar os primeiros Socorros. Coroou-lhe a felicidade os esforços; as pálpebras do fazendeiro venceram enfim o torpor que as paralisava.

— Está melhor, não é; já está melhor? sorriu a delicada amante.

— Covardes! murmurou o fazendeiro, e cerrou novamente as pálpebras.

A sofreguidão avassalou o ânimo de Antonica; não podia mais conter-se; queria convencer-se de que Motta Coqueiro não estava irremediavelmente ferido.

— Escute;. sou eu, Antonica; os malvados já se foram, estamos eu e Carlos. Tenha ânimo. Deus é grande; há de ficar bom.

As palavras da moça chamaram enfim o fazendeiro à realidade. Sentou-se cheio de espanto, e olhou ao redor de si.

Devia julgar-se no curso de um pesadelo, porque na verdade era incrível tão nobre dedicação na filha do ingrato que lhe pagava os benefícios recebidos com uma tentativa de assassinato.

Não menos para surpreender era a dor estampada no semblante de Carlos. O generoso escravo esquecia naquele momento que estava em face de um senhor, e chorava como um homem de bem a morte de um amigo.

— Antonica! exclamou ele, depois do primeiro espanto; pois é você, minha filha?

— Vim pedir o seu perdão para a maldade de meu pai; vim pedir-lhe que não me tenha ódio; eu não pude evitar, respondeu Antonica.

As lágrimas corriam-lhe em fios, e os soluços truncavam-lhe as palavras. Pairava-lhe sobre o semblante a solenidade de uma boa ação. O amor conquistava nesta hora um perdão que se podia crer impossível — o perdão do agregado.

— Por que havia eu de odiá-la, Antonica? Nem odeio a teu pai; são a embriaguez e a malvadeza de Sebastião os seus anjos maus; perdôo-o sim, porque tu és boa, és uma santa.

— Eu hei de estimá-lo ainda mais. Bom e santo é vosmecê; Deus há de pagar-lhe.

Uma efusão de ternura imaculada correspondeu às palavras de Antonica. O olhar do fazendeiro como que criava em tomo de si um mundo para os seus corações afinados ambos pela bondade.

Maquinalmente cingiu contra o peito a meiga filha do agregado e pagou com um beijo, roçado na sua fronte descorada, tanta coragem e amor.

Mas como se uma força misteriosa os repelisse, este abandono do amor não demorou-se; os lábios do fazendeiro retiraram-se e ao beijo sucedeu um estremecimento.

— É necessário que você parta, que volte para a casa de seus pais.

— Por quê?

— Porque ninguém acreditará que eu lhe voto o respeito de que você é digna, Antonica; hão de julgar-me seu amante.

— E que me importa a mim? não sairei daqui antes de vê-lo partir.

— É um comprometimento, minha filha, e bastaria que alguém aqui nos visse, para que seu pai justificasse o seu crime. Parte, parte já, minha filha.

O fazendeiro ordenou em seguida ao seu pajem que seguisse Antonica, e ela, sem forças para resistir, apenas protestou abaixando os olhos.

— Adeus! disse comovido o fazendeiro.

— Adeus! respondeu Antonica nessa triste entoação da condescendência queixosa, e levantou-se.

— Talvez não nos vejamos nunca mais, minha filha; quero que também me concedas um perdão; concedes?

Antonica acenou afirmativamente a cabeça.

— Perdoa-me o sofrimento de que eu tenho sido causa; perdoa-me, porque eu não faço mais do que cumprir com os deveres de honra para contigo e para com os meus.

— Eu já não me queixo, respondeu Antonica, é o meu destino. Adeus. Apenas alguns passos tinham sido dados pela moça, quando Carlos avisou a seu senhor de que se aproximava a gente do sitio.

— Tanto melhor, respondeu Motta Coqueiro, não ficarei sozinho. Com efeito, ouvia-se perto o tropel de uma cavalgada e antes que Antonica tivesse tido tempo de ocultar-se, Carlos exclamou cheio de espanto:

— É minha senhora, meu Deus, é minha senhora.

Na extremidade da curva apareceu, montada em um forte murzelo, a Sra. D. Maria. Os pés de Antonica negaram-se a caminhar; a aparição produzia-lhe o efeito de um espectro.

Apeando-se apressadamente a corajosa esposa, que adivinhara o acontecimento pela chegada do alazão, disparado e só, apertou nos seus braços o fazendeiro.

— Bem mo dizia o coração, soluçava ela; mas havemos de vingar-nos, seja embora necessário vender o meu último cordão de ouro. Covardes!

Houve um momento de silêncio. De repente a Sra. D. Maria, tendo olhado em volta de si, exclamou com a voz travorada de cólera:

— O que veio aqui fazer aquela mulher?

Motta Coqueiro respondeu severamente:

— Ouviu os gritos de socorro, e teve a coragem de vir.

— Então não foi ela a causa da emboscada! ...

— Não; é uma infeliz; culpada, não.

O respeito que, pela modéstia, sobriedade de palavras, e madureza de ânimo, o fazendeiro conseguiu sempre inspirar à sua esposa, obviou milagrosamente as sérias dificuldades da situação embaraçosa.

O coração da mulher é, como pensava o poeta inglês, um belo defeito da natureza. Divide-o em duas partes distintas e contraditórias uma separação fragílima, feita de apreensões e suscetibilidades: em cima azula-se um firmamento, embaixo enegrece-se um abismo.

Um abalo é bastante para ocasionar uma explosão de trevas ou um transbordamento de luz; as temeridades do ciúme ou os sacrifícios do amor.

Há uma só exceção; é a que encerra os coraç5es apáticos e indiferentes, verdadeiras monstruosidades.

A Sra. D. Maria não era excepcional; amava com a boa vontade de um espírito que encontrou no mundo um outro para completá-lo nas alegrias, assim como nas dores, e por isso mesmo deixava-se facilmente avassalar pelo pânico de perdê-lo.

A presença de Antonica revivera-lhe as angústias que lhe tinha causado a carta anônima forgicada pelo violeiro, graças à perícia de Licério, o rábula venal.

Demonstrava-se claramente o amor da filha do agregado para Motta Coqueiro, e embora estivesse absolutamente convencida da nobreza de caráter deste, todavia arreceou-se de que de futuro não se alevantassem mais alto do que a reflexão os vôos da sensibilidade e da compaixão.

Nem sempre o amor é filho da exaltação dos sentidos, multas vezes nasce da piedade, e em todo o caso por mais platônico, por mais alheio aos anelos sensuais, o afeto votado pelo fazendeiro à Antonica era uma espoliação ao consórcio.

Convinha, portanto, desarraigá-lo, destrui-lo como se faz com as ervas e os animais daninhos.

A resposta de Motta Coqueiro proferida com um acento simples, mas solene de decisão, impedia à Sra. D. Maria tomar qualquer expediente, que não fosse o da indiferença ou o da gratidão.

Escolheu o primeiro caminho, e a amante retirou-se acompanhada por Carlos, enquanto que por sua vez o fazendeiro e a sua esposa, acompanhados pelos escravos, seguiram para o sítio.

O ferimento capital não apresentava gravidade, e o sangue pôde ser facilmente estancado, à vista do que Motta Coqueiro manteve-se na resolução de tomar por única desforra a retirada de Francisco Benedito de suas terras.

Sua mulher, porém, não se resignava, nem podia satisfazer-se com tão pouco; incandeciam-se-lhe à proporção que passavam as horas os seus brios de fazendeira respeitada, e senhora de alta sociedade.

Só por uma lição estrondosa, entendia ela, o seu marido poderia de novo entrar nas salas de seus amigos com a cabeça erguida.

— O que tenciona o senhor fazer a esse ingrato e ao seu cúmplice?

— Entregá-lo ao desprezo, respondeu fleumaticamente o fazendeiro; são tão miseráveis que nem vale a pena persegui-los.

— E o que havemos de dizer aos nossos amigos, quando se espalhar o boato de que o senhor foi espancado por um agregado, que assim vingou a sedução de uma filha?

— Direi que é uma calúnia tão mal engenhada que basta uma simples consideração para confundi-la: o homem que foi companheiro do suposto pai ofendido na desafronta imaginária de sua honra raptou-lhe uma das filhas.

— A calúnia será de preferência acreditada porque a agressão realizou-se, e não tardará que todos venham a saber que é real o amor de uma das filhas do agregado pelo senhor.

— Paciência; eu não posso retribuir a violência com a violência.

— Há um meio, é punir o crime; para isso é que existe a lei.

O diálogo terminou pelo silêncio de Motta Coqueiro.

As considerações da esposa tinham uma base irrefutável e não podiam ser abandonadas; por outro lado o pedido de Antonica, no momento em que expunha a sua reputação de mulher honesta e a própria vida, — porque a brutalidade de seu pai não poupá-la-ia caso surpreendesse-a em meio do ato meritório, — fazia-o vacilar.

Um expediente apresentou-se; mover o processo contra o agregado e deixá-lo mais tarde, quando a primeira impressão desaparecesse, correr à revelia.

Harmonizados desta sorte o coração e o dever, resolveu notificar o acontecimento ao Sr. Oliveira, subdelegado do lugar, e pediu a sua presença para ser cumprida a lei.

Estava, pois, satisfeita a vontade da esposa.

Tranqüilizada por esta resolução de seu marido, a Sra. D. Maria teve um verdadeiro desafogo ao saber de uma outra nova.

Ao chegar em casa, a indignada consorte despachara imediatamente os escravos Fidélis, Peregrino e Alexandre, ordenando-lhes que percorressem as matas vizinhas a fim de descobrir o esconderijo dos criminosos e prendê-los.

— A gente podia fazer isto, minha senhora, se eles não se alevantassem contra nós; como há de acontecer, observou Fidélis.

— E vocês não têm mãos? Se eles resistirem tragam-nos à força, tragam-nos seja quando for, estejam aonde estiverem.

Fidélis saiu satisfeito; a feitoria estava-lhe definitivamente entregue; não havia mais possibilidade de passar às mãos de Francisco Benedito.

Além disso facilitava-se-lhe uma oportunidade para vingar-se dos insultos do agregado, mas, apesar da boa vontade e zeloso esforço para capturar os fugitivos, o feitor não regozijou-se com a realização dos seus desejos.

Os criminosos tinham-se prevenido contra esta conseqüência necessária do seu ato; a essa hora descansavam tranqüilamente a grande distância, e completamente fora do alcance de qualquer vingança.

Quase ao anoitecer os escravos vieram participar à senhora o malogro das suas pesquisas, mau grado a solícita diligência que tinham feito para o êxito da empresa.

— Está bom, respondeu-lhes a Sra. D. Maria; eles hão de aparecer em qualquer tempo.

Fidélis retirou-se duplamente contrariado pelo sangue frio de sua senhora e pela sua falta de perícia no desempenho da comissão.

Uma outra pessoa da casa mostrava-se profundamente sentida pelo acontecimento; era a tia Balbina.

Os seus soluços e imprecações conseguiram captar novamente a simpatia da Sra. D. Maria e desde aquela hora abriram-se-lhe as portas da casa grande.

Fatal imprevidência!

A dor de Balbina encontrou-se com a decepção de Fidélis, sinceramente empenhado em desafrontar Motta Coqueiro da agressão recebida!

— Ah! tia Balbina, disse Fidélis, eu antes queria ser surrado do que não achar o diabo do agregado; queria quebrar-lhe os ossos daquele desalmado.

— O feitor deve estar sempre do lado dos brancos, respondeu a feiticeira. O grito vai sempre para o lado que segue o vento. Fidélis já não é como seus parceiros. Os sinais do castigo estão nas costas destes, não importa; o sol queima a sambambaia e mata as pucaçus, o eito sobe sempre; o escravo sua a tirar fora a camisa, não importa; o feitor manda seguir sempre para diante porque é o lucro do seu senhor. Fidélís já não é um parceiro, é um senhor-moço: quem ofende-lhe ofende ao senhor.

— Por que vosmecê diz isto, tia Balbina; eu tenho sido mau para os escravos do sítio?!...

— Não saiu isto da boca de Balbina, nem da de seus parceiros: todos querem bem ao feitor, mas nem por isso esqueceram o rigor do cativeiro. Fídélis sente a dor de seu senhor; Balbina lembrou-se de uma dor sua. Um dia, ainda caía neblina e o céu tinha a estrela grande da madrugada, e Balbina foi amarrada no cabeçalho do carro. O frio feria como espinhos de jurubeba o corpo da escrava, e o senhor de pé na porta, embrulhado no seu capote, disse com má voz: surrem-me esta negra. Os parceiros de Balbina foram dizer que era ela a que gerava a doença nos escravos e nos animais do sítio. Na senzala da feiticeira estavam o Deus que Balbina conheceu na sua terra, e as ervas com que a escrava tinha amizade quando era criança e livre. Bastou para se ver aí a feitiçaria que mata.

Os chicotes bateram sem dó nas costas da feiticeira, como as varas fortes sobre as vagens maduras do feijoal. O sangue já corria, mas o castigo não parava. O filho dos brancos, criado por Balbina, o filho dos brancos querido por Balbina como seu, estava amarelo e magro; o doutor cansou de tratar, não sabia a moléstia. É feitiço da escrava, diziam todos. O pai queria vingar o seu filho e não teve dó de Balbina, que não chorava porque tinha ódio só, e não sentia que a iam matando.

Quando o castigo acabou a negra ainda ferida foi para o eito, e lá não houve ninguém que tivesse pena dela; todos fugiam da feiticeira, como se foge de cobra.

— Hoje o senhor de Balbina apanhou das mãos do agregado, e mulher e filhos e escravos, todos choram e Fidélis antes queria ser surrado, do que voltar para a casa de seu senhor sem o ter vingado.

— Para que há de guardar este ódio, tia Balbina? Nós não encontraremos melhor senhor.

— Balbina não tem ódio, chorou também a desgraça, mas lembra que ninguém chorou por ela. Hoje ninguém diz que é o castigo de Deus pela maldade com a inocente; paciência.

— Ah! se o senhor soubesse disto, tia Balbina; o que vosmecê não sofreria.

O feitor afastou-se lentamente, mas quando ia a alguma distância, foi detido pela voz da feiticeira:

— O parceiro de Balbina vai levar aos brancos o que ouviu; mas Deus está vendo que Balbina não quer o mal deles.

— Não é meu costume, tia Balbina, respondeu nobremente Fidélis; eu também sou escravo.

— Jura pela morte de tua mãe, que sempre foi escrava, que sofreu como Balbina, e não teve quem a chorasse quando sofria.

— Para que me lembra minha mãe, tia Balbina; o escravo não tem mãe. Juro, juro sim.

— Balbina quer que se faça o castigo do agregado, inimigo dos escravos; mas não quer que Fidélis se esqueça de que é escravo. Quem mandou ao feitor prender o agregado?

— A senhora mandou que o trouxéssemos â força, e eu havia de trazê-lo ainda que fosse morto.

— Sim, sim, meu parceiro; acudiu prontamente a feiticeira. A senhora disse; cumpre, hoje, amanhã, sempre. Será menos um branco; acrescentou num murmúrio, e a perdição dos outros.

O açodamento com que a tia Balbina recebeu a revelação do feitor sobressaltou-o profundamente; o que haveria descoberto a escrava nessa ordem tão simples e tão natural?

Depois de separarem-se, ainda Fidélis pensava no tom especial com que a tia Balbina lhe falara por último, e, desconfiado, fez tenção de comunicar a sua senhora o que se passara entre eles.

— Quebro o juramento, mas não importa; descubro a malvadeza que essa feiticeira esconde.

Uma hábil manobra da tia Balbina inutilizou o plano de Fidélis.

Ao sair da revista, a feiticeira acercou-se do feitor e segundando as palavras com as lágrimas, disse-lhe dolosamente:

— Balbina já se arrependeu de ter falado do senhor, porque ele é bom. Carlos contou que o branco vai perdoar o outro que o esperou para matar. Balbina perdeu o ódio, porque tem coração, e pede perdão ao seu parceiro.

— Foi Deus quem lhe falou, tia Balbina, foi Deus; respondeu Fidélis; era muita maldade.

No dia seguinte duas pessoas entraram na casa grande extraordinariamente comovidas. Uma era a tia Balbina a quem foi pela Sra. D. Maria confiada a lavagem da roupa dos escravos do sítio, e dado um quarto na casa grande, honra que só recebiam as boas escravas.

A outra era o subdelegado Oliveira, que a todo o galope atravessou o campo do sítio e, apeando-se precipitadamente â porta da casa grande, apertou com ambas as mãos as da Sra. D. Maria, exclamando todo comovido:

— E incrível, minha senhora; é incrível que possa haver sobre a terra tanta ingratidão.

As melhores e mais tocantes exclamações guardou-as prudente e artisticamente o Sr. Oliveira para o efeito cênico, e deslumbrante quadro final do primeiro ato da tragédia da intriga.

Introduzido na sala de visitas, acedeu sem resistência ao convite para passar aos aposentos do fazendeiro.

Uma palidez a propósito atenuava o colorido sadio do rosto do subdelegado, e um cerrar de mios, assim como um medido acento interjetivo mascaravam-lhe as intenções, â semelhança de um rótulo esmerado à mercadoria falsificada.

— Ninguém poderia pensar ao menos em que tal acontecimento fosse a paga de tantos favores, exclamou ele. Esse miserável que em parte alguma obteria sequer passagem pelos terrenos de um homem sério e contudo conseguiu terras, casa, e a amizade de V. S. Que alma, que torpe caráter o do tal Francisco Benedito! Faça-me o favor.

— Eu lastimo-o, não condeno-o absolutamente, respondeu Motta Coqueiro; é extremamente ignorante e além disso embriaga-se. não é perdê-lo que tenho em vista mas simplesmente intimidá-lo.

— Como?! Perdoe-me V. S. há de cumprir-se a lei. Vá lá que se tenha piedade para com o velho desmiolado, mas com o seu cúmplice, é impossível. Qualquer brandura com ele é nada mais, nada menos do que soltar uma fera em todo esse Macabu. Se ele sem proteção faz destas, o que não fará se tiver a justiça por si.

— E o que eu penso, Sr. Oliveira, interveio a Sra. D. Maria. Parece fábula o que esses homens têm praticado conosco. V. S., que é autoridade, parece-me que deve fazer cumprir a lei, apesar da bondade do Sr. Motta.

— Conte comigo, minha senhora; apesar de separado do senhor seu marido em política, tributo respeito ao seu honrado caráter.

A conversa, desviada para assunto diverso do que dava motivo a familiar e expansiva visita do subdelegado, voltou por direção deste ao ponto primitivo.

— V. S. fará o favor de convidar as suas testemunhas para a audiência na minha casa. Logo que se pronunciem os réus, eu fá-los-ei prender; não me escapara-o, eu lho juro.

— Eis uma dificuldade que não posso remover, ponderou fleumaticamente o fazendeiro; a emboscada foi feita em lugar ermo; não houve testemunhas.

— Ora, meu amigo, acudiu o Sr. Oliveira, V. S. não tem razão para desanimar por tão pouco. A cousa mais simples deste mundo é arranjar testemunhas. Deus defenda aquele a quem se queira perder; com trabalho diminuto conseguem-se testemunhas de vista para acusar um paralítico pela autoria de um assassinato a vinte ou trinta léguas de distância.

— Mas há para mim um embaraço grandíssimo; ainda que o fato seja verdadeiro, as testemunhas serão falsas, e desse meio creio que nenhum homem de bem se serviria.

— E um modo de pensar que teria como conseqüência a morte de todos os homens de bem às mãos da canalha. V. S. parece-me exagerar muito a noção da moralidade da justiça.

— Pode ser, mas não creio que V. S. tenha razão. Por este sistema de distribuir a justiça, poderemos chegar ao lado oposto: obter testemunhas venais e por meio delas condenar inocentes.

— Não contesto absolutamente; nada é perfeito neste mundo, mas declaro-lhe francamente que estou convencido de que sobre cem indivíduos acusados um, quando muito, é inocente.

— Será, mas não penso que a sociedade tenha o direito de punir a quem não cometeu delito, pelo irrazoável pretexto em idênticas circunstâncias. Assim nenhum de nós estaria seguro em sua casa. Por minha parte afianço-lhe desde já que se não houver testemunhas contra o compadre, eu desistirei do processo.

— Pois olhe; eu não sou suspeito, dou-me com o Chico Benedito e Sebastião, mas não vacilaria jurar que foram eles. E quer V. S. um conselho? Entregue a causa ao Licério. não se há de arrepender.

— Eu concordo e aceito o conselho, disse a Sra. D. Maria.

Depois de refletir por algum tempo, o fazendeiro decidiu-se também a constituir Licério seu advogado, mas a verdade é que ao comunicar a sua resolução pairava-lhe nos lábios o vago sorriso da desconfiança.

Retirando-se o Sr. Oliveira, Motta Coqueiro perguntou distraidamente a sua mulher:

— Crê na sinceridade do subdelegado?

— E por que não; eu não sou desconfiada como o senhor, e demais quer ele queira quer não eu saberei desafrontar-me.

— Pode ser que você tenha razão, mas eu tenho até repugnância do tal homem. O meu parecer era buscar com todas as forças obter a mudança do compadre.

— Isto, quer ele queira, quer não, há de fazer-se, mas pagará também o insulto.

Alguns dias depois a causa era confiada a Licério com plenos poderes, e Motta Coqueiro e sua família ausentavam-se do sítio com um protesto da Sra. D. Maria.

— Eu não voltarei aqui antes que o agregado e sua família se mudem.

Em vão esperou-se durante o primeiro mês, o segundo e os que se lhe seguiram, uma solução legal para os graves fatos ocorridos no sítio; nada se resolvera e para cúmulo de males as notícias que de lá ecoavam na chácara de Campos denunciavam novas e perigosíssimas provocações do agregado.

Entre Fidélis e Juca Benedito dera-se outra cena de violência, e tal foi a exaltação de ânimo e veemência de parte a parte que o feitor correu ao encalce do filho do agregado até próximo da casa nova.

Tais fatos eram meras conseqüências da animosidade do Sr. Oliveira para com o fazendeiro. Apadrinhava-os o pensamento político de provar praticamente a nulidade do chefe oposicionista, e assim arredar-lhe a popularidade.

A trama para chegar a tais fins foi de simplíssima urdidura; uns pequenos abusos de autoridade. Depois de ressalvar a sua imparcialidade, pondo um simulacro de sincero interesse ao baixo serviço de mesquinha vingança às derrotas políticas, o subdelegado, saindo da casa de Motta Coqueiro, dirigiu-se a Licério e pô-lo ao corrente dos acontecimentos.

— A alma do rábula pensando no lucro líquido que lhe viria do pleito esqueceu-se das conveniências políticas, bradou num excesso de entusiasmo.

— E eu que antipatizava com o Coqueiro! Oh! ele pode descansar, havemos de esmagá-lo; há de pagar caro.

— Não há melhor ocasião para reduzi-lo a nada, observou o subdelegado; os votantes verão que nós sabemos vencer.

— Está claro; perder dois votos não é coisa de grande monta. Dois valdevinos, dois biltres, o peseta do filho, grande coisa, mando recrutar o malandro, que tem boas costas para a farda, e meto o bêbado do pai e o tal Sebastião na cadeia.

— Escuso de estar com estas cousas, porque estamos sós, e não precisamos de enganar-nos.

— Sim, não precisamos.

— Arranje os cobres do Coqueiro, que é o principal, e deixe-o dar os paus.

— Mas...

— Eu me responsabilizo pelo que sobrevier; tenho certeza de que ele não atinará com a cousa.

— Porém... eu fui incumbido de castigar os criminosos e tenho meios.

— E eu lhe digo que não tem, que não deve ter.

— Ah! isto é outro falar, mas assim à primeira vista.

— Você parece que está treslendo; proteger e fazer justiça a um adversário?!

— Então V. S. entende que...

— Que se lhe deve negar água e fogo, eis aí. É o que se faz em política.

— Está bem, está bem; eu fico às ordens de V. S.

— Adeus, eu vou mandar asserenar o coitado do Chico; se eu estivesse no seu lugar fazia o mesmo. Os negócios de família são muito sérios.

Família! Esta palavra por si só impelia o ardiloso Licério aos maiores comprometimentos, e por si só bastava para dissipar-lhe os escrúpulos.

O rábula era uma ótima estofa para a famigerada comunidade religiosa de execranda memória por um lado, de sublime e civilizadora recordação por outro, e que elevou como dogma o celebérrimo princípio: o fim justifica os meios.

Em falta de mais largos horizontes, de uma corte para intrigar, de uma herança pingue a reverter pelo bem da companhia em bem da humanidade, de uma conspiração de magno alcance a dirigir, o bom e prazenteiro Licério atinha-se aos enganos nas somas das dívidas dos fregueses e aos bandeamentos largamente remunerados nas causas que lhe eram confiadas.

Resignado sabiamente ao seu destino entregava-se com a melhor vontade e humor à procriação do vinho e ao delongar dos pleitos. Tudo por amor da família.

Ora, justamente este amor foi invocado pelo Sr. Oliveira em defesa de Francisco Benedito, restava, portanto, ao amoroso rábula verificar até onde era levado pelo agregado o mais nobre, o mais santo dos sentimentos humanos.

Uma vez recebida a procuração plenária do fazendeiro, Licério foi entender-se com Francisco Benedito.

Munira-se da suas mais francas e prolongadas risadas e igualmente da mais aturada atenção, para bem observar as provas práticas da afeição paternal do velho.

Descobriu em breve uma prova. Um belo mandiocal estendia-se viçoso e atraente por uma grande extensão. Fazendo a redução dos alqueires de farinha em unidades morais, viu claramente que Francisco Benedito possuía um ótimo coeficiente para os seus deveres no lar doméstico, tanto mais que o trabalho de Licério para com essa expressão era simplesmente reduzir termos semelhantes do mesmo sinal. Mais amor de Motta Coqueiro, mais amor do agregado.

Cônscio de que o subdelegado não o havia iludido quando converteu em questão de honra o crime de Francisco Benedito, o cauto e inteligente rábula abriu-se desassombradamente.

— Sabe a que venho aqui, seu Chico?

— Para honrar a casa do pobre, meu senhor; e dar-nos gosto.

— Sim e não. Um negócio muito sério é principalmente a razão da minha visita.

— Faz favor de dizer qual é, eu já adivinho que vem falar das eleições.

— Não, venho falar das cacetadas no seu compadre.

— Mas não fui eu; e já o subdelegado resolveu o negócio.

— Não senhor; ele não pode resolver, há processo e está provado com testemunhas como você e o Sebastião disseram que iam fazer espera ao capitão.

— Ninguém pode dizer isto.

— Ouça o Manuel João...

— Aquilo é um mentiroso, que nem me põe os pés aqui.

— O Lúcio Ribeiro...

— Ora, este jura por dinheiro.

— O Faustino, todos ouviram.

— É uma mentira: só quem podia dizer era o Sebastião, mas por este juro.

— Mas então o Sebastião sabe como você acaba de dizer e portanto eu sou mais uma testemunha. Deixemos de partes: ou você entra numa conciliação ou eu faço andar o processo. Escolha.

— Diabos leve a hora em que entrei neste lugar; bradou furioso o agregado; o que é que eu hei de fazer para conciliar?

— Por exemplo dar-me este mandiocal ou uns cinqüenta mil réis; como lhe for mais acomodado; eu não lhe quero fazer mal.

— Mas isto é roubar o meu suor; não quero.

— Então vai para cadeia; passa lá uns cinco anos e come de lá a farinha. Passe muito bem; talvez quando se arrepender seja tarde.

Licério dirigiu-se imediatamente para a porta, mas ao transpor o limiar, parou. Queria vibrar o derradeiro golpe.

— Ouça, disse ele, cesteiro que faz um cesto faz um cento; veja se vem dar-me pauladas também.

Depois de coçar desesperadamente a cabeça, o agregado chamou Licério para dentro e disse-lhe:

— Enfim, com seiscentos diabos, vão-se os anéis e fiquem-se os dedos. Eu quero mostrar àquele traste que não se machuca os outros assim sem mais nem menos. Perco dinheiro mas dou uma lição. Está fechado o negócio com o mandiocal. Serve?

— Ora até que afinal, exclamou Licério esfregando as mios; estava a parecer que tinha perdido o juízo. Está feito, está feito, só para conciliá-los eu não ganho nada com isso, o que faço é perder o meu tempo enquanto ocupo-me com esse negócio. Posso então mandar arrancar o mandiocal por minha conta?

— Quando vosmecê quiser.

— Ora muito bem.

Desde que o amor paternal de Francisco Benedito ficou tão eloqüentemente assentado na convicção de Licério, o processo estagnou o seu curso natural.

Sobre ele só pairavam, como lindas mães d'água, as recordações dos lucros havidos pelo rábula à boa fé das partes.

Dir-se-ia que a justiça já proferira a sua última palavra a respeito da emboscada; tão grande era a quietação.

Só uma pessoa impacientava-se seriamente com esta indiferença; era a Sra. D. Maria.

A boa esposa não podia conformar-se com a desusada solução de uma questão que envolvia a reputação do seu esposo, e por meados do ano de 1852, sete meses depois do acontecimento, entendeu ela tomar a peito a punição do compadre.

Uma oportunidade apresentou-se para que a Sra. D. Maria pudesse interrogar peremptoriamente o fazendeiro, e fê-lo com a seriedade que lhe era própria.

Uma canoa chegada de Macabu a Campos trouxe a seu bordo além dos empregados e escravos da casa, um homem das circunvizinhanças.

Florentino Silva, era o seu nome, vinha pedir a Motta Coqueiro para que o recebesse como seu empregado, e ao mesmo tempo comprasse-lhe a posse de um sítio na serra dos Olhos d'Água.

Quanto ao primeiro pedido foi de pronto atendido pelo fazendeiro, que adiou a resposta ao segundo, visto que não conhecia o terreno que o seu empregado oferecia-lhe.

Os escravos afearam os desacatos e tropelias do agregado e concluíram por declarar ao fazendeiro, em nome do feitor Fidélis, ser um perigo a vida no sítio.

Ainda na noite de Santo Antônio tinham estado na casa de Francisco Benedito o inspetor André, o subdelegado, Joaquim Licério, Lúcio Ribeiro e vários indivíduos. Resolveram fazer uma grande fogueira em louvor do santo e, para servir de combustível, escolheram um cafezal.

Soprava esperto o vento e em breve as labaredas, enroscando-se pelas aléias e trepando crepitantes e fumívomas avassalavam grande parte do plantio que ficou completamente destruído.

Alvoroçada, a gente do sítio correu para apagar o incêndio, mas foi detida em meio caminho pelas ameaças dos folgazões, no número dos quais contavam-se as autoridades do lugar.

— Deus incumbiu-se de evitar a desgraça que parecia inevitável. O fogo extinguiu-se por si mesmo.

Ouvindo esta narração, que foi confirmada por Florentino Silva e Faustino, a Sra. D. Maria observou a seu marido que era urgente cortar pela raiz o mal.

— Pelo que acabamos de ouvir, disse ela, o subdelegado, longe de punir, protege Francisco Benedito.

— Eu tinha certeza de que isto viria a acontecer, o que quer a senhora? a autoridade cai sempre em mãos de semelhantes homens.

— Assim pois o mal é sem remédio?

— Parece que pela justiça é, mas resta-nos um meio, obrigar o compadre a mudar-se.

— O que eu noto é que o senhor não se agasta muito com isto, e não há explicação razoável para o seu procedimento.

— Se eu perdesse a cabeça e fizesse alguma asneira ser-lhe-ia agradável? Pelo amor de Deus, sejamos prudentes.

— A maior prudência era vender o sítio.

— Se aparecesse comprador.

— Nunca aparecerá, porque o senhor ainda quer adquirir mais terras naquele maldito lugar.

— Mas em que nos prejudica termos ou não termos terrenos em Macabu, não me dirá?

Apesar do tom de azedume do seu marido, a Sra. D. Maria insistiu longamente sobre os negócios do sítio. O seu fim era obter uma resposta decisiva, que lhe pautaria de futuro o seu procedimento.

— Eu lhe repito: não posso admitir que esse estado de cousas continue. O senhor diga com franqueza: aquele agregado é ou não castigado.

— Já lho disse, senhora: o compadre há de sair das minhas terras.

— Não basta, é preciso que pague a emboscada.

— O meio de que poderia dispor era processá-lo, o subdelegado é meu inimigo e protege o criminoso, é impossível fazer seguir o processo. não tenho outro.

— Era o que eu queria saber.

A conversação foi cortada bruscamente por uma última frase da Sra. D. Maria, frase que felizmente não foi toda ouvida por Motta Coqueiro.

— Eu hei de mostrar quem pode mais, Sra. Antonica.

Antonica foi a única palavra ouvida por Motta Coqueiro, e bem fácil é aquilatar qual seria o movimento íntimo que lhe correspondeu.

Seria saudade ou seria piedade? O certo é que, voltando a conversar com os seus empregados, Motta Coqueiro ponderou-lhes:

— É muito feliz o tal meu compadre; tem por si a proteção, a saúde própria e a dos seus.

— Quanto à saúde dos dele não é lá muita, principalmente de sá Antonica.

— Ah! ela está doente.

— Anda com umas queixas do peito, e uma tosse que vai metendo medo.

A Sra. D. Maria, que se conservava à distância de poder ouvir o que se dizia, amargou em silêncio a decepção que causou a simples exclamação do fazendeiro.

— Hei de acabar com isto, repetiu a si mesma.

Quando a canoa fez-se de volta a Macabu, a esposa do fazendeiro ordenou a Peregrino que transmitisse a Fidélis algumas ordens.

Queria que o feitor fizesse respeitar a propriedade do seu senhor pelo agregado e sua família. Caso não fosse atendido, ficava-lhe o direito de valer-se da força.

Fidélis esperava semelhante autorização para operar, e para exprimir a energia com que trataria de obter a mudança de Francisco Benedito, disse sem reserva:

— Aquele branquinho tem agora de tratar comigo: há de mudar-se ainda que eu lhe faça como aos maribondos; ainda que lhe queime a casa.

Os expedientes tomados pelo feitor conseguiram intimidar por algum tempo o agregado, que se acovardou principalmente desde o dia em que, perseguindo-lhe o atrevido filho, Fidélis não duvidou chegar até às portas da sua casa.

Então Francisco Benedito julgou mesmo ser prudente ceder à proposta do fazendeiro para a venda das benfeitorias, e incumbiu desse negócio um amigo comum.

As hostilidades arrefeceram e entabulou-se a negociação procrastinada pelas exigências irrazoáveis do agregado, que entendia receber o dobro do justo valor na venda.

— Ele há de ceder por fim, observava o intermediário a Motta Coqueiro; deixe passar mais algum tempo, não é muito para quem tem tido tanta paciência.

Irritado, porém, pela resistência que as suas pretensões encontravam no ânimo inabalável do fazendeiro, e além disso instigado pelas autoridades que visavam a retirada do competidor daqueles lugares, Francisco Benedito recomeçou desabridamente os seus desmandos.

Um dia em que em uma das vendolas, quase totalmente ébrio, o agregado vociferava diante de Faustino e Florentino contra Motta Coqueiro, disse Florentino:

— Você é um malvado, seu Chico; é um homem que devia morrer.

— Se me pagassem bem, eu arranjava isto, resmungou Faustino; queira o capitão e eu ponho um ponto à pendência.

Uma troca de insultos de parte a parte seguiu-se desastradamente e terminou por uma intimação formal de Faustino a Francisco Benedito:

— Cala a boca daí, velho cachaça, ou faço-te calar à força. Quanto ao teu genro torto, podes dizer-lhe que se ele continuar com os desaforos, eu visto-lhe uma camisa de pau com vento fresco. É o que falta a vocês dois, bêbados!

A altercação na vendola surgiu daí a alguns dias corporada em uma calúnia assaz comprometedora.

Dizia-se por toda a parte que Motta Coqueiro tinha encarregado Faustino e Florentino de assassinarem a Sebastião Pereira!

O mais grave, o mais incrível era que Bento Silva, irmão de Faustino, era um dos que se encarregavam de propalar semelhante versão, e dizendo que ouvira ao próprio Faustino.

Para cúmulo de infelicidade sobreveio uma desordem entre o agregado e os escravos.

Corriam os primeiros dias de setembro. Uns madeireiros de Macaé, entre os quais vinha o Sr. Conceição, chegaram ao sítio de Macabu para comprar o resto das madeiras ao fazendeiro, que se achava em Campos.

Uma canoa foi despachada para avisar Motta Coqueiro, e Fidélis com os seus parceiros começaram desde logo a embalsar as madeiras, por isso que o Sr. Conceição declarava que era negócio decidido e tinha pressa de conduzir as balsas.

No dia 9 de setembro pela manha, chegando Fidélis ao porto, encontrou cortadas as amarras das balsas e grande parte da madeira no fundo do rio. Evidenciava-se que a maldade fora a conselheira do fato, e esta não podia ser atribuída senão a Francisco Benedito, que já outras vezes tinha praticado atos mais graves.

O feitor calou-se e durante o dia não deixou sequer transparecer a raiva que necessariamente sentia.

Apenas comunicou o ocorrido aos hóspedes de seu senhor, pedindo-lhes que desculpassem a demora involuntária.

Á noite, depois da revista, Fidélis empunhando uma espingarda chamou os seus parceiros Alexandre, Peregrino e Carlos, que tinha sido mandado para o sítio por castigo de algumas peraltadas, e ordenou-lhes que o seguissem.

Alumiados por um facho, os três seguiram pelos aceiros da roça e dentro em pouco achavam-se diante da casa do agregado.

As portas e janelas estavam fechadas, porém partiam vozes do interior.

— Estão acordados, disse Fidélis; tanto melhor porque demora menos.

Quando o feitor ia bater à porta, perguntou-lhe Carlos, a quem o acento da voz do parceiro impressionara profundamente:

— O que é que você vem fazer na casa dessas feras?. Isto dá em desgraça, Fidélis.

— Dê no que der; eu tenho ordem dos brancos, respondeu o feitor, e bateu brutal e prolongadamente à porta.

— Más horas de visita é esta, disse de dentro Francisco Benedito; enfim vá lá.

Apenas a porta abriu-se, Francisco Benedito, atemorizado pela qualidade dos visitantes, recuou até o meio da sala, gritando compungentemente:

— Estamos perdidos, estamos perdidos.

— Não tenha susto, não, seu Chico; vosmecê é tão valentão que até a gente não acredita que fique logo tremendo. Isto é só um aviso.

À proporção que falava, Fidélis, acompanhado por Peregrino e Carlos, entrava pela sala do agregado, e apoderava-se de uma espingarda que estava encostada em um canto.

— Nós não somos assassinos; não fazemos emboscada, não, meu branco; mas eu sou feitor, e quero dizer-lhe que isto de andar vosmecê, seu filho e seus amigos destroçando o sítio, não me vai cheirando bem. Canalhada, canalhada e meia; hoje amanheceram as balsas cortadas; todos os dias é um desaforo: morte nos gados, fogo nos cafezais, o diabo a quatro. Eu venho saber se vosmecê quer ir por bem ou por mal. Se quer ir por mal não me custa nada a pôr fogo neste rancho, como se faz na casa dos maribondos, que não são tão maus como vosmecê. É decidir.

Fora zuniu o desfechar de uma paulada e em seguida ouviu-se um brado colérico:

— Tu me pagas, desgraçado; tu me pagas já.

Os três saltaram precipitadamente fora da sala, porque reconheceram a voz do parceiro, que tendo deixado o facho próximo à casa, corria pelo terreiro após um vulto, que ele depois disse ser Juca Benedito.

— Ah! vocês fazem-se pimpões; pois esperem; hão de sair amanhã mesmo daqui. Esperem.

Suspendendo o facho, Fidélis chegou-o até à beira do teto de sapê. Bastava uma pequena demora para que a casa fosse irremediavelmente perdida.

— Não faça, não faça, tio Fidélis! gritou Carlos.

E abaixando mais a voz:

— Foi sá Antonica que foi socorrer senhor, e ela não tem culpa do que o pai faz.

— Ali! velho cachaceiro dos diabos, é o que te vale; senão hoje mesmo de dormir no mato Mas se não mudas de pensar eu não atenção a mais nada... Deixa esse desgraçado! bradou em seguida; isso é um fedelho.

Os escravos afastaram-se comentando o caso, mas quem atentasse para o grupo de bananeiras que ficavam a pouca distância da casa, poderia descobrir um vulto que seguia atentamente todos os movimentos.

Quando a luz do facho extinguiu-se completamente, e o terreiro silencioso recaiu na obscuridade, o vulto saiu dentre as árvores, parou e estendeu um dos braços, que agitou no espaço.

Uma voz rouca e abafada articulou estas misteriosas palavras:

— Bom! muito bem! Agora começo eu!

Na manhã do dia seguinte o inspetor André recebia de Francisco Benedito uma denúncia gravíssima contra Motta Coqueiro e seus escravos.

Dizia o agregado que a sua casa tinha sido alta noite atacada pelos escravos Fidélis, Carlos, Alexandre, Peregrino e Domingos, que por mando do seu senhor tinham ido espancá-lo e pôr fogo à sua casa, crime que não se efetuou por ter ele, Francisco Benedito, caceteado um dos escravos, pondo assim os outros em fuga.

— E creio que não vinham sós, acrescentou o denunciante, porque se não me engano ouvi quando os malvados se retiravam as vozes de Faustino Silva e do Flor.

O inspetor André, que até então tinha ouvido sem protesto e dando aos diabos o fazendeiro, relutou ante a veracidade da presença dos dois últimos indigitados.

— Ainda o Faustino vá lá, porque é capaz de mais, porém Flor, causa-me espanto; é tão metido consigo e nunca houve desordens com ele.

— Nunca?! ora, seu André, não acredite. Ainda há poucos dias ele disse-me que era bem bom que eu morresse; porque sou um malvado. Veja só vosmecê.

Em seguida Francisco Benedito narrou a altercação travada entre ele, Florentino e Faustino, e, para garantir o efeito, carregando artisticamente o colorido e a disposição dos adjetivos.

O inspetor André, sentindo no hálito do queixoso um cheiro pronunciado de álcool, teve siso bastante para descontar-lhe os exageros descritivos e conseguiu asserenar-lhe os assanhados temores, chamando em seu auxilio a galhofa.

— Mas diga-me cá, seu Chico; o Coqueiro anda pela terra? perguntou ele.

— Que eu saiba, não; mas deu ordem para que me desancassem.

— Mas os escravos depois da sova de pau hão de custar muito a cumprir a ordem.

— Pode ser que não; virão todos contra mim e o meu filho, e nós não poderemos resistir.

— Leva sustos, seu Chico; você o que precisa é ter mais confiança na gente. Ouça, depois de amanhã, que é domingo, eu levarei um leitão para comermos e depois conversarmos a respeito da cousa; verá como tudo se arranja.

— Então eu espero por vosmecê.

— E mais o leitão.

O inspetor não dava inteiro crédito à denúncia do agregado e até convencia-se de que o assalto, a se ter dado, devia ser por motivos que Francisco Benedito não ousava comunicar-lhe.

Assim, pois, não tomou nenhuma providência e nem mais pensou no acontecimento.

Francisco Benedito, porém, saiu a espalhar pela vizinhança que o seu compadre mandara matá-lo pelos seus escravos e que o assassinato não realizou-se graças à sua coragem.

A credulidade sertaneja, sempre inclinada a se deixar penetrar por embustes e falsidades, ouviu, murmurou, comentou e finalmente em altos brados apregoou por toda a parte, como verdade, a delação do agregado.

Só à noitinha Francisco Benedito voltou da sua peregrinação. Trazia a alma desafogada, porque o dia tinha-lhe sido uma apoteose. Lúcio Ribeiro, Sebastião e outros tinham-no acompanhado, glorificando-o por tanta valentia em anos tão adiantados.

Na estrada geral, nos mesmos taquaruçus em que Sebastião e o agregado realizaram o seu plano contra o fazendeiro, dois homens estavam desde manhã cedo emboscados.

Um deles, troncudo e baixo, de feições grosseiras, cor de casca do jenipapo, nariz chato e beiços grossos, cabelos duros e corridos, tinha a acentuação medonha da misantropia. Riam-lhe a cólera e o escárnio ao canto dos beiços, nos quais ouriçavam-se raros alguns pêlos de barba.

Olhava sempre de través o seu companheiro e só falava-lhe quando instigado.

Vestia-se de uma calça de algodão mineiro, cuja cor branca, havia muito, mudara-se em cor de cinza intenso, mosqueada por largas manchas de barro. uma camisa de chita escura, em cujo campo arredondavam-se uns olhos vermelhos como sangue, abria-se-lhe no colarinho deixando ver o colo carnudo e queimado.

Um chapéu de palha da Angola, de abas desmesuradas e caídas, atado por uma estreita fita negra por debaixo do queixo, escondia-lhe a testa e fazia-lhe sombra ao rosto, tornando ainda mais temerosos os olhares lançados por umas pupilas distendidas e negrejantes sobre córneas sangüíneas.

O olhar, interrompido apenas por morosos pestanejares, tinha a fixidez especial das aves notívagas.

O outro, comparativamente franzino, escondia quase todo o rosto em lenço que, de sob o manto, subia-lhe até o meio da cabeça; mas viam-as pomas salientes e as órbitas fundas, e a testa terminada pelas sobrancelhas negras e o nariz avolumado, característico da raça cruzada.

Era um tipo vulgar, sem um traço apenas que o recomendasse a uma observação aturada.

Ao ouvirem a conversação dos três companheiros de viagem, o mais franzino dos emboscados disse precipitadamente ao outro:

— Agora não nos escapará; a escuridão permitirá que não nos descubram e ninguém pensará que somos nós os autores. Vamos; prepare-se.

O misantropo nada respondeu, apenas levantou os olhos desdenhosos, e deixou-se ficar sentado, como até então estava.

Confuso com essa indiferença, o que falou prosseguiu:

— Já não me engano facilmente, e sei perfeitamente distinguir a voz dele, esteja em meio de milhões de outros. Escute; o malvado aproxima-se.

De feito, as vozes distinguiam-se claramente e podia-se mesmo ouvir a conversa dos transeuntes.

— Foi aqui que o bicho quase esticou a canela e foi dar contas ao diabo; que pena não lhe acertar bem o cacete! dizia Lúcio Ribeiro.

— Qual, foi só uma arranhadela que lhe fizemos. — Com um tiro, disse em seguida, Sebastião, levantando a voz, hei de varar a qualquer desalmado que aí nos esteja ouvindo.

— Só se for alguma cobra, porque os negros ficaram bem convidados e já não caem noutra nestes meses mais próximos, advertiu Lúcio.

— Cautela em todo caso; passemos rente à barreira porque os taquaruçus são boas tocas de onças. E nós que o digamos; observou o agregado.

Dentro da touceira das gigantescas taquaras os dois emboscados representavam uma cena silenciosa, enquanto blasonando os três atravessavam a estreita curva da estrada.

O homem possante, rastejando sem ruído sobre folhas secas, viera protegido pelas árvores colocar-se à beira da estrada, e com ele o sôfrego companheiro.

Este, descobrindo o grupo, levou o dedo ao gatilho de uma espingarda que trazia consigo, mas ficou logo sem movimento, porque a mão do outro tolheu-o com a força das duas peças de um torno, apertadas vigorosamente.

Os palradores passaram impunemente. Quando já se haviam distanciado, o mais impaciente dos emboscados, levantando-se, disse ao outro, que também se pusera de pé e sorria o habitual sorriso de escárnio:

— Eu não posso mais; há quase um ano que por vezes temos tido ocasião de acabar com isso, e vosmecê deixa sempre com vida o nosso inimigo. Se não nos é possível vingar-nos, o melhor é cuidarmos de outra cousa.

O corpulento emboscado sorriu e sacudiu os ombros.

— Quem quer vingar-se não faz como vosmecê; parece mais o anjo da guarda do que uma pessoa que está zangada e quer desforrar-se de outra. Eu vou seguir o meu caminho, como entendo, e o resto fica entregue à minha sorte.

— Não, isto não pode ser mais, arrastou-se a voz rouca do emboscado: eu dei a você, e só a você, o meu segredo, que morava comigo lá vão muitos anos. É obrigar-me a ser mau, porque eu mato-o se desconfiar que quer fugir de mim, perder-me e sacrificar o meu ódio.

— E por que não se decide, por que está a demorar isso? Mate-me, é até um benefício.

— Não mato por ofício, mato por vingança. Ainda Francisco Benedito não tinha um filho, e eu já o seguia como um cão de caça à pista dos caitetus. Tenho-o tido muitas vezes ao alcance da minha faca; bastava um salto para enterrá-la até o cabo naquele coração leproso. não quis, não o fiz. Nos primeiros tempos eu derramaria apenas o sangue dele e da mulher, e não me bastava. não se apaga uma forja com pingos d'água.

Depois veio um filho, depois outro, mais outro, e eu dizia comigo: é tempo, há sangue bastante nesta raça para saciar, que não para extinguir, o meu ódio. Mas pensava depois e lembrava-me que ainda havia no corpo do meu inimigo forças para aumentar o pasto à minha ira, e esperei.

Eu sou filho de caboclo; do goitacás que odeia sem barulho, que sofre sem queixar-se, que morre sem gemer. Meu pai acostumou-me em criança a passar o dia à popa de uma canoa à espera que o piau farto se levantasse do fundo do rio, e viesse colocar-se ao alcance das nossas flechas. Estas atravessavam as águas sem ruído e a morte do peixe, que durante longas horas espiávamos, se anunciava apenas pela cor do sangue que vinha à flor do rio. Espero, esperarei para matar assim. Do que me serviria matar, para vingar-me, se ao cabo iria parar a uma prisão, onde a minha existência seria ainda mais cruel.

Eu não peço a você que me ajude, peço apenas que não me faça perder tantos anos dedicados à minha vingança. Este ódio é a minha vida, tirem-mo, e eu morrerei. Para satisfazê-lo, hei de fazer cair quantos encontre em meu caminho. E qual é a causa que o move? No dia em que nos encontramos, vosmecê disse-me somente: "Não é assim que um homem se desforra; segue-me." Acompanhei-o; nunca perguntou-me sequer por que razão eu ia perpetrar um crime, e nunca também me disse o seu nome, nem perguntou pelo meu. Pensa talvez que eu sou levado por uma questão sem valor, por uma criançada, e zomba de mim.

— Se eu não lhe tivesse lido no coração, não chamá-lo-ia para junto de mim. Quem se resolve ao que você resolveu-se, é porque tem uma dor grande.

— Pois saiba que é mais do que uma dor, é uma desgraça. A filha do nosso inimigo venceu-me, fiz-me seu escravo. Vivia só por ela sem importar-me com o mundo: não tinha nada com ele. Houve um dia de loucura na minha vida, porém quis pagá-lo com o grande amor que tenho àquela mulher e no entanto ela fugiu-me como a um cão danado.

— Foi então que você decidiu-se a matá-la, expondo-se à justiça. Criança! O ódio precisa de crescer, reforçar-se e criar cabelos brancos para depois ter ação; ao contrário tem a sorte das crianças, que brincam com espingardas: ferem-se ou suicidam-se.

O narrador não parecia ter atendido ao seu interlocutor, e continuou:

— O mais cruel é que eu penso que é por um outro que ela me despreza. Este é rico e forte; pode tudo e insultou-me, e correu-me. Oh! se ele há de pagar-me!

O pai dela tentou perseguir-me, ao passo que anda de mãos dadas com um miserável que me perdeu, e lhe perdeu uma filha. Por quê? há alguma diferença entre nós? ambos somos da mesma casta, ambos pobres. Por que, pois, repelirem-me. Hei de vingar-me, e duplamente, porque eles escarneceram da minha fraqueza!

Tenha pena de mim, abrevie o meu sofrimento; veja que eu não posso por muito tempo conservar-me na casa de um homem a quem odeio; bem posso um dia perder a cabeça e então lá se vai toda a minha esperança. É uma crueldade fazer-me seguir quase sempre os passos do infame agregado; é uma falta de piedade; se vosmecê não quer já acabar com ele, para que havemos de espreitá-lo sempre?

— Suponha que é para descobrir o melhor ponto para cravar-lhe uma bala, ou vará-lo de lado a lado com a minha faca. Mas não é isto o que nos importa. Qual é o outro homem que o insultou, qual o seu nome?

— Motta Coqueiro, o dono deste sítio.

— O filho do Goitacás sabia; mas queria que você confirmasse, para lhe dizer o seu plano. Ontem, quando à noite eu estive no terreiro da casa do nosso inimigo, os escravos desse homem apareceram para tomar contas às malfeitorias de Francisco Benedito. Depois um deles quis pôr fogo à casa. Hoje todo o Macabu deve saber disto, porque desde pela manhã Francisco Benedito anda de um para outro lado.

— Mas o que temos com isto?

— O que temos? E é você que diz que sabe odiar! O que temos: você uma dupla vingança; a ambos nós a liberdade.

— Ah! exclamou o interlocutor, levando a mão à testa.

— Entendeu agora? Pois bem, trate de saber quando chega o fazendeiro; até lá esperemos.

Os dois personagens misteriosos separam-se taciturnos e cabisbaixos, sem que ao menos houvessem trocado um aperto de mão.

Via-se-lhes no aspecto que a sua aliança carecia de um sentimento puro, que os fizesse desdobrarem o íntimo nas expansões, que se esbatem à luz, serenas e descuidadas.

Ao contrário faziam recordar as lendas das feiticeiras e demônios que se reúnem nos lugares ermos, obumbrada a claridade do céu por um reposteiro de trevas e só então começam o tripúdio sombrio, em que as visagens e os esgares medonhos substituem as palavras meigas e os sorrisos afáveis.

O mais robusto dos dois internou-se pelo capoeirão, caminhando sem hesitar, como quem era assaz prático em romper por entre a rede espessa de lianas, trançado de galhos, e os acidentes do solo do lugar.

Sob os seus passos de longe em longe estalitavam as folhas e os pauzinhos secos, mas tão imperceptivelmente que ninguém poderia crer que por ali passava um homem.

Após meia hora de caminho, parou sob uma árvore frondosa, cuja ramagem caía como uma cúpula sobre as franças de outras menores, recortando um enorme disco virente.

Um vasto recinto circular, estofado por folhas mortas, fechava-se aí pelo teto e tapagem de árvores, e servia de habitação aos dois companheiros.

O recém-chegado, fazendo fuzilar o seu isqueiro, acendeu uma pequena fogueira e depois tirou do oco da árvore um cobertor escuro, e um saco, e separando as folhas do chão trouxe para junto de si duas foices polidas.

Sobre o cobertor estendido deitou a espingarda, que trazia consigo, e em seguida foi para junto do fogo onde começou a aquecer provisões para uma sóbria refeição.

Visto ao clarão avermelhado da pequena fogueira, aquele rosto, onde a maldade estereotipara-se na sua mais precisa acentuação, lembrava os gênios maus da floresta, criados pela imaginação supersticiosa dos selvagens.

Enquanto no isolamento e no mistério o recém-chegado quedava acocorado junto da fogueira, o sôfrego companheiro deste homem, que durante longos anos apascentava em silêncio os mais ferozes pensamentos de horrorosa vingança contra Francisco Benedito, caminhou em busca da notícia da qual dependia o espanejamento dos seus instintos sangüinários em uma alegria satânica.

O caminheiro, andando com uma presteza incrível, chegou ao sítio antes da hora em que a voz do feitor ordenava o recolher e por isso não esperou por muito tempo para ouvir alguma cousa que o interessasse.

A princípio colocara-se por detrás das senzalas todo atenção e ouvidos, mas para logo atraído pelo eco de duas vozes, arrastando-se cautelosamente veio postar-se entre o vão da casa do feitor e o lanço em que moravam os escravos.

Na porta da senzala, Carolina, que já restabelecida tinha voltado para a roça, conversava com a tia Balbina.

— Parece que vamos ter chuva, disse Carolina, vosmecê não vê que nuvem tão negra está ali parada por cima da casa grande?

— Pode ser que seja o quarto da lua com trovoada e a pedra do raio; é quase sempre assim, mas a pedra do raio não cairá sobre a casa dos brancos.

Deus há de livrar-nos disto: lá está na porta a Estrela do céu.

— Mas a água da chuva pode fazer cair a oração, disse a feiticeira elevando a voz; já tem-se visto, e, quando a Estrela cai, Deus fecha os olhos para a banda da casa que a perdeu.

— Ave Maria! tia Balbina, Deus não há de permitir que venha ainda mais cita desgraça.

— Não; a felicidade é para os brancos, a desgraça é para os cativos. Quando das costas de Balbina as feridas do chicote lançavam fumaça, como a boca aberta em dia de frio, a senhora brincava com o caçula doente, batendo-lhe com a ponta do dedo nos seus beicinhos vermelhos.

A mucama, parada junto dele, ria contente sem se lembrar que a sua parceira, cheia de dores, arribava o eito, gemendo no coração.

Quando, de noite, o caçula tossia a sua doença, todos logo de pé corriam para ver e saber o que é que ele tinha, e quando de noite a escrava quase a morrer de raiva e de cansaço veio deitar-se na esteira da sua cama, só a pobre Carolina teve uma lágrima e um pouco d'água com que lavasse as feridas da infeliz. Não; a felicidade é para os brancos, a desgraça é só para os cativos.

— Foi assim mesmo, tia Balbina, mas vosmecê já está vingada; basta só o negócio do agregado.

Balbina sorriu, sacudiu os ombros, raspou as mãos uma sobre a outra, e depois disse dissimuladamente:

— Pode ser.

— Está mesmo vingada, porque se disseram que vosmecê era feiticeira e o senhor acreditou, hoje também o agregado foi espalhar que o senhor tinha mandado pôr fogo à casa dele e todo o mundo deu-lhe crédito.

— Engano de você, criança, ninguém disse isto.

— Antes não dissessem; mas o Carlos contou-me que tinha ouvido na venda. Vosmecê bem sabe que ele hoje não trabalhou; porque está com o pé destroncado por um jeito que deu ontem de noite, quando foram à casa de seu Chico.

— Quem? ele foi...

— Com Fidélis, Peregrino e Alexandre. O filho de seu Chico arrumou uma cacetada em Alexandre e eles correram para defender o outro. No pulo que deu, Carlos destroncou o pé.

— E o que foram eles fazer? Balbina dormiu o sono do cativeiro antes que o galo cantasse; estava cansada; não pôde ouvir ao seu anjo da guarda o que fizeram de noite os escravos do mau senhor.

— Eu lhe digo, tia Balbina. Fidélis aturou até agora tudo que o agregado tem querido fazer; mas os brancos disseram à minha vista que Fidélis tratasse de botar para fora aquele homem, fosse como fosse. Ontem as madeiras amanheceram fundeadas no rio e o feitor, vendo que só o agregado faria esta maldade, foi à casa dele para meter-lhe medo.

Enquanto Fidélis arrazoava lá com seu Chico, o filho veio por fora e deu uma cacetada em Alexandre, que estava da parte de fora. Então o feitor muito zangado quis pôr fogo à casa do agregado, e se ela não ardeu foi porque Carlos lembrou-lhe que o senhor gosta de sá Antonica.

— E quem foi que disse a Carlos que o senhor gostava da filha do agregado? perguntou a feiticeira.

— Ele via e a senhora já sabe também e tanto que é a causa da maior raiva. não sei por que, mas eu tenho uma cousa que me diz que, amanhã; quando o senhor chegar, há grande desgraça aqui.

Como se não ouvisse mais as palavras de Carolina, a feiticeira, levantando-se com os olhos fitos no céu, ergueu o braço e, apontando para a nuvem negra, resmungou junto da face de Carolina.

— Olha a nuvem; cresce cada vez mais. Está como o luto da morte; negra, negra. O quarto da lua traz trovoada e a pedra do raio; a estrela do céu vai cair da porta dos brancos. Balbina saberá do canto do galo quem disser que a estrela caiu da casa do mau senhor. Vai dormir, criança.

Sem forças para resistir à intimação da feiticeira, a crioula entrou logo na sua senzala e só depois de ter fechado a porta saudou com voz trêmula a vingativa escrava.

Balbina afastou-se lentamente e dentro em pouco entrou em casa, fazendo arruir a fechadura.

Tudo ficou silencioso e o vulto do espião perfilou-se no oitão da casaria.

— Amanhã; bem ouvi, amanhã; resmungou ele; não quero perder um minuto mais, tenho sede de sangue daquela raça. Oh! meu amigo, qual não será a tua alegria.

Alta noite, na hora em que a superstição prende sob os tetos os moradores do sertão, duas pessoas afrontavam corajosas as aparições de almas penadas e o ranger de dentes dos lobisomens.

Como se uma das grandes nuvens negras, que escureciam o céu, tivesse descido à terra e deslizasse, cosida com as paredes, pela face da casaria do sítio; um vulto, que pulara a janela de uma das senzalas, aproximou-se a pouco e pouco da casa grande. Na última porta que abria sobre a sala de visitas, alvejava um papel, no qual desenhava-se uma larga cruz, emoldurando algumas linhas de caracteres tipográficos.

O vulto parou diante da porta, e depois de escutar atentamente, subiu à soleira e correu a mão sobre o papel. Esperou algum tempo, e afinal levou de novo a mão ao mesmo ponto da porta. Tinha desaparecido daí o sinal que alvejava nas trevas.

Com a mesma precaução o vulto tomou para a senzala de onde tinha e a luz de um candeeiro iluminou o interior.

Quem olhasse pela fresta da janela viria agora a tia Balbina, diante do candeeiro, sorrindo e remirando um papel que tinha nas mãos.

Depois de minucioso exame, a feiticeira chegou à chama o papel que tinha nas mãos, e atirou-o ao chão. A combustão foi rápida; em alguns segundos estava convertido em cinzas.

— Agora, disse ela fitando-o; raça de brancos, sem coração e sem piedade, zomba do raio de Deus que vem na nuvem negra do quarto da lua, e foge também da vingança da escrava. Os sinais do castigo ainda estão vivos nas da feiticeira, e, enquanto eles durarem, Balbina não terá perdão. Viesse embora o caçula, alvo como a flor da canema apertar nos braços, e beijar a sua ama; a lembrança do castigo, e a sede da vingança não sairiam da alma da negra. A cobra ofendida espera para matar ou para morrer.

A escuridão estendeu-se no interior do quarto.

A esta hora ainda o espião aventurava-se através da mata em demanda do pouso, em que o esperava o seu companheiro.

O homem, que durante anos assanhara gradualmente o sonho de seva desforra contra Francisco Benedito, depois da refeição começou a passear de um para outro lado do escondrijo, traindo, apesar da estagnação do semelhante, uma impaciência febril.

Por vezes avivou o fogo, engatilhou a espingarda, e alimpou no saco a folha das foices, recomeçando depois o seu automático passeio.

Afinal, parou e tirou da bainha uma larga faca e olhando-a e correndo-lhe o dedo pelo fio, rosnou entre um sorriso:

— Deves estar envergonhada da minha fraqueza. Eu já não te mereço o gume que corta no ar um fio de cabelo da raça do meu inimigo. Perdão, minha companheira.

E os lábios da fera pousaram, e demoraram-se num beijo longo sobre a lâmina pálida e lanceada da arma. Era o idílio do crime, alumiado por um braseiro, a fazer lembrar as cenas que a imaginativa religiosa desenha nas grutas inflamadas do inferno.

Interrompido bruscamente o beijo, o facínora disse resolutamente:

— Não cedo, não quero ceder nem uma gota de sangue da geração que há longos anos condenei. Que me importa a mim que outros queiram vingar-se? Nenhum tem sofrido mais do que eu. Tenho mulher e não penso nela; tenho filho e fujo de afagá-lo; e, coitadinho, quando eu volto a casa vem esperar-me no terreiro para pedir-me a benção. Mulher e filho agradecem-me o pouco que posso conseguir com as horas de trabalho roubadas à minha vingança; choram de alegria, e eu nem demoro-me para consolar-lhes as contínuas saudades.

Qual é o outro que tem igual direito ao sangue da raça amaldiçoada? Ódio de dois dias, sem raízes e sem sacrifícios, eis o que deseja partilhar comigo a vingança! Não cedo, não quero ceder. É minha, minha só a vida da família indigna; só eu hei de saciar-me no seu sangue. Juro!

Quase ao romper d'alva o espião reuniu-se ao seu companheiro.

— Chega amanhã à noite; amanhã, amanhã, exclamou ele, parando diante do taciturno companheiro.

O silêncio deste impressionando-o profundamente, perguntou-lhe o espião, mordido pelo despeito:

— Então vosmecê não se alegra.

— Não.

— Pois não vai acabar os seus desgostos.

— Sim, mas Deus quer que não seja eu quem me vingue; escolheu outro para manejar a arma.

— Outro; eu, não é verdade; sou eu? Hei de manejá-la, hei-de? com a força do meu ódio.

— Não és tu também, é outro.

— Oh! homem malvado, exclamou o espião, pois você pensa que eu consentirei? Antes morrer.

— Cala-te aí já! Se eu não devo fartar-me no sangue do outro, quem me diz que não posso beber o teu, a quem confiei o meu segredo e que me queres perder? Ouve bem; não irás amanhã à noite à casa do inimigo; deixa que as mãos escolhidas por Deus se incumbam da vingança. Escuta e pensa; eu ando sem ruído como o peixe nada no rio; mudo de pouso como o vento muda de rumo; se não me atenderes, fugirás em vão. Para que me pudesses descobrir era preciso pôr em terra todas as matas e arrasar todos os morros; desde os que se sobem correndo, até os que se vestem de nuvens. Ainda assim era preciso secar todos os rios; eu corro como o veado, mergulho como a anta e bóio sobre águas como a vagem do ingá à mercê da correnteza. Escuta e pensa; o sangue do inimigo só correrá pelas mãos escolhidas por Deus.

— Maldita a hora em que nos encontramos; eu não recuaria com medo! não seria fraco!

De um salto o homem robusto tinha empolgado e atirado por terra o companheiro, ao qual subjugava com um joelho sobre o ventre e uma das mãos sobre a garganta, enquanto na outra brilhava a faca luzidia.

Mas a explosão de cólera extinguiu-se de chofre e o espião foi deixado em liberdade, ferido apenas por um sarcasmo.

— Criança; vê se eu sou medroso e fraco; ali estão as armas, mata-me!

— Oh! meu Deus; eu sou bem desgraçado, soluçou o miserável.

A noite calada e escura e após ela uma aurora triste, parcamente gazeada e tocada apenas por uns efêmeros tons avermelhados em estreita barra de um céu cor de chumbo, estenderam-se entre o silêncio dos dous companheiros.

Seguiu-se da mesma sorte o dia, suando por entre nuvens carregadas baça e tristonha claridade, que se umedecia passando através de impertinentes chuviscos periódicos, que, batendo na folhagem, enchiam a mata de abafados sussurros.

Ao anoitecer, o filho dos goitacases acercou-se do seu companheiro e disse-lhe buscando armar-lhe pelo carinho do acento a boa vontade.

— Esta noite você vai descansar na casa do amigo. Pode ir sem rancor de mim; a sua vingança nem por isso deixará de ser levada a cabo. O rio que volteia pela serra há de chegar a cair na várzea. Agora ou logo, que importa? Vai em paz.

O ouvinte não respondeu; taciturno, pegou da sua espingarda e de uma das foices e caminhou para a saída do escondrijo.

— Não mereço mais nem um adeus?! não faz mal; não tardará que você compreenda que eu soube pagar a confiança com que acompanhou-me, sem saber ao menos o meu nome. Breve voarão sobre a cabeça do amigo os sonhos serenos; o pesadelo da ofensa há de mudar-se no desafogo da vingança. Se esta não é tomada pelas suas mãos, Deus sabe a causa. Ambos temos sofrido muito, mas a sorte não quer que sejamos nós os que demos a satisfação às nossas dores. Paciência. Entretanto ninguém mais do que eu tinha o direito de dizer ante a vida da família condenada: — é minha, minha só; mas você vê bem que eu não desespero. Algum dia vir-se-á a saber a história do homem que você encontrou no caminho da vingança; compreenderá então como era triste. Pode partir.

— Não será mais do que a minha, adeus!

O caboclo não se demorou muito no escondrijo após a saída do companheiro. Antes porém de retirar-se cavou com a foice um buraco, enterrou o saco das provisões, e abriu com a ponta da faca na casca da árvore uma enorme cruz.

— Por mais que tu cresças, disse ele olhando para árvore, não se apagará este sinal, e os meus poderão saber se eu tive ou não coragem de vingar-me.

Seriam dez horas da noite quando os leques das bananeiras, que se erguiam no terreiro da casa de Francisco Benedito, estremeceram ao de leve, como o capinzal por onde as preás correm amedrontadas.

Um vulto saiu dentre elas e caminhou vagarosamente em torno de toda a casa. Certificou-se de que ninguém o via.

Voltando à frente da casa e agarrando-se aos entulhos da parede, marinhou até à cobertura de sapé, cuja superfície molhada pela chuva não deixou ouvir o menor estalido.

Separando cautelosamente as ramas do teto, conseguiu em poucos minutos desaparecer através dele.

Na sala de visitas, onde dormiam três crianças alumiadas por uma lamparina colocada sobre uma velha mesa diante de um tosco oratório, apareceu o homem que tinha gravado a cruz na casca da árvore.

Depois de se ter inclinado sobre as crianças, e fitado-as por algum tempo, abriu sem ruído a porta, saiu, caminhou até as bananeiras e voltou logo trazendo consigo a foice e a espingarda. Fechou de novo a porta e guardou a chave sob o oratório.

Como quem conhecesse perfeitamente a disposição dos aposentos, seguiu pelo corredor que abria ao fundo da sala.

Na sala de jantar, sobre um estrado, ressonava o bom sono da confiança o filho do agregado. O visitante noturno viu-o, graças à claridade que frouxamente derramava-se na sala, e sorriu.

Depois abaixou-se sobre ele e balançou-o, dizendo baixinho ao moço que assentara-se sobressaltado:

— Não me conheces, não é verdade? Pois sabe que sou um amigo de infância de teu velho pai. Ouvi ontem a história do assalto dado aqui pelos escravos do capitão. Este chegou hoje e não tardará que venha concluir a sua obra. Vem comigo, e dali das bananeiras com as nossas duas espingardas defenderemos a casa. Vem.

O moço, que não teve tempo de refletir, levantou-se de um pulo e, seguindo o que ele julgava amigo da família, saiu com ele pela porta dos fundos, que foi fechada por fora.

Logo porém que chegaram junto às bananeiras, com a agilidade e certeza de um bote de tigre, Juca Benedito foi colhido pelas mãos vigorosas do homem possante, e sem que tivesse podido proferir uma palavra, caiu em cheio por terra.

O homem voltou de novo à casa, acendeu com o maior sangue frio um candeeiro e dirigiu-se à cozinha.

Tirou da bainha a faca ensangüentada e, cortando com ela uma corda que se estendia de um canto a outro do vão, dirigiu-se em seguida ao quarto da sala, depois de ter trancado e guardado as chaves de todas as portas, e posto a foice por detrás do estrado.

Dormiam nesse quarto Francisco Benedito e sua mulher.

O intruso, de uma reviravolta, amarrou os braços que o adormecido tinha cruzados sobre o peito.

O agregado levantou-se de chofre; mas não pode clamar por socorro porque foi no mesmo instante amordaçado.

Despertada pelo abalo que produziu no leito o pulo do marido, e vendo diante de si aquele homem com um sorriso mau a contrair-lhe os grossos beiços, ao passo que o marido forcejava para libertar-se de suas mãos, a pobre senhora precipitou-se corajosamente sobre o malvado.

Francisco Benedito já havia caído, porque com uma ponta da corda foram-lhe amarrados os joelhos.

O facínora esperou calmamente o assalto da fraqueza feminil, encorajada pela dedicação e o amor.

As mãos da esposa seguraram-se como duas tenazes aos braços do homem; enquanto que sua flébil voz, querendo bradar, murmurava apenas:

— Malvado, que mal te fizemos nós?

Os olhos do agressor fuzilaram francamente a cólera longos anos represa, e ele respondeu aparentemente sereno:

— Nenhum! Bem sabem que nenhum.

— Salvai-nos, meu Deus; estamos todos perdidos, exclamou angustiosamente a senhora.

— Nem Deus, nem o diabo!

Proferindo estas palavras, os punhos do agressor, calcando sobre os ombros da desventurada esposa, fizeram-na cair de joelhos.

— Mate-nos, se tanto deseja, mas poupe nossos filhos, que não lhe fizeram mal nenhum.

O monstro riu-se e à proporção que, posto um joelho sobre o estômago e arqueada a mão sobre a garganta da infeliz, estrangulava-a cinicamente, dizia entredentes:

— Eu não esperaria tanto tempo para vingar-me se bastasse-me tão pouco sangue. Irão todos, um por um, desde o menor até o maior. Bem sabe que já perco um dos da tua raça; é demais.

E o monstro continuava na sua pressão feroz, ainda que sob ele já não estivesse mais que um cadáver, cujos olhos desmesuradamente abertos e salientes pareciam querer feri-lo como se fossem dois punhais.

— Amigo Francisco, disse o monstro que se levantara; vais ver como se é leal e bom pagador.

O agregado apenas podia soltar gemidos abafados. O monstro arrastou-o até à sala de visitas.

Ouviam-se dentro os gritos das duas filhas mais velhas, que batendo à porta do quarto, a qual o facínora tinha tido o cuidado de fechar, exclamavam angustiadas:

— Abram-nos a porta; perdão! perdão para nosso pai.

Por sua vez as três crianças acordadas, vendo o velho pai estendido por terra, e o homem de má catadura caminhar para elas, choravam, pedindo-lhe que não as matasse.

— Berra, corja miúda, berrarás em vão. As portas estão fechadas, e a estas horas não passa viva alma pela estrada.

Pegou então na menor das três crianças, empurrando as outras que, de joelhos e agarradas à irmãzinha, pediam por ela. As duas pobrezinhas caíram abraçadas uma com a outra, enquanto que o monstro, sacudindo pelos cabelos a criancinha, esbofeteava-a sorrindo.

Depois cravou-lhe na garganta as unhas de fera, balançou-a no ar e atirou-a ao lado do angustiado pai, que vasquejava a sua desgraça.

— Por istozinho, disse ele apontando o cadáver, nem valia a pena incomodar-se um homem; porém era uma viborazinha que ficava. Vamos às outras.

Durante o estrangulamento da irmãzinha as duas meninas tinham se levantado e corrido para o interior, debalde, porque não tardaram a ser descobertas pelo assassino, que as arrastou até à sala.

Uma delas teria oito anos, e a outra onze.

— Vamos primeiro acabar com a mais moça, amigo Francisco, resmungou o malvado. E preciso que eu ganhe força para sair perfeito o trabalho.

Com violento empurrão a menina foi estirada ao chão, e o demônio do ódio levantando o pé, bateu-lhe em cheio nas costas. Uma golfada de sangue espadanou e foi cair sobre o agregado, e mais uma vítima foi imolada a uma vingança de causa desconhecida.

A menina de onze anos foi então arrastada pelo monstro, que assentando-se num mocho obrigou-a a sentar-se nos seus joelhos.

A lubricidade veio então misturar-se à ferocidade.

— É realmente bonita, e, pelas dores que tenho sofrido, juro-te, amigo Francisco, o meu coração está a pedir-me que eu não mate-a.

Houve um instante de silêncio, durante o qual o pudor da menina, quase desfalecida, foi posto a tratos pelo facínora.

— An! seu capitão! que mal lhe fizeram as crianças, tenha dó delas.

Este grito de desespero, proferido por Antonica, deteve em meio uma cena de iniqüidade indizível.

O malvado ergueu-se de súbito e arrastando após si a presa, acocorou-se junto de Francisco Benedito.

— Ouviu o que disse a sua filha, amigo Francisco? Ela pensa que é o capitão quem se desforra neste momento; e todos, quando encontrarem esta casa contendo os pedaços da tua raça, hão de pensar também que foi o capitão o autor desta vingança. E eu viverei tranqüilamente; nem ao menos podes levar a esperança de que eu sofra um pouco, uma hora somente! Quanto é bom ter-se como tu, amigo Francisco, inimigos a cada canto! Os que são mais ofendidos podem castigar sem temor. Há quem sofra por eles.

A faca do assassino sumiu-se na região torácica da indefesa menina, e duas vezes mais cravou-se-lhe no seio.

Quando a vítima não dava mais sinais de vida, o monstro passou pelos beiços a lâmina ensangüentada e disse demoradamente:

— Oh! como é tão doce e cheiroso o sangue dos teus. Devias amar muito a tua mulher, amigo Francisco, para que tivesses filhas tão bonitas. Faltam-me ainda duas e é preciso que eu dê conta da tarefa antes que o dia clareie.

A porta do quarto, em que o assassino tinha prendido as duas moças, abriu-se e ele, encostado à foice que antes escondera, esperou que as desventuradas saíssem.

As infelizes, abraçadas num canto da casa, soluçavam de modo a comover as feras. O pavor tolhia-lhes o movimento. Eram duas estátuas de desespero confundindo nas lágrimas o seu desconsolo.

— É preciso que venham tomar a bênção a seu pai antes que se separem dele, disse o monstro; eu quero ser bom para vocês.

— Oh! isto é demais! bradou Antonica, precipitando-se sobre o assassino; mate-nos mas não escarneça.

A coragem da moça comunicou-se à sua irmã e ambas atiraram-se valorosas sobre o frio matador.

Mas a foice, vibrada vigorosamente, fendeu pelo meio o crânio de Mariquinhas, e a desventurada vacilou, e para logo baqueou inundada por uma onda de sangue.

Antonica tentou em vão fugir às mãos do homem desapiedado. Num lance d'olhos fora por ele subjugada e arrastada até junto do velho pai, a quem a vida era ainda conservada a custo de tanto tormento.

— Mate-me; é um benefício; mas diga a quem lhe mandou aqui, diga a de que mesmo na hora em que mandou matar-me eu disse que o amava.

O monstro buscou inutilmente profanar aos olhos do pai subjugado a grinalda virgínea da infeliz amante, o heroísmo do pudor teve forças para resistir-lhe e o bárbaro e desumano assassino viu-se obrigado a santificar com a morte a virgindade de Antonica.

— Confessa, amigo Francisco, disse o escárnio da fera; confessa que eu sei vingar-me. Já não contavas comigo, e entretanto não esqueci a divida de outrora; pago-a com juros. Morre pois, oh! cão!

A planta do selvagem colocou-se sobre a garganta de Francisco Benedito, que estrebuchava violentamente. Depois o monstro recuou um passo e disse como que arrependido do seu ato:

— Não! envenenaste a minha vida, morre como o sucuruiu.

Uma foiçada, desfechada nas têmporas do agregado, pôs termo ao seu inenarrável sofrimento.

Concluída a matança, o monstro ateou fogo aos quatro cantos da casa e saiu lentamente, deixando sobre a mesa a lamparina, cuja luz alumiava agora cinco cadáveres!

A escuridão do terreiro epancou-se pelo clarão vermelho dalgumas labaredas, e o monstro, parando e voltando-se para a casa incendiada, exclamou com trêmulo e sombrio acento:

— Ninguém! Amanhã tudo isto será um monta-o de cinzas e não haverá um criminoso pela extinção da família do malvado.

As últimas palavras foram porém acompanhadas pelo ronco longínquo de um trovão, e alguns segundos depois as nuvens negras do céu despejavam sobre o incêndio uma chuva torrencial.

Sob o temporal de feito, singrava rio acima uma canoa, cujo impulso represando e fazendo espumar ruidosamente a corrente abria duas grandes asas níveas na escuridão das águas e da noite.

Gradativamente os remadores foram aliviando os remos, e afinal a canoa parou.

— Nas horas de Deus! exclamaram eles; estamos em casa.

Estavam de feito no porto do sitio de Macabu, propriedade do capitão Motta Coqueiro, que, vindo a bordo, tratou de desembarcar logo que ouviu anúncio dos canoeiros.

— Rapazes, tratem de cobrir as cargas, disse ele, e os Srs. venham comigo. Que viagem terrível!

Pouco depois via-se luz na sala de visitas da casa grande, e ouviam-se falas entrecortadas por francas risadas.

Recostado num canapé, junto do qual estavam assentados alguns homens de fisionomias distintas, Motta Coqueiro presidia uma conversa de amigos.

O mais jovial e que mostrava mais privança com o fazendeiro era o Sr. Conceição, negociante residente em Macaé.

O seu rosto cheio e vulgar era entretanto atraente porque iluminava-o um olhar cheio de insinuante sinceridade.

No mais era um homem de estatura mediana, sem reservas aristocráticas, sem posições estudadas; o antigo tipo do homem do comércio, que se perdeu no dilúvio fervido do aperaltamento moderno, que olhando, para a fidalguia, fica sempre no ridículo.

— Se você não tivesse chegado hoje, dizia o Sr. Conceição, amanhã só encontraria aqui muitas lembranças nossas. Batíamos asas sem mais demora.

— O que custa é o mais desejado, respondia o capitão; e além disso as minhas madeiras são como o vinho, quanto mais velhas mais caras. Está aí por que me demorei.

— E lá ficaria se o vento não o fosse buscar. Pelo que eu vejo você não chega aqui sem tempestade.

— Nem sempre; aconteceu hoje para que vocês paguem-me não só as madeiras mas ainda o incômodo da viagem. Eu levo só dez por cento. Antes isso do que ir para a estrada.

— Homem! por falar em estrada, é verdade; que se deu aqui um desaguisado entre você e um agregado?

— É verdade; mas eu nem penso mais nisso, porque o tal agregado, que é meu compadre, gosta demais do copo.

— Mas neste caso cozinhe as carraspanas em casa, e não se engane com os cacos alheios. Se fosse comigo o negócio não ficaria assim.

— Eu também quis processá-lo; mas não só tive de lutar com a animosidade do Oliveira e trampolinice do Licério, mas também de compadecer-me do tal meu compadre, atendendo a que tem uma família numerosa. Ele há de achar quem o ensine, porque ninguém as faz que não as pague. Há cousas que dito-me muito mais que pensar...

— Ah! tem também seus segredos; deixe estar que eu hei de pô-lo em bons lençóis com a D. Maria. Vejam o sonsinho.

— Qual, por este lado não há que temer; já tenho os meus cinqüenta sobre as costas. O que me impressiona mais hoje é a eleição de deputados gerais, para cuja vitória o governo mandou para Campos um juiz de direito, escolhido a dedo.

— Ora deixe-se disso; você bem sabe que, trabalhando, taboqueia o bicho.

— Não é tão fácil; os diabos dos caudilhos do governo têm-me intrigado à grande. Pois o que é a convivência do Oliveira com o meu agregado, senão um meio de desmoralizar-me? Agora a verdade é que o finório perde de todo o seu tempo.

A conversação estendeu-se por mais de uma hora sempre salpicada pelos epigramas e malignidades joviais do Sr. Conceição, que assim confirmava uma regra geral; os caracteres sadios e vigorosos são intimamente alegres.

Já pela madrugada os amigos separaram-se e tomaram os seus aposentos.

O sol, apesar de alto, iluminava furtivamente o céu, quando de novo o fazendeiro avistou-se com os seus hóspedes.

Estes, que tinham pressa de voltar para Macaé, não deixaram esperdiçar um minuto e ocuparam-se durante todo o dia em discutir o preço das madeiras e as condições do seu transporte.

A mais perfeita tranqüilidade de espírito expandia os modos e as palavras dessa reunião de amigos, à exceção do fazendeiro que parecia estar preocupado.

Quem, à tardinha, afastando-se da casa grande, se dirigisse à casa nova, assistiria aí a uma cena de requintado cinismo.

O assassino da indefesa família andara durante todo o dia rodeando as suas vítimas como um corvo em torno da carniça.

Quase ao pôr do sol o companheiro, que na véspera fora por ele despedido, veio também farejar as cercanias da casa do inimigo comum.

O silêncio profundo que reinava ali fê-lo aproximar-se mais e mais até que finalmente colocou-se entre as bananeiras.

O aspecto da casa fê-lo pensar na previsão do seu companheiro e para certificar-se chegou até mais perto.

O bafio do sangue apodrecido e o som do intenso e perene zumbir do mosqueiro certificaram-no de que lá dentro jaziam cadáveres.

Olhou em torno de si; depois espreitou pela fresta da porta, e como se o espicaçasse o remorso, recuou espavorido, e, arrancando violentamente o lenço que lhe encobria parte do rosto, exclamou dolorosamente.

— Mariquinhas, minha Mariquinhas! eu havia de saber poupar-te.

Ao dizer a última palavra os cabelos eriçaram-se-lhe, e agachou-se transido de terror.

É que a pesada mio do companheiro tinha-se-lhe colocado sobre o ombro, apertando-o fortemente.

— Traíste a tua cobardia, ou mentes como um cão. Ou assassinaste a esta raça danada, ou querias enganar-me.

Manuel João que era o companheiro do assassino, tremia miseravelmente e não ousava responder.

— Como tu és cobarde, bradou o selvagem; como virias comprometer-me, se Deus não confiasse a outras mãos a nossa vingança. Felizmente ainda há homens de coragem. O capitão chegou ontem e eis aqui os destroços. Bem to dizia eu!

Depois de uma breve pausa, continuou:

— É preciso que nos afastemos daqui; se nos vissem estaríamos perdidos. Vai, não tornes nunca mais a este lugar amaldiçoado. Eu também seguirei o meu destino.

O silêncio e o abandono invadiram de todo o triste lugar, onde o ódio havia executado uma tremenda sentença...

Talvez no mesmo instante em que o monstro imputava ao fazendeiro o seu nefando crime, os amigos deste reunidos na casa grande reparavam no seu mal-estar.

Já não era possível escondê-lo, porque à proporção que a noite se avizinhava, Motta Coqueiro entristecia cada vez mais, e chegou a tal estado de melancolia que, durante o jantar, foi amigavelmente interpelado pelo Sr. Conceição.

— Homem, você está com a cara da noite de ontem. Quer até parecer-me que o nosso amigo deu agora em forreta e está arrependido, de não nos ter carregado mais dez por cento no preço das madeiras. Mas não vale zangar por isso; nós ainda estamos aqui, esfole-nos a seu gosto.

— É mesmo verdade que eu estou triste, respondeu o capitão, e o mais singular é ser por uma asneira.

— Perdão, interveio o Sr. Conceição, é o mais natural.

— Ontem, ou melhor esta madrugada, quando deitei-me, continuou o fazendeiro, tive uma espécie de pesadelo. Figurou-se-me estar em um lugar deserto e como que ouvi gemidos dolorosíssimos. Procurei por toda a parte e não vi viva alma. Porém, daí a pouco descobri perto de mim grandes línguas de fogo, e depois um montão de cadáveres.

O mais esquisito é que durante todo o dia eu tenho pensado neste sonho.

— Há de ser lembrança daquele clarão que o Sr. disse-nos ter visto na viagem, pouco antes de cair o temporal, interrompeu um dos amigos.

— Ora sonhos! exclamou o Sr. Conceição.

— Há de ser mesmo, prosseguiu Motta Coqueiro, porque fiquei bastante impressionado. Parecia o clarão de um incêndio mas de repente extinguiu-se.

— Pois você queria que houvesse um incêndio que resistisse à chuva de ontem.

O Sr. Conceição, que foi quem proferiu essas palavras, pôs-se a rir da melhor vontade, buscando desfazer a impressão profunda do fazendeiro.

Inútil esforço; depois do jantar Motta Coqueiro, pedindo licença aos seus hóspedes para ir saber do feitor o que se tinha passado durante a sua ausência, confirmou plenamente que fora baldada a tentativa de Conceição.

Apertando a mão deste, disse-lhe perturbado:

— Desculpe-me esta fraqueza, mas há cousa de um ano que este maldito sítio só serve para dar-me trabalhos. Em chegando aqui, fico logo desatinado.

O Sr. Conceição não galhofou desta vez; e, ao contrário, depois da saída do fazendeiro, disse aos outros que também ficara impressionado com a tristeza do amigo.

Na mesma hora em que na sala de jantar entrechava-se a conversação, que deixamos exarada, perto da casa grande a tia Balbina dava toda a atenção a um interlocutor.

A feiticeira, que desde o dia da emboscada contra Motta Coqueiro fora passada para os serviços da casa grande, gozava de certas regalias e delas usava sem o mínimo prejuízo.

Durante a noite, quando acabava a lavagem da roupa, não era mais ocupada para nenhum trabalho, e ficava-lhe completamente o tempo e o seu emprego, sem quebra da ordem estabelecida para todos os escravos.

Balbina, que saíra a disfarçar o cativeiro, segundo a sua frase, encontrou-se, junto do casario, com um homem que lhe era totalmente desconhecido.

Este começou por perguntar-lhe se, de fato, havia chegado o capitão, e obtendo da feiticeira resposta afirmativa, prosseguiu:

— Ele já sabe da sorte do agregado?

— Veio vender madeira, respondeu Balbina; nem pensou ainda no compadre.

— Pois aconteceu uma cousa horrível, minha velha, e é preciso que ele saiba.

— A casa grande está aberta; pode ir falar com o senhor, ou se quiser fale com o Fidélis, que é o feitor.

— Não, não quero falar ao teu senhor, minha velha; sou pobre, mas sou homem de bem; não poderia encarar com ele. Escuta e dá ao teu senhor este recado.

Dize-lhe que há quatro noites um homem de bem estava por acaso junto da casa de Francisco Benedito, quando viu chegarem quatro escravos deste sitio, alumiados por um facho. Bateram à porta e um deles, que parecia mandar sobre os outros, a quem chamavam Fidélis, entrou como um cavalo disparado dentro da casa do agregado do capitão.

Falou muito lá dentro. De repente aparece junto do escravo, que tinha ficado fora com o facho, o filho de Francisco Benedito e arruma-lhe uma paulada mortal. Mas errou o alvo. Todos os outros escravos saíram em socorro do companheiro, mas não puderam agarrar o rapaz.

Então Fidélis quis pôr fogo â casa, e se conteve-se foi devido a um segredo que lhe disse um molecote, que estava no grupo.

Passaram dois dias sem que nada mais acontecesse ao agregado, porque ainda ontem eu o vi.

Hoje, porém, tive diante de meus olhos uma vista horrível. Desde a estrada eu reparei que todas as portas e janelas estavam fechadas, e estremeci.

Mais perto dobrou-se-me o temor; a frente da casa tinha sinais de fumaça e a coberta de sapé estava quase toda queimada. Pensei logo que se tinha realizado a ameaça de Fidélis e corri. Não era só isto o que eu devia ver. Quando empurrei a porta, não pude conter o choro; a casa de Francisco Benedito é hoje um cemitério; mataram todos, todos.

— Jesus! exclamou Balbina, nem pouparam a moça que o senhor estimava tanto. Antes os brancos não tivessem dado ordem!

— Vai, vai, minha velha; conta a teu senhor esta desgraça.

Balbina, temporariamente comovida, apressou o passo em direção à casa grande, e o desconhecido, sorrindo então desdenhosamente, disse com uma inflexão de voz que faria estremecer ao mais fleumático dos homens.

— Teve pena a desgraçada, e eu lastimo que fique sobre a terra uma filha daquela raça. Os malditos tinham pouco sangue.

Depois de uma breve pausa, disse ainda:

— Tenho pena do capitão; talvez venha a sofrer pela morte daquelas víboras. Deus o defenda.

Ditas estas palavras o desconhecido afastou-se com passo lesto e firme.

Quando Balbina chegou ao terreiro encontrou aí o fazendeiro, diante do qual, com o chapéu na mio, Fidélis falava humildemente.

O feitor depois de contar as diversas tropelias feitas pelo agregado, juntou-lhes a narração do estrago feito nas balsas e o expediente que tomara, como feitor.

— Eu fui falar com seu Chico, disse ele, mas não fui atendido, e ainda o filho deu uma cacetada em Alexandre. Zangado, eu quis pôr fogo à casa, mas não cheguei...

— E quem deu-lhe ordem para fazer semelhante cousa? interrogou o fazendeiro.

— Senhora mandou que pusesse fora o agregado de qualquer sorte.

— E o que fez depois o compadre?

— Parece que foi dar parte ao inspetor.

— Pode ir, pode ir embora, exclamou Motta Coqueiro dirigindo-se ao escravo, mas saiba que não pode de hoje em diante fazer nada sem minha ordem.

O fazendeiro, que durante algum tempo conservara-se no mesmo lugar com a cabeça sumida entre as mãos, levantou-se por fim e entrou na sala de jantar completamente desfigurado.

Balbina que observava todos os movimentos, ao vê-lo assim perturbado, resmungou através do ódio encanecido:

— A Estrela do céu já não defende a porta dos brancos e Deus não olha mais para a banda em que ela está. A escrava pode rir, vai ser vingada.

A noite foi uma longa tortura para o fazendeiro, que estava ainda muito longe da realidade horrorosa da sua situação.

Via no ato dos escravos, autorizado pela senhora, o descrédito de seu nome e, o que lhe doía igualmente, uma arma segura com a qual os seus adversários combatessem-lhe a popularidade.

Com que prestígio, ele que mandava incendiar a casa de um pobre e seu hóspede poderia pedir ao povo da localidade apoio e dedicação, se depois, esquecendo tudo, viria talvez a persegui-los cruelmente?

Tarde da noite Motta Coqueiro, cuja insônia afeava cada vez mais o acontecimento, foi ter com o seu amigo Conceição e comunicou-lhe o ocorrido.

O honrado negociante mostrou-se também profundamente abalado e só depois de longo silêncio disse para o fazendeiro:

— O único remédio é pagar pelo preço que Francisco Benedito pedir as benfeitorias do sítio.

— Isto é o menos, meu amigo, o que eu queria era que você visse como se me preparam desgraças.

Antes do nascer do sol, Motta Coqueiro, que passara a noite em atroz vigília, saiu para o terreiro, e, depois de ordenar que lhe trouxessem o cavalo, porque desejava sair logo depois do almoço, pôs-se a passear de um para outro lado.

Os escravos vieram alinhar-se e com eles apareceram também no terreiro Faustino Silva e Florentino.

O primeiro vinha pedir ao fazendeiro que lhe cedesse algum açúcar, e o segundo tratar acerca da venda da posse na serra dos Olhos d'Água.

Despachado Faustino; Motta Coqueiro dirigiu-se a Florentino para desculpar-se com ele por não poder cumprir já a sua palavra.

— São terras, Sr. Flor, e não é possível comprá-las sem ver. Ora eu estou doente e além disso não posso demorar-me; tenha paciência, trataremos do negócio mais tarde.

Efetuando o movimento habitual dos sertanejos, quando alguma cousa não se efetua conforme os seus desejos, Florentino levantou os olhos para o céu.

Em seguida erguendo o braço e apontando para o ocidente, disse com extraordinário espanto.

— Olhe, seu capitão, que grande nuvem de urubus está a fazer verão acolá.

— É verdade, confirmou o fazendeiro, e em seguida perguntou a Fidélis: por que diabo não manda você enterrar os animais mortos?

— Não faltou nenhum cá no sítio, meu senhor.

— Isto pelo que eu vejo, anda desgamelado, seu mestre; disse Motta Coqueiro para o feitor; havemos de ver se falta ou não. Vá já, com alguns dos seus parceiros, fazer enterrar o animal, que encontrar morto.

Fidélis, acompanhado dos seus parceiros Carlos, Alexandre, Sabino, Guilherme, Peregrino e Domingos, seguiu em direção à negra revoada.

Todos os outros escravos e os dois homens livres retiraram-se, ficando apenas no terreiro o desventurado fazendeiro e Balbina que ao longe resmungava sarcasticamente:

— Fingimento de branco, só Deus pode ver no coração dele; o rosto não muda. Manda matar os malungos e fica tão fresco como se mandasse surrar o escravo. O forro atinou logo com os urubus, e o outro tratou logo de se pôr na picada.

Só os negros foram depressa para fazer o enterro dos defuntos que o fogo não queimou. Enterrem: Balbina irá mostrar o lugar. A Estrela do céu fugiu da porta dos brancos para que a escrava pudesse vingar-se do senhor sem coração, que a mandou surrar, e dos parceiros que não tiveram dó dela. Balbina não terá pena. O caçula ficará sem o pai, e o pai sem os escravos, Balbina estima o caçula mas não terá dó de seu pai.

Os hóspedes do fazendeiro vieram encontrá-lo em agitação febril, dir-se-ia que era cruciado por invencíveis remorsos.

O mau humor traía-se-lhe pelos monossílabos que resumiam as suas respostas, e a instabilidade das posições, que tomava, denunciava a sua impaciência, de tal forma que o Sr. Conceição viu-se forçado a dizer-lhe à puridade:

— Oh! meu amigo, não é preciso que todos saibam do que se passou.

Estavam sentados à mesa, almoçando, os hóspedes, que deviam seguir viagem neste mesmo dia, quando Fidélis entrando, arquejante de cansaço, disse para o seu senhor que lhe precisava falar em particular.

O semblante do negro, onde estava gravado o espanto, fez com que o fazendeiro se levantasse precipitadamente,

Foram ambos até o corredor que comunicava a sala de jantar com uma saleta interior, na qual achavam-se Balbina e outras pretas.

Chegados aí, Fidélis, com a voz quase embargada pelos arquejos contínuos, disse com uma inflexão dolorosa:

— São eles, meu senhor; estão todos mortos.

— Quem? mas quem é que está morto? interrogou assustado o fazendeiro.

— Já estão mortos, sim senhor, seu Chico, a mulher e os filhos todos.

— Oh! meu Deus, meu Deus, que desgraça, bradou em lancinante desespero o malfadado Coqueiro; que mal fiz eu para que cala sobre mim tamanha punição.

— O que é, gritaram os hóspedes, que vieram prestes cercar o fazendeiro, que apertava com ambas as mãos a cabeça, e desfazia-se em lágrimas.

— Deixem-me, deixem-me, pelo amor de Deus! Eu sou um desgraçado. O que será de minha mulher, de meus filhos. Malditos negros!

Cambaleando como um ébrio, Motta Coqueiro foi cair sobre uma cadeira na sala de jantar, enquanto os hóspedes estupefatos olhavam sem coragem de interrogá-lo.

Depois de um silêncio longamente soluçado pelo desventurado; erguendo-se com os punhos cerrados e a cabeça voltada para o céu, exclamou ele com uma entoação, que provocou as lágrimas dos hóspedes.

— Mas não é possível, meu Deus, tu bem sabes que não é possível que se acredite que eu fosse capaz de semelhante barbaridade. Não, eu não creio que os meus inimigos sejam tão maus que atirem sobre mim esta mancha.

Como que um momento lúcido foi então concedido à razão do infeliz fazendeiro. Atentou nos seus amigos que o cercavam comovidos, e, redobrando de soluços, disse-lhes resolutamente:

— Os senhores precisam de partir, não se demorem por minha causa. Demais seria talvez comprometê-los. Deixem-me só; eu agradecerei sempre tanta bondade e espero muito da vossa lealdade. Adeus, rezem a Deus por mim.

Perplexos, os hóspedes relutaram em obedecer a peremptória intimação, mas a insistência do fazendeiro, solenizada pelo desespero e as lágrimas, resolveu-os por fim.

Tocante despedida esta; como que todos os corações temeram que a palavra lhes atraiçoasse a sinceridade do sentimento, extemando-os em inflexão menos própria. Mudos, apertaram-se as mãos, mudos saíram e por muito tempo caminharam.

O Sr. Conceição, rompendo afinal o silêncio, disse ao embarcar-se na canoa que os esperava:

— Não sei por que, mas tremo pelo futuro de Coqueiro.

— Grande desgraça o feriu, responderam os outros.

Depois de ficar só, o fazendeiro, mais feroz que uma pantera esfaimada, atirou-se contra Fidélis, esbofeteando-o e bradando:

— Dize-me, negro do diabo; onde aprendeste a ser tão malvado. Crianças, velhos, todos, miserável.

— Senhor, meu senhor, respondia humildemente o feitor, não fomos nós.

A negativa enfureceu ainda mais o fazendeiro, que deixou o escravo para de uma cadeira que, manejada, espedaçou-se de encontro a um portal, não tendo apanhado Fidélis, que se defendeu da agressão e correu.

— Tu me pagarás, desalmado, tu me pagarás, gritou o fazendeiro, depois desenganar-se de que não podia agarrar o feitor, que fugia seguido dos outros escravos com que saíra de manhã.

Ficaram, porém, no terreiro Carlos e Domingos.

A cólera do fazendeiro descarregou-se toda sobre o molecote, que em vão pranteava, afirmando a sua inocência.

Compreendendo que a fúria de seu senhor chegaria ao maior excesso, Domingos interveio submisso ponderando-lhe judiciosamente:

— Perdão, meu senhor, vosmecê vai se perder; este moleque morre.

De feito Carlos já estava estendido por terra, com a cabeça quebrada e o corpo todo ralado pelos tombos repetidos.

Ainda assim talvez fosse inútil a ponderação do escravo, se não chegassem na mesma ocasião Faustino e Flor, que ambos assustadíssimos disseram ao fazendeiro que tinha-se ido chamar as autoridades para verem o que havia na casa de Francisco Benedito, que estava fechada e sobre a qual pairavam os urubus.

— E o que tenho eu com isso; respondeu Motta Coqueiro.

— Antes nada tivesse, seu capitão; mas estão a dizer que a gente de Francisco Benedito foi morta por ordem de vosmecê; soluçou Florentino Silva. E qual foi o miserável que lembrou-se de acusar-me, diga-me o seu nome, quero fazê-lo engolir a calúnia!

— Todos os que estavam na venda.

— Todos!

A mais dilacerante angústia foi resumida nesta única palavra. Encarnava a. revolta da dignidade de homem de bem e a dor agudíssima a sangrar um caráter sério. Concretização do desespero de um coração, lapidado pela severidade para agalanar-se com as irradiações da bondade e da justiça, nessa única palavra gemia todo um passado de honestidade e nobreza de sentimentos agora desapiedadamente trucidado pela calúnia.

O fazendeiro sentiu-se no vácuo, mas esse vácuo horrível do pesadelo, onde coloridos como fogos-fátuos sucedem-se e aprofundam-se infinitos círculos luminosos, aos quais nos queremos segurar quando se nos afigura que rolamos e sentimo-los ao nosso contacto desfazerem-se em fumaça.

O que no pesadelo é uma sucessão de círculos luminosos era no espírito do angustiado um tumultuar de sentimentos, que não tinham consistência para obstar-lhe a queda na condenação social.

— Todos, repetiu o desventurado; mas que mal fiz eu a toda essa gente para que assim me julgue?!

— O que quer vosmecê, seu capitão; acontece quase sempre assim, disse Florentino. Eu no seu caso e na sua posição ia para Campos já; os seus amigos lá hão de defendê-lo.

— Sim, sim, exclamou o fazendeiro, hei de fazer confundir os caluniadores e a desforra será tremenda.

Dentro em pouco tempo uma canoa, remada com extraordinária boa vontade, voava pelo rio Macabu. Levava em si o fazendeiro, que ia buscar no seio da família consolo para a sua aflição.

Durante todo o dia ninguém atreveu-se a aproximar-se da casa em que apodreciam os cadáveres da família de Francisco Benedito. Só a nuvem de corvos, grasnando de espaço a espaço atraída pela carniça, fazia sentinela à mortualha, ora concentrando-se em imensa esfera negra, ora desdobrando-se e abatendo-se repentinamente sobre o teto meio queimado.

À noite, porém, um vulto chegou cautelosamente até à frente da casa, empurrou a porta e entrou sem hesitar, fechando-a de novo sobre si.

Lá dentro ouviu-se apenas o ruído das moscas espantadas pela visita inesperada.

Passado algum tempo, o vulto saiu com a mesma precaução, e, entrando pelas roças, seguiu pelos aceiros, depois pelo campo, e afinal dirigiu-se para as senzalas do sítio.

Abriu uma delas e entrou, acendendo logo depois um candeeiro. A luz deixou então conhecer a pessoa que, zombando de temores supersticiosos, não trepidou aventurar-se na escuridão e no isolamento àquele domínio da morte.

Era a tia Balbina, que trazia sobraçada uma enorme trouxa de roupa ensangüentada.

A feiticeira começou então a estender demoradamente no chão os vestuários impregnados pelas exalações dos cadáveres.

Depois reuniu-os de novo, e foi colocá-los em uma velha caixa, ao canto do quarto.

Feito isto, sentou-se por algum tempo na beirada da cama e tomou a posição de quem medita.

Não se prolongou por muito tempo a sua inação, porque para logo levantou-se e foi acocorar-se no meio do quarto em exercícios de nigromancia.

Por vezes os búzios foram lançados, e o cheiro de enxofre renovado no aposento. Depois como se houvesse conseguido o que desejava, Balbina guardou os seus instrumentos cabalísticos, e pôs-se a cantarolar, sentada sobre o leito.

Uma voz, repassada de tristeza, veio destoar da alegria da feiticeira.

— Oh! tia Balbina como está tudo isso em debando, que desgraça.

— Se Carolina tem muita pena dos brancos é pior para ela. Deus quis eles pagassem a maldade para com os escravos, e por isso deixou que mandassem matar por Fidélis e os outros a família do agregado.

— Mas, sempre faz pena, tia Balbina.

— É verdade, respondeu friamente a feiticeira, que repetiu à crioula os horrores da matança, tais como os ouvira ao desconhecido.

Por fim disse ela, bocejando:

— Vamos dormir, criança, hoje vou ressonar como um branco rico um sono descansado. Deus te abençoe.

No dia seguinte, 15 de setembro de 1852, as autoridades de Macabu entravam em nome da lei na casa em que, irônico, frio e desapiedado, o desconhecido efetuara o vandâlico morticínio.

A justiça incumbiu-se então de arrancar ao bico adunco dos corvos os cadáveres já putrefatos, e o povo que acompanhou as autoridades sentiu duplicar-se-lhe a indignação porque presenciou um espetáculo verdadeiramente repugnante.

O assassino não contentara-se em imolar oito vítimas; pelo que se via na posição e nudez dos cadáveres havia levado a sanha até a violação do pudor das donzelas e ao desrespeito do recato de esposa.

O inspetor André revelou então ao subdelegado a denúncia que lhe fora dada pelo chefe da família assassinada contra os escravos de Motta Coqueiro, e alguns dos circunstantes juntaram a esta revelação a da malquerença de Faustino e Flor com o finado Francisco Benedito.

Acrescia que o fazendeiro tinha chegado na noite dos assassinatos e que um dos homens livres, Flor, tinha vindo com ele na mesma canoa. Faustino matava por dinheiro e dissera que se Motta Coqueiro lhe pagasse bem não trepidaria extinguir a raça de Francisco Benedito.

Assim, pois, o inspetor redigiu a parte do crime, imputando-o a Motta Coqueiro, na qualidade de mandante, aos seus escravos, e Faustino Pereira da Silva e Florentino Silva como autores.

Prestadas as honras funerárias à família do agregado, a polícia tratou imediatamente de pôr cerco ao sítio.

Provou-se até à evidência o fundamento da suspeita pública sobre a autoria do crime execrando.

Não foram encontrados no sítio nem Motta Coqueiro nem muitos dos seus escravos, e pelo depoimento da preta Balbina, a quem conseguiram verificou-se ainda que os escravos ausentes eram justamente os denunciados por ela como instrumentos do mandante, Fidélis, Alexandre, Carlos, Sabino, Peregrino e Domingos.

O clamor público intumesceu-se como um vulcão sobre a cabeça do fazendeiro, e como o vulcão se desfaz em raios e aguaceiros, prorrompeu em calúnias e maldições.

— Foi ele; aquele sangüinário capitão; já não é a primeira; tem morto muitos escravos em surras! Mas, pode fazer, porque é rico, tem dinheiro.

A oficiosidade popular para a difamação do próximo dava-se asas e voava desimpedidamente.

Os escravos do fazendeiro ficaram desde logo à disposição das autoridades, mas, o Sr. Oliveira, não obstante desenvolver máxima atividade para a captura dos indigitados criminosos, disse todavia ao inspetor:

— Era capaz de jurar a favor do capitão; não me parece capaz de semelhante crime.

— Mas as provas, que são todas contra ele, dizem justamente o contrário, com perdão de V. S.

— Não vou fora disso, mas... Em todo o caso as eleições se aproximam e enquanto o capitão deslinda o negócio podemos descansar.

Na mesma hora foi expedido um próprio para Campos a fim de comunicar à polícia o acontecimento e pedir o seu auxílio para a captura do principal criminoso que lá devia estar.

O Sr. Oliveira não se enganava quer quando negava a sua consciência a sancionar o clamor do povo, quer quando previa que Motta Coqueiro estava em Campos.

No dia da diligência no sítio, o fazendeiro tinha chegado à sua chácara na cidade, acompanhado pelo preto Domingos, sobre quem não pairava no espírito de Coqueiro a menor dúvida a respeito da sua isenção no assassinato da família de Francisco Benedito.

Sentados sob um caramanchão estavam a Sra. D. Maria e seus filhos tanto os do primeiro consórcio, como os do segundo, com o fazendeiro.

Um dos filhos do primeiro consórcio era já uma influência campista; desempenhava as funções de coletor, e gozava de consideração geral.

O fazendeiro que atravessava cabisbaixo a aléia que do portão da chácara dirigia-se em linha reta até à entrada da casa, foi despertado da abstração com que andava, pelos psius do grupo e logo conduzido para ele pelos meninos que lhe saíram ao encontro.

Os seus afagos para os filhos e enteados foram misturados de lágrimas, e os abraços eram tão estreitos, os beijos tão sôfregos que a esposa e o enteado exclamaram ao mesmo tempo:

— Olhe que desta maneira faz-nos pensar que perdemos o nosso quinhão.

A jovialidade de ambos foi, porém, bruscamente mudada em recolhimento tristonho, porque em vez de sorrisos o fazendeiro só teve lágrimas ao abraçá-los.

— Faça com que as crianças se retirem, porque é necessário que fiquemos sós.

Depois que a família retirou-se, os menores cantarolando e gargalhando sem constrangimento, o coletor perguntou ao seu padrasto qual era a nova desgraça sucedida no maldito sítio de Macabu.

— A maior que se podia imaginar, respondeu Motta Coqueiro; Francisco Benedito foi assassinado com toda a sua família!

— E quem foi o autor de tão tremendo crime, interrogou o coletor que pusera de pé, trémulo e perturbado?

— Não sei ainda ao certo, mas diz-se que foram os nossos escravos.

— Meu Deus, meu filho, meu marido, exclamou a Sra. D. Maria, eu sou causadora desta desgraça, eu sou a assas...

Um violento abalo nervoso, convulsionado prolongadamente, cortou em meio a acusação perigosíssima que a Sra. D. Maria pronunciava contra si própria.

Socorrida a esposa, que foi desde então presa de uma febre devastadora, o fazendeiro e o coletor reataram a conversação dolorosa.

— E onde ficaram os escravos?

— Fugiram os principais autores e ficou apenas o Carlos, que deixei ficar na barra de Macabu para tratar-se. Quase matei-o na primeira explosão.

Passado um breve silêncio, durante o qual o coletor, com os olhos rasos de lágrimas, foi pouco a pouco desenrugando a fronte; exclamou:

— Não há o que temer; não desanimemos.

— É o que lhe parece, meu amigo; há tudo a temer.

— Por quê, haverá alguém que acredite que minha mãe fosse capaz de mandar assassinar uma família? Explicaremos tudo e a verdade triunfará.

— É engano seu. Há um mistério para você nos acontecimentos do sítio, e este é o ponto mais sério. Escute-me.

A voz do fazendeiro abaixou-se de modo a ser ouvida somente pelo seu Interlocutor, e a gravidade da confidência pôde apenas ser suspeitada pela comoção do coletor, que por fim sem se poder conter disse bem alto:

— Estamos perdidos!

— Já vê que pronunciar o nome de sua mãe neste negócio é desonrar toda a nossa família.

— Ninguém acreditará na sua inocência; e condená-la-ão. Minha desventurada mãe!

— Esperemos e confiemos em Deus!

Concebe-se facilmente os horrorosos padecimentos do fazendeiro, seu enteado e sua mulher durante esse dia; todavia não eram senão o prólogo da história do infortúnio dessa família.

No dia seguinte, o coletor, que tinha saído para indagar se já em Campos havia notícia do fatal acontecimento, encontrou-se com o Dr. B., que abraçou-o chorando e disse-lhe tristemente:

— Fala-se já com insistência em uma tristíssima história, em que anda envolvido o nome de sua família; previnam-se enquanto é possível. Temam, porque é quase inquebrantável a força da calúnia.

— Mas, objetou o coletor, esforçando-se por dissimular o pânico de que foi logo assenhoreado, é cousa assim tão grave?

— Se é, meu infeliz amigo, diz-se que seu padrasto mandou assassinar uma família inteira.

— Ah! miseráveis, bradou o coletor; havemos de ver quem vence.

— Saiba mais, meu amigo, o incômodo já não é possível evitar, porque há uma parte do subdelegado de Macabu.

— E basta isto para aviltar-se desta sorte um homem de bem?

— Infelizmente não é preciso mais. Há entretanto tempo para que o nosso amigo se ausente, porque o juiz de direito atualmente em exercício reluta em expedir o mandado de prisão.

— Estamos, pois, salvos porque teremos tempo de confundir a calúnia.

— Não se iluda com esta esperança; o proprietário da vara chamá-la-ia a si talvez amanhã.

— E...

— Bem sabe quanto sou mal visto pelo juiz de direito e quanto devo ao seu padrasto. Demais a influência deste é temida pelo juiz, que se quer fazer deputado e tem uma chapa a impor. O melhor caminho é aconselhar o Coqueiro que se ausente até se aclarar a questão.

Quando o coletor seguia o caminho das Covas d'Areia, onde era a habitação de Coqueiro, foi atraído pela conversação de um grupo.

Dizia um dos reunidos:

— Não se pode dar maior escândalo; o delegado de polícia sabe do fato e não se move; o juiz de direito interino não expede o mandado, e o criminoso está muito a seu gosto em sua casa. Não há como ser chefe de partido nesta terra.

— Ora que queres tu? interveio outro; o delegado tem no Coqueiro o seu braço direito; seria muito engraçado partir dele o golpe. É capaz de demitir-se. Verão.

— Nada se perderá, o Coqueiro há de ser filado talvez hoje mesmo, porque o Saião Lobato assume a vara. Isto afiançou-me pessoa muita séria.

— Santo Deus, santo Deus, murmurou o coletor; estamos irremediavelmente perdidos.

Caminhando como um alucinado, o enteado do fazendeiro chegou quase louco à chácara das Covas d'Areia.

— Fuja imediatamente; um minuto mais aqui e será indignamente enxovalhado. Fuja! exclamou ele abraçando-se com o padrasto.

— Fogem os criminosos; os que não têm culpa esperam até justificar-se.

— — Mas lembre-se de que tem inimigos, e estes não hesitarão em perdê-lo. Evite à nossa família o golpe de vê-lo sair daqui preso e com um infamante labéu.

— Não quero fugir; seria talvez expor outrem à calúnia.

O coletor não desanimou apesar da resposta formal de Motta Coqueiro; prosseguiu na sua insistência, ponderando que desta sorte ser-lhes-iam mais fáceis os recursos, porém Motta Coqueiro resistia sempre, e só cedeu quando um pajem entregou-lhe uma carta que trazia no sobrescrito — urgentíssima; — abra-a logo qualquer pessoa da família.

Embora anônima a letra da carta era assaz conhecida por ambos os que discutiam.

— Leia o que o nosso amigo manda-nos dizer, disse Motta Coqueiro, passando o papel ao enteado; farei o que ele ordenar.

A trêmula voz do coletor fez ouvir o seguinte:

"São quase seis horas, prepara-se a força policial para cercar a sua casa. Logo que chegue o delegado, que saiu para uma diligência, mas que voltará até as seis horas, porque deseja ir pessoalmente capturá-lo, será cumprido o que manda a lei. Todas as saídas foram tomadas e amanhã será publicada uma circular a todas as autoridades da província para que o prendam onde o encontrarem. Ausente-se, se ainda está aí, é o único meio de evitar um grande desgosto aos seus amigos. Escuso-me de demorar-me em dar-lhe as razoes por que assim procedo: não creio que por sua ordem fosse cometido tão execrando crime.
— P. S. — Leve consigo esta carta e outra em que tenha a minha assinatura; mostre-a e peça pouso aos fazendeiros do município."

— Então, perguntou o coletor; insistirá ainda em querer ficar?

— Obedeço, eu saio já. Abraça por mim os meus filhos e, quando sua mãe melhorar, diga-lhe que tudo foi remediado e que eu parti para Itabapoana a negócios. Adeus, podes abraçar-me sem escrúpulo; eu não intervim de forma alguma neste crime. Se eu não me puder justificar repete sempre estas palavras a meus filhos: teu pai era inocente.

A resignação, que acentuava estas palavras, fez estremecer o ouvinte, que tentou avivar a fortaleza do fazendeiro, visivelmente depauperada, afiançando-lhe que não havia muito que temer.

— Ah! exclamou Motta Coqueiro, que já havia dado alguns passos.

Parou e pediu ao coletor que lhe desse papel. A lápis escreveu o fazendeiro estas linhas:

"Uma palavra sua acerca do que ordenou aos escravos é a minha sentença de morte, lavrada por meu próprio punho. Se alguém da nossa família deve aparecer e sofrer, eu tenho forças. Peço à mãe de meus filhos que em nome deles poupe-se de ser mal julgada. Adeus."

— Entregue este bilhete a sua mãe, quando for oportuno; diga-lhe que o queime apenas lê-lo. Agora um último pedido: posso esperar que os meus filhos não ficam ao desamparo?

As lágrimas e um abraço estreitado pelo coletor ao fazendeiro incumbiram-se da resposta, e Motta Coqueiro saiu sem ter procurado encontrar-se com a família.

Infelizmente não lhe foi dado eximir-se deste tremendo golpe. Uma das suas filhas, para quem ainda não tinham desabrochado todas as flores da meninice, saiu ao seu encontro, pedindo que lhe trouxesse uma lembrança do passeio.

— Não posso, minha filha, soluçou ele, misturando os beijos e as lágrimas nas faces da criança: os homens são tão maus para o teu papai que nem querem que ele possa trazer na volta brinquedos para vocês. Deus abençoe, e pergunte aos meus inimigos, se quem tem filhos da tua idade, teria coragem para mandar matar crianças!

A menina pôs-se a chorar o pranto espontâneo da criança, ao passo que seu pai afastava-se quase correndo.

Um quarto de hora depois a chácara era estreitamente cercada, mas as portas não foram abertas, porque já era noite, e além disso o delegado não tinha exigido.

O relógio da igreja da Misericórdia batia onze horas da noite, quando um homem, vestido de preto, com a cabeça coberta com um largo chapéu-do-chile e um lenço negro atado ao rosto, chegou à rua Beira-Rio.

Campos, a bela cidade fluminense, dormia silenciosa espelhando nas águas sem ruído do Paraíba as suas casas caiadas e a luz avermelhada dos seus lampiões.

O homem, que vinha acompanhado por um preto, desceu à margem do rio, embarcou-se em uma canoa, que foi logo impelida pelas remadas do preto e em breve tempo ganhou a margem oposta.

Aí disse o homem ao preto:

— Não hei de esquecer-me de ti; vai, Domingos, e não digas a ninguém para que lado segui. Diz ao meu enteado que alugue-te em qualquer casa.

Por essas palavras e o tom de voz vê-se que o homem que atravessou o rio era Motta Coqueiro.

No outro dia pela manhã, a casa das Covas d'Areia foi franqueada à polícia; mas esta não encontrou aí o criminoso procurado.

Quando esta nova divulgou-se, o povo, que se aglomerara para assistir à diligência, prorrompeu em acusações contra Coqueiro.

Dizia-se geralmente:

— Foi ele, e tanto assim que tratou logo de fugir. Que monstro; deve ser enforcado.

O malogro da diligência, atribuído pela população a firme propósito da autoridade policial em deixar impune o criminoso, entrou logo em fatal contribuição contra Motta Coqueiro.

O Cruzeiro e o Monitor Campista, folhas que dominavam a opinião de Campos, o primeiro no intuito de triunfar na oposição pessoal ao delegado, o segundo emalhado na rede da animosidade pública, acirraram desde logo o seu estilo em desabono do réu.

No Cruzeiro, sob a rubrica de alto efeito: Caso horroroso; no Monitor, sob a três vezes mais comprometedora: A fera de Macabu, o submisso dicionário foi explorado pelos publicistas, impelidos pela sede vesana de adjetivos, ora sentimentais como um livro de Lamartine e que eram consagrados em s aos assassinados, ora infamantes como um baraço e estes oferecidos, dedicados e consagrados a Motta Coqueiro.

Hurras congratulatórios respondiam às notícias recebidas pelo correio de quando sabia-se da prisão de algum escravo, ou de algum cúmplice da e em altos brados exigia-se a expedição de tropas para todos os pontos, a de que fosse prontamente capturado o bárbaro mandante, cujo procedimento atroz merecia punição tremenda, para ser desafrontada a civilização Campos, Macaé e Macabu!

Não demorou muito que fossem presos Florentino Silva, Faustino Silva, e Domingos, mas o principal criminoso parecia zombar de todas as pesquisas. A polícia, cuidadosa em seguir-lhe ao encalço, chegava sempre depois que ele estava distanciado.

À medida que se decorriam os dias formava-se uma lenda tristíssima. Já não era só dizer-se que os cadáveres foram encontrados, segundo o Cruzeiro, já lacerados pelos cães e aves carnívoras; acrescentava-se que, tendo podido escapar à matança, apareceu uma infeliz filha de Francisco Benedito, rota e faminta, ainda mais, digna de compaixão pelos seus poucos anos.

Pobre menina! dizia-se, estremece ao ouvir o nome do fazendeiro, e perguntada por que tinha tanto medo desse nome, respondeu:

"— Estávamos eu e minha irmã escondidas em uma árvore; eu que era mais velha subi até as grimpas e minha irmã ficou oculta no oco da árvore. Em casa choravam e gritavam meus pais e meus irmãos, mas a pouco e pouco todos calaram-se.
Apareceu então cá fora o Motta Coqueiro, alumiado por um escravo seu que trazia um facho. Procurou em roda da casa e depois chegou-se à árvore, onde viu os cabelos de minha irmã, pelos quais tirou-a do escondrijo.
— Mata este demoninho, disse ele ao preto.
— Senhor, é muito pequena, tenha pena dela.
— Covarde, tu me pagarás; exclamou o fazendeiro, e segurando com a mão esquerda a perna de minha irmã, com a direita armada de um facão, partiu-a pelo meio e depois fê-la em postas.
— Falta-me ainda uma, disse depois.
Eu tremia, continuava a criança, mas felizmente ele não lembrou-se de subir à árvore."

E a crédula população bradava indignada:

— É a um malvado destes que querem livrar. Miséria da nossa terra; muito pode o dinheiro! Mas se o júri absolver, o povo far-se-á carrasco.

Enquanto assim era julgado, extenuado pelas continuadas jornadas, Motta Coqueiro arrastava-se pelas matas, para fugir à injusta posição.

Sedento, meditava primeiro e espreitava minuciosamente para chegar-se a algum ribeiro, que murmurando descia pelas grotas, brotando em sons tristes como um soluço.

Um mês depois da sua saída da cidade sentiu que as forças abandonavam-no e lembrando-se da família, dos filhos inocentes que ficariam ao desamparo e infamados, caminhou para uma casa que alvejava ao longe, e aí pediu agasalho.

Receberam-no com a delicadeza hospitaleira inata no sertanejo brasileiro, mas gradativamente foi diminuindo a prazenteria da família.

É que havia chegado o dono da casa, e antes só ali estavam mulheres.

Francisco José Dinis, chefe da família, que hospedara o foragido, era inspetor de quarteirão, e embora o seu tino policial não tivesse finura especial, a sua perspicácia estimulava-se com a lembrança dos prêmios no valor de dois contos de réis, oferecidos pelo chefe de polícia da província e a delegacia de Campos.

Ao ver aquele homem vestido de preto, com um lenço atado ao queixo, e uma fisionomia em que a desventura sulcara rugas indeléveis, o Sr. Dinis lembrou-se do criminoso, cuja captura era esperada com ansiedade geral.

Deixando só o hóspede, foi procurar um ofício que lhe tinha sido dirigido pela delegacia, e chamando a sua mulher, leu-o para que ela ouvisse:

— "Faça prender Manoel da Motta Coqueiro, alto, magro, corado, de sobrancelhas salientes e espessas, com uma grande mancha no rosto, casado, de 50 anos, e assim os escravos, que o acompanharem."

— E que tem este pobre homem de comum com o malvado, que querem prender? Pois não se está vendo que um homem como este. era incapaz de matar uma mosca! exclamou a esposa.

— Eles disfarçam muito, os celerados!

— E mesmo que fosse, aqui dentro é nosso hóspede.

— E eu sou sempre inspetor, aqui dentro, ou fora daqui. Vou confrontar.

O inspetor postou-se diante de Motta Coqueiro, que sentado à mesa da sala de jantar ceava tranqüilamente.

— Não me parece; mas é ele mesmo, está se vendo; vamos conversá-lo.

Depois da ceia, Motta Coqueiro conservou-se sentado, e segundo os estilos perguntou pelo número de membros da família de seu agasalhador e seus negócios.

Entabulada a conversação, o inspetor, afetando a mais sincera familiaridade perguntou ao hóspede:

— O Sr. vem de Campos?

— Estive lá, mas venho do sertão de Santa Rita.

— E quando passou por Campos não ouviu falar do Motta Coqueiro.

0 fazendeiro, sem pestanejos sequer, respondeu com firmeza.

— Ouvi.

— Que malvado, hem? Uma família inteira, velhos e crianças, e até a própria casa, tudo destruiu. Nem enforcado oito vezes paga o crime que cometeu.

— Talvez se o senhor o conhecesse não dissesse o mesmo. Eu não acredito que Motta Coqueiro tivesse alma para semelhante horror. É um homem sério o Motta Coqueiro, que eu conheço.

— Quanto à certeza do crime, já não há dúvida: os próprios escravos e os dois homens que ele pagou para o mesmo fim confessaram o crime.

— Os dois homens que ele pagou, acudiu Motta Coqueiro comovido; mas quem é que espalha isto, santo Deus?

— Oh! o senhor conhece bem o assassino; mostra-se tão penalizado!

— Sim, fomos amigos. Tenho até bem gravado na memória um sinal pelo qual é fácil conhecê-lo.

— Eu também sei: uma grande mancha no rosto.

— Exatamente, e deste lado.

O incauto fazendeiro afastou o lenço e deixou ver o maldito sinal, que o dava conhecer.

— Está preso! gritou o inspetor.

— Por quê? perpetrei algum crime? perguntou o hóspede perturbado.

— Os tribunais dirão. Está preso por que o senhor é o Motta Coqueiro; não pode negá-lo, e foi o senhor mesmo quem acabou de mostrar a mancha que Deus pôs-lhe no rosto para que seja conhecido em toda a parte. Está preso.

— Senhor, disse humildemente o fazendeiro; não tento resistir, e entretanto, se eu fosse um malvado, bem sabe que à primeira voz de prisão, tê-lo-ia feito cair varado por uma bala. Deixe-me seguir; o senhor é pai, é marido, pode vir a ser perseguido sem culpa, como eu hoje sou; compadeça-se de minha desgraça.

A mulher e os filhos de Dinis tinham todos corrido para a sala de jantar, e olhavam espantados para o hóspede, cujas barbas orvalhavam-se de lágrimas.

O fazendeiro precipitou-se sobre as crianças e ajoelhando-se, e cingindo-as em seus braços, continuou:

— Olhem bem para mim, meus filhos, olhem. Digam; eu tenho cara de um malvado, digam, digam a seu pai? Peçam-lhe que não desgrace uma família inteira, perseguida injustamente.

As crianças pálidas tremiam abraçadas pelo angustiado fazendeiro; a esposa de Dinis chorava, mas este desapiedado e inexorável, vendo o hóspede com os seus filhos entre os braços, após instantes de hesitação, atirou-se furioso sobre ele e agarrou-o pelas costas, gritando:

— Rapazes, tragam-me cordas.

Dois pretos aproximaram-se imediatamente e o fazendeiro foi amarrado, apesar dos seus rogos e protestos de que mesmo sem esta medida não tentaria fugir.

Às seis horas e meia da tarde, do dia vinte e três de outubro, desde a rua Beira-Rio até a Praça de S. Salvador, onde está situada a cadeia de Campos, a população curiosa aglomerava-se para assistir a um triste espetáculo.

Descalço, com as mãos algemadas, os olhos baixos, as faces emagrecidas e lívidas, Motta Coqueiro desembarcou da Barca de Passagens acompanhado por grande número de soldados.

O delegado de polícia, Dr. Almeida Barbosa, que esperava o preso a saída da barca, era alvo das mais entusiásticas manifestações, mas em vez da natural expansão do seu semblante conservava-se frio e até mesmo comovido.

Ao ver o modo por que o preso era conduzido, o nobre doutor estremeceu, mas a sua comoção não pôde ser percebida; porque uma nuvem de assovios e alguns projéteis atirados contra Motta Coqueiro, causando indignação em vários grupos, desviou a atenção geral.

Contida pela polícia a baixa manifestação do ódio popular, o desventurado fazendeiro foi conduzido à prisão, cuja guarda foi dobrada.

Declarado incomunicável pela crueldade da lei, desfizera-se-lhe a única esperança que o alentara durante a vergonhosa e fatigante viagem: a esperança de haurir nos beijos de seus filhos e nas lágrimas de sua esposa e enteado a triste consolação da amizade.

A grade da prisão trancou-lhe, porém, não só a consideração social, mas também a entrada à afeição da família.

Felizmente superior à lei está a nobreza de alguns caracteres, e o gelo dos artigos legais não basta para petrificar algumas almas eleitas. Sob a toga dos magistrados batem muitas vezes corações de homens!

Alta noite uma das filhas do fazendeiro era introduzida pelo carcereiro até diante das grades da célula em que ele jazia, destroço de um grande nome, solene no seu infortúnio.

A baça luz de um grande lampião alumiava o corredor e projetava a claridade crepuscular no interior da célula.

— Papai, papai, exclamou a menina, pondo os braços por entre as grades; venha comigo para ver se mamãe deixa de chorar. Ela está muito doente. Um punhal vibrado, pela mão do verdadeiro assassino de Francisco Benedito, não teria ferido mais fundo no coração do desventurado réu.

De um salto veio colocar-se junto da grade e seus lábios procuraram sôfregos as faces da menina.

O carcereiro, com os braços cruzados e encostado à parede em frente à grade, assistia imóvel à triste cena de expansão do amor paterno e da inocência filial.

A menina, aproveitando a ocasião em que seu pai deixara-a um instante para enxugar as lágrimas, dirigiu-se ao carcereiro.

— Para que é que tem fechado a porta do quarto de papai? Ele precisa de ir ver mamãe; abra-lhe a porta.

— Ele está preso, minha menina, disse o carcereiro, que se abaixara e beijou a menina; não se pode abrir o quarto dele.

— Deixe o senhor, minha filha; ele não pode fazer o que você lhe pede. Venha conversar com seu pai.

Um leve ruído, vindo do lado da porta principal da cadeia, despertou a atenção do carcereiro, que deixou a menina e, pé ante pé, dirigiu-se à escada.

Três homens embuçados chegavam neste instante ao patamar. Disfarçadas as fisionomias por meias-máscaras de pano negro que caíam-lhes das sobrancelhas até a altura dos lábios.

Antes que o carcereiro tivesse tido tempo de proferir uma só palavra, um dos embuçados, arrancando do rosto o pano negro, deu-se-lhe a conhecer.

— Ah! exclamou o carcereiro; perdoe-me V.S., mas eu não podia desconfiar sequer.

Quando o carcereiro concluiu a desculpa, já o embuçado tinha-se de novo mascarado e perguntou:

— Não tinha o senhor recebido ordem para não consentir que ninguém falasse a Motta Coqueiro?

— Sim, senhor, tartamudeou o carcereiro, mas...

— Mas entendeu que não devia cumpri-la. Tenha bondade de ir ouvir o que diz aquela menina ao seu protegido.

Como se estivesse obedecendo a um superior, o carcereiro afastou-se sem fazer a mínima observação.

Ficando sós, disse aos outros o embuçado, que se deu a conhecer ao carcereiro:

— O sinal está já demorando; quem sabe se não resolveram o contrário?

— Não é possível, respondeu um outro; dentro em meia hora, eu tenho certeza de que ele poderá estar em minha casa.

— E dentro em duas completamente fora do alcance dos seus caluniadores, respondeu o terceiro.

Passados alguns minutos, ouviu-se um assovio prolongado e agudíssimo, e um grito de alerta da sentinela.

Os três embuçados disseram ao mesmo tempo:

— Ei-los.

Caminharam então para a célula de Motta Coqueiro.

— Eu não quero comprometê-lo, senhor, dizia o preso para o carcereiro; deixe-me abraçá-la, somente; bem sabe que eu não tomarei a vê-la tão cedo. O senhor foi generoso consentindo que ela visse-me, complete a obra de caridade, deixando que a possa abraçar.

— Abra, disse o embuçado que influía no ânimo do carcereiro; eu me responsabilizo.

A grade rodou sobre os gonzos, e a menina foi colhida pelos braços do fazendeiro, que murmurou:

— Obrigado, obrigado, meu amigo, eu bem vi que me não havia abandonado.

— Prudência, prudência; é preciso que não nos ouçam, ponderaram os embuçados.

— Vós?! oh já não sou tão desgraçado.

— Crê que eu seja um homem honrado, perguntou o embuçado ao carcereiro.

— Sr. doutor! ...

— Agradecido. Vou pedir-lhe que me preste um grande serviço. O senhor irá para a sua sala e consentirá que tranque-o por fora. Ainda mais; guardará silêncio sobre o que se passa agora aqui, segredo absoluto.

— Estou pronto, respondeu o carcereiro; tenho apenas a lembrar-lhe o comprometimento que daí resultará para V.S. e também para mim.

O embuçado, sem responder à objeção dirigiu-se imediatamente ao fazendeiro.

— Não há tempo a esperdiçar, meu amigo; siga-nos.

Motta Coqueiro saiu levando nos braços a filha e todos dirigiram-se para a escada.

Os embuçados desceram alguns degraus, mas foram obrigados a parar interrogados pelo fazendeiro acerca do que iam fazer.

— Fugir, e já; responderam eles.

— Não; não quero fugir, afirmou ele nobremente; era comprometê-los talvez e certamente deixar ainda mais enegrecido o meu nome. Quero justificar-me.

— Mas lembre-se de que só tem em torno de si ódio e calúnias; lembra-se de que pode ser condenado, porque todas as provas são contra si.

— Não importa; Deus defender-me-á. Adeus: entrego-lhes minha filha.

E voltou resolutamente para a célula, onde não era já encarcerado pela vigilância dos agentes policiais mas pela sua própria dignidade.

Às cinco horas da manhã do dia vinte e quatro de outubro de 1852 desceu algemado a escada da cadeia de Campos a amaldiçoada vítima da leviandade pública.

À porta agrupava-se a multidão e alinhava-se uma companhia da força policial, que devia acompanhar o famoso réu até a cadeia de Macaé, termo em que foi perpetrado o crime.

A atitude humilde do fazendeiro tinha o sainete da dignidade inalterável das consciências limpas, e o seu passo, embora tardo, cobrava firmeza à esperança de pronta justificação. Vá esperança que nem ao menos demorou seus enganos lisonjeiros!

Alguns dias depois da sua chegada a Macaé, cuja população recebeu-o com as mais hostis e ruidosas manifestações, aumentadas de odiosidade dia por dia, graças aos libelos dos homens de influência, e muito particularmente do Dr. Velho da Silva, por esse tempo delegado de polícia e juiz municipal, Motta Coqueiro foi mandado para Macabu a fim de ser interrogado.

O seu eloqüente advogado, o Dr. Fonseca, tomou-se de tanto receio pela sorte do fazendeiro que exigiu sérias providências para que fosse respeitada a vida do infeliz.

É que as trevas do futuro escondiam o lôbrego aspecto do patíbulo; ao contrário talvez aquele honrado caráter cerrasse os ouvidos e os olhos aos sinistros planos, que suspeitava tramados.

A desilusão de Motta Coqueiro foi atroz ao chegar ao lugar, onde outrora tinha sido, senão respeitado, pelo menos temido.

Os inquéritos tinham sido começados e a mais baixa gente, a escória popular, fora chamada de preferência.

Vinham depor testemunhas dos lugares mais afastados de Macabu e homens que eram notoriamente conhecidos como inimigos dos réus.

Os nomes das testemunhas sós bastaram para despersuadi-lo da possibilidade de justificação.

Os depoimentos deviam ser tomados a Balbina, Sebastião Corrêa Batista. mais conhecido por Sebastião Pereira, o Viana da venda, Lúcio Francisco José Ribeiro, Manuel João de Souza Moço, Joaquim José Licério, Amaro Antônio Batista, José Pinto Neto, José Antônio do Rosário, Joaquim José da Costa, Carolina, Fernando, Tereza e José de Souza Marins, alcunhado o Botão, único que não se quis prestar a depor sobre o que não sabia.

Compareciam também às audiências os réus presos Faustino Pereira da Silva, Florentino Silva, Domingos e Bento Pereira da Silva, que trocou depois o banco de acusado pela cadeira de testemunha!

Comentando este fato diziam os amigos de Coqueiro, não sem razão:

— Parece que a autoridade policial colocou os seus policiados nesta posição diante de Coqueiro: condenai ou sereis condenados.

Balbina jurou que sabia que o seu senhor tinha mandado matar a família de Francisco Benedito pelos seus parceiros Fidélis, Alexandre, Carlos e Domingos, e sabia porque tinha ouvido ao fazendeiro perguntar no corredor aos escravos se tinham morto a todos. A morte foi feita em um domingo, e o senhor chegara ao sítio na véspera. Com os escravos não tinha ido pessoa forra, e a senhora achava-se na cidade.

Chamada, porém, a segundo depoimento, jurou que ouvira no corredor perguntar o seu senhor:

— Então o que eu mandei fazer já está pronto?

— Tudozinho, responderam Fidélis e Alexandre, a família toda.

— Pois quero a casa queimada; tornou-lhes o senhor.



Carolina disse que Motta Coqueiro na sexta-feira tinha mandado quatro escravos matar a família e atacar fogo na casa, morte que eles só fizeram no domingo, e na segunda-feira atacaram fogo. Isto contaram-lhe as mucamas Justina, Catarina e Isabel. No dia da matança achava-se em casa o Flor.

No segundo depoimento declara que ouviu, na segunda-feira, a pergunta do senhor aos escravos sobre a execução do crime.

Tereza declarou que só sabia do fato por tê-lo ouvido aos parceiros, que também, quando ela observou que Carlos tinha um lenço â cabeça, disseram-lhe que no fazer as mortes o homem lhe quebrara a cabeça.

Fernando declarou que tinha ouvido falar no crime às escravas Balbina e Carolina.

Parte das outras testemunhas juram também por ouvir dizer; outra parte, porém, baseava-se em razões d e grande valia para as autoridades de então.

Sebastião depôs que o fazendeiro mandou matar a Francisco Benedito para apoderar-se das benfeitorias d o sítio. Antes, querendo pôr fora o agregado, mandara-lhe roçar ao redor da casa para impedi-lo de trabalhar, e a senhora de Motta Coqueiro prometera não voltar ao sítio sem ver morta a família de Francisco Benedito e principalmente uma das filhas.

Florentino tinha amizade com o Motta Coqueiro, havia seis meses, e este mandara por aquele e Faustino, que já tinha feito mortes, assassiná-lo por intrigas nascidas de esponsais tratados entre ele testemunha e uma filha de Francisco Benedito.

Manuel João de Souza Moço declarou que tinha também sido convidado por Motta Coqueiro para matar, quer Sebastião, quer a família do agregado, pedido a que ele testemunha não acedeu. Antes, mandou-o Motta Coqueiro cobrar cem mil réis a Anacleto Vieira e entregá-los a Faustino, mas não se havendo efetuado a cobrança, este revelou-lhe que devia receber essa quantia pelas mortes de Sebastião e dos outros.

Soube do assassinato da família e as particularidades dele porque, por uma noite chuvosa, indo ao sítio conversar com uma das pretas, ouviu a narração aos escravos.

A causa do crime era ter querido Motta Coqueiro seduzir uma das moças assassinadas, e, não conseguindo, expulsar o pai das suas terras.

Joaquim José Licério soube por ver os corpos assassinados e porque, no dia dezesseis, ouviu Peregrino contar que Motta Coqueiro encarregara dos assassinatos os seus parceiros, os dois homens livres, e um outro homem de bem, cujo nome não dizia. Faustino sufocou o velho; Flor a sua mulher e depois mataram as filhas, e o filho que correra para o mato.

Também Faustino contou-lhe que foram os escravos Alexandre, Carlos, Fidélis e Domingos, em presença de Motta Coqueiro, que assim vingava-se de não ter conseguido seduzir uma das filhas de Francisco Benedito.

Sabia mais que Faustino e Flor faziam mortes por dinheiro.

Lúcio Ribeiro depôs que encontrou-se com Faustino e que este lhe contara que andavam culpando-o pela morte da família de Francisco Benedito, mas em seguida o próprio Faustino lhe dissera que os réus acusados eram os verdadeiros autores.

Entrando nas particularidades do crime, disse-lhe Faustino que, antes de perpetrarem o bárbaro crime, as moças foram desacatadas e violadas pelos dois homens livres, em seguida pelos escravos e só depois as mataram e com elas as crianças.

Foi uma boa patuscada, disse-lhe Faustino, e sobretudo não havíamos de perder assim duzentos mil réis que nos dava Motta Coqueiro.

Tinha outras provas; a ele próprio o fazendeiro ofereceu uma égua para ser do número dos assassinos, oferecimento que ele recusou.

Dizia-se que Faustino tinha espetado um pé, correndo após o filho de Francisco Benedito, e com efeito ele testemunha viu Faustino manco. Os escravos confirmaram-lhe a narração de Faustino, que era useiro e vezeiro em tais crimes.

Para provar que Faustino era criminoso bastava dizer que ele tratou logo de esconder-se nas matas.

Do que ele testemunha se admira é de ver Florentino no número dos assassinos!

Passando-se à inquirição dos cúmplices, disse Bento Pereira da Silva que não sabia por que estava preso e quanto às mortes tinham sido feitas pelos outros, porque o seu irmão Faustino lho disse, convidando a ele réu para ir ressuscitar Francisco Benedito de quem era amigo.

Não se admirara deste procedimento de seu irmão que havia antes assassinado a João de Carvalho, pelo que foi sentenciado, e não concluiu o cumprimento da pena por se ter evadido da prisão.

Faustino Silva, respondendo ao inquérito, confirma a segunda parte do depoimento, porém nega a primeira, afirmando que ouviu dizer que as mortes tinham sido feitas por um preto desconhecido, o Botão, e escravos de Coqueiro, mandados por este.

Tratando de contrariar as testemunhas. apresenta-as como seus inimigos. e pondera que os que dizem que sabiam que ele réu queria matar Francisco Benedito são também criminosos, porque não avisaram a autoridade.

Florentino Silva, depois de expor a simplicidade de suas relações com o fazendeiro, concluiu por imputar o crime a Faustino, Manuel João e os escravos.

Domingos limitou-se a narrar o que se tinha passado â sua vista; confessa não ter visto Carlos ferido, e clama pela sua inocência.

Seguiu-se o interrogatório do fazendeiro.

Sem acusar ninguém, porque não desejava fazer juízos temerários, Motta Coqueiro buscou apenas, na simplicidade das suas respostas, deixar clara a sua inocência.

Os fatos ocorridos no sítio foram expostos minuciosamente, e invocados sérios testemunhos para explicar a coincidência da sua última chegada ao sitio com o assassinato da família.

A temerosa acusação da cobrança do vale foi desfeita com a singela narração de uma pequena transação comercial.

Confrontado este com os contraditórios depoimentos das testemunhas, ficava por demais provada a inocência do réu, mas a exaltação dos espíritos, o clamor popular impediam a boa marcha dos espíritos.

O subdelegado Oliveira apressou-se em pronunciar os réus, como autores do crime de homicídio previsto no art. 192 do código criminal, aduzindo as circunstâncias agravantes de paga ou esperança de recompensa, entrada em casa do ofendido com intento de cometer o crime; resultar, além do crime, outro mal ao ofendido ou pessoa de sua família, aumento da dor física por circunstância extraordinária; aumento do crime por circunstância extraordinária de ignomínia, pela natureza irreparável do dano; e, finalmente, aumento da aflição ao aflito.

Conclusos os autos ao juiz municipal substituto de Macaé, foram enviados ao promotor que, depois da apreciação das provas, pediu que se fizesse a devida justiça.

Motta Coqueiro, declarado incomunicável desde a sua prisão até a véspera de seu julgamento, continuou a sua peregrinação de infortúnio.

Apregoavam por toda a parte os seus detratores que sempre fora um homem perdido no conceito público, e entretanto não o julgaram seguro na cadeia de Macaé, pelo que foi mandado para a capital do império.

Cousa extraordinária! Desde que o mandante do nefando morticínio foi encarcerado, as autoridades, que tão solicitas se mostravam na captura de todos os réus, esqueceram os demais escravos de Motta Coqueiro, que tinham sido acusados e ninguém mais ouviu falar em diligências à casa do fazendeiro a fim de prendê-los!

É que a população pedia sangue para desafrontar-se e já havia quatro vítimas para satisfazer-lhe a secura das fauces justiceiras.

Fossem elas justa ou injustamente imoladas, pouco importava; o que era mister, o que não podia ser dispensado, era o espetáculo da morte para reparar a morte.

O verdadeiro criminoso devia alegrar-se na sua barbaridade ao ver como a sociedade demonstrava compreender a justiça.

Enquanto na paz insensata da vingança ele passava desembaraçado, talvez por diante dos mesmos magistrados, que se jactavam de ler na fisionomia do fazendeiro os atestados do crime; uma família esmagada pela execração pública fraqueando diante de tão dolorosa sentença, buscava retratar-se de um delito que não tinha cometido, e riscava do nome o apelido herdado a seus pais!

E Motta Coqueiro, o cavalheiro que repelia evadir-se para justificar-se; o homem poderoso que contemporizava com o agregado para não parecer que abusava da força de que então podia dispor, era apontado, injuriado pelo anônimo popular e pela imprensa como um tipo de maldade e de cinismo.

Longe, porém, da sociedade polida e amiga da justiça houve um coração a quem a sorte do fazendeiro compungiu até a loucura.

Sabendo no interior das matas de Macabu, por onde errava foragido qual a acusação que pesava sobre seu senhor, Carlos, que involuntariamente contribuíra para ela, sentiu revoltarem-se-lhe os instintos generosos.

Quisera poder fazer acreditar a todos a inocência do seu senhor; quisera pela verdade confundir a calúnia que já ameaçava a vida, depois de haver tisnado a reputação e a honra de um homem de bem. Mas era impossível que lhe dessem crédito, a ele, um escravo e demais acusado também como autor do crime.

Impelido pelo impotente desespero, que o assenhoreara, o nobre escravo resolveu protestar de maneira solene contra a injustiça que se fazia, quer a si, quer ao seu senhor.

— Basta que matem aos que lhes caíram às mãos; — disse ele uma tarde em que sentado à margem parecia fascinado pela correnteza do rio.

Ditas estas palavras, Carlos atou aos pés com cuidado extremo duas enormes pedras e ajoelhando-se então bradou como se quisesse que a sua voz ecoasse bem longe:

— Perdão, meu senhor; nós fomos os culpados da desgraça, mas somos também inocentes.

As águas do rio abriram-se espumando e fecharam-se logo sobre o corpo de um suicida, que prestava com o seu sacrifício homenagem à inocência do fazendeiro.

Infelizmente para este, o nobre suicida não fazia parte da sociedade, que o devia julgar e que amaldiçoava-o antes de ouvi-lo.

Não obstante a coragem brônzea de Motta Coqueiro não se quebrava; e foi com a maior serenidade, senão com a mais santa esperança que em um dos dias de janeiro de mil oitocentos cinqüenta e três, entrou pela sala do júri, na cidade de Macaé.

Pelas dez horas da manhã imenso concurso de povo afluía para o edifício, que servia de templo â justiça humana, vendada desde o seu nascimento por um sonho de imparcialidade doentia, e agora ainda mais cega pela sobre-excitação sentimental que a solicitude da calúnia tinha sabido despertar.

Os pais de família honestos e de consciência transparente disputavam-se lugar nas bancadas incômodas do tribunal, cheios de uma ansiedade indizível.

Todos queriam ver o réu principal, decididos a apascentar as manadas de apóstrofes de promotoria e ódio insaciável, que baliam-lhes esfaimadas, conchegando-se agora e para logo estramalhando-se do aprisco moral, construído por uma certa boa fé de convenção, que levava os homens, ainda os mais sisudos, a trapilharem maldições nos esterquilínios formados pela intriga em roda dos caracteres limpos.

Uma balaustrada dividia a sala em dois planos. No mais elevado em que via-se uma comprida mesa coberta por um pano verde orlado de galão amarelo, e cujos lados e cabeceira do fundo estavam cercados de altas cadeiras negras de encosto de pau. A cabeceira, que ficava próxima à balaustrada, era flanqueada por quatro bancos de assento de madeira. Junto destes bancos uma pequena mesa fazia as vezes de tribuna da defesa.

Ao longo das paredes encostava-se grande quantidade de cadeiras de assento de palhinha.

Fora da balaustrada a sala, que dava entrada a uma estreita escada, era ocupada por muitas linhas de compridos bancos.

Este lado destinava-se aos espectadores; o outro aos juizes, que deviam ou pautar-se pela opinião pública, ou arcar com a responsabilidade tremenda que lhes sobreviria de qualquer decisão que a desgostasse.

Também enquanto os espectadores davam largas às suas expansões, um recolhimento religioso solenizava a atitude dos juizes.

O presidente do tribunal fez soar a campainha presidencial, para acalmar um prolongado sussurro que se derramou no recinto.

Apareceu então no topo da escada, todo vestido de preto, Manuel da Motta Coqueiro acompanhado por Domingos, Florentino Silva e Faustino Pereira da Silva, rodeados pela força pública.

Os desgostos tinham descorado as faces do fazendeiro e branqueado de todo as barbas, que caíam-lhe como um disco de arminho sobre a gola da sobrecasaca preta.

Entrecerravam-lhe as pálpebras o constrangimento e o vexame, mas o andar era firme, e o corpo conservava o aprumo da confiança.

Os outros réus careciam da serenidade aparente, que envolvia a figura principal do quadro.

Florentino Silva denunciava mais do que todos o pânico pelo qual estava subjugado; tremia como se fosse presa de um violento calafrio.

Faustino, embora aparentando mais sangue frio, traía entretanto a sua perturbação.

É que sabia ao certo que, fosse qual fosse o resultado do processo, seria conduzido de novo à prisão para nela viver sepultado durante os anos que lhe faltavam da pena, que se lhe tinha cominada como assassino, além da que devia sofrer pela evasão.

O ignorante Domingos, ainda que não pudesse demonstrar pelo rosto negro e sem mobilidade o que lhe ia no íntimo, deixava não obstante bem claro que um pressentimento sinistro fazia-o desanimar.

— Qual júri, nem meio júri para esses malvados, fosse eu autoridade e lhes diria onde paravam eles agora, exclamou um espectador vendo entrar os réus.

— Não, senhor; cumpra-se a lei, ela quer assim, seja assim. Pode ser que ele traga documentos que provem que é inocente. Quem sabe lá?

— Ora vá bugiar, meu amigo; mandou-se intimar a mulher e um amigo dele e nenhum dos dois apareceu. Se ele fosse inocente cá estariam todos os seus parentes e não me consta que esteja aqui nenhum.

— Quanto a isto não; você lembra-se do dia em que ele chegou aqui pela primeira vez; lembra-se também da hora do desembarque da corte? Se vissem algum parente enxovalhavam-no por força, e embora um homem seja muito criminoso não quer que se desatenda a sua família. Eu dou-lhes razão.

— Pobre homem, exclamou em outro banco um espectador; Deus o proteja e o defenda.

— Ora essa, homem! responderam a esta manifestação de piedade; pois o senhor tem pena daquele demônio? E preciso ou ser um santo ou ser tão bom como ele. Matar uma família inteira, velhos e crianças, e ainda haver quem se condoa de semelhante assassino? ...

— O senhor só poderá falar assim depois da decisão do júri; por ora não.

— Pois tranque-me a boca, se não quiser que eu fale e além disso os incomodados são os que se mudam.

— No vapor em que ele veio, narrava um homem que parecia merecer consideração aos ouvintes, teve ocasião de escapar-se. Durante toda a noite, as praças, que enjoaram desmesuradamente, ficaram desacordadas, e ele se quisesse podia ter-se atirado ao mar. Já bem perto de terra, ele, que estava completamente. livre, teve quem o aconselhasse a fugir, e apenas sacudiu negativamente a cabeça. Portanto é fora de dúvida que o infeliz espera justificar-se.

— A mim também parece que isto é um sonho; porque sempre ouvi dizer que Motta Coqueiro não tinha ânimo de fazer mal a ninguém.

— Ora até que afinal o encontro; já fui à sua casa e a todos os pontos da cidade em que o Sr. costuma parar. Recorda-se que ontem à noite o senhor sustentava que todos os parentes e inclusive a mulher de Motta Coqueiro tinham-no abandonado? Eu dizia-lhe que estava completamente enganado, e, como não gosto de dizer as cousas sem provas, queira ouvir a leitura desta carta, cuja cópia foi tirada pelo advogado. Escute:

"Meu caro enteado. — Brevemente devo ouvir do tribunal do júri ou a confirmação da calúnia com que nos perseguem, ou a satisfação que a sociedade deve à minha inocência.
A princípio quase desanimei da minha sorte, lembrando o modo por que fui tratado pelo Oliveira e a iniqüidade da pronúncia com que conseguiram prolongar a minha difamação, mas hoje escrevo-te com a maior esperança, apesar de saber qual o juízo que em geral se faz de mim.
Consta-me que minha pobre mulher, e tua infeliz mãe vai ser intimada como informante. Eu entendo que é desnecessário o comparecimento dela, não só porque em cousa alguma adianta, como também porque, se a minha desgraça levar-me até a ser condenado, ela não teria resignação para lembrar-se da recomendação que lhe fiz, quando começou a fase negra da minha vida.
Peço-te, pois, que a convenças de que não deve comparecer. Seria agravar os seus incômodos, e talvez aventurar-se a um desrespeito da população.
Bem sabes, meu caro enteado, que a fé é o melhor consolo dos infelizes; quero, portanto, pedir-te que durante o mês de janeiro, todos os dias reúnas os meus inocentes filhos e todos rezeis por mim.
Deus há de ouvir os seus rogos.
Adeus, beija os meus filhos, adeus; a esperança faz-me escrever-te: até breve.

Manuel da Motta Coqueiro."

— Então, insistirá ainda em dizer que as relações da família Coqueiro estão cortadas?

Mas quer estejam, quer não, esta carta não serve para provar que ele não é um refinado malvado.

— Não tratei disto; quis só mostrar-lhe que estava em erro.

Pela maneira por que o leitor da carta mostrou-se tão empenhado na defesa do fazendeiro é fácil reconhecer o Sr. Martins, o gratuito sustentador da inocência do principal dos réus, apesar de tudo e de todos.

— Veremos ainda quem vence, exclamou ele; só se não há mais do que cegos nesta terra.

A sessão tinha sido aberta, e fazia-se o sorteio dos jurados, acompanhado pelos comentários dos espectadores.

Havia nomes que eram aplaudidos e outros que provocavam sussurro e reprovação nas galerias.

— Ora é boa; este é conhecido como apaniguado do assassino; se escolhem jurados iguais, a fera está absolvida por força.

— Ainda ontem secou a goela em vociferar contra o juiz municipal, por ter pronunciado Coqueiro, e hoje entra no conselho. Esta terra vai pela água abaixo.

Felizmente para esses zelosos amigos da justiça, o desgosto que os afetava era passageiro, porque a voz do promotor, com um acento severo, bradava logo: — recuso!

Houve um momento de verdadeira confusão na assembléia. Afetos e desafetos do réu não pronunciaram a princípio uma única palavra, mas de parte a parte descobria-se profundo e sincero receio.

A sorte ordenou que fosse lido um nome, em torno do qual agremiavam-se justamente as simpatias gerais: — João Seberg.

Um homem vestido de preto, alto, de compleição robusta, fronte descalvada e olhar inteligente, ergueu-se de uma das cadeiras laterais, e fez ouvir com voz firme: — presente.

Caminhou direito à mesa e tomou o lugar que lhe foi designado.

Finda a espécie de estupor, que dominou a assembléia, principiaram os comentários:

— É notório que se davam muito, e quando a fera vinha aqui a negócios, passavam horas e horas conversando e muitas vezes ao sol.

— Isto não me incomoda, se ele entender que o homem é criminoso, condena-o. Tivesse ele de julgar o próprio pai e se acreditasse que era criminoso, tenho certeza de que o condenava.

— Bem, acredito; mas o que é verdade é que um amigo olha sempre os atos dos outros com o desejo de descobrir o melhor lado.

Organizado o conselho, a sessão começou a marchar no meio do maior silêncio.

Foi lido o processo e em seguida feita a inquirição das testemunhas e dos réus.

Seguiu-se a acusação cuidadosa de causar movimentos de indignação contra os réus, graças aos serviços conseguidos à benevolência da retórica enferma dos juristas.

Quando já os adjetivos tropeçavam e retardavam-se de tão estafados, o promotor pintando o quadro de um pai aflito, uma velha mãe desesperada, duas pobres moças ameaçadas duplamente na sua virginidade e vida, e finalmente três criancinhas acordadas de súbito, e abraçadas umas com as outras, trêmulas de receio, enquanto lá fora, um moço, desarmado e atacado de todos os lados, cala inundado em sangue, precedendo aos seus na longa viagem da morte desenhado assim com manifesto zelo e discriminação de planos e exuberância de tons este quadro comovente, o promotor em nome da humanidade, da civilização e da lei, pediu para os réus a pena de morte.

A assembléia teria prorrompido em palmas e bravos se a campainha, tangida pelo magistrado, não tivesse a tempo sustado manifestação.

Motta Coqueiro tinha enlividecido e duas grossas lágrimas orvalharam-lhe preguiçosamente as faces.

Coube então a palavra ao advogado da defesa.

As suas primeiras palavras dominaram absolutamente o murmúrio das galerias, que foram a pouco e pouco abonançando até a comoção.

Era a força mágica da verdade e da justiça que vencia na luta as tríplices forças da animadversão popular.

Entretanto o respeitável advogado não tinha atacado o assunto se não pela face jurídica; limitava-se apenas a analisar o depoimento contraditório das testemunhas e a cegueira dos magistrados na instrução do processo.

Ciciava pelos espectadores o pânico da derrota; como que acordavam de um longo pesadelo, cheios de despeito porque viam fugir-lhes dentre as mãos as presas, que tinham deliberado imolar em holocausto à justiça.

Mas ao mesmo tempo a malignidade descobriu meios para justificar as testemunhas, em sério perigo de serem declaradas perjuras.

Um anônimo achou e fez circular por toda a assembléia uma evasiva, que foi sancionada como sensata:

— Ora, segredavam-se os espectadores; não há nada a admirar na confusão das testemunhas; são pobres homens e mulheres que ignoram o sentido das palavras e que não atinam com a finura e atilamento do advogado, que os quer perder.

Quase certo da vitória, pela esplêndida derrota que tinha obtido dos inimigos do seu cliente, o advogado desistiu da palavra, para retomá-la após a réplica da promotoria. A resposta seria a coroação do triunfo que a e1oquência a serviço de uma nobre causa acabava de obter.

O promotor público, porém, desistiu do direito de replicar; ou melhor a justiça, que havia conservado os réus incomunicáveis, que deu azo a que circulassem boatos de uma execução ilegal, negava ainda aos réus o direito de ampla defesa quando a opinião começava a abalar-se e a voltar-se a favor deles!

Digamos em uma única frase: a justiça prostituiu-se por não ter a coragem de suicidar-se.

O conselho retirou-se para a sala secreta a fim de responder os quesitos formulados pelo magistrado.

A ansiedade dos espectadores chegava já até a irritação; questionava-se, agredia-se com frases injuriosas; apostava-se pró e contra os réus.

Quando abriu-se a porta da sala para onde se retirara o conselho, todos silenciaram repentinamente.

Foram então lidos em alta voz os quesitos e as suas respostas.

Por unanimidade de votos reconheciam-se o crime e as circunstâncias agravantes e negavam-se todas as atenuantes.

O advogado da defesa, que se fora gradativamente alevantando à proporção que ouvia as respostas do conselho, ficou finalmente de pé, lívido, com o braço inteiriçado e trêmulo, estátua da indignação, impotente para obstar um crime.

No semblante de Motta Coqueiro pairava a solenidade das grandes desgraças.

Terminou-se enfim a longa leitura dos quesitos pelo magistrado, e logo depois foi ouvida a sentença, que, pela decisão do júri, condenava à morte e ainda nas custas os malsinados réus. O juiz, porém, apelava em nome da lei.

A força pública tomou conta das vítimas que deviam expirar às mãos do carrasco, e a sala foi prontamente esvaziada pelos espectadores que foram abrir alas à porta do edifício com o propósito de insultar, ainda uma vez, o infortúnio dos seus semelhantes.

Chegado à prisão, o fazendeiro que fora tão rudemente ferido por um desengano atroz, pediu que lhe deixassem escrever à sua família.

A magnanimidade da justiça atendeu-lhe o pedido e o desventurado, molhando o papel com as lágrimas, escreveu quase ininteligivelmente:

"Meu caro enteado. Acabo de ser condenado à morte. Sirva de pai a meus desgraçados filhos."

A notícia da condenação do fazendeiro voou ruidosamente, levando consigo a satisfação e a confiança às consciências dos crédulos adoradores da justiça humana.

Os nomes dos jurados eram repetidos por quase todos entre aplausos, congratulações e exageros tendentes a afearem ainda mais a reputação de Motta Coqueiro.

Nenhuma esperança restava pois ao infeliz, contra o qual a sociedade obstinava-se a fechar os olhos para não ver uma só atenuante, que ao menos ameigasse a monstruosidade da pena.

O cadafalso negrejava tremendo nas brumas do futuro, e era dia por dia arrastado pelos quatro esteios, e aproximado inexoravelmente das vistas do condenado.

Contrariedades e desgostos corriam ao seu encontro, como temerosa matilha de cães hidrôfobos, e atassalhavam-lhe com as presas envenenadas a propriedade e os brios.

Os credores e o fisco escancaravam as goelas enormes e não as fechavam sem terem engolido parte do trabalho do fazendeiro durante longos anos. Além disso o repetiam sempre estribilho hediondo da sua imaginária barbaridade contra a família do agregado.

Tinha sido de novo transportado para a corte, e assim ficavam-lhe sobremaneira dificultadas as suas relações, quer com sua esposa e filhos, quer com seus amigos.

Em troca dos carinhos e consolações que estes lhe ofereceriam, tinha apenas as palavras secas do carcereiro e os olhares repulsivos de todos que por acaso relanceavam-lhe o semblante.

O infortúnio havia por fim afugentado os camaradas que outrora o cercavam; afastaram-se todos, porque a convivência com os celerados é indicio de mau caráter.

Como os lázaros, nos passados tempos, eram postos fora das portas das cidades, o infeliz fora expulso de toda a sociedade.

Ficava-lhe do feliz e sorridente viver de quadra melhor apenas — a saudade, palheta encantada que esbatia rica de colorido, frescos comoventes, em que eram representadas as crianças descuidosas e prazenteiras, a esposa desvelada e tranqüila.

Mas repentinamente o quadro desaparecia como a brancura de um velino debaixo de um borrão, e o vulto negro e horripilante do cadafalso surgia dentre esses festivos sonhos como a careta de Quasímodo entre a alegria dos eleitores do Sumo Doido.

Então o desgraçado, com os cabelos arrepelados e o olhar flamejante, media silencioso o estreito recinto da prisão, e só parava quando, extenuado, caía sobre o leito afogado em soluços e em lágrimas.

Vejam como o remorso tortura aquele malvado, dizia o carcereiro ao vê-lo baqueado nessa dor profunda. Afinal de contas não lhe valeu ter dinheiro; não se pôde livrar da forca, nem pôde fazer calar a consciência.

E os que faziam na prisão a aprendizagem da dureza do coração e do cinismo riam desafogadamente escárnios pungentes à santidade daquele sofrimento.

Fora da prisão reinava a inexorabilidade, e mais ainda a torpeza. Uma das influências de Macaé, muito empenhada em ver perdido irremediavelmente o desventurado réu, planejou uma cena, cujo efeito demonstraria ainda aos mais aferrados defensores a culpabilidade de Motta Coqueiro.

Restava da família de Francisco Benedito uma única filha, a qual diziam ser casada com uma das testemunhas do processo, Sebastião Correia Batista, conhecido em Macabu por Sebastião Pereira.

A solícita influência resolveu mandar vir para Macaé a moça, cuja presença confundiria infalivelmente o malvado, que persistia em mostrar-se aparentemente tão sereno, que muitos já o consideravam vítima.

Aproximando-se a segunda sessão do júri a que deviam responder os réus mais odiados que têm aparecido em tribunais brasileiros, a zelosa influência apressou-se em realizar os seus desejos.

Chegou enfim o dia da sessão, e os réus compareceram para ainda uma vez afrontar a odiosidade popular, a retórica da promotoria, e a sensibilidade dos jurados,

Os espectadores, alegres por não verem na tribuna da defesa o advogado que na primeira sessão tinha-os ameaçado com um profundíssimo despeito manifestaram francamente os sentimentos contra Motta Coqueiro em um passageiro incidente.

Os julgamentos do fazendeiro e do escravo Domingos foram separados do julgamento dos outros dois réus.

— Faze lá o que quiseres, matreiro, sorriam os desalmados; já não há quem, possa tirar-te a corda do pescoço; estás ai, e estás a dançar sob as unhas do carrasco.

— O diabo é que ele assim demora a confirmação da sentença dos outros. Eu se fosse juiz não consentia que se rompesse a cambulhada; mataram juntos, deviam ser condenados juntos.

Quando começou o interrogatório de Motta Coqueiro, houve um grande sussurro, que não cedeu nem ao toque da campainha presidencial.

— Está aí embaixo; eu estou vendo daqui; deve ser ela.

Diversos espectadores mais sôfregos levantaram-se apressadamente dirigindo-se à escada, e outros debruçaram-se às janelas do edifício, prolongando assim o sussurro.

— Ora, bem parecia-me que não era, exclamou-se afinal; a filha do pobre assassinado não tem meios para vir aqui.

— Por isso não, porque o Dr..... mandou-a buscar.

Afinal o ruído dissipou-se e a voz de Motta Coqueiro, trêmula de comoção, pôde ser distintamente ouvida.

Depois de expor as suas relações com Francisco Benedito durante quatro anos, desde a sua chegada no sítio e moradia na casa próxima à em que residia a sua família, até o espancamento que lhe foi feito pelo agregado; exposta a marcha do processo, o procedimento de Licério e a indisposição de Lúcio Ribeiro e Manuel João; Motta Coqueiro declarou que tinha grande parte de Macabu por sua inimiga, mas que não sabe a quem atribuir o assassinato da família do seu agregado; seria fazer juízos temerários.

A voz fortaleceu-se então e adquiriu timbre que encarnava em si a maldição e ao mesmo tempo a resignação.

— Quanto à imputação que me fazem de semelhante crime, eu, perante o Sr. juiz e os Srs. jurados, perante Deus e o povo, declaro que estou inocente: tal não mandei fazer!

Prolongada hilaridade nas galerias recebeu este brado da consciência flagelada do fazendeiro, que ouvindo a gargalhada alvar dos insensatos, caiu como que fulminado sobre o escabelo infamante.

O infeliz Domingos nem podia ao menos ligar os fatos para expô-los; limitou-se a responder às perguntas da perspicácia doentia do magistrado, e concluiu por afirmar com a maior sinceridade: eu não fiz crime!

O conselho retirou-se para a sala secreta, mas desta vez a sua demora já não abria horizonte aos alvores da esperança no coração de Motta Coqueiro, estortegado pela cruel certeza de que seria novamente condenado.

O sol do dia vinte e oito de março de 1853 descambava triste para o ocidente, e para ele como para um caráter nobre e leal estava perto o ocaso; a região das sombras e dos mistérios.

A expectativa dos assistentes, posta por muito tempo a mal sofridos tratos, foi enfim satisfeita: os jurados apresentaram-se com a desejada resposta aos quesitos.

Confirmaram por unanimidade que o réu Manuel da Motta Coqueiro tinha mandado matar Francisco Benedito, sua mulher e seus filhos, alguns dos quais menores de sete anos.

Por oito votos reconheciam as circunstâncias agravantes de lugar ermo à noite, e tentativa de incêndio; por unanimidade as agravantes: motivo frívolo ou reprovado, premeditação, entrada na casa do ofendido, e ajuste com os executores da matança.

Aos quesitos formulados acerca do réu Domingos, respondeu o mesmo conselho confirmando por sete votos que o réu tinha morto a família de Francisco Benedito; por nove reconhecendo as circunstâncias agravantes de lugar ermo e de noite, tentativa de incêndio, motivo reprovado ou frívolo; por dez, a agravante de ter entrado na casa do ofendido com o fim de matá-lo; por sete a circunstância de premeditação; por oito negando atenuantes a favor do réu, que não foi violentado por força irresistível, nem medo.

O magistrado que presidia a sessão deu então a sentença marcada pelo código — a pena de morte; e apelou desta decisão.

— Ai! resmungou o desgraçado Domingos, os brancos são cegos; não querem ver a verdade!

Motta Coqueiro, com a cabeça pendida e sem poder conter as lágrimas, ouviu silencioso o veredicto tremendo que o perdia para sempre.

De feito que palavras poderiam encarnar em si a amargura de um espírito que, certo da sua inocência, não tinha forças para impedir que a sociedade, em nome da justiça, lhe extorquisse tudo quanto mais prezava, a honra, a família e a vida?!

O que havia ele de dizer a uma sociedade que execra a memória dos bárbaros porque destruíram os monumentos da arte antiga, e no entanto julga-se com o direito de destruir o seu semelhante, o monumento sagrado da natureza?

Que palavras merecia uma sociedade que exara nos seus códigos como circunstância agravante a superioridade de forças do ofensor sobre o ofendido, e que no entanto aponta mil espingardas contra o peito do réu, algema-o, ata-lhe ao pescoço um baraço, e fá-lo subir ao cadafalso?

Há dores para as quais não há manifestação possível; o coração humano limita-se apenas a senti-las, quando não é por ela espedaçado.

Entre os agentes da força pública os dois réus saíram do tribunal, e com eles os espectadores, magistrado e jurados.

A solidão sentou-se então no meio da grande sala ainda há pouco povoada e estrondante de maldições. Havia ai a solenidade das ruínas dos grandes templos da antigüidade, e na verdade acabava-se de esboroar um templo de sentimentos tranqüilos, erguido por um caráter de têmpera.

À porta do edifício um homem, com os braços cruzados sobre o peito, os olhos fixos no solo, permaneceu imóvel enquanto a multidão desfilava.

Este homem tinha feito parte do conselho que acabava de condenar á infâmia e á morte um dos chefes políticos de Campos, conhecido outrora pela sua severidade e vida imaculada.

Dir-se-ia que era uma estátua, ou uma aparição sobrenatural, tal era a palidez de seu rosto, a expressão tristíssima do seu olhar.

E a multidão, distendendo-se, dividindo-se, rareou e sumiu-se ao longe, nas ruas e praças, e o homem sempre imóvel conservava-se como alheado do que se passava em torno de si.

Um transeunte aproximou-se-lhe e disse-lhe jovialmente:

— Ora muito bem; tomei um ótimo logro, saí correndo de' casa para ouvir a decisão do júri e no entanto acho tudo concluído. Felizmente para mim encontro ainda o Sr. Seberg, que pode dar-me a notícia que desejo. O senhor não fez parte do conselho'?

Seberg não respondeu, nem mudou de atitude, pelo que o recém-chegado bateu-lhe de leve no ombro, e perguntou precipitadamente:

— Dar-se-á o caso que absolvessem aquela fera'?

— Não senhor; foi condenado á morte, respondeu Seberg tristemente. Ah! exclamou o recém-chegado; eu logo vi que não havia nada a temer de um júri em que entrassem como juizes de fato homens iguais ao Sr. Seberg.

— Diga antes que não há que fiar em tribunais onde entram para julgar homens que nem ao menos conhecem os processos.

— Está me parecendo que houve algum jurado que tentou fazer tramóia. Vejo-o tão incomodado...

— Desculpe-me. acudiu Seberg bruscamente; desculpe-me; tenho necessidade de falar já e já a um amigo.

E o nobre Sr. Seberg tomou. quase a correr, a direção pela qual seguiram a multidão e os réus, enquanto que o recém-chegado, perplexo, acompanhava-o com os olhos.

Alguns minutos depois o jurado entrava pela cadeia de Macaé. pedindo permissão para falar a Motta Coqueiro.

A luz do candeeiro fuliginoso que ardia no corredor da cadeia guiou Seberg até á prisão do fazendeiro. que, de pé com os braços apoiados na grade e a cabeça deitada sobre eles, amargava em silêncio o seu lamentável destino.

— Perdoe-me, perdoe-me; exclamou Seberg abraçando por entre a grade o condenado; reconheça-me pára perdoar um dos seus algozes.

Os soluços de ambos embargaram-lhes por largo tempo a voz. mas finalmente Motta Coqueiro, fazendo um grande esforço. pôde dirigir-se ao seu inesperado visitante

— Os Srs. cumpriram o seu dever, não lhes quero mal por isso. Perdôo mesmo aos que me perderam, mas o que eu não posso explicar é a razão por que foi condenado o meu pobre escravo, o infeliz Domingos. Eu tinha inimigos, mas ele... o desgraçado!...

— Não perca a esperança, exclamou Seberg; tudo ainda não está perdido. O que nossa exaltação impediu-nos de ver até hoje, talvez o tribunal superior possa descobrir. Tenha fé em Deus, meu amigo, resigne-se e espere.

O fazendeiro meneou a cabeça. Era a muda confissão do desânimo, respondendo à consolação da amizade.

Seberg abraçou pela última vez o desventurado e afastou-se dirigindo-se para a saída da cadeia, onde parou de chofre. Uma mulher coberta com um véu, e acompanhada por dois homens, entrava neste momento.

Quando estas três pessoas passaram, Seberg exclamou tristemente Pobre família; que desgosto e que vergonha!

As três pessoas que entraram atravessaram uma pequena sala, e, guiadas pelo carcereiro, foram tomar o lugar havia pouco deixado pelo Sr. Seberg.

O condenado, pertransido pela sua agonia, não percebeu que junto de si olhos curiosos espiavam-no, e nem ouviu o que se dizia a seu respeito.

Afinal um dos recém-chegados tomou a palavra:

O Sr. Coqueiro dá licença que lhe apresentemos uma pessoa que o veio visitar?

— Oh! meu senhor, respondeu o sentenciado, hoje uma visita é a prova mais sincera de amizade, que me pode ser dada. Eu sou tão odiado!

O homem que falou acercou-se então da mulher e levantou-lhe o véu.

— Minha senhora, exclamou Coqueiro; eu lhe agradeço muito a sua compaixão. Hei de ensinar a meus filhos a repetirem o seu nome.

— E não será muito difícil que eles o decorem; é a Sra. D. Chiquinha, filha de Francisco Benedito.

O efeito dramático produzido por estas palavras confundiu profundamente no primeiro lance ao inclemente recém-chegado. Esperava talvez ver o fazendeiro recuar espavorido diante da mulher, cujo nome e feições recordavam-lhe as vítimas que a maioria do povo julgava terem sido por ele barbaramente sacrificadas.

Os movimentos do sentenciado contrastaram, porém, com a expectativa do desumano preparador desta cena, tanto mais cruel quanto era já irremediável a perdição de um ator.

Estendendo os braços por entre a grade e buscando abraçar a moça que se esquivava, disse Motta Coqueiro:

Pobre Chiquinha, eu imagino o golpe que feriu-te o coração; pai, mãe, irmãos, todos os que eram mais caros a tua alma. Podes bem avaliar o que são as grandes desgraças; e ter piedade da minha sorte. Também a mim, Chiquinha, roubam-me os que mais estimo; a diferença é que para você há a piedade geral, e para mim o ódio ou o desprezo.

— Sr. Coqueiro, exclamou o recém-chegado, que tinha conseguido já dissipar a primeira impressão; eu nunca pensei que tivesse de assistir a semelhante esforço de dissimulação; quem tem o coração tão frio podia assassinar o mundo inteiro.

A nobreza do fazendeiro tornou-o invulnerável ao insulto venenoso, que lhe era dirigido pelo brutal visitante; a consciência abroquelou-se-lhe com a dignidade, e o desgraçado respondeu resignadamente.

— Era, pois, mais uma tortura que me haviam preparado. Viram, porém, que eu não tremi; tão grande é a frieza do meu coração.

Cambaleando e soluçando o fazendeiro retirou-se para o fundo da prisão, deixando por algum tempo imóveis os indignos que conspiravam contra a sua paciência.

Despeitado pelo malogro do seu plano, o cruel visitante convidou aos seus companheiros para saírem, e só quando fora, ouvindo os soluços mal contidos de Chiquinha, teve coragem de falar:

— Malvado, mil vezes malvado; mil vidas que lhe fossem tiradas não desafrontariam a sociedade. É uma fera.

— Não diga, não diga, seu doutor; ninguém viu as mortes, exclamou Chiquinha, e eu não posso acreditar.

— Generoso coração, disse o doutor; como devia ser honrado O seu infeliz pai para educar uma filha tão piedosa!

Após o grupo saiu o Sr. Seberg, que, só na volta, pôde conhecer uma das pessoas que dele faziam parte.

A aflição do nobre espírito de Seberg crescia à medida que se passavam as horas; como que um remorso esmagador, insopitável, polvo invisível que lhe aplicava sobre o coração as suas insaciáveis ventosas, ia-lhe aos poucos haurindo a vida.

— É impossível, dizia ele alta noite, passeando de um lado para outro da sala de jantar da casa em que morava; é impossível; se houvesse a isenção de ânimo exigida pela lei não ter-se-ia dado semelhante escândalo. Meu Deus, meu Deus, fazei com que se elucide a verdade.

Mais tarde acrescentou ainda:

— Oh como fui cruel, meu Deus! aqueles infelizes são inocentes.

No dia seguinte, pela manhã, Seberg saiu para despedir-se de Motta Coqueiro que devia partir para a corte.

Com grande admiração de todos foi ele visto na praia, meditativo e com os olhos rasos de lágrimas, acompanhando o bote, em que Motta Coqueiro e seu escravo se dirigiam para bordo do vapor ancorado ao longe.

— É um homem incompreensível este Sr. Seberg, diziam, condenou Motta Coqueiro, e no entanto chora agora talvez ter tido coragem de proceder assim.

Quando o bote sumiu-se; quando já não podia acompanhar com a vista o infeliz condenado, Seberg seguindo vagarosamente pela pitoresca rua de Macaé, que descerra as janelas da sua casaria olhando para a vastidão do mar; entrou finalmente numa farmácia e perguntou pelo seu proprietário.

Um homem de atraentes feições, agradável timbre de voz; saiu de um gabinete lateral e estendendo a mão a Seberg disse-lhe jovialmente.

— Por Deus, Sr. Seberg; tanta cerimônia fez-me pensar que procurava-me um desconhecido.

— Não me admiro que assim pensasse, respondeu Seberg, eu sou o primeiro a desconhecer-me. Preciso falar-lhe muito a sós.

O Sr. Apolinário Pacheco, substituto de juiz municipal de Macaé, e que era a pessoa que falava a Seberg, apontou para o gabinete.

— Aqui podemos estar à vontade; o meu caixeiro tem a particularidade de não ouvir o que eu quero que ele não ouça, e além disso ficamos retirados.

Sentaram-se um em frente do outro tendo de permeio uma pequena mesa redonda, e Seberg, apoiando sobre a mesa os cotovelos, movimento que foi logo seguido pelo Sr. Apolinário, disse com solene gravidade.

— Venho confiar à sua honra a solução de uma séria questão de consciência, para a qual invoco também os seus serviços de magistrado.

— Oh! Sr. Seberg, pode contar desde já com a minha dedicação, e ouso prometê-la porque sei com quem falo.

— Ontem, como sabe, foi o julgamento de Motta Coqueiro e do preto Domingos, e eu fiz parte do conselho que os condenou.

— Pobre homem! fui eu quem sustentou a sua pronúncia e entretanto faço hoje a seu respeito juízo bem diverso do que então fazia.

— Queira ouvir-me, e reflita sobre o que vou contar-lhe. Ontem depois de recolhido o conselho de jurados à sala secreta e efetuada a votação dos quesitos acerca de Motta Coqueiro, percebi que não havia no conselho aquela imparcialidade que era de esperar em assunto de tão grande alcance.

Passando-se a votar o primeiro quesito relativo ao preto Domingos, certifiquei-me do meu juízo, e, ainda mais, fui obrigado a assistir a um grande escândalo.

Procedendo-se à contagem das cédulas o secretário do conselho contou treze, e como era natural reclamei, e pedi verificação. Nova contagem do secretário chegou ao mesmo número. Pedi então que se procedesse a nova votação e fui acompanhado por mais cinco jurados, porém o presidente entendeu melhor proceder por si mesmo a contagem e cousa singular apareceram apenas doze cédulas.

Lidos os votos encontram-se sete cédulas reconhecendo o crime e cinco apenas negando-o.

Com grande pasmo certifiquei-me de que os cincos jurados tinham negado o crime, e eu com eles.

— Mas isto é uma iniqüidade; é preciso arrancar a máscara a esse homem que tão baixamente abusou da sua posição.

— Eu não quero fazer juízos temerários, porém, entendo que este fato deve ser já verificado, para descanso da consciência de todos.

— Mas não há dúvida meu amigo; havia com efeito treze cédulas e uma delas que dizia não foi escamoteada pelo presidente, que depositou na urna duas cédulas afirmando o crime. Oh! havemos de sabê-lo, eu lho juro; o Sr. invocou a minha honra de magistrado, eu comprometo-a.

O Sr. Seberg saiu revelando no semblante o alívio intimo que experimentava, e o Sr. Apólinário sentando-se logo à escrivaninha oficiou ao juiz de direito, narrando a comunicação que acabava de lhe ser feita.

Infelizmente a questão, que parecia fácil de ser dirimida, morreu abafada nas pastas do juízo municipal.

Uma grave enfermidade obrigou o digno substituto a p assar a vara a outro magistrado, e este, oficiado pela autoridade superior para continuar nas pesquisas a respeito, discutiu o assunto e deu-o por esgotado, sem inquérito.

Na tarde do dia em que Seberg deu o honroso passo a favor de Domingos, foram condenados também à morte Faustino Pereira da Silva e Florentino, e todos os réus enviados para as prisões da capital.

Usando do recurso ordinário que lhes restava, o tribunal da relação não se dignou atendê-los, negando-se a conhecer das apelações por não ser caso delas.

Este despacho está também na apelação do réu Domingos, em que foram reconhecidas circunstâncias agravantes por número de votos superior ao que confirmava o crime!

A desilusão do fazendeiro tinha chegado ao auge; não lhe era mais permitido uma única esperança, porque sabia bem que o poder moderador não atenderia à sua súplica.

Acresce que para agravar ainda mais o suplício moral dos condenados o processo seguia com dolorosa morosidade, e só após dois anos de espera veio o golpe final.

Domingos, intimado a fazer petição de graça, não a fez no prazo de oito dias conforme a lei, e portanto estava irremediavelmente condenado.

Pobre escravo! como poderia ele compreender, ouvindo a intimação do escrivão, que uma demora custar-lhe-ia a vida?

No dia 23 de junho de 1855, o cortejo fúnebre da justiça recreava a expectação geral da cidade de Macaé.

Um dos réus do bárbaro assassinato da família de Francisco Benedito ia subir à forca.

A vitima chorava e caminhava quase arrastada pelo carrasco e a população comentava desapiedadamente este horror da morte.

— Olha o negro, dizia-se; pensava que o dinheiro do senhor havia de livrá-lo, e por isso não chorou quando matou a pobre família. Agora é que lhe correm as lágrimas.

— Sabes? ouvi ainda há pouco e de pessoa muito séria uma cousa que está impressionando-me.

— Então conta já essa novidade.

— Dizem que o Domingos ao sair da cadeia disse para o padre que, se ele não é inocente, a corda não rebentará, mas se ele é inocente a corda há de arrebentar.

Este boato circulou, cresceu e dominou logo todos os espectadores e na praça do Rossio, onde se erguia a forca, os lugares eram disputados com tanto interesse que muitas vezes houve emprego de violência.

Chegou a desejada hora da execução. A ansiedade popular era febril e todos intimamente receavam assistir ao milagre profetizado pelo escravo.

A irmandade da Misericórdia colocou-se sob a forca em posição de ir em auxílio do condenado, caso fosse protegido pela fortuna, e o carrasco ao Som do credo, rezado pela multidão, subiu ao seu posto.

A escada foi logo retirada, o desventurado ficou suspenso pelo baraço, mas o seu corpo, impelido pelo carrasco, pouco tempo oscilou e foi logo cair no solo.

A confusão foi imensa, todos corriam, impeliam-se, encontroavam-se freneticamente:

— Está salvo, está salvo, este era inocente.

A aglomeração não permitia que todos se pudessem aproximar do sentenciado, e dentro em pouco tempo a desconsolação pintava-se em todos os semblantes.

Falou-se a princípio em segredo, e com imensa precaução; em seguida as vozes foram elevando-se, elevando-se e ouviam-se em todos os grupos discussões calorosas.

— É muito boa, dizia o Sr. Luís de Sousa, caiu morto e muito bem morto.

— Não está má a capa; todos nós vimos a corda arrebentar. O pobre Domingos! bem dizia ele que era inocente.

— Arrebentasse, ou não arrebentasse, a verdade é que ele caiu já morto.

— Ora valha-0 Deus, Sr. Luís de Sousa, mais de cem pessoas estão prontas a jurar que Domingos caiu vivo, e que o carrasco pôs-lhe terra à boca para asfixiá-lo.

— É falso.

— Não é tal, exclamou um novo interlocutor; eu vi com esses dois olhos que a terra há de comer. Barbaridade sem nome!

Nada, porém, é mais fácil do que asserenar a indignação do povo, o eterno leviano que aplaude ou insulta, vitoria ou calunia conforme os boatos e as intrigas, que o impressionam.

Através da versão da seva asfixiação de Domingos pela ferocidade do carrasco, surgiu uma evasiva.

— Então o que queriam que fizessem com um celerado como o assassino que morreu; que perdoassem e surtisse efeito a maquinação do senhor?

— Quais histórias! Domingos profetizou o acontecimento.

— Eu também profetizava se tivesse um senhor que tivesse dinheiro e amigos na Misericórdia, que é donde vêm as cordas para os enforcados. Com dinheiro e amigos tudo se arranja: até milagres.

O povo julgou razoável esta explicação, e quando se retirou da praça levava mais satisfação do que pesar.

O cadáver de Domingos foi entregue à polícia para ser sepultado, e os autos passados no mesmo dia ao Dr. Velho da Silva, juiz municipal, que os fez conclusos no dia cinco de julho ao juiz de direito.

A sociedade começava a indenizar a sua dívida com a família de Francisco Benedito.

A cova aberta para o justiçado Domingos tinha dimensões para quatro cadáveres, e conservava-se hiante à espera de ser aterrada com destroços humanos.

A justiça, um mês depois da execução do escravo, meteu mãos ao resto da obra da desafronta pública e os três outros réus foram notificados da sua morte próxima.

Para Florentino e Faustino esse golpe nada teve de descomunal; havia longos meses que, afazendo-se à atrocidade do seu destino, esperavam todos os dias ouvir o ranger das portas do calabouço e logo depois a intimação para seguirem até o lugar em que deviam ser supliciados.

Florentino, perdido no dédalo de conjeturas limitadas a que podia chegar o seu raciocínio pouco esclarecido, acabava por fundir em lágrimas o seu desespero e, sem consolar-se, calava-se e ficava silencioso a contemplar a perspectiva do seu fadário.

Faustino concretizava no coração revoltado as exalações da sua indignação, e rompendo bruscamente o silêncio, extenuava-se em cobrir de baldões a terra e de blasfêmias o céu.

Para o desventurado fazendeiro o futuro era mais ameaçador e o presente mais cheio de torturas. O presente representava-lhe o abandono em que vegetava, sugando a existência das angústias e do desconsolo, como a planta enfezada a seiva de um terreno maninho; no futuro antolhava-se-lhe o abandono três vezes mais cruel em que ficaria a sua família.

Quando, em uma tranqüila manhã de agosto, foi-lhe dada a notícia de que embarcaria brevemente para Macaé, a fim de submeter-se à pena que lhe fora imposta pelo júri, o desventurado sentiu fraquear-lhe a coragem que até então mantivera-lhe o sigilo sobre o nome do suposto culpado do morticínio.

Se se pode traçar paralelo a semelhante sofrimento, era como o do Cristo diante do cálix de amargura na tremenda noite do Horto.

Ambos, porém, acabaram pela resignação, e tiveram a serenidade heróica de encarar, caminhar e subir ao patíbulo, dando de esmola à atroz perseguição o perdão sincero dos seus espíritos calmos.

Para desafogo do seu tormento Motta Coqueiro escreveu à sua família, noticiando-lhe o horroroso desfecho da sua vida de probidade e de respeito aos seus semelhantes. Depois de escrever correram-lhe as tardas lágrimas que deslizam das consciências imaculadas e deixou-se avassalar pela horripilante catadura do túmulo.

Igual serenidade não foi, porém, partilhada pelo dedicado enteado, para quem a iniqüidade da sentença era um grito de alarma aos justos sentimentos.

Demais, vira nos escuros horizontes de sua família uma esperança consoladora. Como fecunda nebulosa apareceu nas trevas do seu viver uma petição das senhoras campistas a favor do sentenciado, e era de esperar que o poder moderador atendesse a tão espontânea manifestação popular.

De repente a miragem da salvação despenhou-se e atufou-se no lodo da enxovia, em que a justiça prendia para enlamear o infeliz sentenciado, e em vez da esperança apareceu como um espectro a crua realidade.

O coletor abriu trêmulo de comoção a carta que lhe era dirigida por seu padrasto, cuja letra fora trocada por uns sinais difíceis de serem entendidos.

Leu-a a primeira vez e não convenceu-se de que tinha-a lido; releu-a, portanto, mas desta vez em presença de sua mãe.

"Tudo está acabado; não há mais possibilidade de fugir às mãos do carrasco; as minhas súplicas como que afeiam ainda mais a acusação que me fizeram, e tornam mais inexoráveis os meus juizes.
Dize a tua mãe que se resigne â sorte que me foi prescrita e console-se; aos meus filhos repete-lhes que, na hora em que não havia mais uma esperança de salvação para si, o seu pai dizia sempre que matavam-no por um crime que não cometeu. Para impedir-lhes a suspeita, pondera-lhes que não é fácil mentir-se diante da morte.
Nunca, nunca digas-lhes a parte involuntária que tua mãe teve na minha perdição e no destroço daquela família. A minha desgraça deve santificar este pedido.
Quero igualmente que me façam uma derradeira vontade: desde o dia quinze de agosto até o fim do mês mandem sempre celebrar missas por minha alma; que seja ao menos permitido ao sentenciado pensar na paz além-túmulo.
Adeus, meu bom amigo; abençoa por mim os meus infelizes filhos e abraça a tua mãe; adeus, até à eternidade!"

A Sra. D. Maria, a quem os desgostos tinham depauperado extraordinariamente, ouviu imóvel a leitura compungente e fatal; a dor resignada, que de contínuo a trucidava, como que lhe havia anestesiado o coração e ela parecia já insensível a novos golpes.

Entendendo mal o estado de sua mãe, o coletor perguntou-lhe, machucando entre as mãos o papel:

— E a senhora o que diz a isto?

— O que hei de dizer, meu filho: se a minha voz não tem forças para desviar o golpe que nos deve ferir?

— Senhora, senhora, esta resposta é uma infâmia.

— Meu Deus, soluçou a aflita esposa, não quis eu por tantas vezes correr até os tribunais para acusar-me, e não fui contida por ti mesmo, meu filho?

— Mas então havia a esperança de fazer reconhecer a inocência de seu marido; hoje não, hoje é mister que evite a sua injusta execução.

— Devo, pois, entregar a minha cabeça ao braço do carrasco...

Um ai repassado de aflição embargou a voz â pobre senhora, que, levando as mãos à fronte, baqueou sem sentidos.

— Covarde, covarde mulher! gritou o filho alucinado; tenho vergonha de ser teu filho. Queres evitar a morte à custa da morte de um inocente; não, não, eu não o consentirei!

E o homem, que levava a honradez até a sufocação dos mais santos afetos, saiu correndo, como se temesse que a sua permanência junto de sua mãe inibisse-o de proceder conforme lho aconselhava o seu caráter.

A família sobressaltada pelo baque e ainda mais pela carreira inesperada, afluiu toda para o gabinete em que o coletor conversara com sua mãe, e encontrou aí a Sra. D. Maria estendida no assoalho.

Vendo que apesar dos seus esforços a senhora conservava-se lívida e desacordada, os desamparados filhos apressaram-se em mandar comunicar o acontecimento ao Dr..... um dos amigos de seu pai que lhe tinha guardado mais lealdade.

Acordando-se porém, de chofre, a doente encheu de espanto a quantos a cercavam.

— Meus filhos, soluçou ela, fiquem aqui bem perto de sua mãe; não consintam que me levem daqui, eu não quero morrer; sou mãe, não quero morrer!

Mal proferira estas palavras desgrenhando violentamente os cabelos embranquecidos pelo sofrimento, a desvairada senhora levantou-se de um pulo, rindo prolongadamente uma gargalhada insana.

Acercou-se então da maior das suas filhas e disse no meio da gargalhada contristadora.

— Vamos, vamos todos; é preciso que vamos todos.

O pranto filial recebeu esse convite do desvario com a profunda tristeza de corações, que se julgavam já órfãos de todo.

A mãe alucinada pegou então dos braços das duas filhas e caminhou para a porta principal da casa, repetindo o convite medonho:

— Vamos, vamos depressa!

Ao transpor o limiar a Sra. D. Maria foi embargada pelo Dr. que entrava. Vendo a transfiguração do semblante da esposa do seu amigo, perguntou-lhe sobressaltado:

— Qual é a nova desgraça, minha senhora? — tenha confiança em Deus.

— Vamos, vamos depressa, repetiu automaticamente a desvairada.

— Para onde quer ir, minha senhora!

— Para onde? gargalhou a infeliz, para onde? Não sabe então que eu devo ir para a forca, não sabe que eu sou a assassina; não ouviu meu filho dizer?

— Oh! santo Deus, tende piedade destas crianças que não fizeram mal a ninguém, exclamou o Dr.

É fácil imaginar-se a tristeza desse quadro, e a dificuldade do Dr. em conter a alucinação da enferma. Afinal triunfou a piedade do amigo e a Sra.

D. Maria foi recolhida ao seu quarto em que jazeu sobre o leito durante muitos meses.

O coletor, presa de igual desvario, tinha montado a cavalo e galopava pela estrada que se dirigia a Macaé.

Já havia chegado para Motta Coqueiro o declinar repentino da vida, e talvez na mesma hora em que a sua família era vítima de tanto martírio, ele punha pé na cidade que se regozijava com a sua condenação.

Foi esperado por um amigo, que, sem afrontar claramente a animosidade, que lhe resultaria das manifestações amistosas para com o sentenciado, todavia não evitava-a a ponto de sacrificar os deveres da amizade.

Seberg tinha pago caro a facilidade com que, homem de boa fé, dera ouvidos à infamante acusação feita ao fazendeiro.

A leitura da carta, que o Sr. Martins mostrou na primeira sessão do júri ao seu impertinente contendor, a cena da prisão, cujo fim só mais tarde veio a saber, a resignação evangélica de Motta Coqueiro, tudo, enfim, provava-lhe que tinha condenado à morte um inocente, e o seu caráter profundamente ferido exigia-lhe a mais inteira dedicação ao sentenciado.

Argüia-se diante dê todos os seus amigos; e trucidava continuamente a própria consciência, conservando-se ao lado de Motta Coqueiro, ouvindo-lhe os soluços, e vendo o crescimento gradativo do seu desespero à medida que se aproximava o dia da execução.

Na véspera do derradeiro dia da existência do fazendeiro, Seberg ao sair da cadeia encontrou-se com uma das autoridades macaenses, notoriamente infensas ao que ia morrer.

— Amanhã efetuar-se-á a demorada execução dos assassinos, ou haverá ainda adiamento? perguntou o famoso inimigo.

— Creio que será amanhã mesmo, respondeu Seberg tristemente.

— O seu voto contra aquele malvado, Sr. Seberg, é uma das maiores provas da fortaleza do seu caráter.

— Penso justamente ao contrário; creio que é a maior prova de fraqueza e cegueira que tenho dado em minha vida.

— Bondade sua, Sr. Seberg; era impossível que semelhante celerado não acabasse às mãos do carrasco. Felizmente nem o diabo o poderá salvar agora.

Seberg não respondeu, caminhou direito à sua casa, e voltou logo à cadeia.

Não pode, porém, falar ao amigo, que recebia do sacerdote as consolações da religião.

Esperou, passeando maquinalmente de um para outro lado do corredor da cadeia.

Quando o sacerdote retirou-se, Seberg aproximou-se da grade e disse para a vítima que soluçava:

— Meu amigo, não se submeta à injustiça dos homens e à malvadeza da lei, não se submeta.

— Mas o que hei de eu fazer para evitar.

Houve um momento de silêncio, quebrado depois por Seberg, que, fuzilando nos olhos as flamívomas agonias do remorso, segredou a Motta Coqueiro, cujas mãos segurava fortemente:

— Suicidar-se! Eu condenei-o à morte; venho agora ensinar-lhe o meio de efetuar por si mesmo a sentença. Mate-se, mate-se; não consinta que os seus inimigos, que chegaram a iludir até os seus melhores amigos, triunfem nesta causa iníqua.

Motta Coqueiro ficou só, perplexo, a recordar o conselho de Seberg.

Olhou em torno de si; não havia uma arma, um meio de realizar o suicídio; nem ao menos podia enforcar-se porque as sentinelas à vista passeavam de continuo diante da grade e vinham freqüentemente espiá-lo.

Da parede da enxovia como um pungente escárnio ao luxo pendia um pedaço de espelho. O fazendeiro caminhou até ele, e recuou espavorido gritando angustiosamente:

— Meu Deus, meu Deus; é horrível esperar assim pela morte!

Voltando depois ao mesmo lugar agarrou do pedaço de espelho, cravou-o no pulso e rasgou um profundo e amplo golpe.

Foi porém surpreendido e impedido de terminar o seu intento.

A noite veio em seguida adiar por algumas horas o eterno descanso da vítima. Dir-se-ia que o tempo colaborava na obra atrocíssima da sociedade.

Durante toda a noite Motta Coqueiro repetiu sempre ao sacerdote do Crucificado:

— Vou morrer inocente!

Mas o ministro da religião do Mártir imolado às iras farisaicas não cria na pureza da vitima, e insistia em pedir-lhe a verdade em nome da condenação eterna. Só no dia seguinte, quando o préstito entrava no templo, quando a alva do condenado infamava um nobre caráter, abriram-se os olhos do sacerdote.

É que neste momento um desconhecido tentou revelar um segredo relativo ao padecente; e no mesmo instante um olhar deste impediu a revelação.

Ninguém sabia quem era este homem; diziam apenas que era um cavaleiro que tinha vindo das bandas de Campos.

De feito, o desconhecido tinha chegado desta cidade, e, se tivesse podido falar, ouvir-se-ia um filho denunciar à sua mãe como involuntária mandante do bárbaro assassinato.

Mas a grandeza d'alma do esposo fez malograr o ato de heroísmo, e daí pouco um negro instrumento da sociedade desafrontava-a, assassinando juridicamente a Manuel da Motta Coqueiro.

Nesta hora os sacerdotes campistas levantavam as Hóstias consagradas, oferecendo ao seu Deus o incruento sacrifício em favor da alma do condenado.

E as Hóstias erguidas no espaço, enquanto pendia do baraço o cadáver do justiçado, traziam ao pensamento daqueles que tinham certeza da inocência da vítima um quadro de consolação infinita.

E que se lhes afigurava verem na região da paz infinita o Mártir Deus abrir os braços, e santificar com o seu olhar a execução do mártir das intrigas dê uns bandidos, da cólera de um selvagem, e da cegueira de uma população.

A sociedade estava desafrontada!

Para as consciências dos magistrados e do povo era verdade inconcussa, ponto de dogma a culpabilidade Motta Coqueiro e dos seus companheiros de destino.

Quem ousasse negar semelhante axioma correria o risco de ver-se apedrejado e apupado por uma chusma de retóricos, que zelavam com a mesma solicitude as vítimas e os supostos algozes porque tiravam dessa correlação muitos tropos de efeito, e muitos lances de estilo admiráveis.

O povo crédulo tratava de continuar por lendas supersticiosas o engano fatal e a cegueira pertinaz que o levara a cometer uma infamante injustiça contra um homem que na medida de suas forças fora sempre seu devotado servidor.

Pouco antes da complicação dos acontecimentos que tiveram por epílogo a tristeza, o isolamento e a mancha do patíbulo, Motta Coqueiro começara a edificar um grande prédio à margem do rio Ururaí.

O edifício, abandonado em meio da construção, semelhava a uma grande ossada de pé no meio da mata.

O local era misterioso e tristonho. Uma velha ponte, quase desmantelada, ficava-lhe ao lado, e o rio de águas verde-negras espumava-lhe sem ruído às plantas.

Por noites de luar a sombra do prédio vinha oscilar silenciosamente na face da correnteza, e quando o céu era sem lua, ou quando soprava mais forte o vento, via-se um vulto surgir imenso da escuridão, ou ouviam-se crebros sons que lembravam um coro de gemidos.

Ninguém, portanto, aventurava-se a passar por ali em horas de silêncio e repouso; ninguém, porque era preciso ânimo inquebrantável para assistir ao espetáculo que todas as noites se representava naquele teatro escuro e não concorrido.

Ouvia-se um gemido agudo, horripilante de produzir calafrios; em seguida um fantasma, cuja altura entestava com a cumeeira do prédio, surgia como um jorro das trevas subterrâneas.

Como a sombra dos telhados pela superfície das paredes, subia sem apoiar-se, até ao teto do edifício, e aí abrindo os braços descomunais tomava a atitude de um blasfemo ou de um precito apostrofando o céu.

Neste momento três outros fantasmas apareciam inopinadamente ao seu lado, e todos prorrompiam em gemidos e soluços assombradores.

Quando as quatro larvas se congregavam, como se as folhas, se as gotas de orvalho, se as espumas do rio se convertessem repentinamente em fogos-fátuos, via-se uma aluvião destes ondular, reunir-se, desagregar-se, afundir-se, e alevantar-se enchendo a mata da claridade ominosa do seu luzir.

Após a inundação dos fogos-fátuos um clarão vermelho, como um ferro ao sair da forja, flamejava na escuridade, e os quatro fantasmas, acompanhados pelos fogaréus de baça claridade, seguiam pelo cimo da floresta até perderam-se no horizonte.

Eram as almas condenadas dos justiçados, que penavam misteriosamente na terra o seu crime sem nome.

Enquanto a superstição arraigava desta sorte a animadversão pública não já para Motta Coqueiro, mas para a sua memória, os seus inimigos e o verdadeiro assassino da família do agregado viviam tranqüilamente.

Balbina e Carolina, cujos depoimentos serviram de base à condenação do fazendeiro, foram libertas pela generosidade popular, que não podia consentir em que os dois instrumentos tão úteis ao serviço da justiça fossem traiçoeiramente quebrados pela vingança dos parentes do ex-senhor das duas pretas.

Balbina podia sorrir tranqüilamente; queria apenas vingar-se e conseguiu também a liberdade.

Sebastião Pereira, o Viana da venda, Licério, Lúcio Ribeiro e as demais testemunhas e atores da dolorosa tragédia desfiavam materialmente os anos na apatia de consciência que é a maior felicidade da vida.

Só um homem dos que tinham entrado no entrecho e desenlace da tragédia havia desaparecido. Era Manuel João, a testemunha que talvez mais acusou e caluniou o desgraçado fazendeiro.

Ninguém sabia novas dele e também ninguém as procurava.

Onze anos tinham passado indiferentemente sobre a cova dos justiçados e sobre as dores da família de Motta Coqueiro, que herdara à pobreza de. envolta com a difamação do nome do seu chefe.

Onze anos chorados continuamente, por uma esposa, que se condenava como culpada da perda de seu marido; onze anos repassados de vergonha para os filhos, que se viram obrigados até à repudiação do apelido paterno, serviam apenas para agravar dia por dia a situação da mísera consorte e ainda mais a dos lastimáveis descendentes do fazendeiro.

Corria, portanto, o ano de 1866, undécimo primeiro da desafronta de Macaé e Campos.

Um caboclo de raça, homem de estatura heróica, de compleição robusta, apareceu na vila de Itabapoana, pequeno centro povoado das fronteiras da província do Rio de Janeiro.

Apesar das maneiras humildes e submissas, o recém-chegado não atraiu nenhumas simpatias no lugar, antes para a antipatia geral concorriam poderosamente as feições do caboclo.

O seu rosto pentagonal, de pomas carnudas e salientes, os beiços grossos, o nariz chato, e sobretudo os seus olhos que não se atreviam nunca a encarar, e só obliquavam uns olhares furtivos e maus, esse conjunto fisionômico induzia a população a guardar certa reserva para o espontâneo imigrante.

Para explicar a repulsão que instintivamente sentia, a população dizia dissimulando os seus sentimentos.

— Nada de amizades com caboclos; são muito desconfiados; nunca se sabe quando estão pelos pés ou pelas mãos, e foi um dia... Tem-se visto muita cousa.

Uma circunstância atenuou em breve tempo a indisposição geral contra o recém-chegado; é que em sua companhia andava um rapaz, que além da submissão natural da sua índole, iluminava o semblante com as irradiações de uma consciência limpa.

Herculano, o velho caboclo, desde muito que tinha em seu filho Marcolino a apresentação, que o recomendava às povoações onde estadiava, por isso mesmo o velho caboclo estremecia o moço trabalhador.

Itabapoana foi o lugar escolhido por Herculano para dar estabilidade à sua vida até então nômada.

Como ao caminheiro da legenda cristã, havia palavras, nomes, que faziam com que Herculano tratasse imediatamente de retirar-se do lugar em que eles fossem proferidos, resultassem-lhe embora da mudança grandes prejuízos pecuniários.

Essas mudanças rápidas e bruscas explicavam-se por uma frase:

— Todo o caboclo é cismático, em dando para uma cousa é como o burro quando empaca. O melhor é deixá-lo.

Itabapoana, já bastante afastada da localidade, de cujo nome soava mal aos ouvidos de Herculano, agradou extraordinariamente ao inconstante trabalhador.

Ai deviam correr os últimos dias de sua vida sem ambições e, por isso mesmo, talvez sem mágoas.

Oficial de ferreiro, conciliava o trabalho com a liberdade de ação, ora malhava aqui, ora limava acolá, e o pequeno salário era por ele recebido com a alegria de quem satisfaz facilmente a sua sobriedade.

O independente viver do velho, e por seu lado, o amor do trabalho e bom caráter do filho, acabaram por dissipar a antipatia, e até mesmo transformá-la de alguma forma em boa vontade para com ambos.

Dez anos decorreram assim, dez anos tranqüilos, felizes e poetizados pela dedicação filial e pelo reconhecimento paterno.

Ao lusco-fusco de um dia dos meados de 1876, um preto velho, magro e roto, bateu à porta do casebre em que, fora da vila, residia Herculano.

A hospedagem é uma lei inviolável para o indígena; a porta foi aberta imediatamente.

O preto e Herculano estremeceram involuntariamente ao fitarem-se, e entretanto não se conheciam. Era a repulsão inata da inocência e do crime.

Trocadas as primeiras saudações, o preto pediu simplesmente a Herculano lhe obsequiasse com uma brasa para acender o cigarro.

— É quase noite, camarada, ponderou o caboclo; pouse aqui e saia de manhã.

— Não posso, respondeu o preto; Fidélis não pode ter descanso, resmungou o desventurado.

Quando o preto desapareceu, Herculano que ficara à soleira da porta e acompanhava-o com os olhos, exclamou sinceramente comovido:

— É um deles; adivinha-me o coração que é um deles! Ainda sofrem, e sofrerão sempre.

Longo tempo o caboclo permaneceu numa atitude desoladora; em seguida, porém, sacudiu os ombros, levantou-se e entrou para o casebre.

Mas a tranqüilidade habitual trocara-se-lhe em agitação; e em breve, não podendo acalmar-se, saiu para distrair-se.

Quando voltou ao casebre deitou-se para não mais levantar-se.

A varíola fez-se instrumento da justificação de um nobre caráter.

Desde que sentiu que não poderia salvar-se, ao sacudir um dos penosos delírios, Herculano chamou para junto de seu leito o entristecido Marcolino.

— Tenho uma grande confissão a fazer-te, meu filho; disse o enfermo.

— Estou pronto para ouvi-la e guardá-la até a minha morte.

— Não; não é um segredo que eu quero confiar; é ao contrário um segredo da minha vida que desejo que tu espalhes por toda a parte apenas eu morra. Juras-me que farás esta vontade a teu pai?

— Bem sabe que não sei desobedecer-lhe.

— Deixa-me um instante ligar as minhas lembranças!

Estas palavras já foram pronunciadas com acento que traía a perturbação mental do moribundo. Só depois de meia hora de espera foi proferida a primeira palavra do tremendo segredo:

— Meu filho, há vinte e quatro anos apareceram cortadas a foice, esfaqueadas e estranguladas todas as pessoas de uma família. O assassino de toda essa gente fui eu!...

— Meu pai, meu pai; isto é pesadelo seu, não diga tal, interrompeu-lhe o filho perturbado.

— Pesadelo julgaram talvez os que eu matei ser a noite tremenda da minha vingança. Não poupei nem os velhos nem as crianças; depois lancei fogo a casa, mas a chuva do céu não quis que a labareda, que é pura, se manchasse no sangue daquela raça.

— Meu pai, tenha piedade dos que morreram.

— Morreram pela mão de um homem, e mataram pela mão de um outro. Foi simplesmente uma paga. Ouve!

A fraca e sussurrante voz do moribundo começou então a narrar a maneira por que tinha assaltado a casa das pessoas da quais se confessava assassino e a maneira pela qual efetuara a carnificina.

Marcolino, perturbado e ao mesmo tempo relutando dar crédito ao que ouvia, perguntou ao narrador:

— E onde fez meu pai estas mortes?

— Em Macabu, respondeu o moribundo.

— E qual era o nome do chefe da família que meu pai matou?

— Francisco Benedito, sorriu o moribundo.

— Mas então meu pai foi também do número dos que foram pagos pelo Motta Coqueiro?!

Sentando-se violentamente no leito, o moribundo, como se quisesse fulminar com o olhar ao aflito Marcolino, tentou bradar, e apenas disse baixinho:

— Teu pai nunca matou por ofício, matou a raça do seu inimigo por vingança.

— Mas isto não pode ser verdade.

— É; juro na hora em que vou morrer; hora em que não se mente; Motta Coqueiro nem me conhecia, nem suspeitava que naquela noite devia sumir-se da terra a malvada raça de Francisco Benedito.

— E vosmecê consentiu que ele morresse; porque não confessou, e não defendeu o inocente?

— Ninguém viria em mim senão um instrumento de Coqueiro, e morreríamos os dois, e a verdade não seria sabida.

— Oh! Deus de Misericórdia!

— Escuta, escuta; já te disse, fui eu quem matou o miserável. Devia-lhe...

— O que, qual era essa dívida?

— A desonra de minha família.

Em vão Marcolino tentou arrancar o resto da confissão; o moribundo tinha perdido a voz.

O filho desvairado perguntou ainda uma vez ao moribundo, se era ele de feito o bárbaro assassino de tantos infelizes. O velho forcejando por abaixar as pálpebras, levou dificultosamente uma das mãos ao peito em sinal de afirmação.

Passados alguns minutos, Herculano era cadáver, e seu filho, obedecendo à ordem que dele recebera, declarava diante de testemunhas que seu pai fora o assassino de Francisco Benedito e sua família. Juntava que Motta Coqueiro nem ao menos tinha conhecido Herculano!

O povo de Itabapoana murmurou acerca da confissão de Herculano, tão baixo, quanto alto clamaram campistas e macaenses contra Motta Coqueiro. E ainda mais, depois de vinte e cinco anos de opróbrio sobre uma família mártir, há corações tão miseráveis que ousam continuar a infamar a memória da vitima da cegueira jurídica, mesmo depois da declaração terminante de um moribundo.

Homens perdidos que são estes! São mais torpes do que os assassinos, porque buscam justificá-los envilecendo inocentes; mas nem semelhantes cabeças eu quisera ver na mão dos carrascos.