Anexo:Imprimir/Alma Cabocla

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Índice[editar]

Minha Terra[editar]

Moites de rosas[editar]

Flocos de espuma[editar]

Sertanejas[editar]

Minha terra... Ai, com que abalo,
Com que sincera emoção,
Eu, dando rédea ao cavalo,
Margeio este fundo valo,
— Caminho do meu torrão!

Tudo, no ar, festa e brilho!
E é com a alma a vibrar,
Que eu corto as roças de milho,
Por este sinuoso trilho
Que à minha terra vai dar.

Ninhos... flores... que tesouro!
Que alegria vegetal!
À luz do sol, quente e louro,
Com seus penachos cor de ouro,
— Como é lindo o milharal!

Abelhas, asas espertas,
Num revoejo zumbidor,
poisam trêfegas, incertas,
Pelas corolas abertas
Das parasitas em flor...

Na mata, de quando em quando,
Soa o trilar dos nambus.
Os pintassilgos, em bando,
As frontes sonorizando,
Gorjeiam em plena luz!

E eu sigo... Vou enlevado
Nesta poesia sem fim.
Bem sinto, de lado a lado,
Que um trecho do meu passado
Em tudo ri para mim!

Quem há, aí, que compreenda
Minha brusca, alta emoção,
Ao ver, ao longe, a fazenda,
Com sua chata vivenda,
Surgir no azul do espigão?

Aqui, nesta boa roça,
São todos amigos meus.
Por isso, a cada choça,
Toda gente se alvoroça
Para vir dizer-me adeus.

É o Quincas! É o Zé Colaço!
O Juca Elias! Nhô João!
Todos eles, quando eu passo,
Num longo, num rude abraço,
Apertam-me ao coração!

E aquele? Céus! Nhô Claudino!
O olhar em pranto ele traz...
É um velho, meigo e franzino,
Que outrora me viu menino,
E que hoje me vê rapaz...

Chego... Que festa infinita!
Como eles me querem bem!
Até a pobre da nhá Rita,
Com seu vestido de chita,
Corre a abraçar-me também!

Dentro, sem mais demora,
Traz-me a crioula um café.
Ai! É a mesma sala de outrora,
Com a mesma Nossa Senhora
Ao lado de São José!

Aqui, em meio a isto tudo,
Eu - que ironia cruel! -
Tenho o desejo sanhudo
De espedaçar o canudo
Com a carta de bacharel,

E, na doçura que encerra
Esta simpleza daqui,
Viver de novo, na serra,
Entre as gentes desta terra,
A vida que eu já vivi...

Ao meu querido Laerte

Seis horas... Salto do leito.
Que céu azul! Que bom ar!
Ai, como eu sinto no peito,
Moço, vivo, satisfeito,
O coração a cantar!

No meu quarto, alegre e claro,
Há rosas e girassóis.
Eu, com enlevo, reparo
No mínimo do seu preparo,
Na alvura dos seus lençóis.

Que doce encanto, e que graça,
Nesta simpleza aldeã,
Têm, sobre os vãos da vidraça,
Leves cortinas de cassa,
Bailando ao sol da manhã!

E da florida janela
Que eu abro de par em par,
— Verde painel, larga tela,
Da cor mais viva e mais bela,
Desdobra-se ao meu olhar!

A manhã, que é fresca e branda,
A rir, gloriosa e feliz,
Doira a casa veneranda,
Com sua quieta varanda
Cheirosa de bogaris...

Um renque de altos coqueiros
Circunda o velho pomar;
Toscos, enormes tabuleiros,
Ficam em frente os terreiros,
Com grãos em coco a secar.

Num quadro, curvo e sozinho,
Um pobre negro, o Bié,
A passo, devagarinho,
Com seu rumoroso ancinho,
Lá vai, rodando o café...

Depois - a máquina, a tulha,
O alpendre, o farto paiol:
Ah, como a roça se orgulha
De ver subir a fagulha
Que lança a máquina ao sol!

Branca, entre tufos, a escola,
Na estrada logo se vê:
Aí, nessa casinhola,
A filha de nhá Carola
Vive a ensinar o a b c.

Fulgem, na estrada tranqüila,
Casinhas brancas de cal:
É a colônia que cintila,
Graciosa como uma vila,
Risonha como um pombal.

Ao longe, o pasto, a cancela,
— Um boi deitado no chão:
Paisagem rude e singela,
Daria fina aquarela
De puro estilo aldeão.

E além, para lá da ponte,
Ao lado do matagal,
Por sobre as lombas do monte,
Por todo o imenso horizonte,
— Alastra-se o cafezal!

O olhar, tonto, se extasia
Na cena rústica e chá;
E a gente sente a poesia.
Sente a radiosa alegria
De tão soberba manhã!

Absorto no panorama
Que assim contemplo, de pé,
Eis que uma velha mucama,
Surgindo à porta, me chama:
"Nhonhô, tá pronto o café...

Saio a passear. .. Claro e quente,
O sol na altura sorri.
Eu sigo, de alma contente,
Saudando esta boa gente
Dos sítios onde nasci!

Lá vou, por entre este povo,
Com tanta ingênua emoção,
Que eu, sem querer, me comovo,
Revendo agora, de novo,
Nhô Lau, seu Juca, o Bastião...



Aquele... Nossa Senhora!...
— Aquele é o seu Nicanor:
O mesmo, tão curvo agora,
Que foi, nos tempos de outrora,
O meu grande professor!

É um velho... Um republicano
Desde o tempo que lá vai!
Vive a falar no Floriano,
Dizendo que é veterano
Da guerra do Paraguai...



E este?... O Mendonça afamado,
O célebre caçador!
Traz a lapeana de lado,
E um perdigueiro malhado
Que salta no carreador.

Rude, feroz, barba intonsa,
Com a sua desfaçatez,
A todos narra o Mendonça
Terríveis caçadas de onça,
— Caçadas que nunca fez.



Lá está na foice, roçando,
O velho Jeca Morais:
Caboclo bom, gênio brando,
Apenas, de quando em quando,
Bebe algum trago demais.



No dia em que se endominga,
Vai ao povoado passear;
E à volta, cheirando à pinga,
Discute, provoca, xinga,
Querendo à força brigar!



Junto, o Nicola persiste
Em consertar um moirão;
Não sei se no mundo existe
Outro violeiro mais triste
Que esse infeliz mocetão.

Louca paixão, louca e imensa,
Sempre em angústias o traz:
É que ele, o poeta, só pensa
Na filha do Quim Proença,
Que gosta de outro rapaz.

Quando o luar desenrola,
No espaço, o místico alvor,
Sonhando um sonho, o Nicola
Põe-se a chorar na viola
As mágoas do seu amor...



Guiando os bois do seu carro,
Que ringe num alto som,
Nhô João, na estrada de Barro,
Lá vai, pitando um cigarro,
Cheiroso de fumo bom.

Com seu enorme trabuco,
Calça xadrez, pé no chão,
Na venda do Zé Macuco,
Sentado à mesa do truco,
— Que noites passa nhô João!



Ao longe, num largo trote,
Com elegâncias de peão,
— Bombacha, espora e chicote -
Passa na estrada o Mingote,
Montado num alazão.

Moço dos mais arrogantes,
De claro olhar, claro e azul,
Conta as paixões delirantes
Que teve em terras distantes,
Ao vir com tropas do Sul...



Eu sigo... Festivamente,
O sol na altura sorri;
Assim, risonho e contente,
Revejo toda esta gente
Dos sítios onde eu nasci...

Como um caboclo bem rude,
Eu vivo aqui, nesta paz,
Recuperando a saúde,
Que eu esbanjei, quanto pude,
Nas tonteiras de rapaz.

Mal brilha o primeiro raio
Da aurora rubra e louçã,
Eu monto um fogoso baio,
E alegre, e lépido, saio
Pelo esplendor da manhã.

Lorde, o meu bravo cachorro,
Vem pela estrada a saltar:
E a várzea, e os pastos, e o morro,
Tudo, a galope, eu percorro,
Numa alegria sem par.

Do mato, cerrado e umbroso,
Vêm cheiros de manac;as;
Num pau-d'alho, alto e frondoso,
Vai um concerto furioso
De bem-te-vis e sabiás.

Vespas, cor de ouro brunido,
Lentejouladas de luz,
Fazem, com surdo zumbido,
Num tronco já carcomido,
O escasso mel dos enxus.

Fulguram, pelos caminhos,
Gotas de luz, como sóis;
Ruflos, canções, burburinhos,
Noivado em todos os ninhos,
Por toda a relva, aranhóis.

E em tudo quanto eu diviso,
Há tal brilho tal clarão,
Como se, do paraíso,
Deus acendesse um sorriso
Em cada ervinha do chão.

Volto... Os caboclos, no eito,
Vão desbastando os juás.
Eu venho tão satisfeito,
Como se houvesse em meu peito
— Um baile de tangarás!

Apeio. E então vivo e moço,
No claro terno de brim,
Vou eu, com grande alvoroço,
Sentar-me à mesa do almoço,
Que espera apenas por mim.

Risonha, a fumaça voa
Em densos, cálidos véus:
É o lombo, é a fava, é a leitoa,
— Toda a cópia, farta e boa,
Dos nossos ricos pitéus!

Depois, ao longo do dia,
Ferve, requeima o verão.
E há o pêssego, a melancia,
A fruta nova e sadia
Colhida em plena estação.

À noite, o luar, que fulgura,
Por tudo estende o seu véu.
Brilham estrelas na altura.
Uma infinita doçura
Penetra os campos e o céu.

Nessa calma, enquanto rola
A lua pela amplidão,
Subitamente se evola
O som duma grafonola,
Quebrando a paz do sertão.

Num timbre gasto e confuso,
Pelo silêncio rural,
Ecoa a voz do Caruso,
Velhas canções em desuso,
E fados de Portugal...

Nisto, o relógio badala:
Dez horas. Quê? Já é tarde assim?
Toca a dormir! Fechem a sala!
A casa inteira se cala,
Tomba um silêncio sem fim

Cheiro acre, de mangerona,
Lá fora embalsama o ar;
Tudo se aquieta. Ressona...
Eis que uma tarda sanfona
Passa na estrada, a chorar.

"Bom dia! Sempre bonita?"
— É assim que eu vou, de manhã,
Saudar a linda Chiquita,
Que, toda em frios, tirita
No seu vestido de lã.

Maneiras brandas e amenas,
Olhos de negro fulgor,
Chiquita, a flor das morenas,
Com seus quinze anos apenas,
É um mimo de graça e amor.

De estranho tédio ferida
No seu colégio francês,
Quisera, langue e abatida,
Mudar um pouco de vida,
Passar nos campos um mês.

E em festa e risos, agora,
Nos ares bons do sertão,
Chiquita se revigora,
E alegra-se, e viça, e cora,
Como uma rosa em botão.

Mal surge, fresca e orvalhada,
No céu azul, a manhã,
Saímos nós pela estrada,
Com alma leve, e dourada
Pela alegria mais sã.

Que graça!... Ela tudo admira:
O campo, as roças, os bois.
Às vezes passa um caipira,
Que, com espanto, nos mira,
E fica a rir de nós dois!

Em casa, o dia inteiro, ela
Faz mil perguntas pueris.
Ah, como é ingênua e singela!
Conversa. Ri. Tagarela.
É um pássaro feliz!

Sol a pino, a todo transe,
Quer ir saltar no café;
E à volta, sem que descanse,
Começa a ler um romance,
Ou trabalhar num croché

De quando em quando, um espinho
Sangrar o peito me vem.
A tarde inteira, sozinho,
Sentado ao pé do caminho,
Fico a lembrar-me de alguém.

Eis que ela chega, de branco,
Cabelo negro, em bandós;
Festiva, num riso franco,
Ali, no pobre barranco,
Sentamos os dois a sós...

Na tarde azul, merencória,
Dum sossego espiritual,
Chiquita, como uma glória,
Repete-me toda a história
Da vida de colegial.

Então, nesse ermo pacato,
Ela, menina e mulher,
Relembra, fato por fato,
As diversões do internato,
Os ralhos da Notre-Mère...

Fala... E eu, ouvindo a macia
Brandura do seu falar,
Sinto, no olhar que me envia,
A doce melancolia
Do seu nostálgico olhar.

Não há feitiço que prenda
Como o dulçor dessa voz.
Assim, sem que ela o compreenda,
Chiquita é o sol da fazenda,
É a festa de todos nós!

Eia!... O meu baio caminha
Por entre nuvens de pó:
Vou ver a boa vizinha,
Essa adorada velhinha
Que eu quero como uma avó.

Nasceu aqui, e aqui mora,
Neste retiro de paz.
Ah! É uma santa senhora
Que inda me quer, que inda me adora,
Como há vinte anos atrás.

E hoje, que o dia se engala
De tanta luz, tanta cor,
Vim, nhá Carola, abraçá-la,
Ouvir de novo essa fala,
Sentir de novo esse amor!

A casa, tosca e singela,
Já eu avisto daqui:
E a dona amiga, à janela,
Que fundo anseio revela
Por me apertar junto a si!

Por isso, quente e festiva,
Ao ver-me entrar o portal,
Ela, a velhinha afetiva,
Mostrando rubra a gengiva,
— Ri-se num riso jovial!

Salta-me Ioga ao pescoço.
E abraça! E ri! que aranzel!
E nesse ingênuo alvoroço,
Nem olha que eu já sou moço,
Nem vê que eu sou bacharel...

Céus!... É a mesma nhá Carola,
Que, enrugada como está,
No tempo que eu ia à escola,
Enchia a minha sacola
De broinhas de fubá.

E eis o sítio. Por tudo aqui eu leio
Memórias do que deixei.
Eu saio, pois, num passeio,
Rever, com dorido anseio,
As coisas que tanto amei!

Em frente, limpo e varrido
Fica o terreiro de chão:
É aí, depois de colhido,
Depois de seco e batido,
Que se peneira o feijão.

No pasto, o zaino e a ruana
Lá estão... Que amigos fiéis!
Além, à luz meridiana,
Verdes touceiras de cana
Fulgem em verdes quartéis.

Raspas de clara mandioca
Secam ao sol, num tendal;
E range a rude engenhoca,
Que um tardo burro desloca,
Tranqüilo, patriarcal.

Rudeza assim, doce e branda,
Nos sítios hoje nem há!
E é bem de ver, numa banda.
O amplo forno da quitanda,
As assadeiras e a pá...

Os gansos da fazendola
Debicam pelo quintal;
O galo, um fofo mariola,
Ronda as galinhas-d'angola,
Como um sultão oriental.

E o pomar... Ruas inteiras
De altas árvores senis:
São araçás. são mangueiras.
São frondosas laranjeiras.,
Sombreando o asilo feliz.

Camões sonhara Natércia
No canto desse pomar!
Que paz! Que sombras! Que inércia!
Ah, como as limas da Pérsia
Aromatizam este ar!

E eu vou por tudo... E eu vagueio
Por todos estes rincões.
Que delicioso passeio!
Tão bom, tão lindo, tão cheio
De fundas recordações!

O dia inteiro, numa ânsia
Que a palavra não traduz,
Fico a lembrar minha infância,
Que eu inda vejo, a distância,
Banhada de ouro e de luz!

Á tarde, quase à noitinha,
Volto... E ao voltar, triste e só,
Venho abençoando a velhinha,
Essa adorada vizinha
Que eu quero como uma avo.

Lá vem o dia apontando...
Que afã! Já todos de pé!
Ruidosos, tagarelando,
Vão os colonos em bando
Para os talhões de café.

À luz do sol que amanhece,
Por montes, por barrocais,
Por toda a parte esplandece,
Com sua esplêndida messe,
O verde dos cafezais!

Começa o rude trabalho.
Que faina honrada e feliz!
Inda molhados de orvalho,
Flamejam, em cada galho.
Os bagos como rubis.

Trabalham. Que ardor de mouro!
Todos derriçam café.
Parece um rubro tesouro,
Que cai, numa chuva de ouro,
Dos ramos de cada pé.

Ao meio-dia, aos ardores
Do alto sol canicular,
Os rudes trabalhadores,
Ao longo dos carreadores,
Põem-se todos a cantar.

Pela dormência dos ares,
Sob estes céus cor de anil,
Cantam canções populares,
Que lá, dos seus velhos lares,
Trouxeram para o Brasil.

Aqui, um forte italiano,
Queimado ao sol do equador,
Solta aos ventos, belo e ufano,
Num timbre napolitano,
A sua voz de tenor!

Há uma terna singeleza
Nas trovas que um outro diz;
Um rapagão de Veneza
Tem, no seu canto, a tristeza
Das águas do seu país.

E uma sangüínea espanhola,
De grandes olhos fatais,
Em baixa voz cantarola
Uns quebros de barcarola,
Magoados, sentimentais.

Que cantem!. .. Essa cantiga,
Brotada no coração,
Seja a prece que bendiga
A terra que hoje os abriga,
A pátria que lhes dá pão!

Por essas noites de frio,
Batidas de água e tufão,
Num rancho, à beira do rio,
Eu me quedo, horas a fio,
A conversar com nhô João.

É um velho... Rude e trigueiro,
Envolto num ponche azul,
Fumando, a olhar o braseiro,
Começa o antigo tropeiro
Contar-me histórias do Sul.

Ao longe, muito a distância,
Os tempos perdem-se já,
Em que ele, todo arrogância,
Ia de estância em estância,
Buscando tropas por lá.

Na sua besta tordilha
De manchas brancas no pé,
Nhô João, tocando a tropilha,
Cortava muita coxilha
Para chegar em Bagé!

E lá, de tais cercanias,
Ele, viril rapagão,
Puxava, dias e dias,
Pontas de mulas bravias.
Para vender no sertão.

Que linda! Assim que a alvorada
Tingia o céu de listrões,
Já a tropa, a chucra manada,
Trotava ao longo da estrada,
Por entre a grita dos peões:

Eh mula! Vorta! Caminha!
E os ecos vibravam no ar,
Enquanto, lerda e sozinha,
Ia na frente a madrinha
Com seu cincerro a tocar...

Que vida simples e honesta!
Como era bom, no verão,
Ter o descanso da sesta,
No meio duma floresta,
À beira dum ribeirão!

À tarde, quando caía
A sombra crepuscular,
Era de ver a alegria,
Com que a peonada escolhia
Um sítio para acampar.

Então, descendo as bruacas,
Queimados, fulvos de suor,
Sobre improvisas estacas,
Erguiam logo as barracas,
Soltando a tropa em redor...

Ah, nada mais delicioso,
Ah, nada mais doce então,
Do que, na calma do pouso,
Ter um churrasco cheiroso,
E a cuia de chimarrão!

E entre histórias de rodeio,
Contos, gauchadas febris,
Aos poucos, num devaneio,
Sobre os pelegos do arreio,
Dormir um sono feliz...

E o velho, a voz rude e grossa,
Relembra com efusão:
"Que viage... Êta festa - nossa!
— No dia em que Ponta Grossa
Despontava no espigão..."

A história sempre ele acaba,
Pintando, com muita cor,
As feiras de Sorocaba,
Onde encontrara uma "diaba"
Por quem morrera de amor...

Assim, lembrando o passado,
Nhô João, com frio desdém,
Termina desconsolado:
"Hoje tá tudo mudado!
Vem tudas coisa no trem...

E ali, no humilde pardieiro,
Envolto num ponche azul,
Saudoso, olhando o braseiro,
Conta-me o velho tropeiro
Longas histórias do Sul...

A Luis Piza Sob.o

É noite... O santo famoso,
O doce, o meigo São João,
Tivera um dia glorioso,
Dia de festa e de gozo,
Que encheu de estrondo o sertão.

Já cedo, em meio aos clamores,
Aos vivas do poviléu,
Lindo, enramado de flores,
Um mastro de quentes cores,
Subira em triunfo ao céu!

E agora, enquanto, alva e lesta,
Palpita a lua hibernal,
Na fazenda, toda festa,
Referve a alegria honesta
Da noite tradicional.

Dentro, com grande aparato.
Brilha, enfeitado, o salão:
Que há, nessa festa do mato,
Pessoas de fino trato,
Chegadas para o São João...

Destaca-se entre essa gente
A flor do mundo local:
O padre, o juiz, o intendente,
— O próprio doutor Vicente
Que é deputado estadual!

Ante o auditório pasmado,
Que, num enlevo, sorri,
A Isabelinha Machado
Batuta, sobre o teclado,
Uns trechos do Guarani...

Tudo o que toca e assassina,
Recebe imensa ovação;
Todos, quando ela termina,
Põem-se a exclamar: "Que menina!
Dá gosto! Que vocação!"

E ela, entre ingênua e brejeira,
Com ares de se vingar:
"Agora, queira ou não queira,
Seu Saturnino Pereira
Há de também recitar".

Surge. à força, o Saturnino...
Rugem palmas em redor!
É um tipo, esgalgado e fino,
Que sabe, desde menino,
Dizer Castro Alves de cor.

Na sala, muda e tranqüila,
Tombam, com chama, os versos seus;
E ele, o letrado da vila,
Ao som da velha Dalila,
Lá vai: "Foi desgraça meu Deus..."

Após ouvir a estupenda
Flamância do seu falar
No amplo salão da fazenda
Os velhos jogos de prenda
Reclamam o seu lugar.

Começa então a berlinda.
Risos. Cochichos. Zunzum.
— De pé, donairosa e linda,
Pergunta a D. Florinda
Os dotes de cada um:

Por que razão, seu Martinho,
Foi à berlinda a Lelé?
— Porque olha muito ao vizinho";
"Porque é má; porque é um anjinho";
"Porque é vaidosa"; "porque..."

E todo o mundo, à porfia,
Põe farpas na indiscrição...
E enquanto, ingênua e sadia,
Essa campônia alegria
Faz tumultuar o salão.

Lá fora, alegre e gabola,
Num terreiro de café,
Ao rude som da viola,
A caboclada rebola
Num tremendo bate-pé!

A filha do Zé Moreira
É o mimo deste São João;
À luz da rubra fogueira,
Requebra a guapa trigueira
Ao lado do Chico Peão.

Candoca, a noiva do Jango,
Baila num passo taful;
É a flor que, nesse fandango.
Tem lábios cor de morango.
Vestido de chita azul.

No sapateio se nota,
Aos risos dos que lá estão,
Nhô Lau, de esporas e bota,
Dançando junto a nhá Cota,
Viúva do Conceição...

Á voz do pinho que chora,
Por sob a paz do luar,
Frenindo vai, noite afora,
Essa alegria sonora
Da caboclada a bailar!

E do salão, que ainda brilha
Num faiscante esplendor,
Chegam os sons da quadrilha,
Que alguém ao piano dedilha
Com o indomável furor.

E no sarau campesino,
Nessa festa alegre e chã.
Ruge a voz do Saturnino,
Que grita, esgalgado e fino:
"Balancez! Tour! En avant..."

Não há cores, não ha traços,
Que digam quanto eu sofri,
Ao apertar em meus braços,
Com o coração aos pedaços,
As boas gentes daqui!

Que cena... Adeus, Sizenandol
Té a volta, Zé! Chico, adeus!
Então, nhô Juca, até quando?
— E estreito assim todo um bando
De velhos amigos meus!

Chiquita, flor timorata,
Como eu te abraço com dor...
E ela, a menina gaiata,
Singelamente desata
Num pranto acabrunhador.

Fundo pesar se acrisola
No peito dos que ali estão:
Não chore assim, nhá Carola!
Seu choro me desconsola
E punge meu coração!

Ai, fujo dela! E, na fuga,
Eu vejo-a lá, no portal,
Tão velha, com tanta ruga,
Que ainda os olhos enxuga
Numa ponta do avental!

Pela estrada, velha e torta,
Sigo num largo trotar;
E o coração se me corta,
Ao vê-los todos, na porta,
Com um lenço branco a acenar...

E sigo... Adeus, lenço branco!
Adeus, cafeeiros, adeus!
Bem sinto, a cada barranco,
Que eu, sufocado, me arranco
Destes lugares tão meus!

E sigo... Quantos recamos
De claro e verde matiz!
Riem-se as flores nos ramos,
Esvoaçam os gaturamos,
E beijam-se os colibris!

E ai! que tristeza me invade
Nesta sonora manhã!
Com que mordente saudade,
Volto ao horror da cidade,
Ao pó da vida malsã!

Deixar o campo, as charruas,
Todo este encanto rural,
Para entediar-me nas ruas,
Sabendo as vis falcatruas
Que fez o Ministro tal...

Em vez da caça às perdizes,
Da espera junto aos mundéus,
Vir, como outros infelizes,
Tratar no foro com juizes,
E ouvir nas grades os réus!

E eu, detestando isso tudo,
Num desalento cruel,
Tenho o desejo sanhudo
De espedaçar o canudo
Com a carta de bacharel,

E, na doçura que encerra
Esta simpleza daqui,
Viver de novo, na serra,
Entre as gentes desta terra,
A vida que eu já vivi...

Por essas tardes plácidas do campo,
— Tardes azuis de firmamento escampo
Eu vou, través de longos carreadores,
Sentar-me num barranco, ermo e distante,
Sentindo o fresco aroma penetrante
Que vem da madressilva aberta em flores.

Tudo me entrista e punge nestas terras!
Os mesmos cafezais. As mesmas serras.
A mesma casa antiga da fazenda,
Que outrora viu, quando éramos meninos,
Nossos amores, nossos desatinos,
— Toda essa história descorada em lenda!

Quanta saudade! De manhã bem cedo,
Saíamos os dois pelo arvoredo,
De alma contente e exclamações na voz.
Como éramos apenas namorados,
E andássemos, a rir, de braços dados,
Os camponeses riam-se de nós!

Era dezembro. Florescia o milho,
Verde e glorioso como o nosso idílio.
Que lindas roças! Que estação aquela!
Toda a velha fazenda parecia,
Com sua larga e rústica alegria,
Mais cheia de aves, mais ruidosa e bela!

Ainda guardo, intata, na memória,
Aquela ingênua e deliciosa história,
Que foi o meu e o teu primeiro amor.
E ai! que recordação, que duro travo,
Lembrar que eu fui teu rei o teu escravo,
Saber que fui eu teu servo e teu senhor!

E cismo... Cismo... A tarde vai tombando.
De lado a lado, claras, azulando,
Destacam-se as colinas no horizonte.
Tristonha, a várzea na amplidão se perde.
Lá em baixo um bambual sombrio e verde.
Um fio d'água. Uma arruinada ponte.

Assim, ao pôr do sol, triste e sozinho,
Sentado num barranco do caminho,
Sem que ninguém meu coração compreenda,
Olho a mata, olho os campos, olho a estrada
Ouvindo a melancólica toada
Que chora, ao longe, o piano da fazenda...

Foi ao pé do arvoredo,
Sob esta sombra orvalhada,
Que um dia, muito em segredo,
Vim esperá-la na estrada

Mudo, ansioso, palpitante,
Por longo tempo esperei-a,
Cuidando ouvir, todo instante,
Seu leve passo na areia.

Eis que ela, muito assustada,
Surge, trêmula e confusa,
Com fresca rosa encarnada
Florindo as rendas da blusa.

O sol, como um poeta risonho,
Doirava o céu, alto e escampo;
E nós, perdidos num sonho,
Fomos a rir pelo campo.

Que festa pelo caminho!
Que sons! Que luz! Que esplendor!
Gorjeios em cada ninho,
Abelhas em cada flor!

Ela, a correr pelo atalho,
Pisando a verde barranca,
Umedecia de orvalho
A barra da saia branca...

Eu, que a levava de braço,
Todo amor, todo ansiedade,
Sentia-me, passo a passo,
Morrer de felicidade!

Foi uma linda jornada
Por montes e carreadores...
Ai! Cada sombra na estrada.
Ai! Cada moita de flores,

Tudo servia de ensejo,
Para eu, com a alma radiosa,
Colher a rosa de um beijo,
Naquela boca de rosa!

Mas hoje - tudo desfeito...
De tanta ingênua poesia,
Ficou-me apenas no peito
A mágoa que me excrucia

Recordação leve e mansa,
Saudade que eu não arranco
É a deliciosa lembrança
Daquele vestido branco...

Pois nada, ó flor, se assemelha,
Nem tem a frescura e a graça,
Daquela rosa vermelha
Naquela blusa de cassa!

Ao Ademar, irmão e amigo.

Foi pelo tempo alegre da moenda,
Quando, aos quinze anos, tudo nos sorria,
Que nós tecemos, juntos na fazenda,
Toda uma história de infantil poesia.

E sob um pessegueiro, amplo e robusto,
Cheio de frutos e de passarinhos,
Foi que nós ambos, pálidos de susto,
Nos encontramos certa vez, sozinhos.

Tão confusos, tão tímidos ficamos,
Ao vermo-nos juntinhos no pomar,
Que nós, olhando os pêssegos nos ramos,
Nem tínhamos coragem de falar!

Mas de repente - que ventura louca!
Ela sorriu-me, trêmula de pejo,
E eu lhe furtei da pequenina boca,
Um pequenino e delicioso beijo...

Foi desde então que na minhalma eu trouxe,
Como lembrança desse amor fagueiro,
Esse beijinho estaladinho e doce,
Que nós trocamos sob o pessegueiro.

Paixão fugaz... Ventura passageira...
Rosa que não colhemos da roseira,
Mas que esteve, no galho, ao nosso alcance.
Ah! Quanta vez, num desespero mudo,
Eu quedo-me a cismar naquilo tudo,
Que encheu de sol nosso cruel romance!

Bendigo ainda os beijos que maldizes,
Que abriram na minhalma cicatrizes,
Que encheram de ambrosias nossa boca;
Só me consola, nesta dor pungente,
Lembrar que te adorei perdidamente,
Lembrar que me adoraste como louca!

Mudaste muito, eu sei... Mas, com certeza,
Nas horas de saudade e de tristeza,
Em que a alma chora e o coração nos trai,
Hás de pensar em mim de quando em quando,
Com lágrimas nos olhos relembrando
— Toda essa história que tão longe vai!

Vestido claro, sombrinha,
Fitas de cor no chapéu,
Ei-la que vai, pequenininha,
Como uma nuvem do céu.

O colo é branco, de neve.
Os dentes brancos e sãos.
A cinturinha tão breve
Que a gente abarca entre as mãos.

Não sei que cor, que palheta,
Possa, ao de leve, compor
A espiritual silhueta
Desses quinze anos em flor.

Doce, gentil, tentadora,
Fragílimo bibelot,
Lembra uma fina pastora
Das pastorais de Watteau.

Alma em botão, menina e moça,
Lindo primor de biscuit,
É a bonequinha de louça
Mais singular que eu já vi.

Tem ela, como dois tesouros,
Estes caprichos tafuis:
Só gosta de moços louros,
Só ama os olhos azuis.

Lá vai... E some á distância
O encanto do seu perfil.
Mas vai com tanta elegância,
É tão jovial, tão gentil,

Tão pluma, tão borboleta,
Que a gente, sem o supor,
Fica a sonhar na silhueta
Desses quinze anos em flor...

A Hostílio de Sousa Araújo

Eu com saudades, muita vez me lembro,
De quando, nos bons tempos de estudante,
Passei as grandes férias de dezembro,
Numa fazenda amiga, bem distante.

Lá - quem diria? - lá, nesse abandono;
Perdi meu coração nesta cegueira:
Amei, com fúria, a filha dum colono,
Que era a mais bela da colônia inteira.

Eu, rapazola ingênuo e ventoinha,
Que então vivia nas regiões aéreas,
Sonhei fazer da humilde caipirinha
A musa que inspirasse as minhas férias.

E ela, a vaidosa, no ermo da fazenda,
Fina e matreira, com gentil desvelo,
Vestia sempre muita fita e renda,
Botava sempre rosas no cabelo

Para estreitar essa aventura doce,
Tecer com ela um tosco romancinho,
Eu, indo à vila, certa vez lhe trouxe
Um corte de vestido azul-marinho.

Ao receber meu tímido presente,
A moça, olhos no chão, o sangue em lava,
Disse-me apenas, com a voz tremente:
"Que incômodo lhe dei! Não precisa..."

Assim, unidos por tão bela chama,
Vivíamos os dois em mútua estima,
Quando um dia chegou, sem telegrama,
Minha formosa e tentadora prima.

Com seu donaire fino e romanesco,
Veio à procura de melhor saúde,
Beber na serra um leite gordo e fresco,
Haurir no campo a luz dum sol bem rude.

Eis porque, de manhã, nós dois saímos
— Ambos a rir da madrugada nossa! -
Mostrando a todos como um par de primos
Sabe gozar as distrações da roça.

Ela, espantando aquela pobre gente,
Molhando os caros borzeguins no orvalho,
Vinha embuçada, friorentamente,
Num fofo, moderníssimo agasalho.

E a estrada, e os bois e os carros indo e vindo.
E a ponte velha, e os canaviais, e a moenda,
Tudo nós vimos, papagueando e rindo,
Pela rural simpleza da fazenda.

Quando voltamos, pálida e severa,
Com um ar de furor, nada indeciso,
A caipirinha estava à minha espera.
Tinha nos lábios um cruel sorriso.

"É aquela?" perguntou, com frio orgulho,
Mostrando a prima que subia a escada.
E atirando, com raiva, estranho embrulho,
Partiu, correndo, sem dizer mais nada.

Parei... Que é isto? Que pesar tamanho
Fê-la explodir nesse rancor sentido?
Abri, ansioso, aquele embrulho estranho.
— Pus-me a sorrir: o corte de vestido!

Dos lábios que me beijaram,
Dos braços que me abraçaram,
Já não me lembro, nem sei...
São tantas as que me amaram!
São tantas as que eu amei!

Mas tu - que rude contraste!
— Tu, que jamais me beijaste,
Tu, que jamais abracei,
Só tu, nestalma, ficaste,
De todas as que eu amei

Manhã. Sol claro... A olhar pela vidraça,
Enquanto corre o trem, flamante e rubro,
Vou contemplando a vigiliana graça
Desta paisagem matinal de outubro.

Linda aquarela: uma rechã molhada,
Capuavas ralas, fiapos de neblina,
E a cicatriz vermelha duma estrada
Golpeando o dorso verde da colina.

Graves, manchando os ermos da planura,
Pastam, ao longe, sossegadas vacas;
Vai pelo azul, japonizando a altura,
Um revoar gralhante de baitacas.

Por tudo esplende uma alegria clara,
Um sol de festa, um ar de juventude...
E nisto, um silvo: o trem de ferro pára
Numa longínqua estaçãozinha rude.

Abrindo o carro, ali, nessa distância,
— Fundo sertão que eu toscamente pinto,
Surge um casal... É um par todo elegância
Maneiras educadas, ar distinto.

Ela, vinte anos. Loira. Um loiro terno.
Mimo e frescura. Graça e gentileza.
Com seu costume, dum xadrez moderno,
Dava-se uns ares de touriste inglesa.

E tudo nela, esvoaçante e leve,
Tinha feitiços, atrações mordentes:
Desde o recorte da boquinha breve,
Até o veneno dos seus olhos quentes.

Ele, moço e grisalho. Um tipo grave,
Severa palidez, gesto polido,
Com esse aspecto, encantador e suave,
De homem precocemente envelhecido.

E errava nele qualquer coisa, algo
De bem sereno, algo de bem disposto,
Que punha um tom mais fino e mais fidalgo,
Na romântica alvura do seu rosto.

E quando o trem partiu, numa voragem,
Por entre a poeira, e sol, e a estrada infinda
Contou-me um companheiro de viagem
A história desse par... Que história linda!

Ele, rapaz do tom, dos mais mundanos,
Herdeiro duma tia filantropa,
Deixara a Pátria, no verdor dos anos,
Pelas sonhadas tentações da Europa.

E andou, moço e feliz, numa doidice,
Catando sensações de terra em terra.
E invernos de Paris, verões de Nice,
Céus de Madri, nevoeiros de Inglaterra,

Por toda a parte, o coração em fogo,
Ele esbanjara a mocidade ardente!
E em Monte Carlo, muita vez, no jogo,
Gastando como um príncipe do Oriente,

Brilhara nesses antros rosicleres,
Cheios de esnobes, de peitinhos brancos,
Onde, com elegância, entre mulheres,
Perdia sempre alguns montões de francos.

Enfim, cansado e farto, já grisalho,
— Sombra roída pelos desenganos,
Tornou um dia à Pátria, ao verde galho
Onde se abrira a flor dos seus vinte anos.

Trazia nalma, como chaga horrenda,
Um grande mal que urgia de remédio:
E foi buscar, nos ócios da fazenda,
Um bálsamo eficaz para o seu tédio.

E os cafezais, e as espraiadas roças,
Que um sol fecundo alegremente doura;
E o céu tão nosso, e as árvores tão nossas,
E ares de campo, e cheirosos de lavoura,

— Todo esse bucolismo, ingênuo e casto,
Essa poesia dum sabor tão rude,
Tonificou-lhe o espírito já gasto,
Fez-lhe brotar as rosas da saúde!

Ora, naqueles sítios, entre o viço
Daquela terra nova e estonteadora,
Havia, nesses tempos, um feitiço,
Que enfeitiçava tudo: a professora!

Com sua blusa de cambraia e renda,
Mimo e frescura, graça e gentileza,
Era o mais lindo enfeite da fazenda,
A flor mais fresca dessa redondeza.

E ele... Não digo mais! Pois, certamente,
O epílogo da história dá na vista:
Ficara o moço, como toda a gente,
Louco e perdido pela normalista!

E um dia... Céus! Que dia alviçareiro:
— Girândolas, foguetes, mastro erguido,
Baile na tulha, festa no terreiro,
E o velho casarão todo florido!

E em meio aos vivas, ao folgar bulhento
Daquela gente humilde e campesina,
— Um pároco abençoava o casamento
Do fazendeiro e da professorinha...

Assim, naquela rústica paisagem,
Enquanto o trem pela campina voa.
Contou-me um companheiro de viagem
A história desse par... Acharam boa?

Conheço apenas Dona Margarida
Por tê-la visto, acaso, num salão.
Seu negro olhar, cheio de fogo e vida,
Deixava em cada peito uma ferida,
Em cada peito abria uma paixão.

E eu, como os outros, vendo-a tão querida,
Tão moça, tão formosa, tão feliz,
Trouxe comigo, na alma dolorida,
A funda mágoa, Dona Margarida,
De não ter dito o que dizer lhe quis.

(Resposta à carta duma linda bonequinha de luxo)

A prima não adivinha,
Não sabe a viva emoção,
O gosto, a alegria minha,
Ao receber a cartinha
Que recebi da sua mão!

Que festa... Aqui, nesta rima,
Não cabe o orgulho, o prazer,
Com que eu me vi, linda prima,
Lembrado na sua estima,
Querido no seu querer.

Já nem eu sei quantas vezes
A carta li, minha flor...
Que termos tão portugueses!
E que louvores corteses
Aos meus dotes de escritor!

E o fim então, ó tentadora?
Lá está, com um fino elogiar,
A frase envaidecedora:
"Da prima e admiradora,
"Guiomar"...

Quê? Pois você me admira?
Verdade? Não sei... não sei.
Mas olhe que essa mentira
Foi para mim, pobre caipira,
O louro que eu mais prezei!

E agora, após tudo aquilo,
Tudo o que disse você,
Proclamo aqui, alto e tranqüilo:
— Você parece, no estilo,
Madame de Sévigné...

Não julgue, amável priminha,
Que seja retribuição...
Capaz! É justiça minha.
— Justiça à doce cartinha
Que recebi da sua mão!

Verão. Canícula horrenda.
Nenhum rumor. Tudo paz.
Dentro, na ampla vivenda,
Dorme o salão da fazenda
Na meia luz em que jaz...

A cena é típica. Vede:
O piano, um quadro a carvão,
O espelho oval na parede,
E peles de onça no chão.

Com ar vetusto, um ar sério,
Largos divãs, um sofá:
Mobília, estilo do Império,
De negro jacarandá.

Cortinas claras, bem alvas,
Dão certo chiste e frescor;
Um lindo vaso, com malvas,
Verdeja no aparador.

E ali, na penumbra amena,
Queda-se o vulto de alguém.
É moça. Esbelta e morena.
Formosa como ninguém!

Vai nela um tédio, uma quebradeira.
Um não-sei-quê de languidez
Que estranha moça! É fazendeira.
Casou-se há menos de um mês.

E ali, com o talhe ondulante,
Vestido de tafetá,
Ela, a morena elegante,
Quase sorri... Que será?

Sonha... Encostada à janela,
Derrama, absorta, a cismar,
Sobre a fronteira aquarela,
Todo um nostálgico olhar.

Sempre o painel costumeiro!
As mesmas cenas banais:
A estrada, a tulha, o terreiro,
Os montes... os cafezais...

Sonha... E no seu sonho doirado,
Num relembrar, grato e bom,
Põe-se a rever seu passado
De fina moça do tom.

Céus! Que alegrias perenes!
Com que prazer, com que afã,
Ela, na quadra do tênis,
Surgia toda a manhã...

Como era ardente, era franco,
Esse entusiasmo de então:
Todos vestidos de branco,
E de raquette na mão!

E a bola voava... Que graça!
Ele... Oh, que sonho gentil:
Ante os seus olhos perpassa
Uma silhueta... um perfil,

É moço. O todo fidalgo
Romântica palidez.
Jovial, finíssimo, esgalgo.
Loiro como um inglês.

Que bela e curta essa história!
Paixão? Capricho? Sei lá...
Ela, a sutil merencória,
Lembra-se bem... Foi num chá.

Ele, ao dizer o que disse,
Punha veludos na voz...
Ah, quanta ingênua doidice
Não se disseram a sós!

Tarde fugaz, tarde louca,
A desse chá singular.
O que morria na boca
Dizia em chamas o olhar.

Foi lindo. Quase noivado.
Foi todo um trecho de sol.
Ah, os encontros no prado,
Os flirts no futebol.

Depois... Pobre castelo,
Pobres sonhos e ideais!
Aquele amor, claro e belo,
Teve o destino dos mais.

Morreu. Foi breve e fugace.
Despetalou, sem florir,
Como um botão que tombasse
Na tarde que ia se abrir.

E ela evoca o seu desgosto...
Repassa a história infeliz,
Como quem abre, por gosto,
Um talho de cicatriz.

Naquela rude simpleza,
No ermo daquele sertão,
Funda, mordente tristeza,
Confrange-lhe o coração...

Que horror! Que sesta enervante!
E ela, com tédio sem par,
Sobre a aquarela distante,
Deixa os seus olhos vagar.

Olha... E vê, no horizonte,
As mesmas cenas banais:
— O pasto, o córrego, o monte,
Os campos... os cafezais...

Então, no enfaro da roça,
Na angústia do seu cismar,
Uma lágrima, bem grossa,
Despenca do seu olhar...

E linda, o talhe ondulante,
Vestido de tafetá,
Senta-se ao piano. E vibrante,
Põe-se a tocar... Que será?

" Rève d'Amour". Grave triste,
Feito de sonho e de unção,
A alma sonora de Liszt
Enche de sons o salão...

E quanto pode a ingênua brejeirice
Dum coração de moça, encantador:
— A um gesto teu, sem que eu o pressentisse,
Nasceu-me esta canção de sonhador,
Como um botão que por acaso abrisse
Numa roseira que não dá mais flor...

Lembro-me bem dessa vilota rude,
Onde fui, sem gosto e sem saúde,
Buscar um poiso para os meus cansaços.
Que terra triste! Triste e sertaneja:
A escola, a hospedaria, a antiga igreja,
E a capelinha do Senhor dos Passos...

Na esquina, em frente à Câmara, o barbeiro,
Logo depois, num colossal letreiro,
A "Loja Popular" do velho Lopes.
E é bem no largo da Matriz que fica
A sempiterna, a clássica botica,
Com seus reclames de óleos e xaropes...

Ah! Foi aí, nesse ermo de tristeza,
Nessa terreola fúnebre e burguesa,
Tão sem encantos, tão descolorida,
Que eu fui viver, com lágrimas e flores,
No mais cruel amor dos meus amores,
A página melhor da minha vida!

Como era lindo, em maio, nas novenas,
Por essas rezas tristes e serenas,
Cheias de incenso e de orações piedosas,
Ver as crianças da pequena vila,
Duas a duas, trêfegas, em fila,
Virem cantando e carregando rosas!

Eu, toda a tarde, mudo e solitário,
Vinha escutar o místico rosário
Que o povo murmurava aos pés de Cristo:
E um dia vi, na reza, com espanto,
Surgir a deusa de mais lindo encanto
Que neste mundo os olhos meus hão visto!

Em plena igreja, nessa tarde inteira,
Eu pus-me a contemplar a forasteira,
Num doce enlevo, carinhoso e mudo.
E ela também - Jesus! - de quando em quando,
Mandava-me olhar discreto e brando,
Que afoitamente prometia tudo!

Dissera-me o barbeiro da vilota,
Que essa elegante, essa gentil devota,
Que freqüentava assim as ladainhas,
Também quisera, em busca de bons ares,
Passar o mês das férias escolares,
Na mesma terra onde eu passava as minhas.

E ali, na vila, nessa pobre aldeia,
Tão incolor, tão rústica, tão feia,
Povoada de caboclos indigentes,
A forasteira, com seu ar touriste,
Com seu chapéu de plumas, com seu chiste,
Chocava o povo e deslumbrava as gentes!

E eu, que vivia a padecer nesse ermo,
A definhar-me, torturado e enfermo,
Nas nostalgias dessa vila odiosa,
Eu bem sentia, ao ver essa estrangeira,
Que na minhalma, pela vez primeira,
Brotara a flor duma paixão furiosa...

Certa vez... Vá, não cores desse jeito!
Eu era um estudante de direito,
Tu eras uma simples normalista:
Podíamos, portanto, meu tesouro,
Fazer, como fizemos, sem desdouro,
Essa loucura que hoje te contrista.

Com que emoção - recordas? - com que gozo,
Eu vinha te esperar, vibrante e ansioso,
Nessas novenas de plangências cavas.
E como um cavalheiro que se preza,
Timbrava em te levar, depois da reza,
Até ao portão da chácara em que estavas.

Certa vez... Vá, não cores desse jeito!
Era de noite. Arfava-nos o peito.
Ardia em nós um lânguido desejo,
Tomei-te as mãos... Sorriste... E ai, num assomo,
As nossas bocas, sem sabermos como,
Famintamente uniram-se num beijo!

"Vamos?" disseste... E eu disse logo: vamos!
Ia no céu, nos pássaros, nos ramos,
Uma alegria esplêndida e sonora;
E tu, abrindo ao sol, como uma tenda,
Tua sombrinha de custosa renda,
Partimos ambos pela estrada afora...

Eram pastagens largas, eram roças,
Carros de bois, currais, barreadas choças,
E rústicos galpões de pau-a-pique;
Só tu, nessa bucólica simpleza,
Com teu tailleur de casemira inglesa,
Punhas uns tons de mundanismo chic.

E a poeira, e o sol queimante, e a dura estrada,
Nós, papagueando, sem sentirmos nada,
Seguíamos num sonho encantador:
É que a felicidade, como um vinho,
Fazia-nos andar pelo caminho,
Tontos de gozo e bêbedos de amor!

Sinh'Ana é uma velhota quitandeira,
Comadre e amiga desta vila inteira,
Rica nos anos, rija na saúde,
Que vive toscamente ao pé da estrada,
Numa casinha, simples e barreada,
Dum pitoresco delicioso e rude.

Ah! Quanta vez, nessas manhãs vermelhas,
Cheias de aromas, de canções, de abelhas,
Nós dois, numa travessa caminhada,
Não vínhamos ali - que bom passeio! -
Ver a frescura, a paz, o casto asseio,
Da humilde casinhola ao pé da estrada!

E quanta vez também (que ação profana!)
Doirâvamos a toca de Sinh'Ana,
Com beijos e carícias romanescas,
Enquanto a velha, a cândida velhinha,
Voltando ingenuamente da cozinha,
Trazia um prato de broinhas frescas...

ERA costume, à tarde, em frente à Escola,
Por entre os homens graves da terreola,
Bisbilhotar-se sobre a vida alheia.
Nas rodas que tratavam tais assuntos,
Aquela história de passearmos juntos
Era o supremo escândalo da aldeia!

E o chefe, e o juiz de paz, e o boticário,
Teciam o mais negro comentário
Ao nosso ingênuo amor, todo feitiço!
O próprio padre, um santo e velho cura,
Dizia ao ver-nos: "Eis a má leitura!
São livros de Zola que fazem isso..."

Mas nós, como pastores de Virgílio,
Vivendo então num descuidoso idílio.
Sorríamos dos toscos provincianos:
E em plena aldeia, desdenhando apodos...
Passávamos de braço, entre eles todos,
Na glória dos que se amam aos vinte anos!

Um pobre tabaréu, naquelas férias,
Veio fazer-me umas consultas sérias,
Que eu, estudante, ouvi com grande orgulho:
O homem se ajeita, alisa a palha, tosse,
E narra, entre questões de velha posse,
Um caso intrincadíssimo de esbulho.

Ouço-o... Depois, com ar de quem reflete,
Mostro-lhe o Ribas, cito o Lafayette,
Lançando a esmo alguns latins de acaso;
E para consolá-lo, ao ir-se embora,
Deixo tombar esta opinião sonora:
"Vá sem receio... É líquido o seu caso".

E ela, que tudo vira e tudo ouvira,
A crassa ingenuidade do caipira,
A alta prosápia de minhalma inculta,
Ela, morta de rir, num alvoroço,
Lançando-me seus braços ao pescoço,
Pagou-me com dois beijos a consulta!

Foi nesse grande amor, quase noivado,
Que floresceu o sonho mais doirado
Das tuas ambições, dos meus desejos.
Mas ai! Tanta afeição, tantas loucuras,
O idílio que tecemos entre juras,
O poema que sonhamos entre beijos;

Toda essa história ingenuamente bela,
Essa gentil, romântica novela,
Que ainda de saudade se perfuma,
— Tudo isso se desfez num só momento,
Como um rosal onde batesse o vento,
E as rosas despencassem uma a uma!

E eu sei que um dia, no murchar dos anos,
Quando já velha, bem velhinha fores,
Puseres-te a lembrar nossos enganos,
Dirás, com uma lágrima sentida,
Que foram esses cálidos amores,
A página melhor da nossa vida!

Venho a sonhar contigo... E, no meu sonho,
Vendo o arraial bucólico, risonho,
Onde floriu essa paixão feliz. .
Com que saudade, com que gosto amargo,
Relembro a tua casa em frente ao Largo,
Que tu chamavas "Largo da Matriz".

Vejo-te ainda, lá nesse povoado,
Tua cestinha de costura ao lado,
Perdida em sonhos de felicidade.
E o trem, enquanto assim eu cismo, aflito,
Entra, a bufar, com enervante apito,
Pela cidade adentro... Oh, a cidade!

São ruas. Vielas. Bairros proletários.
Rasgando o azul, ao longe, os campanários,
E as chaminés das fábricas e usinas.
Vivos letreiros, no alto, em letras largas.
Aqui - vagões; depósitos de cargas;
Pontes, guindastes, máquinas, cabinas...

Mas eu, no entanto, pensativo e mudo,
Passo por tudo, indiferente a tudo,
Bem longe tendo o espírito daqui;
E vejo apenas - que visão tranqüila! -
Tua longínqua e solitária vila,
Donde, chorando, esta manhã parti...

Dessa ventura que nós dois tecemos,
De tantas afeições, tantos extremos,
Já nada existe, nem saudade vive!
Depois daquele sonho azul-celeste,
Muitos amores sei que já tiveste,
Muitos amores sabes que eu já tive!

Tudo acabado. Mas, ó flor, no entanto,
Por que nós dois estremecemos tanto,
Quando eu te vejo e quando tu me vês?
Por que, quando me vês, quando eu te vejo,
Sacode-nos um cálido desejo
De ainda nos unirmos outra vez?

Não sei... Mas sei que me amas como eu te amo!
Que esta paixão, como uma flor num ramo,
Em nossos corações viceja e cresce:
É que este amor foi um desses amores,
Tão bons, tão loucos, tão abrasadores,
Que a gente, em vida, nunca mais esquece!

És noiva... Em breve há de raiar o dia,
Festivo, azul, vibrante de alegria,
Que te sorri num céu de rosícler.
Irás à igreja. E, num altar formoso,
Branca de anseio, trêmula de gozo,
Verás florir teu sonho de mulher!

Oh! Nessa noite, o baile terminado,
Ao te despedires para o teu noivado,
Sonhando os sonhos que a paixão te diz,
Tu hás de ouvir, na alcova silenciosa,
O tom queixoso duma voz queixosa,
Que te dirá baixinho: Sê feliz!

E, pálida de susto, ao escutá-la,
Hás de reconhecer a minha fala,
Ouvindo a minha voz naquela voz!
E hás de sentir, como jamais sentiste,
O fel que vai naquele verso triste,
A dor que punge aquela frase atroz...

Naquele amor todo feito
De misterioso capricho,
Vivias tu no meu peito,
Como uma santa num nicho.

Dessa ventura, no entanto,
Só restam fundos espinhos:
— Saudades do teu encanto,
Lembrança dos teus carinhos...

Só resta um fino ressabio,
Só resta um vago lampejo,
De que era doce o teu lábio,
De que era quente o teu beijo!

Pobre ilusão que se esfuma
Na cinza dos desenganos:
— Tu foste um floco de espuma
No mar azul dos vinte anos...

A Queimada! A Queimada! é uma fornalha!
A irara pula, a cascavel chocalha.
CASTRO ALVES.

Agôsto. Pôr de sol. Paisagem silenciosa.
A natureza inteira, aos poucos, adormece.
Triste e vago é o planger da hora vesperal.
De súbito, na mata, eleva-se, medrosa,
Crespa serpe de fogo. Aumenta. Engrossa. Cresce.
E expande-se, num surto, ao seco matagal!

É a queimada! a queimada! É a rubra carbonária
Que vem, de archote em punho, em meio à ramaria,
Desencadeando a fúria o ímpeto das chamas.
Conflagra. Ruge. Sobe aos troncos. E, incendiária,
Vomita fogo, enraiva as flamas, desvaria,
Os caules despenhando e calcinando as ramas!

Nada resiste, nada, ao seu furor sanhudo:
Perobas, guarantãs, jequitibás, paus-d'alho,
Belos troncos anciãos, troncos patriarcais,
Um século a ensombrar o mato verde e rudo,
Um século a florir os seus robustos galhos,
Onde cantaram sempre os ninhos e os casais,
Tudo flameja e rue ao vórtice nefando.
Os animais, fugindo, escondem-se trementes;
Voam, tontas no espaço, as aves com terror;
Um mar de cinza ulula, crepitando;
Estalam os cipós; chocalham as serpentes;
E estouram os bambus rachando com fragor.

O ar sufoca e pesa; a fumarada voa.
E a sublime beleza horrível da queimada,
Atinge o áureo esplendor de sua destruição.
Chispam fagulhas no ar; o grande incêndio atroa;
E a escampada planície esplende, iluminada,
Ao sombrio fulgor do vermelho clarão!

Ah! Quem pudesse ouvir, nessa soturna festa,
O que diria, ardendo, a alma da floresta!
Ah! Quem pudesse ouvir os íntimos gemidos,
As lágrimas, a dor, os uivos, os lamentos
Que soltaria então o coração das matas,
A sentir e a escutar os baques e estampidos
Das árvores, ruindo em tombos violentos,
Na voragem feroz das chamas escarlatas!

E a noite, a clara noite, ouvindo, constelada,
O ribeirão passar, águas negras, aos roncos.
Povoando a solidão de incompreendido choro,
Como para abençoar a sinistra queimada,
Por sobre aqueles mil cadáveres de troncos,
— Desenrolava o manto azul broslado de ouro....



Um ano após, dourando os campos, florescia
Bela roça de milho aos trilos dos casais.
Do seio bom da terra a vida ressurgia,
Na verde floração dos tenros milharais.

Cantando, novamente, os pássaros voavam;
Ao vento, que zunia, as hastes se encurvavam;
E dos ramos da flor, da clara luz do dia,
Dos cantos dos sabiás e das espigas louras,
Remontavam ao céu os ritmos de alegria
Que sobem das lavouras!



A Morte é assim como a queimada.
Brandindo a sua negra espada,
Esmigalha, passando, os altos potentados,
Os príncipes e reis, os sábios e oradores,
Os generais de gênio, os poetas aureolados,
— Fortes cerebrações de grandes pensadores.

Mas, por sobre os troféus que vai deixando a Morte,
Sobre os destroços bons da geração que passa,
Sobre o que cobre e tampa a brancura das lousas,
Uma outra geração ressurge inda mais forte,
Renasce, com mais vida, outra mais bela raça,
Na eterna evolução dos homens e das coisas...

Ao Dr. Reinaldo Porchat, mestre e amigo.

Soturna, verde-negra, impenetrável, dorme,
Ao sol canicular do estio, a mata bruta:
Sertão cerrado e umbroso, em cujo seio enorme,
Braceja emaranhada, a galharia hirsuta.

Dorme, escutando, ao longe, a voz do grande rio,
Que vem, turbilhonando as águas, campo fora,
Romper-lhe o matagal selvático e sombrio,
Desbravar-lhe o sertão, desvirginar-lhe a flora.

Rolando, estrepitando as ondas tributárias,
Que em seu calcáreo leito os rios vão depor,
Vem, como um rei, por entre as brenhas solitárias,
Rasgar-lhes a rudez do coração em flor.

Vem, todo azul, a uivar como um revolto oceano,
Povoar a solidão dos velhos troncos rudos,
O verde tremedal desse trevoso arcano,
Com o áspero fragor dos vagalhões sanhudos.

É o Tietê!... Rebramando as turbulentas vagas,
Que de tão longe vêm, para tão longe vão,
Bufando em gorgolões, espumarando as fragas,
Penetra o labirinto escuso do sertão.

Penetra a inextricada e virgem natureza,
Com o clamor feroz duma tribo selvagem.
Espelhando, no azul da vasta correnteza,
O tosco resplendor da rústica paisagem!

Retumba-lhe o bramar dos gritos acachoantes
Nessa imensa amplidão de matas brasileiras;
Dum lado e doutro lado, as árvores gigantes
Ensombram-lhe o pendor das velhas ribanceiras.

Pelos troncos ançiãos, pelos cipós da altura,
Viçam, bizarramente, agrestes parasitas;
E a densa mataria, esplêndida, fulgura
Num rubro carnaval de flores esquisitas.

E à natureza, casta e forte, de nateiros,
De tredos socavãos, de florestas estranhas,
Guardando, entesourada em séculos inteiros,
Uma fecundidade ardente nas entranhas.

Assim, por entre a terra exuberante e boa,
Por entre a seiva bruta, o rio que esbraveja,
Léguas e léguas vai surdo fragor que atroa,
Roncando pelo chão da brenha sertaneja.

A voz se lhe redobra; engrossa-lhe o alarido;
Ruge, furiosamente, a correnteza brava;
E eis que rebenta, uivando, o horríssono estampido.
O férvido acachoar do rouco "Avanhandava".

Já de longe se escuta, hediondo, rebramando
Pelos fundos desvios recônditos da mata,
Reboando com furor, colérico estrondando,
O estrupido brutal dessa brutal cascata!

A túrbida caudal, a ecoar de penha em penha.
Rola à beira do abismo as águas ululantes:
Remoinha, e ferve, e estoira, e toda se despenha
Num fervilhoso alvor de espumas borbulhantes!

Tal como um bandeirante, ousado na conquista,
O Tietê, encrespando as vagas cor de prata,
Largo, a rugir su'alma heróica de paulista,
Embrenha-se outra vez no coração da mata...

De gentes simples e caboclos rudos,
Na minha terra existe uma florida
E plácida fazenda,
Onde eu, longe de livros e de estudos,
Esbanjo as férias sem pensar na vida,
Em junho, na moenda.

O terreiro é fechado a pau-a-pique,
Com porteiras de cedro em cada lado,
Que ringem roucamente;
Ficam num canto o engenho e o alambique,
Onde fazem açúcar e melado,
Garapa e aguardente.

Funda lagoa sob a ponte dorme,
Em que nadam uns patos de alvas plumas,
E bebem juritis;
E muito além se estende um campo enorme
Um campo de juás e de guaxumas,
Crivado de cupis.

O ribeirão que tomba dum penedo,
Faz tocar o volante da engrenagem
Que as canas remoinha;
E mal desponta o sol de manhã cedo,
Começa a faina imensa da moagem
Que acaba de tardinha.

Carros de bois, atravessando as roças,
Trazendo canas aos montões ceifadas,
Passam chiar-chiando;
E vêm do canavial as vozes grossas
Que entoam sem cessar os camaradas,
Entre ioçás foiçando!

Bem cedo, na fornalha, até ao sol posto,
Flameja uma possante labareda,
Crepitam largas achas;
E o engenho todo exala um cheiro a mosto
— Um forte cheiro de garapa azeda
Que vem das amplas tachas.

E quando, à tarde, por detrás do atalho,
O sol expira entre golfões sangrentos
De sangue que espadana,
— Cessa o rumor da faina e do trabalho:
E os ásperos caboclos poeirentos
Recolhem-se à choupana.

Tudo se aquieta... Frêmulas, se engastam
As estrelas na abóbada infinita.
Hora tristonha e suave.
Os bois ruminam. Os cavalos pastam
Pára a moenda, o fogo não crepita,
Reina um silêncio grave.

Somente o Zé Venãncio, na soleira
Da sua choça esburacada e antiga,
Magoado, se consola,
Trovando a ingratidão duma roceira,
Cantando uma tristíssima cantiga,
Ao som de sua viola...

Eu, nestes campos, longes do tumulto,
Amo essas tristes árvores que crescem
Por sobre as margens dum arroio oculto,
Ouvindo as águas que cantando descem...

Gosto de vê-las à tardinha, envoItas
Numa suave e mística tristeza,
Olhando os rolos das espumas soltas
Que encrespam o lençol da correnteza.

Tristonhas plantas! Árvores sombrias!
Como se as torturasse estranha mágoa,
E as compungissem fundas nostalgias,
— Procuram consolar-se à beira d'água.

Oh! vós que amais os campos, nunca as vistes?
— Desconsoladas, trêmulas, chorosas,
Pelas barrancas dos arroios tristes
Debruçam as ramagens silenciosas...

Que importa o sol, que importa a chuva e o vento,
Se sempre as mesmas ânsias as consomem?
Talvez - quem sabe? - nesse desalento,
Palpite e sofra o coração dum homem!

Talvez nessas folhagens, nesses ramos,
Torturados de angústia e desconforto,
— Sem que a vejamos, sem que a compreendamos,
Soluce a alma de algum poeta morto.

Ai, não turbeis a misteriosa mágoa,
A imensa nostalgia em que se abismam;
Deixai-as em silêncio, à beira d'água,
Essas tristonhas árvores que cismam...

A Alfredo Egídio de S. Aranha.

Aqui, na solidão destes pinheiros graves,
Eu venho, muita vez, a sós, pela noitinha,
Ouvir a natureza incompreendida, a minha
Amada, a minha amiga, a minha confidente!

Ouvir a natureza incompreendida, a minha
Essa apagada voz de surdinas estranhas,
Que vem dos ribeirões, que sobe das montanhas,
E acorda, dentro dalma, em nossa soledade,
Um místico pungir de mágoa e de saudade.

Ah! cada árvore tem uma íntima linguagem!
Ah! cada árvore tem, fremindo na ramagem,
Uma alma como nós, que nós não vislumbramos,
Mas que vibra no ar e palpita nos ramos...

Já repararam quando as brisas vespertinas
Sopram, como, a gemer, sofrem as casuarinas?
E choram os chorões? soluçam os pinheiros?
Murmuram os ipês e cantam os coqueiros
Quando o vento, a passar, balouça-os palma a palma?
Homens, reparai bem que as árvores têm alma!
Reparai que à noitinha, à luz do lusco-fusco,
O ruído, os sons da vida, estacam-se de brusco,
E cada árvore fica imersa num cismar
De quem compreende e sente a dor crepuscular...

Oh! vós que respirais a poeira da cidade,
Vós nunca entendereis a doce suavidade,
A música dorida, a estranha nostalgia,
Que vem da solidão quando desmaia o dia!

Vós nunca entendereis essa rude grandeza.
Essa infinita paz, essa imensa tristeza,
Que sai do coração da mata bruta, quando
Resplandecem no céu os astros palpitando...
É preciso viver longe da turba humana,
Longe do mundo vão, longe da vida insana,
Para sentir, amar, ouvir essa tristeza,
Que exala, ao pôr do sol, a maga natureza!

Ai! Quanta vez, eu fico a sós, pela noitinha,
Ouvindo a natureza, a inspiradora minha!
Ouvindo o pinheiral com seu gemer infindo,
Ouvindo a noite, ouvindo as árvores, ouvindo
Os ventos, e na volta exígua duma curva,
Ouvindo o ribeirão de correnteza turva,
Que vai, soturno, uivando o estrépito das águas,
Consigo rebramando incompreendidas mágoas...

E assim, no ermo da tarde, escutando, enlevado,
Esse vago murmúrio, esse rumor sagrado,
Eu quedo-me a cismar num êxtase de crente,
Como se eu estivesse a ouvir, confusamente,
A própria voz de Deus ecoar na solidão,
Povoar a natureza e encher meu coração...

Um bebê... Ai, que ventura
Do nosso peito extravasa!
Há um mês que é a nossa loucura,
Que é a jóia da nossa casa...

Mimo não há, nem enleio
Que mais alinde as vivendas,
Do que um bercinho cheio
De laçarotes e rendas.

E nesse ninho de luxo,
Com dois berloques e um guiso,
Ver um petiz, bem gorducho,
Que nos envia um sorriso...

Ah! Nada eu sei de mais preço,
Nem nada mais inocente,
Do que um sorriso travesso
Numa boquinha sem dente!

E ao ver-te, entre o fofo arranjo
Do teu bercinho tão doce,
Eu sinto bem que és anjo
Que Deus ao mundo nos trouxe...

E assim, bebê cor de leite,
Com olhos da cor do mar,
Tu és o único enfeite
Do nosso lar!