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Anexo:Imprimir/O Matuto

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Índice

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Meu amigo,

 

Eis o Matuto, promettido ha perto de dois annos, e só agora publicado, por circumstancias que não vem ao nosso caso revelar.

Fica fóra deste livro a carta que escrevi, tendo a vista as objecções de amigos e inimigos á fundação, ou, antes ao reconhecimento de uma litteratura que suponho, sinão formada, em trabalho de formação, e a que denominei—Litteratura do norte.

Nessa carta, além de examinar as objecções, estudo á luz do criterio historico, que me pareceu mais natural e justo, a rebelião da nobreza e posteriormente a dos mercadores em Pernambuco, a qual trouxe a guerra que passou á historia com o nome de—Guerra dos mascates.

Por encurtar tempo e diminuir paginas deixo a carta na gaveta com a continuação, já prompta, da presente historia.

Si me resolver, sahirão a lume os dois escriptos na mesma occasião que, segundo suspeito, não tardará muito.

Isto não é uma promessa.

Não prometto nada, para não me arriscar a faltar, como por vezes me tem acontecido.

Tempo, circumstancias, imprevisto—eis o tudo, ou pelo menos o essencial da vida.

Rio—Maio—78.

F. T.


O MATUTO


Pasmado é uma velha povoação, outr'ora aldeia de indios, duas leguas ao norte de Iguarassú, na estrada de Goyanna. É celebre por seus ferreiros, ou mais especialmente pelas facas de ponta que estes fabricam, as quaes passam pelas melhores de Pernambuco onde têm estendida e tradicional nomeada.

Não ha terra que se não distinga por usança, defeito, virtude ou particularidade local, que vem a ser o seu como traço caracteristico, a sua feição dominante. Quem passa por Tigipió, na estrada de Jaboatão, encontra a cada canto tocadores de viola que vêm alegres, o pe no mato pé no caminho. Dos casebres do Barro o que logo se mostra aos olhos do viandante são mulheres metediças, com as cabeças cobertas com flores, os cabeções arrendados e decotados, os seios quasi de fóra. Costumes dos povoados onde ainda não tiveram grande entrada o trabalho e a instrucção.

Passando-se por Goyanna ouve-se d'aqui uma trompa, d'alli um baixo, adiante um piston, além um tromboni, uma clarineta, uma flauta, um assobio, uma harmonia ou uma melodia qualquer, e não se vê sala nem corredor que não tenha nas paredes uma, duas ou tres ordens de gaiolas com passarinhos cantadores e chilreadores. Ha ahi o instincto musico da Bohemia.

Quem atravessa Pasmado pela primeira vez tem a illusão de que todas as arapongas da mata proxima estão alli a soltar seus estridulos accentos. Mas logo vê homens tisnados batendo com o martello sobre a bigorna, folles assopradores, carvões ardentes e flammejantes. Então a illusão muda. O que parece é que todas as forjas de Vulcano foram transportadas para aquelle immenso laboratorio de instrumentos mais destruidores do que conservadores da vida e do socego alheio.

Neste particular, o de ser largo e opulento mercado de armas malfazejas, talvez Pasmado só possa contar em todo o imperio brazileiro uma rival—a côrte do sobredito imperio, na qual a navalha do capoeira disputa a primazia, em genero, numero e caso, á faca do matuto do norte. A côrte e a provincia neste ponto cortam-se bem. Uma não tem que fallar da outra.

No que Pasmado se parece com todos os velhos povos, é em ter casas esburacadas; entulhos e matos pelo meio das ruas; aqui uma baixa, alli um barreiro, onde, de inverno, coaxam os sapos dia e noite, respondendo á vozeria desentoada dos seus semelhantes que moram nas moitas formadas por dentro dos largos, sem licença nem prohibição da municipalidade.

A rua mais publica e principal da povoação é aquella por onde corre a propria estrada. Perto ficam os olhos-d'agua nativa onde os moradores vão prover-se da de que precisam, quando não aparam, por sua commodidade, como costumam, em potes e gamellas a que cahe das biqueiras da casa durante as chuvas.

O certo é que, ou indo buscal-a nas fontes ou aparando-a na porta da casa, não curtem sede os moradores de Pasmado dias e noites, ainda de verão, como curte a pobreza desta esplendida e orgulhosa cidade—primeira capital da America-do-sul.

Em um rancho ou garapeira que se via algumas dezenas de passos antes da povoação, estavam reunidos, por uma noite de 1706, á roda de um fardo de fazendas varios matutos que voltavam do Recife, onde tinham ido vender algodão. Entre elles havia dois almocreves das proximidades de Goyanna, um por nome Francisco, o outro Victorino.

O rancho não era mais do que o prolongamento da garapeira, com a qual tinha comunicação interior. Era, como são taes pontos, apenas envarado até meia altura e coberto de telhas. De um lado estava a longa mangedoura em que os cavallos dos rancheiros passavam a noite aproveitando, de mistura com alguns pés de capim, cortados de tarde, os talos e retraços que nella tinham deixado os cavallos dos rancheiros na noite anterior. Do outro lado o alpendre mostrava-se inteiramente livre, como convinha, a fim de terem os hospedes espaço para as suas rêdes, que elles armavam de um enchamel para outro, e donde a qualquer hora da noite podiam ver os seus animaes alguns passos de distancia, comendo si havia o que, ou estudando como muitas vezes acontecia. O dono da garapeira, responsavel pela segurança dos animaes, fechava as portas do puchado quando via os rancheiros recolhidos, e só reapparecia ahi de madrugadinha para receber destes a respectiva paga. Muitas vezes, estava elle ainda deitado quando ouvia uma voz que lhe dizia:

— Aqui fica o dinheiro, seu Ignacio.

Era a voz do rancheiro, o qual punha por baixo da porta a quantia devida. Nunca nenhum se ausentou sem ter primeiro cumprido o seu dever, com a proverbial probidade do matuto e do sertanejo do norte.

No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de algodão—eis o em que elle consistia.

Todos tinham os pés nús, e quasi todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portatil onde traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quaes serviam para dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Mettida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha. Da arma só apparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo occulto.

Já era noite, e dentro do rancho lançava crepuscular claridade o candieiro de azeite, que pendia, por uma corda corrediça, de um dos caibros da coberta.

Alguns dos rancheiros estavam com as mangas arregaçadas como si foram prestes para entrar em pugillato de vida e morte.

E de feito não era de outro genero o mister ou a luta que os ajuntara alli, uns de pé, outros inclinados sobre a barriga, todos com as vistas concentradas na superficie do fardo, onde uma taboa se pozera para servir de base a dois braços diferentes que nesse momento se alçaram e logo após se uniram pelas mãos, ficando firmes sobre os cotovellos. Um dos pegadores da queda-de-braço chamava-se Manoel Francisco; o outro era o Victorino. A queda-de-braço era já nesse tempo em grande uso entre os almocreves do norte.

Manoel Francisco era acaboclado, feio, baixo, grosso e reforçado; Victorino procedia de mulata e mameluco, era secco, musculoso e de semblante bem assombrado.

— Sustenta o motivo, Mané Francisco, sinão Victorino te lambe—disse um dos circumstantes, quando viu os braços inimigos se entesarem e ouviu o fardo ranger aos primeiros ensaios das duas forças que se experimentavam e mediam para uma grande luta, posto que dentro de acanhada arena.

— Este braço que estão vendo—respondeu Manoel Francisco—tem botado abaixo emquanto o inimigo esfrega um olho, muito curema rebingudo das ribeiras do Ceará e do Piauhy.

— Agora é que havemos de ver elle para quanto presta, e si tudo isto o que você está dizendo não passa de uma historia; retorquiu Victorino. Quando quiser cahir, diga.

— Si você é homem, mostre agora o seu talento—replicou Manoel Francisco, retesando o braço como quem queria entrar sem detença no momento decisivo.

Pegaram-se definitivamente os dois athletas.

O braço de Manoel Francisco dava dois do de Victorino; mas a resistencia que encontrou neste fez que não passasse nem uma linha da posição em que de principio se collocara. Eram duas pyramides petreas, immoveis, inabalaveis, uma talhada para competir com a outra na rijeza e na resistencia.

A queda-de-braço tem graça justamente quando os lutadores medem forças iguaes. Dá-se então o que é natural de pleitos identicos. Dividem-se as opiniões sobre a probabilidades da victoria. Uns, levando em conta as condições physicas dos combatentes, não hesitam em decretar, para o que lhes parece mais favorecido de tais circumstancias, as honras da peleja; outros, publicam que essas honras hão de caber, não a este mas áquelle contendor, autorizados por precedentes ou por outros muitos elementos de inducção e convicção. Fóra da arena dos pelejadores reaes, forma-se uma arena em que começam de porfiar os assistentes á pugna, discutindo, altercando, apostando cada qual pelo que suppõe ter por si mais probabilidades para o vencimento.

Foi o que se deu no rancho logo depois de se terem collocado defronte um do outro, ficando o fardo de permeio, o Victorino e o Manoel Francisco.

A cabo de alguns minutos, que bastaram a trazer os contendores cobertos de suor pelo esforço despendido, e antes deste pelo brio empenhado no jogo de honra, disse um dos rancheiros:

— Já você está sabendo, Mané Francisco, que o Victorino não é quem você julgava?

— Ora que tem isso? retrucou o que se achava mais proximo do que acabava de fallar. Ha de cahir como os outros; não ha santos que o accudam.

— Deixe-se disso, Renovato, deixe-se disso. Você não vê que ambos elles são dois cabras de talento?

— Sim, é verdade; mas você não dá o desconto. Olhe que Mané Francisco já tinha pegado com Damião e Thomaz, e a todos botou por terra.

— Ele me botou, é verdade—accudio Thomaz despeitado; mas de outra feita talvez não tenha a mesma felicidade. Olhe como o braço já lhe está tremendo, batido por Victorino.

— Aquillo é um peneirado que ele sabe.

— Sustenta o motivo, Mané Francisco—gritou Damião ao que minutos antes o tinha derribado.

— A coisa está feia. O que cahir para a aguardente.

— E o rancho.

— Está dito.

— Cahiu, cahiu, Mané Francisco! gritaram neste ponto muitas vozes, formando uma algazarra immensa, que repercutiu fóra do alpendre.

— Ainda não, ainda não—retorquiram outros no mesmo diapasão.

— Não foi mais do que uma negaça. Vejam lá como se levanta.

De feito o caboclo, depois de derreado quasi inteiramente o braço, o levantara lentamente até á altura em que se achavam no começo da luta: mas d'ahi não passou.

— Quem vence? perguntou um, logo que viu novamente restabelecidas a indecisão e a duvida.

— Nenhum vence—respondeu Francisco. Está visto que Mané Francisco e Victorino tem as forças iguaes.

— Não senhor. É preciso ir até ao fim. Um delles ha de poder com o outro.

— Não, não; disseram alguns da opinião de Francisco. Tem as forças iguaes, está acabado.

— Eu não me levanto si Victorino não se levanta—disse Manoel Francisco a modo de contrariado por ter encontrado no contendor força com que não contara.

— Eu não me levantarei sinão depois da sua queda—respondeu Victorino sem se alterar, antes com evidente serenidade.

— Levantam-se ambos, que já é tarde, e vem por ahi o Valentão-da-Timbaúba.

— O Valentão-da-Timbaúba! exclamaram os rancheiros, pondo-se de pé, inclusivamente os dois lutadores, que se separaram e com a vista percorreram como sobressaltados todo o ambito do alpendre.

— Quem disse que elle vem ahi? perguntou Victorino.

— Digo eu—respondeu Francisco. Por isso é preciso estar preparado para o receber.

— Si vier, ha de encontrar gente. Somos onze. Não ha de chegar um pedacinho delle para cada um de nós.

— Pelo sim, pelo não—disse Thomaz—vou pôr nova escorva na minha espingarda.

Vendo o Thomaz encaminhar-se para o lugar onde estava encostada a arma a que alludira, Francisco rindo-se, atirou-se dentro da rêde e disse aos companheiros ainda sobressaltados:

— Qual valentão, nem meio valentão! Rezem-lhe pela alma.

— Elle morreu?

— Morreu, sim senhor, e ficou bem morto.

— Você está gracejando, Francisco.

— Estou falando serio. Vou contar como o caso foi.

— O Valentão-da-Timbaúba era um malfeitor que por aquelle tempo commettia roubos e assassinatos na redondeza de muitas leguas de Pasmado. Esta alcunha foi-lhe dada pelo povo. Seu nome era Valentim. Não teve a fama extensa do Cabelleira, ao qual foi muito inferior na indole natural, na coragem e no physico; mas no pequeno theatro das suas façanhas adquiriu tamanha celebridade, especialmento nos ranchos, que de seu nome e feitos ainda hoje restam ahi lembranças enlutadas.

Era mais ladrão do que assassino; usava primeiro o subterfugio, o laço, a astucia, que a arma mortifera; mas, quando a manha não bastava, ou quando era sorprendido antes do resultado em que puzera a mira, então o encontravam facinoroso, cruel. Esfaqueava, matava, com tanto que se apossasse do alheio que excitára a sua cobiça.

Era cabra-negro, magro, anguloso. Tinha os olhos vermelhos, as orelhas largas, o queixo fino, a barba espalhada e carapinha. Havia nelle alguma coisa do vampiro. Mas a voz, que aliás era aspera e estridente, elle a adocicava e abemolava por tal geito que quem o não conhecesse, o teria por inoffensivo e lhe daria esmola si elle a pedisse, o que muitas vezes praticou para se disfarçar.

Em luta pessoal com outro valentão, recebera deste uma facada no olho direito. De outra vez levou-o ás portas da morte um tiro que lhe desfechára sobre a perna esquerda certo sertanejo, a quem roubára objectos de valor, e de cujas mãos conseguiu escapar, não obstante o ferimento. Resultou destes desastres ficar torto e côxo, o que si por um lado lhe diminuiu as faculdades do movimento e da inspecção, lhe aumentou pelo outro os meios e pretextos de illudir e explorar a credulidade dos transeuntes.

Morava elle em uma palhoça que distava tres a quatro leguas de Maricota, obscura povoação que o forte combate de que em 1848 foi scenario, entre as forças praieiras e as do governo, tornou illustre e historica.

Valentim levantára de intenção sua morada naquellas alturas para commodidade nos seus latrocinios.

O comboyo que por alli passava duas ou tres horas antes do pôr do sol, tinha de sujeitar-se a uma destas duas alternativas: ou pedia rancho na propria casa do malfeitor e pagava caro a hospedagem, deixando de ordinario um cavallo, uma sacca de lã, uma barrica de assucar ou de bacalháo, que no dia seguinte nenhum esforço, por maior que fôsse, era bastante a descobrir; ou ia descarregar adiante; á sombra de alguma arvore, e o tributo vinha a ser mais pesado ainda do que o primeiro, visto que, por escusas verêdas, o ladrão ia ter ao rancho, e em vez de um, trazia dois ou tres cavallos, duas ou tres saccas, emfim muitos objectos de grande valor. Valentim vingava-se com usura de quem procurava escusar-se ao tributo que ele cobrava no deserto.

É curioso o estratagema que ao principio usava para enganar a vigilancia e a simplicidade dos rancheiros.

Á hora que conjecturava estarem todos já deitados, apparecia no pouso sorrateiramente e com voz melliflua e vagarosa dizia estas palavras, que eram ha bem pouco tempo tradicionaes naqueles caminhos:

«— Coitados dos comboyeiros! Como estão enfadados!»

Assim fallando e repetindo sempre com razoaveis intervallos, estes fingidos e traiçoeiros dós, mettia-se por entre as rêdes dos rancheiros, muitas vezes passando de leve a mão esquerda por cima delles, emquanto com a direita apanhava muito naturalmente as espóras ou a faca apparelhada de prata, a maca onde vinha o melhor fato e alguma vez joias preciosas e dinheiro, o relogio, que descansava sobre uma mala, o gibão novo que estava pendente do galho da arvore ou do punho da rêde.

Tal era aquelle cujo fim tragico Francisco se propoz contar aos companheiros.

Para melhor ouvirem a narração, reuniram-se os matutos ao pé do narrador, uns fumando em cachimbos de barro, outros comendo da matalotagem que traziam em mochilas de algodão ainda hoje em uso entre esta especie de gente por occasião de suas jornadas.

Francisco principiou assim:

— «O sol estava a sumir-se, quando ouvimos, já arranchados ao pé da oiticica ramalhuda, que fica adiante da casa de Valentim obra de duas leguas, uns gemidos e uns queixumes que cortavam o coração a quem os escutava.

— «Quem me socorre? Christãos, filhos de Deus, acudi-me» dizia a voz: «Ai que dôr! Não tenho quem me metta a véla na mão. Ai que morro neste mato sem ter quem me chame pelo nome de Jesus.»

«Seu sargento-mór João da Cunha, com quem eu vinha de Goyanna, e que era o dono do comboyo, —si por informações, ou por prevenção, não o sei bem dizer—viu logo no affligido um velhaco; e quando, assim que chegou aonde nós estavamos, arrastando-se com muito trabalho e gemendo sempre, elle lhe pediu, com voz sumida um lugar entre os arrieios para passar a noite junto de quem o pudesse ajudar na hora de morte, reconheceu no pobre o Valentão-da-Timbaúba. Todos nós o reconhecemos tambem pelo olho furado e a perna quebrada.

— «Estou prompto a consentir que você pernoite entre nós, mas ha de ser com uma condição» disse-lhe seu sargento-mór. Valentim respondeu: «Farei tudo o que vossa senhoria ordenar, contanto que me deixe morrer entre filhos de Deus.»

— «Você ha de dormir amarrado pelas mãos do Francisco debaixo de minhas vistas no tronco desta oiticica.»

— «Ai meu senhor! tornou Valentim. Compadeça-se do pobre enfermo. A ninguém offendi nesta vida para merecer tanta crueza.»

— «Si não lhe serve a condição, vá morrer longe daqui enquanto é cêdo.»

«A estas palavras de seu João da Cunha, Valentim afastou se do lugar sem mais demora, gemendo mais do que d'antes. Todos nós fizemos tenção de não pregar olho essa noite, mas o enfado da viagem tinha vencido a todos algumas horas depois. Só quem não dormiu foi seu sargento-mór, que para fazer crer que estava deitado, mandou pôr dentro da rêde delle um surrão carregado, e junto della entre duas caixas de fazenda, se sentou escondido como quem fazia tocáia a veado, esperando pelo ladrão, com o bacamarte armado, por cima da caixa que lhe ficava na frente.»

«Quando foi lá pelas tantas, um vulto veio tomando chegada pé ante pé. Estava nú da cintura para cima. Tinha as calças arregaçadas e trazia uma arma de fogo na mão. Quando o ladrão ia a pôr a mão no cabresto de um dos animaes que estavam comendo milho nos embornáes defronte da oiticica, seu sargento-mór desabrochou-lhe fogo. Todo o rancho accordou atordoado e ganhou mão das armas. Eu fui o primeiro que corri ao ponto onde estavam os animais. Faltava um, e o ladrão tinha desapparecido. Seu sargento-mór ficou muito zangado com a perda do seu cavallo, e ainda mais por ter errado o tiro. Mas que se havia de fazer?»

— Gosto de um cabra damnado assim como o Valentim! disse um dos matutos que ouviam a narração.

— É verdade, disseram outros. Fez o que quiz, e acabou antes do amanhecer.

— Sim, mas, quando amanheceu—prosseguiu Francisco—e se viu o rastilho de sangue que elle foi deixando pelo caminho afóra, seu sargento-mór mandou que eu e Mameluco, seu pagem de confiança, montassemos nos melhores cavallos e lhe fizessemos companhia, guiados pelo rastilho, em busca do Valentão.

«O comboyo seguiu para o Sul, e nós tiramos para o poente. Pouco adiante o rastilho perdeu-se no mato; mas, nós entramos por elle, e fomos dar em um riacho.

«Ahi, bem na beira, debaixo de uma emburana, estava o cabra.

— «Acaba de matar este negro!» disse seu sargento-mór a Mameluco.

«Mas, não foi preciso fazer nada mais. Valentim estava morto.»

«Assim acabou o Valentão-da-Timbaúba. Podemos, por isso, dormir todos sem susto que ninguem mais nos ha de vir inquietar durante a noite.»

Tomando o conselho de Francisco, que por sua idade e prudencia, parecia exercitar sobre os companheiros legitima influencia, tranquillos e serenos estes metteram-se em suas rêdes e pouco depois estavam resonando profundamente.

Como visse o rancho em silencio, o velho Ignacio apagou o candieiro e retirou-se a seus aposentos, não sem ter primeiro fechado todas as portas, com excepção da de entrada, que de costume ficava sempre aberta para a qualquer hora da noite se recolherem os viajeiros que não podiam chegar mais cêdo.

Não havia luar, mas a noite estava clara. As estrellas scintillavam com a luz suave que ellas tem no deserto ou nos lugares onde não ha, para quebrarem sua branda claridade, as illuminações publicas.

Seriam nove horas quando de junto das cangalhas e cargas que estavam atiradas a um canto do rancho, rumor suspeito se fez ouvir distinctamente por Francisco a quem ainda o somno não tinha dado a respirar os seus deliciosos narcoticos.

Francisco era prevenido, e armára a rêde perto da entrada que estava livre. Ouvindo o ruido e tendo certeza de que pela porta donde elle guardava, como cão fiel, a casa adormecida, não presentira entrar ahi viva alma, sentou-se tão cautelosamente como poude na rede, e dahi volveu vistas prescrutadoras ao lugar donde lhe chegavam os sons suspeitos. Não foi sem resultado a sua inspecção. Um vulto rastejava por entre os objetos lançados a esmo no fundo do alpendre.

Quem era? Por onde entrára quem quer que era?

Estas interrogações apresentaram-se logo no espirito do matuto, que por impressão de natural superstição julgou ver na fórma vaga e indecisa que se agitava sorrateiramente, sinão o Valentão-da-Timbaúba, ao menos o seu espectro ou a sua alma malfazeja.

O vulto semelhava um cão e a uso deste animal, andava sobre quatro pés, posto que lentamente, acusando a intenção de illudir, pela brandura dos movimentos, o somno dos incautos.

Francisco, depois de detida observação, convenceu-se emfim de que o desconhecido era vivente e arrastava comsigo um volume tirado da bagagem commum.

Então todos os espiritos, um momento esmorecidos e vacillantes, voltaram a Francisco por ventura mais fortes e viris que d'antes. Quem estava alli não podia ser sinão um ladrão, um sucessor de Valentim no ignobil e torpe officio de defraudar os inoffensivos viajeiros, justamente quando, em lugar ermo e estranho, mais direito tinham á boa hospedagem dos moradores.

Desceu-se de manso e manso da rêde, armou-se com sua faca que elle tinha mettido entre as pontas de uma ripa, que vinha morrer no portal mais proximo, e em vez de ir no encalço do desconhecido quando este desappareceu por traz de um montão de cangalhas, rodeou por fóra a garapeira, e correu ao seu encontro do lado da cavallariça na altura em que presumiu teria elle de sahir.

Este não se fez esperar, e o matuto calculara com tanta exactidão a distancia que se mettia entre si e elle, que foi inclinar-se ao pé da propria abertura do envaramento por onde em menos de um minuto o estranho visitante poz a cabeça de fóra.

Cahir-lhe então com as mãos sobre o pescoço, tendo a faca atravessada na boca, foi acção que Francisco obrou em um abrir e fechar d'olhos.

— Damião, Victorino, seu Ignacio, acudam cá sem demora, que o cabra está pegado, e bem pegado! gritou o matuto com quantas forças tinha em si.

Um tiro que se tivesse desfechado subitamente naquelle ponto, não produziria tão grande arruido e sobresalto como a voz de Francisco alterada pelo inopinado do acontecimento e pelo esforço usado contra o desconhecido.

Tontos do somno e da sorpreza, apresentam-se os rancheiros pronptamente no lugar da acção. Emquanto uns rodeiavam a casa, outros passavam do outro lado atravez das varas. Este vem com a faca descascada, aquelle com a pistola armada, seu companheiro com a catana, o outro com o facão, prestes todos elles a cahir sobre o invasor.

Entretanto o ladrão, quasi todo de fóra, não obstante a força empregada por Francisco para o ter seguro entre os pés dos enchameis, debatia-se com tal violencia e animo, que nas mãos de outrem que não fôra Francisco já teria logrado escapar-se.

Sinão quando apresenta-se o dono da garapeira, trazendo acceza a candeia da sua serventia. O ladrão já safo e de pé lutava corpo a corpo com Francisco, despendendo herculeos esforços a fim de fugir de suas unhas.

Quando a luz esclareceu o recinto do conflicto, geral foi o espanto dos circumstantes.

Olhando para seu contendor, Francisco sentio-se cobrir de vergonha e tristeza. Aquella luta ingente tinha sido sustentada com elle por um rapazito que não representava mais de doze anos.

Entretanto estava alli um Hercules. Aquelle braço teria botado abaixo os de Manoel Francisco e de Victorino reunidos, visto que tinha podido com os de Francisco, que era apontado em todos os ranchos, desde Goyanna até o Recife, como o primeiro pegador de queda-de-braço daquellas alturas.

— Lourenço! Demonio! Ladrão sem vergonha! exclamou enfurecido o velho Ignacio, os olhos postos no actor principal daquella scena de desordem e escanlado. Quando quererás entrar no bom caminho, coisa ruim e desprezivel?

— Soltem-me. Quero ir-me embora—respondeu Lourenço, rugindo de raiva, e revolvendo-se entre os braços dos matutos a quem Francisco o tinha abandonado logo que reconheceu nelle os annos juvenis que na escuridão o fizeram ter por forte e varonil athleta.

— Que menino! disse Francisco, correndo-o com a vista de cima a baixo. Tem força que nem um touro.

— Assim é que eu gosto de ver um cabrinha bom—disse Victorino. Sem páo nem pedra está dando que fazer a todos nós.

De feito Lourenço atirava-se ora para um, ora para outro; investia contra este; atracava-se com aquelle, por fugir do circulo em que o tinham como encurralado os rancheiros.

— Isto é o demonio do Pasmado—acrescentou Ignacio. Não ha por aqui quem não tenha o que dizer desta perversa creatura. Eu, que sou eu, tenho-lhe respeito, porque, mais dia, menos dia, si não lhe tiverem mão virá a melar o Valentão-da-Timbaúba.

— Soltem-me, deixem-me passar, sinão mato a um—disse Lourenço, já fatigado, mas cada vez mais enfurecido da resistencia que se oppunha á sua vontade serpentina.

— Pega nelle, Victorino—disse Francisco. Quero leval-o comigo para casa. Quero ensinal o. Heide aproveitar-lhe as forças no cabo do machado e da enxada. Ha de dar para um perfeito homem do campo. Assim os pais estejam pelo que eu quero.

— Pai foi coisa que elle não conheceu—observou Ignacio.

— E mãi? perguntou Francisco.

A mãi era a Bilóca, fallecida ha dois para tres annos. Esta oncinha, que já então tinha mostrado para quanto havia de dar, quebrando as pernas dos cachorros a pedradas, furando com o espeto quente os porcos de casa a ver si lhes derretia o toucinho segundo elle mesmo dizia, e pondo carvões abrazados na rêde onde dormia um irmão menor que veio a morrer desta e de outras malindades, ficou depois da morte della ao desamparo. Tantas tinha feito, que não houve aqui alma caridosa que não temesse tel-o perto de si. O mais compadecido de todos os moradores, a velha Anninha, recolheu-o um dia em sua palhoça. Pelo correr da noite acordou debaixo de labaredas. Lourenço tinha posto fogo na casa da velha. Desde então todos fogem delle, até o vigario que ao principio foi muito por elle e lhe deu de comer e de vestir. Lourenbo vive agora vagando pelas ruas, judiando com os animaes, furtando e roubando como vocês acabam de ver.

— Este menino só enforcado pagará o mal que tem feito—disse Damião.

— Pois si ninguem o quer, levo-o eu comigo. Faço esta obra de caridade, e fico bem satisfeito com isso porque elle supprirá a falta que tenho de um filho para me ajudar. Queres ir comigo, Lourenço? Perguntou Francisco ao rapazito.

— Não vou com ninguem. Não sahirei d'aqui.

— Has de ir.

— Eu lhe mostro si vou.

— Eu te mostrarei si não vás—retorquio o matuto.

E voltando-se para o velho Ignacio, accrescentou:

— Tranque-me o menino em sua casa emquanto amanhece. Pago-lhe o dobro do rancho.

— Deus me livre—disse o velho. Si elle me cahe dentro de casa, tudo me arde como carvão em forja de ferreiro. Nem que me dê cincoenta cruzados.

— Si fazes gosto em leval-o comtigo, amarramos o rapaz em um enchamel, como seu sargento-mór queria fazer com o Valentim.

Lourenço rugiu e disse:

— Soltem-me, porcos.

— Guarde-me o menino por esta noite, seu Ignacio—tornou Francisco. Pago-lhe bem.

— Peça-me tudo, menos isso. Elle em achando-me dormindo, era capaz de sangrar-me.

— Pois não durma. Tenha-o debaixo das vistas para de madrugadinha restituir-m'o.

Como se calasse o velho, Francisco tomando o seu silencio por acquiescencia, fez signal a Victorino e Damião para que o conduzissem á garapeira.

Os dois matutos agarraram-n'o com quantas forças tinham; mas antes de chegarem á porta viram-se obrigados a largal-o, porque Lourenço a um tinha posto os braços em sangue, e sobre o outro desandára tamanho coice no estomago, que lhe tirou o animo para levar a effeito a empreza.

— Vejam só, vejam só—acudiu o velho Ignacio. Não lhes disse? Lá dentro não me piza esta féra. Nada. Nem por Santo Antonio. Si dois homens moços não podem com ele, que direi eu?

— Querem saber de uma coisa? inquiriu Francisco a cabo de um momento. Largo-me agora mesmo com elle por estes caminhos. Vamos, Victorino?

— Agora de noite?

— Que é que tem? A lua não tarda a nascer. Olhe já o clarão della por cima da mata. Vamos. Não percamos tempo.

Em menos de um quarto de hora Lourenço estava atado com cordas pelas pernas na cangalha e em cima do cavallo que o devia conduzir para longe do povoado.

— Adeus, adeus, minha gente, disse Francisco aos companheiros que ficavam no ponto. Até nos encontrarmos outra vez por estas estradas.

— Faça boa viagem, Francisco, disse um delles. Mas fique certo de que você leva sarna para se coçar. Olhe não se arrependa.

— A criança é de estouro—acrescentou outro.

— Deus é quem sabe. Muita vez não ha de ser assim.

Francisco saltou sobre a garupa do cavallo onde estava Lourenço, que só faltou arrebentar de furia para a qual não ha qualificação possivel.

Victorino, imitando o companheiro, montou no outro animal. Com pouco desappareceram na escuridão.

Francisco ia ruminando comsigo em silencio estas idéas:

— Não tenho filho. Tratarei deste desgraçado que não tem quem por elle se dôa. Farei conta que é meu filho. Espero em Deus que me ha de ajudar a fazer delle um homem que sirva a gente.

Sem saber explicar como nem porque, Francisco sentia-se satisfeito com o presente que levava a sua mulher, não obstante os prantos e os uivos de que Lourenço ia enchendo o caminho no ultimo desespero.

Uma legua antes de Goyanna, a estrada geral que vai do Recife á Parahyba, atravessa um lugar, de presente augmentado, mas ao tempo desta historia apenas formado de uma casa de barro, e duas ou tres palhoças espalhadas não longe della, por dentro dos matos circumvizinhos, sem regular alinhamento a uso das casas que, para assim escrevermos, se improvisam nas entranhas das florestas.

A casa de barro ficava á embocadura da mata de Bujary, a qual por então tinha, não como hoje, meia legua, mas quasi uma de comprido. O lugar supramencionado, já nesse tempo aprazivel e risonho, era alguns annos antes um como prolongamento dessa mata, menos fechado—é certo—, mas não menos ermo e deshabitado do que ella. De um cajueiro velho que se mostrava, na beira do caminho ao que sahia da espessura, adveiu-lhe o nome, que hoje designa o lugar, e tem por si a autoridade da consagração do povo e do tempo.

Fizera-se subitamente a transformação daquella secção da floresta como nos contos antigos mudam as situações ao puro querer de um genio ou de uma fada. Eis como a coisa se deu.

Um matuto passando por ali, de jornada para Tejucupapo, ficou encantado pela amenidade e belleza da situação. Do cajueiro para dentro estendia-se larga planicie coberta de arvores meãs, sombrias e graciosas. Em arvores semelhantes ha algum tanto das donzellas faceiras e namoradas com que se arreiam os salões e que são as graças mimosas do lar. Era o intermedio entre a espessura humida e medonha, e a campina núa, fresca, monotona, que se seguia á planicie adornada com a vegetação moderada e pittorêsca. Emfim era, em escala ascendente, a transição natural para a mata virgem.

Na volta entendeu-se o matuto (que não era outro sinão Francisco) com o senhor do engenho Bujary a quem as terras pertenciam, e que consentiu em que elle levantasse casa de morada e abrisse roçado.

Francisco cortou madeiras, apparelhou-as e armou a casa ao pé do cajueiro. Havia barro perto. As palmeiras mais formosas daquella zona estavam agitando suas longas folhas verde-negras na espessura vizinha. Emfim, em menos de uma semana aquelles que, de passagem para o Recife, tinham visto a casa apenas envarada ou encaibrada, vinham encontral-a agora fechada e coberta; e os que tendo passado por alli antes destes ultimos voltavam ao mesmo tempo que elles da capital, ficavam admirados e satisfeitos de verem uma habitação nova e risonha, onde quinze dias atrás tinham deixado a solidão e o mato fechado.

Esta novidade era obra das mãos abençoadas de Francisco, homem de trabalho e paciencia.

Forte de constituição physica; ajudado, sinão animado pela energia de seu espirito; affeito desde os mais verdes annos a ganhar pela força de vontade que era o seu primeiro dote natural, a vida honesta, os dias suados mas tranquillos, as noites sem remorso, o somno solto e largo, estava o matuto habilitado a levar effeito prodigios semelhantes, e outros ainda maiores e mais admiraveis.

Francisco era semi-branco, corpulento, espadaúdo e de boa estatura. Tinha no semblante a expressão da virilidade e da resignação do que luta quasi incessantemente com a pobreza, e a vence agora para a ver novamente diante dos olhos d'aqui a pouco, por ventura mais forte, mas nunca invencivel.

Os matutos podem dividir-se em diferentes especies, mas, as mais communs são as dos lavradores e almocreves. Os primeiros são os que dispoem de alguns meios a saber, escravos, cavallos, terras, os quaes sem darem para ter um engenho ou, ao menos, para movel-o, por si sós habilitam o que os possúe a cultivar a canna nas terras do engenho alheio, posto que sujeito a dividir com o respectivo proprietario o assucar apurado em cada safra. Os ultimos são os que se alugam com sua pessoa e seu cavallo para a conducção de cargas, por ajustado fréte. Os lavradores são matutos limpos, que entram muitas vezes nos negocios intimos do grande proprietario, merecem a estima delles, a pezam com seu conselho na decisão dos interesses comuns. Aos almocreves já não succede o mesmo. Paga-lhes o senhor de engenho o salario, e elles retiram-se a seus casebres onde vão comer, com a mulher e com a ninhada de filhos que ordinariamente contam, o escasso pão que lhes deram o cavallo magro e o trabalho puxado e cansado.

E pois o cavallo é, para assim escrevermos, a primeira riqueza do almocreve, visto que por elle é que vem a sua sustentação e a de sua familia, ter um cavallo é a primeira aspiração do pobre no matto. O almocreve não vota mais affecto a sua mulher do que a seu animal. Por elle dá muitas vezes a vida. Para o rehaver, si lh'o furtam, vai ao fim do mundo e mata o ladrão.

Quando o almocreve, firmando-se pelos dois primeiros dedos do pé, sempre descalço, sobre a raiz da curva da perna do seu cavallo, ganha de um pulo a cangalha, si elle está descarregado, ou a anca si o animal tem carga, considera-se mais feliz e garboso do que um general de mil batalhas. A seus olhos aquella altura que o homem de pé attinge com a mão lhe parece superior a todo poder humano. Dahi não teme o agente da autoridade publica, nem o golpe ou o tiro mortal que lhe desfechem. Reputa-se inaccessível a todos os males da terra. Entre suas pernas, querendo-o elle, o cavallo é uma locomotiva que se perde na immensidade dos caminhos ou dos descampados; é a faisca electrica que corre terra a terra e desapparece, rompendo fechados e abatendo folhagens, na massa densa e sombria das selvas. O touro afasta-se, a onça recúa, para o deixar passar livremente na vertiginosa carreira.

De ordinario, porém, a marcha do animal do almocreve não sahe do rojão de todo dia. Tendo sempre presente na lembrança o muito que lhe custou ganhar o seu precioso bem, poupa-lhe as forças quanto póde, e só em caso extraordinario exige delle a corrida afanosa, os saltos subitos, o galope, o cansativo esquipar.

Do numero dos almocreves sahem os cantadores e os repentistas, que, não obstante as privações ordinarias de sua vida quasi errante, tem dias de consolação e regozijo.

Pelas festas do anno ajuntam-se na casa dos camaradas para cantar, dansar e beber.

A esses saráos campestres, conhecidos por sambas, não faltam as moças mais desembaraçadas das vizinhanças, —fadas da roça, que com suas chinellas de marroquim, seus vestidos de chita ou de cassa de florões, nos lábios, que estão a verter sangue e frescura, o riso vergonhoso e a promessa duvidosa, os cabellos enastrados de jasmins, mangericões e malmequeres, dão alma a pastoris episodios, a curiosos melodramas e muitas vezes a tragedias medonhas e fataes. Algumas dellas mais desgarradas trazem os seios mal cobertos por vistosos cabeções de que pendem, não sem acertadas combinações e phantasias, bicos e rendas bem feitas e elegantes.

Taes festas tem o seu lado bom e providencial, —fazem esquecer as maguas passadas e as privações presentes. O primeiro e o mais proveitoso resultado dellas é o seguinte: diminuem a estatistica dos crimes graves e infamantes.

Pobres matutos!

Quantas vezes, ao ver-vos descalços, mal vestidos e mal passados, não senti apertar-se-me o coração com pena de vós?! Esta pena redobrava sempre que, passando pela frente dos vossos casebres, eu descobria ahi por mobilia um banco tosco, uma caixa grosseira, um pote de agua suspenso entre os braços de uma forquilha enterrada no canto da salinha, e por leito de dormida para vós e vossos filhinhos uma esteira ou um giráo de varas!

Então eu comprehendia a razão porque em nossos encontros nos caminhos ereis vós os primeiros que tiraveis o vosso chapéo e me salvaveis com mostras de profunda humildade sem saberdes siquer quem eu era. É que vós tinheis sempre presente no entendimento a consciencia da vossa pobreza e consequentemente vossa fraqueza. Esta consciencia, este aguilhão intimo, que nunca se embota, vos dava uma falsa idéa de superioridade de minha parte sobre vós. Pobres creaturas sois vós, ó matutos, mais dignos de compaixão e amparo, do que do riso mofador de que vos fazem alvo os que na ignorancia, na simplicidade e na miseria alheia acham assumpto para desenfado e divertimento proprio! Pobres sois vós dobradamente; porque recebestes de vossos paes por herança esta lamentavel condição, e porque não podeis deixar em dote a vossos filhos condição differente desta!

Francisco pertencia—é verdade—á classe dos almocreves; mas tinha seu cavallo, que não era qualquer, antes pelo contrario, era passeiro, carregava baixo e esquipava tão maciamente que quem nelle ia, levava a illusão de que era conduzido e embalado em uma rêde.

Entremeiava o officio de almocreve com o de trabalhador de campo. Tinha mesmo plantações posto que fracas.

Por felicidade sua casára com Marcellina, cabocla ainda nova das proximidades da Alhandra, trabalhadeira, poupona e ajuntadeira que com as escassas economias de suas industrias ajudava o marido a achar a felicidade no seio da pobreza, e guardava a idéa de libertar-se deste estado ás custas do seu esforço.

Tempos depois de mudado de Cruangy, onde ao principio morou, para o seu sitio do Cajueiro, nome que ficou pertencendo não só ao sitio mas ao lugar de que Francisco foi o fundador, teve elle umas maleitas tremedeiras na fôrça de rigoroso inverno. A molestia pegou-o desprevenido, sem vintem nem dez reis, como diz o povo—illustre sabio que versa a sciencia da linguagem com autoridade e propriedade que lhe invejam os sabios de maior conta.

Mas durante ella nunca lhe faltaram remedios nem diétas: Marcellina suppria as faltas e a casa com admiravel promptidão.

— Donde lhe veiu dinheiro para tudo isto? perguntou uma vez Francisco a sua mulher.

— E os cestos que faço não haviam de dar dinheiro? respondeu-lhe ella com graciosa e movel expresão. Veja estas rodilhas de cipó que comprei hontem. Chegam para uma duzia de cestos. Logo que estiverem promptos, não ha de faltar quem os queira. Os outros, que pendurei da banda de fóra, não levaram uma semana a ser vendidos.

— Ora, Marcellina, disse o marido com manifesto pezar. Para que se cansa tanto? Eu quero muito bem a meu cavallo, mas vai-se um cavallo hoje, virá outro amanhã. Por isso sou de parecer que, em lugar de estar a trabalhar tanto para a casa, veja antes si alguem quer comprar o pedrez. Elle está em boas carnes e pôde achar bom dinheiro.

— Quem? O seu cavallo pedrez? Vendel-o? Não, senhor, que você precisa delle para quando ficar bom. Você mesmo bem sabe que um cavallo não vem assim tão depressa como está dizendo. Não estamos ainda em ponto de vender o nosso unico bem para remir as nossas necessidades, Deus louvado.

— Deus mesmo havia sempre de ajudar-me a comprar outro.

— Mas que necessidade temos nós de nos desfazermos do animalzinho? Só si eu estivesse doida o venderia. Deus me livre.

Não tinha medidas o amor que Francisco votava a Marcellina, exclusiva possuidora do seu coração.

Os matutos não casam por méra conveniencia. Suas uniões, ordinariamente precoces, não deixam por isso, em regra, de ter o principal fundamento na estima reciproca daquelles que as contrahem. Grandes desgraças tem procedido das juncções prematuras, mas no mato não constituem a regra geral. Ao reverso, taes juncções são principio de moralidade no lar e no povoado matuto, porque despertando cêdo no homem os affectos conjugaes e paternaes, enfreiam e moderam, antes das erupções naturaes dos primeiros annos, as paixões juvenis, que, quando de todo sôltas, tem arrojos inconvenientes e effeitos desastrosos.

A paixão que Marcellina inspirára a Francisco, si tinha serenado, como succede a cabo de certo tempo a todos os sentimentos, ainda aos mais vehementes e exaltados, não arrefecera antes se apurara com as mil retribuições do coração da cabocla, nunca brandamente estremecido ou amorosamente agitado sinão pelo matuto.

Mas a infelicidade é fatalmente na essencia humana. Ainda no meio das mais intemeratas serenidades, a idéa de poder ser de um momento para outro desgraçado punge o homem e o faz reputar as venturas por illusões, cujo principal effeito é aguar-lhe os gostos no melhor delles e entristecel-o, quando não na face—espelho da alma, na consciencia—centro de muitas suspeitas que nascem e morrem ignoradas do mundo, como os musgos interiores das cavernas inaccessiveis.

Marcellina podia ter a esse tempo de vinte e dois a vinte e cinco annos. O typo caboclo estava nella representado com opulencia e genuinidade. Tez abaçanada, cabellos corridos e pretos, olhos rasos e grandes, cara cheia e redonda, estatura abaixo da media, fórmas corretas, mãos e pés pequenos—eis o conjuncto harmonico e admiravel em que a raça a mostrava revestida.

Quando Marcellina batia sua roupa no banco que ficava debaixo da meia-agua de palha levantada por Francisco para resguardar do sol o poço algumas braças da casa de morada, os matutos, que passavam pelo caminho e a não conheciam, cravavam nela olhares cúpidos, e alguns ás vezes de lá lhe atiravam xêtas que ella fingia não ouvir, ou a que, si lhe parecia, dava em resposta um muxôxo ou um olhar de mofa e desprezo, pelos quaes ficavam sabendo que a matuta não era do panno que eles suppunham.

Muitos delles só retiravam os olhos de sobre ella quando tinham de dar a volta da estrada ou entrar na mata. A razão era porque a saia, que Marcellina por essas occasiões trazia a tiracollo pela enfiadura, lhe punha á mostra o principio da perna—monumento de estatuaria que deixava adivinhar, mas não descobria os vendados thesouros da perfeição de que a dotára, por especial capricho a natureza, mãi tão prodiga para ella como mesquinha para tantas outras.

Uma manhã Francisco, acordando, deu por falta da mulher.

Era muito cêdo ainda para o serviço da casa, e fóra estava chovendo. O mato, de seu natural sombrio e ermo, desprazia antes do que convidava naquelle momento a quem não fosse obrigado a buscal-o por grande negocio.

No começo da trilha que ia ter á lagôa de presente mudada em terreno de lavoura, mas neste tempo com bastante agua e occulta pelos matos que se levantavam, contornando-a em fórma de semi-circulo, no lugar onde acabavam as terras plantadas de abacaxis por Francisco, vio elle atirados a uma banda sobre as hervas os sócos grosseiros que sua mulher usava em casa.

Pareceu-lhe claro que ella os tinha deixado alli para ter mais ligeiro e prompto o passo ao logar aonde se dirigia.

Antes disso já tinha chamado por ella do lado da estrada; mas só teve em resposta o echo de suas proprias palavras.

Tendo agora a prova de que ella tomára direcção opposta, cruel suspeita atravessou-lhe, sem o menor fundamento, o espirito, sinão o coração, que sobressaltado transbordava inquietações e duvidas.

Sem olhar para seu estado de convalecença, Francisco, que viera de casa até alli abrigado da chuva pelas folhagens das laranjeiras e dos cajueiros novos do sitio, não hesitou mais um só momento e metteu-se pela trilha, que se lhe mostrava, agora mais do que nunca, em fórma de serpente, pela planicie a fóra. Não era grande a distancia que separava a lagôa da parte roçada; por isso, d'ahi a pouco se achou elle por tras da renque de arvores que circulava a lagôa e pôde ter esta debaixo dos olhos sem deixar a quem quer que fosse possibilidade para vel-o.

Neste ponto parou Francisco, e poz-se a examinar com a vista de um lado para outro todo o espaço livre até aonde podia chegar a sua inspecção.

Ninguem estava alli. Sobre a lagôa a chuva fina cahia em fórma de fumo ou de nevoa espessa. Os sapos coaxavam pela beira d'agua, e os jassanans soltavam de dentro das moitas aquaticas suas risadinhas de som vibrante e agudo; tudo o mais era immobilidade e silencio.

Não tendo mais para onde ir, Francisco em cuja imaginação exaltada pela fraqueza physica e pelos subitos temores, se desenhavam cenas desesperadoras, não pôde acabar comsigo que não chamasse novamente pela mulher.

A voz desprendeu-se-lhe irresistivelmente da garganta, e o som das palavras—«Marcellina? Marcellina?» Repercutiu pela vasta solidão.

Immediatamente a seus olhos se mostrou uma visão cruel.

Acima dos juncos, que formavam vastos partidos dentro da lagôa, appareceu-lhe uma cabeça coberta com um chapeu de palha. Um homem estava alli e Marcellina não podia achar-se longe. Talvez já estivesse de volta.

Francisco sobresteve um momento immovel, como estatua; mas notando que o madrugador tão depressa levantara a cabeça, como se abaixára e desapparecera no meio do juncal, mergulhou por entre as folhagens que o occultavam, e sahiu da outra banda no animo de ir por dentro da agua até ao ponto onde se sumira o desconhecido.

Quando ia a atirar-se na agua, a cabeça reappareceu a seus olhos, e uma voz, reboando por cima das aningas e dos juncos, foi levar-lhe aos ouvidos estas palavras, em gráo de grito e em tom de reprehensão:

— Que vem cá fazer, Francisco? Você quer morrer?

Era a voz de Marcellina.

Tanto bastou para que elle não avançasse mais um só passo. Fixando a vista com mais serenidade, reconheceu no desconhecido sua mulher.

— E você que está fazendo ahi mettida, com esse tempo todo? Saia dahi, que nem sabe os sustos que me causou com sua ausencia.

— Anda você sempre assustado, Francisco! Susto de que? Parece menino.

— Saia já, que eu não posso apanhar chuva.

— Agora já não póde apanhar chuva. Ha instantinhos podia até metter-se na agua da lagôa. Parece menino este meu marido. Já lá vou.

Momentos depois Marcellina achava-se na margem, a saia a tira-collo, o chapéo de palha na cabeça, os pés descalços, a perna de fóra, sobraçando um alentado feixe de juncos.

— Então acha que só devo trabalhar nos cestos e na limpa dos abacaxis? perguntou ella ao marido logo que se achou em terra firme. Vim cortar estes juncos para fazer esteiras de cangalha. Estão dando muito em Goyanna segundo me disse hontem o compadre Victorino, que até me encommendou umas de que precisa.

Livre do peso que lhe opprimia o coração como si fôra uma montanha, não teve Francisco para sua mulher demonstrações de desagrado nem rudes expressões, antes agradecido á sua solicitude, para a qual não havia solução de continuidade, seu semblante fez-se de boa sombra, e até um risosinho meigo e terno ensaiou o matuto satisfeito com esta nova manifestação do genio essencialmente activo e previdente daquella com quem repartia o peso da vida.

— Não estranho, Marcellina, disse-lhe ele brandamente. —que você, vendo-me no estado em que me acho, trate de supprir as faltas da casa augmentando o seu esforço e trabalhando por você e por mim. Mas por que rasão não me hade dizer o que tem de fazer antes de entrar em obra? Que lhe custa isso? Si me tivesse dito o que vinha aqui fazer, eu não teria sahido de casa com risco de recahir, estando já quasi bom.

— Para que está dizendo isso? Si eu lhe dissesse que vinha cortar juncos na lagôa, você não me deixaria vir. Eu bem o conheço, Francisco.

— Deixava. Porque não deixava? No que eu não vejo razão foi em esconder-se de mim, quando eu já a tinha visto.

— Cuidei que não me tinha visto, sinão eu tinha logo apparecido. Eu disse comigo: «Francisco, não me vendo, volta para casa, e deixa-me tempo de sahir da lagôa nas costas delle.»

— Que lembrança esta, Marcellina! Então as hervas não haviam de declarar-me a verdade?

— Ora! Eu podia dizer-lhe que as tinha comprado ao Manoel da Hora, como disse quando você perguntou donde tinham vindo os cipós.

— E então os cipós tambem foram cortados por você na mata virgem?

— Está bom, Francisco; fiquemos nisso. Você tudo quer saber. Vamos já para casa; Deus queira que não lhe voltem as malditas. Não satisfeito com apanhar esta chuva, ainda queria metter-se na agua.

— Marcellina, você faz mal em andar assim só pelos matos. Para que faz isso, meu bem? As vezes apparecem por estas bandas malfeitores. Ali dentro havia até bem pouco um couto de negros fugidos do engenho. Quem sabe si não estão mettidos lá ainda alguns que seu sargento-mór não póde descobrir?

— Não se lembre disso, Francisco. Quem é que me ha de offender? Os negros? Elles não. Conheço todos e sei que gostam de mim, porque compro algumas coisas que trazem de seus mucambos. Vamos já, que a chuva está engrossando.

Assim fallando, Francisco e Marcellina metteram-se por sob as folhagens, e com pouco estavam debaixo de coberta enxuta.

De outra vez achava-se Francisco muito a seu salvo limpando o seu partido de abacaxis, quando ouviu fortes bateduras na janella da casa.

Receiando fosse alguma violencia praticada pelos dítos negros, em quem elle, menos credulo e simples do que sua mulher, não tinha a menor confiança, pôz no hombro a enxada com que estava trabalhando e que, em caso de necessidade, serviria de arma contra os aggressores, e tirou para a casa. Entrou ahi agitado e perturbado.

— Hoje voltou muito cêdo do serviço—disse-lhe Marcellina.

— Vim correndo ver que pancadas eram estas. Cuidei que, tendo-se você trancado com medo dos negros, elles, não pensando que eu me achasse aqui por perto, estavam botando a porta abaixo.

— Você tem lembranças, Francisco!

Eis a causa dos estrondos, que assustaram o almocreve.

De ha muito Marcellina batalhava com o marido para que lhe arranjasse uma taboa, de que dizia ter grande necessidade. Por esquecimento ou por não lhe sobrar tempo, o matuto estava ainda em falta para com ella. Naquelle dia Marcellina, que, quando tinha qualquer idéa que lhe parecia vantajosa, não descançava emquanto a não punha por obra, lembrou-se de um meio de realizar sua intenção, sem ser preciso o concurso do marido.

Não a porta, mas a janella da casa achou Francisco fóra do seu logar; só os portaes tinham ficado na mesma posição que dantes. As dobradiças tinham sido mudadas para o batente inferior, a fim de que a porta em vez de ser aberta pelo lado, o fosse pela parte superior, e de modo que, cravado da banda de dentro no chão um páo que chegasse ao nivel do primeiro batente, formasse ella descansando sobre a cabeça do dito páo, um como balcão qne pudesse ser visto por quem passasse pela estrada. O fim de Marcellina, realizando esta mudança, era ter onde expôr aos viandantes fructas, tapiocas e outros productos do commercio domestico.

Esta pequena industria é muito praticada nos caminhos do norte. Quantas vezes, em minhas digressões pelas provincias de Pernambuco e Alagoas não tive occasião de chegar-me, montado em meu cavallo, ao pé da janella ou do balcão movel da casinha pobre, onde se mostravam fructos frescos e sazonados, e de os comprar para nelles me desalterar do calor do sol e do cansaço da jornada!

Não levou a mal Francisco a alteração que a mulher fizera na obra das mãos delle, antes approvou, com elogios, a lembrança que lhe dava novo testemunho das faculdades industriais daquella que, como bôa e fiel companheira o ajudava a tornar acil e digna a acquisição do pão custoso da pobreza.

— Si me tivesse dito que a taboa que me pedia era para este fim, já eu a teria trazido da villa.

— Gosto de fazer as minhas invenções sem dizer nada a ninguem, nem a você mesmo—respondeu Marcellina.

Vivia assim feliz, sem ter coisa alguma que lhe causasse inquietação nem tristeza aquelle casal pobre, mas honrado e discreto, só pedindo a Deus que lhes desse chuva e sol nos tempos opportunos, para que o milho, o feijão, a mandioca, a macaxeira, as batatas, os abacaxis não morressem alagados ou queimados, e que não lhes mandasse doenças graves que os privassem do trabalho, sua distracção e prazer de todo dia.

Marcellina não ficava ahi, levava ainda além o seu espirito emprehendedor, a sua notabilissima vocação para o pequeno comercio.

Criava porcos, gallinhas, patos e perús. Nos tempos de festa os porcos ou eram vendidos por bom dinheiro na villa, ou ella os retalhava, e em sua casa expunha á venda a carne e o toucinho, sempre com tão bôa cabeça que só lhe ficava a porção que reservava para seu proprio uso. Ás vezes desta mesma parte fazia o picado e o sarapatel para vender aos matutos que eram perdidos por estas especies de comidas.

Quando as criações estavam muito augmentadas, Francisco mettia-as nas capoeiras, e ia vendel-as em Goyanna, importante centro commercial de toda aquella redondeza, como o Recife já o era de todo o norte por aquelles tempos. Voltava de Goyanna trazendo parte dos generos apurada em boa moeda, e a outra parte empregada em fazendas para uso da casa.

Emfim a vida do almocreve, a vida do pequeno negociante das estradas e feiras, ninguem nem antes nem depois daquellas duas creaturas tão irmãs e amigas uma da outra, comprehendeu melhor do que ellas, nem talvez tão bem como ellas, em suas especiais applicações.

Causava a todos inveja e admiração a harmonia, a felicidade desses dois entes rudes, que dispensavam lições da gente civilizada para viverem com honra e conveniencia e que da beira de um caminho deserto, do pé de uma mata, sem saberem ler nem escrever, davam edificativos exemplos de moral domestica, amor ao trabalho, e fé no Creador.

Não se pretende fazer nestas palavras a apologia da ignorancia, nem a da pobreza, que são os dois maiores males da terra; o que deste rapido esboço de dous caracteres puros e respeitaveis se aspira a inferir é que o bom natural traz em si mesmo, como por instincto, a sciencia da vida, e que o trabalho, ainda o mais humilde, é o primeiro meio de supprir as faltas da fortuna e vencer os defeitos da condição.

Foi para esse ninho de modesta felicidade e de paz nunca perturbada, que Francisco levou consigo o trefego Lourenço, infeliz fructo de união reprovada, precozmente apodrecido nas dissoluções da povoação pobre de instrucção, rica porém de miserias e máos exemplos.

Relatar aqui miudamente as maldades, os attentados commettidos pelo menino, entregue, até bem pouco tempo atraz, á torpe licença; rememorar os esforços usados para o reprimir e corrigir, por Francisco e Marcellina, que desde o dia de sua chegada não lhe faltaram com bons conselhos, e as mais saudaveis lições de moral, fôra longo e fastidioso encargo.

Imaginai uma creatura humana com entranhas de tigre; na mão o páo ou a faca prestes para offender ou ferir a quem estava perto, a pedra para atirar contra quem estava longe; sempre a saltar e a correr pelo caminho, a trepar nas arvores novas, primeiro que nas arvores idosas por serem mais faceis de quebrar-se com o peso do corpo as primeiras do que as ultimas; imagine um ente essencialmente malevolo que cortava, por gosto de fazer mal, os gerumuzinhos ainda na herva, arrancava as batatas verdes, despedaçava os maturis, queimava as cercas, quebrava as pernas ás aves domesticas, que se achavam a seu alcance quando elle entrava em seu furor; emfim imaginai o espirito mais diabolico, o coração mais duro, a constituição mais forte aos doze annos de idade, que tereis não o retrato tirado pelo natural, mas apenas a miniatura de Lourenço quando chegou ao Cajueiro.

Ao cabo de um anno a luta continuada de dois sexos, dois genios, duas idades diferentes, representadas por Marcellina e Lourenço, tinha trazido notavel alteração ao natural e aos costumes de ambos. Marcellina estava cansada de lutar; as faces se lhe alquebraram; com pouco se irritava. Por felicidade, porém, Lourenço dava mostras de achar-se menos máo, menos duro, menos indifferente aos castos sentimentos, menos insensivel aos affectos placidos do lar, menos forte para fazer mal, e já propenso ao trabalho e á pratica do bem.

Luta insana e titanica fôra essa, mas tão gloriosa para a parte vencedora, como proveitosa para a vencida.

A mãi mais amorosa, paciente e discreta teria que invejar áquela mulher ignorante e rustica o esforço que, em sua benevolencia, empregava em domesticar o animo da féra mettido no coração da creatura humana, que ella adoptara por filho.

Aquella mulher era digna do estudo das mãis de familia, e de ser por ellas imitada. Era o modelo vivo da mãi pobre, bôa e virtuosa.

— É meu filho, dizia Marcellina consigo mesma. Porque não hei de ter para elle amor e brandura? Que tem que me dê muito que fazer encaminhal-o para o bem? Muito custa a gente acertar com o bom caminho; mas querendo-se ir por elle, ou tendo-se quem sirva de guia para ahi, chega-se ao fim sempre. Hei de amollecer a natureza de pedra deste menino; hei de o fazer bom, ainda que eu fique má e dura de coração contra minha vontade.

Quem souber que o maior desejo de Marcellina era ter um filho, facilmente comprehenderá os impossiveis que ella vencia para fazer Lourenço digno dos seus affectos grandiosos.

As palavras que, no momento de chegar com Lourenço da povoação, Francisco dissera a sua mulher, apresentando-lh'o, deram logo a esta a conhecer a grande obra em que tinha de empenhar suas gigantescas forças.

— Não pedias todo santo dia um filho a Deus? Pois aqui tens um que elle te enviou e está já em condições de te fazer companhia e ajudar, quando eu não estiver na terra. Achei-o rasgado, sujo, desamparado, obrando acções feias, de todos desprezado e odiado. Lembrou-me o teu desejo, compadeci-me da criança desviada do bom caminho, tomei-a para nós, e aqui t'a entrego. Si aprender a trabalhar, a ajuntar, e a fazer bem, de muito nos poderá servir, porque é forte como uma onça.

Lourenço estava hediondo. Os cabellos tinha-os immundos e crescidos, as unhas terrosas, os pés cortados das pedras e dos vidros dos quintaes e esterquilinios por onde de noite andava em busca do alheio.

Sobre o corpo, que sendo de côr branco, se apresentava enegrecido do pó e das immundicies em que se espojava, como cão, e sobre as quaes dormia como porco, trazia, não roupa, mas putridos e repugnantes andrajos.

— Onde achou você este menino? perguntou-lhe Marcellina, não sem espanto do que via e não esperava.

— Achei-o por ahi além; não precisa saber onde. Toma-o á tua conta, limpa-o, trata delle.

— Não tem pai nem mãe? Poderemos tel-o por nosso, sem risco de o perdermos ou de que alguem o venha tirar de nosso poder quando já estiver, não como bicho, mas como gente?

— Não tenhas receio de que haja quem o queira, Marcellina. Todo o Pasmado entregou-m'o para ficar aliviado e livre delle. Tu não sabes de quanto é capaz este menino endiabrado que nos está ouvindo sem dizer uma palavra siquer, passado de raiva e em termos de arrebentar. Emfim, para encurtar a historia, basta que eu te diga que pelo que me fez em tão curta jornada, tive muitos impetos de o ir deixar outra vez no lugar onde o encontrei aborrecido e temido por todos. Não foi uma nem duas vezes que me arrependi da minha caridade e de me terem lembrado as tuas encommendações sempre que eu sahia.

— Não diga assim, Francisco. Ele ha de ficar bomzinho com o favor de Deus. Você ha de ver. Não ha tanta gente que nasce ruim e que pelo tempo adiante fica boa?

— Enmfim, ahi o tens. Foi o menino que encontrei, e agora aguenta-te com elle, que tem sangue no olho e cabelo na venta.

Dias depois, Lourenço já apresentava aspecto differente do que trouxera. Marcellina tinha feito para elle ceroula e camisa nova, e principiou a sua obra de regeneração pela limpa do corpo.

Á tardinha, entrando Francisco com o feixe de capim que fôra cortar na baixa para o cavallo, ficou admirado de vêr a mudança de Lourenço.

A limpa corporal tinha sido completa.

Desappareceu o cabello sordido e especado, que fôra cortado rente, as rajas que desfiguravam a cara, as unhas que se podiam comparar com as garras dos carcarás. Lourenço mostrava-se agora na realidade outro do que viera. O banho geral que lhe foi dado por Marcellina o poz ao natural. A cara despojada da crosta terrena em que se envolvia como em mascara, attestava pela brancura que o menino era de boa origem. Os vasos azues desenhavam-se sob a cutis das faces, murchadas pouco antes, agora porem refrescadas pela ablução saudavel, e como remoçadas pela prompta reacção que é natural da meninice.

Conheceu-se então que o menino não era feio. Tinha a fronte espaçosa, os olhos rasgados e negros mas de desvairado brilho, effeito das insomnias que curtia; aquilino o nariz; bem proporcionada a boca; fendido o queixo. Lia-se-lhe porem no semblante movel e no olhar sorrateiro, sem deixar de ser observador, a desconfiança, que é uma das manifestações naturaes de quem se affez a obrar acções reprovadas, a cuja pratica se não animaria si lhe não fossem propicios os escondrijos, as trevas, os ermos, que promettem a impunidade e quasi a asseguram.

Mas Lourenço, posto que de todo solto desde os primeiros annos, não tinha certos vicios que rebaixam nas cidades populosas a infancia entregue a seu proprio e unico alvedrio e direcção. Elle era de indole máo, e cedendo ás impreteriveis e fataes leis do instincto, fôra arrastado innumeraveis vezes a cometter actos reprovados. Ignorante, porém, das vilezas qne os meninos aprendem nos collegios mal administrados, e que das mais puras e innocentes almas fazem pacientes e propagadores do enrêdo, da mentira e de vergonhosos prazeres que desnaturam as mais fortes e viris organisações, elle guardava ainda no coração intactos e como adormecidos os estimulos proprios do homem, que ainda mettido no charco das paixões, não lhes bebe a lama como a dos charcos bebem os animaes.

As paixões de Lourenço davam para a briga, o roubo, e até para o assassinio, posto que nunca tivesse tirado directamente a vida de ninguem. Causava-lhe prazer destruir as animadas e as inanimadas creaturas, que não eram bastantemente fortes para fugir ás suas arremettidas, ou resistir a seu genio demolidor. Mutilava as arvores, por despojal-as de uma parte de sua forma e fazel-as defeituosas. Dava pancadas nos cães por ouvil-os soltar gritos de dor. Com o padecimento mudo da arvore, e com o ruidoso do animal, elle se alegrava, porque era máo de coração; mas não usava habitualmente a mentira, a traição, nem tinha outros vicios feios e sentimentos vis que revelam da parte de quem os cultiva animo fraco e no todo desprezivel. Era o perverso da selva, duro, difficil mas não impossivel de vencer-se, e não o das côrtes, nojento, infame e tão fácil de prostrar-se quão impossivel de corrigir-se. Era o malvado ignorante, arrebatado, e não o corruptor manhoso, cortez, polido, muito mais damnoso do que o malvado, para o qual ha prisões e castigos; o corruptor entra em toda a parte impunemente, e com todos e com tudo communica a sua perversão: suas palavras adocicadas, os gestos insinuantes, os olhares, os sorrisos, os gracejos, os agrados, os serviços gratuitos, os presentes abrem-lhe o espirito infantil, o seio da família crédula e até o coração do amigo confiante. Dentro em pouco, de ordinario quando já não é tempo de atalhar o mal, sentem-se estes dominados da peçonha mortifera, e perdidos no conceito dos que tiveram bastante habilidade ou felicidade para evitar o contacto com o envenenador.

O sitio de Francisco, pelo lado do sul confinava com as terras onde o senhor do engenho Bujary tinha umas carvoeiras, que ficavam muito dentro. Não havia ahi casa decente, mas uma palhoça ligeiramente feita, onde se abrigava elle, quando vinha dar-lhes uma vista d'olhos. Para evitar que estranhos aproveitando-se dos cajueirais, fossem fazer carvão em sua ausencia, tinha alli o senhor de engenho um casal de negros idosos, cuja occupação não era outra que pôr sentido nas terras, guardal-as de intrusos, tratar dos cajueiros existentes e plantar novos afim de que se não extinguissem os cajueirais.

Para se ir á palhoça, distante ainda menos de metade de um quarto de legua da estrada, tomava-se por um estreito trilho que desta partia, dentre duas touceiras de capim-assú, e se mettia para dentro, occultando-se pouco adiante por traz das primeiras arvores da capoeira.

Um dia, já ao anoitecer, por occasião de Marcellina entrar para accender a candeia, Lourenço, que passára a tarde amuado sobre um tronco de macahybeira que jazia estendido ao pé da casa, largou-se pela estrada afóra. Pouco adiante, no ponto mesmo em que na estrada se entroncava a vereda, lobrigou elle ao longe Francisco, que tomava a casa. Deliberado a fugir da companhia dos seus bemfeitores, unica intenção que o fizera apartar-se de casa, o menino, para evitar o encontro com o matuto, enfiou pela vereda. Não sabia elle em que ponto ia ella morrer; mas parecendo-lhe que levava á lagoa, donde tinha visto de tarde chegar Marcellina com um braçado de juncos, e donde se podia ir ao caminho geral por um caminho particular que elle sabia, apressou os passos, e só parou quando, pressentindo gente perto da palhoça, tres formidáveis cães, açulados por Benedicto, molecote filho do casal de negros, lhe sahiram ao encontro, não para o receberem attenciosamente, como fazem com os de fóra os moradores hospitaleiros, mas para o despedaçarem com desabrido furor. Cercado de todos os lados, Lourenço mal se podia livrar dos temiveis defensores do escuso lar, quando de dentro da palhoça correu ao lugar do conflicto uma negra apercebida com um jagunço em attitude de quem o queria desancar.

— Quem é você? quem é você?—perguntou ella, sem fazer o menor gesto aos cães para que se acommodassem.

— Sei lá quem eu sou?! respondeu com maus modos, Lourenço agitado e colerico da estranha e inesperada recepção. Vi este caminho na beira da estrada e sem ter o que fazer enfiei por elle, para saber onde vinha dar.

— É mentira sua—retorquio a negra. Você veio atráz das minhas gallinhas, e está agora dizendo estas coisas. E eu que pensava que era a raposa que me estava dando no poleiro.

— Negra do diabo! Gritou Lourenço, cada vez mais zangado e irritado. Eu algum dia trepei no teu poleiro? O que eu sinto é não trazer na mão uma vara para te enfiar pela boca a dentro.

— Acuda cá, Moçambique, acuda cá. Estou ás voltas com o ladrão das minhas gallinhas—gritou a preta como possessa, e movendo o jagunço contra Lourenço.

Os cães entretanto, açulados por ella, e autorizados por este novo gesto hostil e aggressivo, já mordiam o rapaz pelas pernas como implacaveis inimigos, que de proposito se criam sem cortezia nem benevolencia para maior segurança dos lares confiados a sua guarda.

Quando Lourenço sentiu as primeiras dentadas dos terriveis animaes, atirou-se desesperado á preta, na intenção de lhe arrancar a arma, de que elle precisava, assim para se defender, como para castigar as offensas que tanto della como dos seus companheiros tinha recebido; e teria realizado o seu pensamento, si a esse tempo não se achasse junto com elles, trazendo um longo quiri, descascado ao fogo, o preto por quem a negra chamara em seu socorro.

O conflicto tornou-se então sério. O menino, o molecote, a negra, o negro e os cães tomando parte nelle com o empenho de ter cada um por si a victoria, formaram pelo bracejar e revolver vertiginoso um novelo, uma onda rotatoria, um medonho redemoinho do qual se levantava surdo rumor, produzido pelo respirar confuso, e abafado dos lutadores, e pelo rosnar da rabida matilha.

Lourenço era forte, segundo sabemos. Mais de uma vez atirou para longe um cão, para uma banda o moleque, para outra a negra. Mas os que elle assim afastava de ao pé de si tornavam logo mais exacerbados ao ponto donde tinham sido atirados e prolongavam o conflicto com furia e esforço novos. Além disso Lourenço achava-se desarmado, o que diminuia consideravelmente a sua grande força physica, incapaz para resistir ás dos inimigos, que eram gigantes em comparação da sua, visto serem elles numerosos e terem além das forças, instrumentos que contundiam, feriam e até despedaçavam. Com pouco mais sentiu-se enfraquecer. O sangue escorria-lhe de differentes pontos das pernas; os cães, ensinados desde pequenos a dilacerar os timbús, as raposas e os maracajás—hospedes inportunos do sitio, tinham-lhe rasgado importantes vasos, e cortado com seus poderosos colmilhos as carnes moídas das cacetadas. Lourenço estava quasi desfallecido, e só lhe faltava cahir para ser de todo victima e não se poder levantar mais.

Achava-se neste extremo apuro, e seus pés já iam resvelando na areia poida do terreiro da casa, aonde as evoluções desordenadas do conflicto tinham arrastado os que nelle eram parte, quando repentinamente, vencendo o borborinho, voz forte e vibrante fez ouvir estas palavras:

— Negro! Negro! Moçambique! Tem mão. Queres matar meu filho?

Os negros sobrestiveram espantados.

— É seu filho, seu Francisco? Perguntou Moçambique ao recem-chegado, que não era outrem que Francisco mesmo.

— É meu filho, negro do diabo.

— Então, perdôa, seu moço. Ninguem sabia. Perdôa a Moçambique.

Francisco, sentindo falta de Lourenço, e attrahido pelos primeiros latidos da canzoada, viera dar comsigo no lugar onde a sua benefica intervenção não podia chegar mais opportunamente.

Lourenço estava muito maltratado. Chegando á casa, cahiu de cama para não se levantar sinão depois de um mez. Nos primeiros dias não deram nada pela vida delle.

Este acontecimento, lastimavel por um lado, foi pelo outro providencial, e, para assim escrevermos, accentuou a obra de regeneração em que se empenharam aquellas duas almas que porfiavam para pôr no bom caminho o menino perdido e infeliz.

Preso pelas mordeduras e contusões á cama, Lourenço a quem nunca em Pasmado acontecera desastre que com este se parecesse, teve occasião de fazer irresistivel e fatalmente o juizo do seu procedimento desde o dia em que cahiu na laxidão das ruas, tabernas e ranchos. O senso intimo, até aquele momento obscurecido pela inexperiência e verdor dos annos, começou a reagir contra as camadas que o impediam de lhe mostrar as trilhas do dever e da sã doutrina.

Marcellina, habil e natural educadora, aproveitara-se do ensejo para aconselhar o menino, tomando lições do acontecimento, a não se encaminhar sinão para o trabalho e o bem.

— Que ias tu fazer, Lourenço, quando os cachorros e os negros cahiram sobre ti? Ias perder-te. Deixavas aqui pae e mãe, que olham por ti com amor e doçura; mettias-te por esse matto a dentro com risco de morreres de fome, de doença ou de mordedura de cobra.

— O que eu queria era ganhar o caminho que vai dar em minha terra—respondeu elle. O negro e a negra não me deixaram passar; mas elles hão de pagar-me este desaforo.

— E que ias ver em tua terra? Que foi que ella te deu? Máos exemplos e máos costumes. Que ias tu achar lá? A miseria, o sujo e o desprezo. No fim de contas serias recrutado e acabarias sabe Deus onde, com a farda nas costas.

— Cuida que eu tenho medo de ser soldado? Eu sou forte.

— Isso sei eu.

— E gosto de brigar e combater. Havia de vir uma guerra que eu mostraria para quanto sou.

— Assim que assentasses praça te arrependias logo da asneira feita. Pensas que o soldado tem licença para andar a toda hora por onde quer, como fazias tu antes de Francisco te trazer para o Cajueiro? Estás enganado. O soldado não tem a menor liberdade; é peior do que negro de engenho; não pode dar um passo sem ordem do seu superior. Es uma criança, Lourenço; não sabes ainda o que é o mundo. Accommoda-te com os bons e busca ser um delles. Ajuda-nos a trabalhar e a viver em nosso socego, que o trabalho por pouco que dê á gente, é sempre proveitoso e traz alegria e paz.

Quando se levantou da cama, Lourenço dava mostras de melhorado do genio trefego que foi causa da sua longa doença. Um grande fructo, quando outros se não podessem apontar, tinha produzido o recolhimento forçado do menino: Sahira-lhe de todo do entendimento a idéa de volver ao povoado donde viera. Aos olhos de Marcellina, que aprendeu sem que ninguem lhe ensinasse, a ler nas palavras e na physionomia de quem com ella tratava, os intimos pensamentos e intuitos, nenhum indicio de melhora podia parecer mais favoravel do que este. A fugida de Lourenço a Pasmado era o que ella mais receiava, e para tolher que semelhante desgraça viesse a succeder, ella liberalizava agrados e carinhos ao menino, e com espertos cuidados vigiava sobre elle a toda hora. Nada lhe recusava, mas tambem não o deixava pisar em ramo verde.

A estação veiu em seu auxilio na construcção da grande obra moral que tinha em mãos. Chegou dezembro. O tempo estava enxuto, não obstante se mostrarem os campos borrifados das chuvas-do-cajú, nome que vem a taes chuvas de serem ellas muito favoraveis a esta fructa. As larangeiras novas, que Francisco plantara de um e de outro lado da casa, curvavam-se debaixo do pezo das primicias do estio. Ao longe, para os fins do sitio, viam-se os abacaxis ostentando garbosos, dentre suas touças louçãs, o distinctivo que na ordem vegetal a todos lembrava a insignia civil da realeza.

Era a melhor estação do norte. Pobres, remediados e ricos apercebiam-se, sem excepção, cada qual conforme suas forças o ajudavam, para a festa do natal, época de folganças e divertimentos no campo, á sombra das arvores e dos rusticos alpendres.

Em toda a vasta zona assucareira da provincia os engenhos começavam a tirar sua safra; o que ficava do outro lado da mata, que sabemos—o engenho Bujary—tinha de botar dentro de uma semana.

O dia da botada não tem igual, pelo reboliço, que o caracteriza, na grande propriedade.

Ajuntam-se parentes, amigos e conhecidos para acompanharem o proprietario na sua alegria, e participarem das suas larguezas.

Francisco, a cujos bons sentimentos e qualidades devia o lugar que tinha diante do senhor do engenho, achou-se presente com Lourenço á festa rural, que offerecia ao menino novo e indizivel encanto.

Não obstante ser quasi nomada na povoação, nunca dahi sahiu este para assistir a festas semelhantes nos engenhos da freguezia pela distancia em que ficavam do lugar. De sorte que, penetrando agora com Francisco no engenho Bujary, experimentou desconhecido prazer.

Um padre veiu de proposito para dizer missa na capella e benzer a nova moenda, que se achava adornada com ramos verdes, lembrança e fineza dos negros. Depois da bençam, entregou elle ao senhor do engenho a primeira canna, que devia ser moida aquelle anno. O sargento-mór metteu-a entre os eixos da moenda, os negros açoitaram as bestas, levantaram hurrahs e vivas, varios moradores e convidados dispararam armas de fogo em signal de regozijo, enfim encetou-se a moagem.

Lourenço ficou ao principio admirado, perplexo perante aquelles acontecimentos inteiramente novos para elle; dahi a pouco, porém, já lhe faltou o tempo para beber do caldo de canna ainda quente, e mais tarde comer do mel-de-engenho sahido da tacha, subir á almanjarra e açoitar os animaes de companhia com os molecotes mais espertos.

Moços e moças formosas e elegantes, que tinham ido de Goyanna á festa, faziam agradaveis digressões pelos campos e oiteiros proximos da propriedade. Alguns jovens pescavam no açude, emquanto outros se mettiam pelos matos a colher cajús e a passarinhar.

Lourenço ouviu de noite, de sobre as palhas da canna onde se deitara ao luar, de fronte da casa-da-moenda, melancolicas e saudosas harmonias, que lançavam echos suavissimos em sua alma.

Eram as toadas com que os negros respondiam da porta da senzala, de cima da bagaceira, da almanjarra, do pateo da casa-de-purgar aos regozijos da casa-de-vivenda, onde os toques resoavam desacompanhados das altercações, a que dá lugar o demonio do jogo, então bem menos conhecido do que hoje do fazendeiro nortista.

Parece que se prepara grande guerra á canna-de-assucar no norte. Para levar a effeito este pensamento—o da destruição da planta abençoada, servem-se do de cultivar com largueza o café no interior das provincias onde até o presente se cultivou largamente a canna.

Não me leves a mal uma declaração que farei aqui, tocante á projectada revolução agricola.

Entristeço-me, meu amigo, a qualquer indicio de que á cultura da canna se trata de substituir cultura de planta diferente, seja muito embora esta da estatura e importancia do café ao qual desde pequeno me acostumei a votar grandes affeições. A razão é porque a canna-de-assucar me inspira intima e saudavel paixão, que não sei explicar, mas que tem em mim a extensão e a amplitude de uma elevada e pura estima. A meus olhos, ella não é uma planta, é um ente magico, e pittoresco. Vejo nela poesia e grandeza que irresistivelmente me levam a tributar-lhe culto do coração. Causam-me profundas alegrias seus bastos ajuntamentos, seus partidos virentes, acamados, com suas folhas, ora encurvadas, ora destendidas ao sopro dos ventos irados ou brincões. Essas folhas são como harpas giganteas, melancolicas, ternissimas, que as virações fazem vibrar docemente e que despedem harmonias eolias.

A vista da moagem produz em mim gratas alterações, e traz-me saudades da infancia, recordações veneráveis dos tempos felizes em que levando a vida entre a villa e os engenhos, entre a casa paterna e os paineis que a natureza expõe gratuitamente aos que para ella tem os seus principaes affectos e a sua primeira admiração, meu espirito adejava, como os sanhassús e os bem-tevis por sobre as folhagens, mergulhado alternativamente já em luzes, já em sombras, mas sempre enleado e passado de innocente contentamento.

Para o homem do norte o engenho de assucar é o representante de immemoriaes e gloriosas tradições. Especialmente o pernambucano nasce vendo com amigos olhos aquellas grandes propriedades que são como os seus castellos feudaes. O engenho é o solar do norte. A nobreza do paiz principiou por elle; não conheceu outro solar. Elle figura nas maiores paginas da historia daquella parte do vasto imperio. Sua importância é lendaria, historica e santa.

E querem agora que á canna-de-assucar se substitua o café! Promovem a extinção do giganteo elemento que produziu e perpetuou fortunas respeitaveis naquella grande região!

Aperfeiçoar os processos de cultura dessa planta illustre, a que Pernambuco deve brilho e grandeza imorredoura é digno do progresso. O direito sinão o dever de melhorar as condições da agricultura, do commercio, das industrias, está acima de toda duvida; mas supprimir um genero de cultura que tem por si a consagração de muitos seculos e elevou muitas gerações e opulentou a provincia, não me parece nem justo, nem acertado, nem economico.

Voz secreta e consoladora, dissipando os meus temores, segreda-me que tú, ó planta benfazeja—estandarte da independencia e da riqueza do pernambucano, seja qual fôr a conspiração tramada contra ti, não has de desapparecer das nossas planicies, dos nossos oiteiros, dos nossos valles e encostas, por onde estendes ha tres seculos tua folhagem hospitaleira.

A botada tendo cahido em um sabbado, ficou Francisco com o menino para passar o domingo.

De manhã muito cedinho, Lourenço achou-se de pé, contentando a vista no movimento que lhe offerecia a novidade. Não se fartava de ver os negros passar com feixes de lenha e de bagaço para alentarem o fogo da fornalha. Ia e vinha com elles, fazia-lhes perguntas sobre differentes coisas que observava, mas não comprehendia. Recebia as explicações com visivel prazer.

Notando que voltava aos partidos a buscar novos feixes de cannas, um carro que acabava de ser descarregado á porta do engenho, Lourenço saltou sobre a meza delle e deixou-se conduzir aos cannaviaes de assucar, coisa que para bem dizermos, só conhecia de nome.

Quando suas vistas adejaram por sobre aquelle mundo de verdura, experimentou sua alma indizível impressão de contentamento.

Eis o que o menino viu.

Formando um cordão os negros estavam alli a cortar com afiadas foicinhas de mão as cannas que outros iam despojando das folhas e atirando no campo, assim privadas da sua verde plumagem. Grandes pilhas dellas mostravam-se do meio do immenso tapete de folhas. As hastes, pouco antes graciosas, estavam agora nuas e sem elegancia. Sua formosa roupagem cobria o seu leito de morte.

Na vespera tinha sido distribuido aos negros fato novo, que elles traziam ainda sobre o corpo, visto que a festa emendara com o domingo. Com suas ceroulas e calças azues, seus chapéos de palha de pindoba, tão novos como a roupa, figuravam elles uma linha de soldados que derribava matos para assaltar fortificações inimigas.

Levando os olhos ao lado opposto ao de que vinha o córte, o menino só descobriu ahi estendido mares de folhas ondulantes. Eram os cannaviaes novos, que agitavam seus pannos de verdura ao sabor das virações campesinas.

Lourenço voltou do engenho perdido por elle. A festa tornára-o expansivo e contador de historias. Tudo o que com elle se passara, e o que vira, foi referido circumstanciadamente a Marcellina, não esquecendo o menino nem as quedas-de-corpo que pegára com outros meninos na bagaceira.

— Si meu pai tivesse um engenho, a coisa havia de ser outra—dizia ele de quando em quando no curso da narração.

— E porque não ha de ter? inquiriu Marcellina. Si tu nos ajudares, no fim de alguns annos poderemos comprar uma engenhoca, ou ao menos um torcedor. Do torcedor vai-se á engenhoca, e da engenhoca ao engenho. Tu bem vês que todos nós trabalhamos. Onde está Francisco? Foi à vila vender abacaxis. Eu, como vês, estou fazendo minhas esteiras para elle levar a quem as encommendou aqui adiante na encruzilhada. Só tu não trabalhas ainda. E queres um engenho! Sem trabalhares não has de ter nem de comer nem de vestir, quanto mais engenho.

Pensando comsigo só, Lourenço levantou-se sem dizer palavra, deu volta pelo sitio, e tornou á salinha da casa, que era a officina de Marcellina. Esta o vio arrastar um tamborete para junto della e uma rodilha de cipós para junto de si. Sentando-se no tamborete o menino cortou os cipós pelo modo e medida que Marcellina lhe ensinou, e eil-o a trabalhar pela primeira vez depois da sua chegada ao Cajueiro.

Vendo-o exercitar tão bem a sua actividade espontaneamente como tocado de celeste inspiração, Marcellina não pôde suster as lagrimas. Lourenço, a seus olhos, acabava de dar testemunho de emenda, resultado da constancia e paciencia com que ella o dirigia para o bem desde o dia de sua chegada.

Estava de feito alli uma conquista do seu esforço abençoado por Deus, inquebrantavel esteio dos crentes.

Uma manhã encaminhou-se Lourenço á mata, armado com um facão afim de cortar sambaquís de que precisava para umas gaiolas, que lhe tinham encommendado. Este serviço elle o costumava realizar nas horas vagas.

Trabalhar já era uma lei de seu espirito. Adquirir meios de comprar um engenho foi idéa que nunca mais o abandonou, antes constituiu a sua primeira e mais forte ambição. Por isso não perdia tempo, ou antes Marcellina o não deixava perder.

Tinham já passado muitos mezes depois dos primeiros acontecimentos referidos nos capitulos anteriores. Colocado em novo centro e sujeito a novas leis, Lourenço avançava admiravelmente na requesta do bem, despertando cada dia em seus pais, por seu procedimento, novas esperanças e sendo para elles origem de ineffaveis satisfações.

A transformação era obra das mãos delles, na qual se reviam não sem justo orgulho, como na fonte limpa, outr'ora charco, se revê o que lhe tirou as immundicies.

Por isso Lourenço era já, não sómente estimado mas acariciado pelos dois consortes que o consideravam o futuro esteio da casa, de seu natural fraca, o amigo e protector delles, quando velhos, de seu natural forte.

A esse tempo não era a habitação de Francisco a unica existente na estrada do Cajueiro. Obra de tresentas braças para o sul via-se outra de melhor parecer, de paredes de pedra e coberta de telha. Pertencia a um padre que, tendo por alli aparecido não se sabia como nem porque, fôra convidado pelo sargento-mór João da Cunha para capellão do engenho. O padre Antonio escolheu aquelle local para sua residencia, desprezando uma boa morada que o senhor do engenho possuia dentro do cercado, e até a residencia que lhe ofereceu na propria casa grande. Escolhido o local e feito o predio, o padre chegou-se a João da Cunha e lhe disse que de ha muito cumpria o voto de só morar em propriedade que fosse sua, e por isso lhe pedia declarasse por quanto vendia, com os respectivos terrenos, a casa feita. O sargento-mór, que achára aquillo singular, e enxergára no ato innocente do padre um assomo de independencia e altivez, não querendo por vaidade propria da nobreza daquelles tempos ficar por baixo, declarou que lhe dava de mão beijada casa e terrenos, e disso se lavrou termo.

O novo vizinho foi recebido com alvoroço pela familia do Cajueiro. Quem era que por então não tinha em alta estima o sacerdote da religião santa do Crucificado?

Francisco, saltando de contente, para me servir da phrase do povo, dizia a Marcellina que dava mostras de sentir dobrado prazer com a nova vizinhança.

— Bemdita foi a hora em que abri meu sitio nesta estrada. Olhe lá como o Cajueiro está honrado. E d'aqui a pouco já não haverá quem não queira vir levantar sua casa aqui por perto. Basta saber-se que o capellão de Bujary quiz antes morar no Cajueiro do que no engenho, para todo o povo correr para este ponto.

— É verdade, Francisco, é verdade, respondeu Marcellina. Temos agora bem perto de nós quem nos confesse e unja em caso de morte, o que Deus tal não permitta.

— E que gloria tenho eu de se dizer que fui eu que fundei o Cajueiro! acrescentou o matuto. Si elle não prestasse, não havia de querer morar nelle o capellão do engenho. O que eu quero é que a todo tempo se saiba que fui o primeiro morador deste lugar. Seu padre Antonio já me fez esta justiça. Ainda hontem elle virou-se para mim, quando fui lá vêl-o, em sua casa nova e me disse que eu que tenho olho para conhecer lugar de bôa moradia.

Por muito tempo levaram os moradores velhos a praticar neste sentido do novo morador. Da casa passaram ao homem physico, e do homem physico ao homem moral. Nada disseram delle na ausencia que não pudesse ser dito na presença. Ainda hoje a maledicencia não é qualidade característica do povo; naquelles tempos ainda o era menos.

O que Francisco disse do padre foi que sua pallidez e sua magreza indicavam que elle perdia noites de somno no serviço de Deus; Marcellina acrescentou que seus olhos pardos e como quebrados, seus sorrisos tristes, suas palavras simples revelavam consciencia limpa, desprezo pelo mundo e bondade de coração. Francisco ajuntou que já uma vez em Olinda tinha visto um frade com o qual muito se parecia o padre Antonio, por sua estatura média, a cabeça grande, a testa larga, o rosto comprido, as faces descarnadas. Emfim Marcellina, recordando-se de uma novena na igreja do Senhor-dos-martyrios, disse que a voz fraca e branda do sacerdote que fez ahi uma pratica ao povo, era a mesma do padre Antonio.

Nem o marido nem a mulher andavam longe da verdade. O padre Antonio tinha sido frade, e foi provavelmente no tempo em que ainda o era, que se encontrou com elle o matuto. Um anno depois de secularizado, de passagem para Parahyba, aposentou-se no convento do Carmo em Goyanna, aonde o foi convidar para dirigir a novena dos Martyrios um negociante que o conhecia quando elle pertencia á recoleta do Recife. É natural que ahi o tivesse ouvido Marcellina.

Elles não estavam tambem longe da verdade no tocante ao moral do padre Antonio. Grande era a sua humildade, publica a sua piedade, notoria a sua benevolencia, de que todos davam noticia no Recife, em Olinda, e na Parahyba, donde viera para Goyanna, fazia poucos mezes. Com serem frades, gente de seu natural maldizente—estes sim—, os do Carmo de Goyanna que o conheciam, nada contavam delle que o desabonasse. Só um delles—vejam o que são frades—explicava a secularização do padre Antonio dizendo que, realizando-a, não o fizera elle com outro fim que o de desimpossibilitar-se para herdar muitos mil cruzados de uma tia solteirona que lhe votava grande affeição. O certo é que a tia morreu, e o padre foi o unico herdeiro da fortuna deixada.

O que o padre Antonio era, quaes os seus sentimentos e dotes naturaes, sua piedade, seu intimo ver-se-ha melhor pela presente narrativa.

Lourenço sentiu inclinarem-se para o sacerdote os seus affectos, e teve por elle instinctivo respeito. Por sua vez o padre Antonio, que parecia saber já a historia do rapaz, não perdia occasião de o encaminhar para a honestidade e a virtude com a satisfação que enche o coração do varão recto quando se lhe depara a quem beneficiar.

Lourenço parecia tão mudado, seus sentimentos eram tão differentes dos que trouxera da povoação para a estrada, que difficilmente o padre Antonio acreditou tivessem sido praticadas pelo rapaz as feias acções attribuidas ao menino.

— Como è possível que a gente se transforme de semelhante modo? Dizia elle uma vez a Francisco. Ainda si tivesse recebido depois desses desatinos saudavel educação....

— Pois é o que digo a seu padre—respondeu o matuto. Lourenço parecia ter o inimigo no couro. Eu nunca vi menino tão endiabrado. Agora, quanto a ensino, o que elle recebeu foi o que lhe deu minha companheira; e parece que não foi máo, porque o rapaz já está outro.

— Bom ensino foi o que lhe deu tua mulher, Francisco. As mulheres são muito proprias para isso. Quando ellas querem, ninguem tem melhores meios de endireitar as voltas de uma indole torta e defeituosa.

— Dahi a pouco, o padre como si tivera um pensamento subito, uma resolução heroica, acrescentou:

— Quero prestar a vocês um serviço, que não é preciso me agradeçam, visto que tenho o dever de proceder assim. Quero completar a obra que levaram tão adiante. Vou ensinar a Lourenço as primeiras lettras. Lourenço, que já está bom, ficará melhor. Que dizes?

— Oh, seu padre! retorquiu o matuto, cujo semblante pareceu illuminar-se do reflexo de prazer que lhe vinha do intrinseco da alma. Não tenho expressões para agradecer a vosmicê tamanho beneficio. Quem me dera ver meu filho lendo carta-de-nomes. Eu já me contentava com isso só, porque quem lê carta-de-nomes, pode chegar a lêr um livro e escrever umas regras no papel.

— Deixa o rapaz, por minha conta, Francisco. Hei de ensinar-lhe a lêr e a escrever. Não é preciso que te mostres desde já tão agradecido por um serviço que ainda não fiz, e que, si grande valor deve ter para quem o recebe, nada custa a quem o faz; antes é seu dever prestal-o. Vai para tua casa e dize lá a tua mulher que todos os dias logo cedo—comecemos segunda-feira—mande cá o rapaz a passar comigo algumas horas. Não é preciso mais.

— Seu padre...seu padre... Deus é que lhe ha de pagar esta obra de caridade.

No dia aprazado, antes do menino entrar na casa do padre para receber a primeira lição, já Marcellina tinha levado pessoalmente umas macaxeiras, uma gallinha gorda e duas duzias de ovos para almoço do illustre vizinho, e jurado, com a eloquencia dos sorrisos e das lagrimas simultaneamente, gratidão eterna e infinita áquelle que se mostrava tão bom e generoso para a obscura creatura.

— Para que isto, Marcellina? inquiriu o padre, quando ella lhe fez entrega do presente. Eu ensino de graça e não por paga. Fica sabendo que ainda sem os teus mimos, hei de fazer este serviço ao pequeno. É obra de misericordia ensinar os ignorantes. Além disso, pelo meu sagrado ministerio, tenho obrigação rigorosa de lançar nas trévas do espirito infantil a pouca luz que tiver a meu alcance. Olha. Diz-me o coração que Lourenço ainda ha de ser almotacê em Goyanna.

— Deus o queira, seu padre, Deus o queira.

— E porque não ha de querer? Lourenço já está bom. Hoje já é merecedor das bençãos do céu, e da protecção dos homens de bem.

O que Lourenço pôz por obra na manhã supramencionada viu desmentir este conceito e palavras de seu mestre.

Tendo vagado durante algum tempo em busca de sambaquis, por dentro da mata, foi elle dar em uma trilha que lhe era ainda desconhecida. Tomou por ella, e, quando menos pensava, deu comsigo em um cajueiral que se perdia de vista. De um lado apparecia uma casa de palha, e por entre o arvorêdo, em parte bastantemente destruido pelos machados dos lenheiros, foi descobrindo immensos socavões, de alguns dos quaes sahiam ainda novellões de fumo negro. O rapaz reconheceu que se achava nas carvoeiras onde tempos atraz lhe tinham ido tão mal as coisas.

De proposito, e por incessantes recommendações de Marcellina, elle tinha, desde essa fatal noite evitado digressões por aquelle lugar, tão rico de bellas paysagens e frescos e apraziveis ermos. Agora, porém, inesperada e involuntariamente achava-se de novo alli. Lembrou-lhe incontinente o que ahi se passara; pareceu-lhe ouvir a matinada dos cães, e sentir nas carnes os dentes delles e o jagunço dos negros.

— Elles levaram a sua avante—disse instinctivamente comsigo mesmo—porque eu estava desarmado. Si nos encontrassemos agora, a coisa havia de ser outra muito differente. Já sou homem, e trago o meu facão, que está bem amolado. Eu havia de tirar a minha desforra.

Pincel fatal ou fatidico avivava em sua imaginação a cada passo, que dava o rapaz, as scenas do sanguinolento episodio, que parecia de todo apagado de sua memoria. Immediatamente os ferozes instinctos de outr'ora resurgiram violentamente como linguas de serpente ou de fogo em seu cerebro, exigindo prompta vingança.

Sem mais reflectir, Lourenço botou-se para a palhoça. Achou-a sem gente. Mas havia criação pelo terreiro, e debaixo do pequeno alpendre viu elle vasilhas de serviço diario, signal de que os negros ainda alli residiam.

Quando estava a olhar para uma banda e para outra, a ver si dava com algum dos antigos conhecidos, descobrio ao longe um vulto acocorado á beira de uma das covas que apareciam no vasto taboleiro de areia.

Encaminhou-se para ahi, saboreando com antecipada sofreguidão o prazer da projectada vingança.

O vulto era o moleque, já então quasi negro feito, que lhe tinha posto os cachorros em cima aquella fatal noite. Lourenço reconheceu-o logo nem foi preciso para isto esforço, visto que uma vez por outra o estava vendo, ora entrar, ora sahir do sitio.

— Que está você fazendo aí? perguntou elle com voz de senhor arrogante e provocadora.

Benedicto voltou-se espantado, e por unica resposta, vendo quem a elle se dirigia, proferiu estas palavras:

— Que quer saber? É da sua conta?

E com gestos e meneios de quem fazia pouco caso do visitante, deixou-se ficar na mesma posição em que se achava, a saber, de cocoras á beira da cova, e de costas voltadas para o seu interlocutor.

— Veja lá como fala—retorquiu Lourenço, aproximando-se. Não foi você quem me botou aqui ha tempos os cachorros em cima como si eu fosse alguma rapoza ou maracajá? Foi você mesmo, que nunca mais sua cara me sahiu da lembrança.

— Fui eu mesmo—respondeu Benedicto. E que tem que fosse? É você meu senhor, ou meu pai para vir fallar-me assim? Ora vá fazer seus balaios e suas gaiolas, e deixe-me socegado, que eu não faço conta de você.

— Este negro está enganado comigo, retorquiu Lourenço, como si dirigisse a terceiro. Então você acha que eu havia de esquecer aquelle desaforo? Eu não sou de Goyanna, sou do Pasmado; e si faço gaiolas e cestos, é para não fazer facas de ponta. Agora, quanto a dizeres, negro, que não me levas em conta, isto é coisa que é mais fácil de dizer, do que mostrar.

A esse tempo Lourenço achava-se já pertinho de Benedicto, e este estava de pé. As vistas de um cruzavam-se com as do outro como floretes manejados por dois inimigos, peritos no jogo, e curtidos no rancor.

De repente o olhar de Benedicto se perturba, e elle, de negro, que era, faz-se fulo. Pallidez mortal cobriu-lhe a face, ha pouco retinta como carvão. Tinha descoberto o facão, que Lourenço trazia e em cuja larga folha se reflectia a claridade do dia.

Lourenço aproximou-se mais do seu antagonista.

— Si és homem, disse ele, em atitude de quem estava mette não mette o facão no rapaz—repete as palavras que ha pouco disseste.

Vocé então quer brigar comigo devéras? Ora deixe-se disso. O que passou está passado.

— O que passou comigo não está passado, não, negro mofino e sem vergonha. Eu só sinto não encontrar tambem aqui os outros dois tições—teu pai e tua mãi—para dar a vocês todos um ensino de mestre com a folha deste facão. Mas não ha de faltar occasião.

Benedicto, que não era bom, encarou novamente com Lourenço, como quem sentia voltar-lhe o animo que fugira um momento. Tinha-lhe lembrado um recurso, que elle passou immediatamente a pôr em pratica.

— Você diz tudo isto porque tem ahi um facão na mão; si não fosse ele não tinha barbas para o dizer. Mas ainda estando com esse ferro e não tendo eu arma nenhuma, não faço conta de você, quanto mais meu pai e minha mãi. E para que fique sabendo, de uma vez por todas, que eu não me lembro de suas valentias, vou dizer-lhe uma coisa: se tiver o atrevimento de passar outra vez de noite por junto do polleiro, tenha certeza de que lhe hei de pôr os cachorros, como fiz da outra vez.

Ainda bem não tinha Benedicto finalizado esta innocente ameaça, quando Lourenço atirava para longe o facão.

— Para te quebrar os beiços, negro, eu não preciso de arma.

Era o que Benedicto queria; seu adversario estava desarmado. Então investiu contra elle como fera. Apparentemente, Benedicto representava ser mais forte do que Lourenço. As ceroulas azues arregaçadas até aos joelhos, deixavam á mostra pernas musculosas, que acusavam grande força physica. O negro mesmo tinha consciencia de sua robustez; do seu tope nenhum morador de quatro leguas em redondo lhe era superior. Por isso, tendo lá para si que podia com Lourenço, atirou-se sobre ele no pressupposto de o derrubar e pôr debaixo dos pés logo ao primeiro impeto.

Nunca porém uma falsa crença teve mais prompta e estrondosa desillusão. Agarrar-se com Lourenço foi o mesmo que se agarrar com um touro bravo. Mal sabia elle que, além da immensa força physica, de que nunca suppoz possuidor, tinha Lourenço meneios, geitos e passos que o habilitavam a dar em terra com o mais corpulento animal. Em um instante o trefego rapaz atirou o negro, não sobre a areia, mas dentro da cova proxima, onde havia um abysmo de fogo, parte ainda em chammas, parte já em carvões, mas ainda vivos e ardentes.

E esta operação, rapida como passar de faísca electrica, seguio-se um grito de agonia, que atroou os ares. Benedicto, que estava nu da cintura para cima, sentira no corpo, nas mãos, nos pés as dores trazidas pelo fogo.

Esse grito medonho e a vista que inesperadamente se apresentou aos olhos de Lourenço, produziram nelle subita commoção. O impulso de féra, que o levara a atirar na cova o adversario foi instinctivo, inevitavel, fatal: não lhe deu tempo a reflectir; tinha passado tão rapido como o pensamento, e em seu lugar estava agora a razão.

Lourenço correu a um toro meio queimado que se via a um lado sobre a areia, e, pegando delle, e mettendo-o immediatamente na cova, como si o fizera em um poço para impedir que se afogasse aquelle que aliás estava nadando em puro fogo, gritou da beira da cova a Benedicto, com voz commovida:

— Pegue-se neste páo e suba por elle para não se queimar. Eu nem pensei no fogo que havia ahi dentro.

Era ainda cêdo e o casal de pretos, inquilinos da palhoça, o qual tinha ido á Goyanna, a serviço do engenho, só poderia estar de volta sobre a tarde ou talvez no dia seguinte.

Quando Benedicto disse isto a Lourenço, sentiu este ainda maior abalo. A situação afigurou-se-lhe então mais diffícil e penosa do que ao principio lhe parecera. Quem trataria do negro, que se revolvia, em gritos, já salvo do fogo, mas preso das extensas queimaduras, sobre folhas seccas á sombra de um cajueiro proximo? Era possivel que elle ficasse assim desamparado por todo esse tempo? E os gritos de dôr que cada vez augmentavam mais, e o terror da situação que se tornava mais pungente e cruel, como resistir a elles sem tratar de os remediar?

Lourenço ficou abatido um momento, mas logo tornou em si e disse á victima dos seus máos instinctos:

— Não grites, não chores, que vou chamar minha mãi para tratar de ti.

Esta inspiração, que transluziu como reflexo de prazer intimo, em seu semblante, pouco tempo antes annuviado pela sombra do desgosto, rapida se desvaneceu, deixando em seu lugar no espirito do rapaz um sem numero de interrogações, cada qual mais acerba e atroz.

— Que dirá minha mãi quando souber do que eu fiz? perguntava elle em silencio a si mesmo. Para que tomei eu esta vingança? Porque não esqueci de todo a offensa passada? Minha mãi, meu pai, seu padre Antonio que já me quer tanto bem, que idéa ficarão fazendo de mim d'ora em diante? Um me chamará máo, outro cruel, outro deshumano, coração de tigre. Minha mãi dirá que perdeu comigo seus conselhos; meu pai dirá que, em lugar de trabalhar, ando eu fazendo mal aos outros sem me lembrar de que elle só me encaminha para o trabalho. E seu padre Antonio, oh meu Deus, seu padre, que se mostra tão meu amigo, de que modo não me ficará tratando d'ora por diante? Ainda ontem elle me fazia escrever esta passagem da Escriptura: «Que homem haverá por acaso entre vós, que tenha uma ovelha, e que, si esta lhe cahir no sabbado em uma cova, não lhe lance a mão para d'ahi a tirar!». [1] Eu fui o primeiro a atirar, por vingança e malvadeza, dentro de uma cova cheia de fogo, não uma ovelha, mas um meu semelhante! Oh meu Deus! Como vai ficar descontente de mim seu padre Antonio por eu ter praticado um acto tão deshumano.

Lourenço deitou a correr para que mais depressa chegasse o soccorro ao afflicto.

Quando Marcellina soube do que acontecera, foi ella propria com o marido e Lourenço buscar o negro queimado para a casa do Cajueiro, a fim de tratar delle, visto que, morando longe da palhoça, não podia estar a tempo e a hora prestando os serviços e cuidados de que precisava o doente.

Lourenço, quando punha os olhos neste, inclinava-os logo abatidos ao chão. O remorso, o desgosto, a vergonha pezavam como anneis de chumbo em suas palpebras.

— Para que fizeste isto, Lourenço, com o pobre rapaz? perguntou-lhe Francisco. Já me viste fazer alguma vez coisa semelhante?

— Eu não fiz isto por vontade—respondeu elle. Não me pude conter quando o vi. Lembrei-me do que tinha acontecido, e tive impetos de vingar-me. O ensino que vosmecê e minha mãi me deram não pôde vencer em mim o arranco que me atirou para aquelle de quem eu guardava uma grande offensa. Além disso elle me maltratou de novo, e me descompoz. Mas não foi por vontade, foi sem querer que eu o empurrei para dentro da carvoeira.

Era o máo natural, ainda não vencido de todo pelos edificativos exemplos e ensinos da familia o que tinha levado o rapaz a praticar tão feio acto.

— Que havemos de fazer para castigar a Lourenço sem páo nem pedra? perguntou Marcellina a Francisco.

— Procura lá em teu juizo um meio, Marcellina. Eu não quero dar-lhe pancadas.

— Eu nunca lhe puz a mão sinão para o accommodar ou limpar.

— Pois vê lá o que se deve fazer. A acção foi ruim, e deve ter um castigo.

Neste momento entrou a Quiteria, que vinha saber como tinha o filho passado a noite.

— Olhe, sinha Marcellina, disse a negra, o que mais sinto é meu filho perder tantos dias de serviço.

— Que quer dizer isto? inqueriu Marcellina. Pois a unica ocupação delle não era botar sentido aos cajueiraes?

— Esta era a obrigação que lhe deu meu senhor. Mas o tempo chegava para mais, e Benedicto já tinha ajustado limpar as cannas e a roça de um homem chamado seu Zeferino, que tem o sitio nos fundos da campina de meu senhor.

Marcellina reflectiu um momento, ao cabo do qual tornou à preta:

— Quero dizer-te uma coisa, Quiteria. Si o ajuste está feito, não digas nada ao Zeferino, que eu mando uma pessôa fazer o serviço. A paga fica pertencendo sempre a Benedicto.

— Como é isto, sinha Marcellina? Pois vosmecê me faz esta esmola, minha senhora? Oh, fico-lhe muito agradecida. E quem é a pessôa que vai fazer o serviço em lugar de Benedicto?

— É Lourenço.

— Seu Lourenço?

— É elle mesmo. Não foi elle que o botou dentro da cova?

A negra nada mais disse, e Francisco, sabendo da resolução de Marcellina ou, antes do castigo de Lourenço, approvou-o com satisfação.

Quando Benedicto se deu por prompto, Quiteria e Moçambique o vieram buscar.

Traziam estampado nos semblantes o contentamento.

Tinham recebido os cobres do Zeferino, o qual só fazia gabar o serviço de Lourenço. Os negros agradeceram pela ultima vez a bondade de Marcellina, e quando iam a sahir, esta os fez parar e lhes disse:

— Quando Lourenço foi fazer a limpa no sitio de Zeferino, havia oito dias que Benedicto estava de cama, não é verdade, Quiteria?

— É, sim senhora.

— Eu não quero que Lourenço fique devendo ao filho de vocês nem uma hora.

— Está tudo pago, está tudo pago, já e repago minha senhora—disse Moçambique.

— Não está; eu sei o que estou dizendo. O trabalho de meu filho nesses oito dias é aquelle.

E indicou uma porção de cestos e esteiras de cangalhas que estavam amontoados a um canto da casa.

— Tudo isso pertence a Benedicto. Não me deixem uma só esteira, nem um só cesto; levem tudo. Vendam, dêem, façam delles o que quizerem. Está completo o castigo de Lourenço. Com o seu proprio trabalho remiu elle a sua culpa.

Lourenço que assistiu á solemne entrega desses objectos, filhos das suas mãos, viu com lagrimas nos olhos elles passarem do seu poder para o daquelle, cuja vida puzera em perigo, e a quem déra tanto que padecer.

Mas nada disse. Os olhos baixos, o semblante abatido, o coração abalado, comprehendeu, do modo mais natural e positivo, que todo mal que praticasse d'ali por diante a outrem, seria praticado comsigo proprio, não resultando em offensa a sua pessoa, mas privando-o do resultado de sua actividade, que fosse necessario á respectiva indemnização.

Nunca elle tinha comprehendido tão bem, como nesse momento, que o homem que menos mal faz é o que está menos sujeito ao mal.

Quando os pretos sahiram satisfeitos e agradecidos, Marcellina dirigiu estas palavras ao filho:

— Estás vendo, Lourenço? Trabalhaste dois mezes inteiros para um moleque captivo.

— Foi porque vosmicê quiz—disse elle despeitado.

— Não, foi porque assim devia ser. De ninguem te deves queixar senão de teu máo natural, de ti mesmo. Deus queira que esta lição te aproveite. Lá se foi grande parte das tuas economias. Ficaste mais longe do que estiveste de poderes comprar um engenho.

Lourenço respondeu:

— Trabalharei de dia e de noite, e em pouco tempo hei de rècuperar o que perdi. Vosmicê hade ver.

— Deus permitta que isto aconteça.

Nesse momento entrou o padre Antonio, a quem os negros tinham contado o que pouco antes se déra.

Venho dar-te os parabens, Marcellina, pelo modo como castigaste teu filho. Approvo muito esta theoria. A pena de detenção corporal, quero dizer a prisão não repara o mal que vem do crime. Traz um constrangimento, um soffrimento physico ao delinquente, mas é esteril, sem resultado. Com excepção do crime de morte, o qual nem pela pena de morte se póde reparar, todos os mais crimes pódem achar justa reparação no trabalho. Ao crime de morte mesmo é possivel ás justiças arbitrarem uma reparação razoavel. Fizeste muito bem. E tu, Lourenço, não botes fóra a lição, que de muito te ha de servir na vida. Trabalha e tem fé na Providencia.

Notas do autor

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  1. (S. Mat. cap.XII vers.11)

Pouco distante do Cajueiro tinha Victorino sua casinha em um alto entre dois valles, por um dos quaes desciam uns cannaviaes escassos que ahi plantara, emquanto pelo outro apontava a roça graciosa que elle sempre trazia limpa e parecia sorrir feliz a todos.

Não foi preciso que decorresse muito tempo para que Victorino e Francisco se aproximassem, e suas familias criassem relações. A familia de Victorino compunha-se de sua mulher por nome Joaquina, e de Marianinha e Bernardina, filhas do casal.

Levado da sympathia natural que lhe inspiraram Francisco e Marcellina, convidou-os Victorino para padrinhos de Marianninha, que contava por então seus tres para quatro annos. Este novo laço veio estreitar mais as duas famílias matutas, que já se sentiam presas por mutuas inclinações.

Por isso, era natural—e assim aconteceu—que na primeira occasião Francisco levasse Lourenço á casa do compadre, o qual já o conhecia da garapeira, e delle déra noticia circumstanciada aos seus.

Acharam ali o menino muito bonito, muito forte, e especialmente muito artista. Este ultimo dote de Lourenço não obstou porém a que tivessem logo para elle vistas particulares o pai e a mãe de familia. No mato ainda hoje se contractam casamentos com grande facilidade e antecipação; ainda bem uma menina não se põe moça nem um menino rapaz quando os pais fallam em unil-os pelos laços do santo matrimonio e assim que attingem a idade necessaria, os noivos são recebidos á face da igreja. O melhor é que essas uniões prematuras quasi sempre produzem bons fructos. Contrariamente succede nas cidades e capitaes adiantadas. Aqui não direi os casamentos assim contrahidos, mas até aquelles a que precederam longos noviciados não são muitas vezes sufficiente seguro de paz e felicidade no lar.

Poucos annos depois da apresentação de Lourenço em casa de Victorino, já Marianninha, que desde os primeiros tempos sentira grande inclinação para elle, alimentava a esperança de ser sua mulher. Era isto o resultado das conversações particulares na casa do foreiro, das commentações e gracejos das meninotas das vizinhanças, emfim das supposições dos conhecidos a quem não eram estranhas as relações das duas familias.

Não tinha então Marianninha mais de doze annos, mas já pensava na fallada união com tal constancia e satisfação que só com isso se considerava feliz. Lourenço era o passarinho verde dos seus sonhos infantis, a feiticeira imagem que tinha o primeiro lugar nos seus brinquedos de bonecas, e lhe enchia o espirito de suavissimo explendor, de dia quando ella trabalhava, de noite quando se entregava ás enganosas scismas da primeira idade.

Ao menino já não succedia o mesmo que á menina. Si estava alegre e brincão, bastava fallarem no casamento, para que em seu rosto se mostrassem indicios de desprazer. Fugia, amuava-se, e só aparecia de novo d'ahi a tempos.

Outras vezes vingava-se das finezas de Marianninha respondendo com demonstrações de pouco caso.

Eis o que aconteceu um dia em que se achou com Francisco em casa de Victorino, por occasião de uma arranca de feijão.

Os dois dias anteriores tinham sido empregados neste serviço. Em frente da casa viam-se os couros estendidos sobre os quaes Victorino, a mulher, as filhas, e seu sobrinho Saturnino tinham atirado a herva trazida ás braçadas da plantação.

Com tres tijelas de feijão mulatinho, uma do feijão branco e outra do preto que Victorino plantara pela varzea que ficava do lado da casa e pelos pés dos altos que do outro lado a cercavam, esperava elle apanhar tantos alqueires que lhe dessem para todo o anno. Parece que o calculo não ficou longe da realidade, visto que no serviço da arranca andaram empregados durante dois dias todos aquelles braços.

Ao dar com os olhos sobre os grandes montes de vagens e ramas atiradas em cima dos couros, disse Francisco:

— Sempre cuidei que eu bateria primeiro o meu feijão do que você o seu, compadre Victorino. Vejo agora que me enganei.

— É verdade, compadre Francisco.

— E boa apanha fez você. Que putici! Dá bem seus dois alqueires.

— É quanto espero apurar.

— Mas parece que ainda era cedo para arrancar esta herva. Vejo ainda tantas bagens zarolhas entre as seccas.

— Nem por isso. Elle já estava estralando ao sol mesmo no pé.

— Como está a comadre? Como passam as meninas?

— Nenhuma quer morrer, não, meu compadre.

— Fazem elas muito bem.

— A comadre como ficou?

— Trabalhando com seus cestos.

Appareceu nesse momento Joaquina na porta da casa, as mangas do vestido para baixo, o cabeção de rendas a mostra, os pés no chão.

— Por isso é que o dia amanheceu tão bonito. É porque o compadre Francisco tinha de apparecer hoje por aqui.

— Não presto mais para nada, comadre. Mas porém já fui um cabra mesmo pimpão. Muita mulata bonita já se remecheu por mim ouvindo-me cantar ao som da viola, em noites de luar. Hoje deixo isso para esta mocidade que se está enfeitando, para esses frangotes que como a nossa criação vão enchendo os nossos terreiros.

E apontou para Lourenço e as raparigas que nessa occasião conversavam entre si. Estas não se demoraram a vir comprimentar o matuto. Marianninha chegou-se para bem parto delle, e, estendendo a mão direita, disse, córada e confusa:

— Sua benção, meu padrinho.

— Deus te dê um bom marido.

— Isto é que é o mais custoso—observou Joaquina.

— Ha de apparecer, ha de apparecer, tornou Francisco.

— Tambem si ha de ser algum vadio, algum preguiçoso que não tenha animo nem para peiar um cavallo, melhor será que esteja ella solteira ahi dentro de casa; acrescentou Victorino.

Neste tom correu a palestra ainda por alguns minutos, Lourenço conversando a mór parte do tempo com Bernardina, e Victorino e Joaquina com Francisco.

Entretanto o dia ia crescendo, o sol subindo e o feijão estalando no terreiro: o que levou Francisco a dirigir esta pergunta ao compadre:

— Para quando guarda bater o feijão?

— Estou esperando por meu sobrinho Saturnino, que ficou de voltar, mas ainda não chegou.

— Ora! Aqui estou eu e o Lourenço para o ajudarmos. Eu não tenho que fazer hoje. Dei este salto até cá por distrair-me.

— Pois si você quer, vamos a isso.

Francisco chamou pelo pequeno. Para terem mais desembaraçados os movimentos tiraram as camisas; assim—nùs da cintura para cima—ficaram inteiramente á vontade e conformemente ao costume do campo. Cada um pegou então do seu cacete, e começaram a surrar a grande tulha que primeiro se lhes offereceu á vista.

As mulheres, pelo sentimento de pudor que lhes é natural, especialmente no campo, não obstante lhes faltarem as saudaveis praticas, presente da educação, tinham-se recolhido antes á sala da casa, e ahi se entregaram a differentes generos de occupações. Bernardina, sentada em uma esteira de juncos, e Marianinha em um couro de cabra, faziam companhia, tendo cada uma entre as pernas sua almofada com vistosas rendas, a Joaquina que, pousada no chão, com as pernas estiradas uma sobre outra, fiava em um fuso pastas de alvissimo algodão que ella ia tirando de dentro do balaio, onde trazia um montão dellas abertas.

Dahi a pouco Bernardina entrou a cantar para si umas lettras matutas, emquanto sua mãe repetia os pés de um bemdito que de costume tirava sempre que se punha a fiar. Era lembrança da missão que um capuchinho fizera em Goyanna annos atraz. Marianninha guardava silencio. Ouvia com attenção as toadas das duas cantadeiras, porém mais attentos do que os ouvidos tinha ella os olhos, que de quando em quando levava furtivamente da renda a Lourenço por uma aberta da porta pela qual entrava com a imagem do rapaz um pedaço de céu azul.

O amor que Marianninha votava a Lourenço, vinha dos primeiros annos mas já era ardente, continuado, exclusivo. Nasceu no momento em que o menino foi apresentado á familia. Remontemo-nos a esse momento. Victorino tinha dado do menino as peiores informações; mas sua filha o achou tão bonito que ficou escrava delle. Tinha ido Victorino abrir um roçado dentro da mata que lhe ficava por traz da quadra de terra que o senhor do engenho lhe déra para cultivar. Como não era muito grande o espaço concedido, da casa ouvia-se o ruido que, ao cahir, produziam com as folhagens e as arvores derrubadas pelo poderoso machado foreiro. Ao ruido das arvores; ao ciciar da viração por entre a folhagem de um pé de massaranduba, que ficava de um lado da casinha; ao cantar dos chechéus poisados esse momento sobre as bananeiras do quintal, Marianninha, que na occasião de chegarem os hospedes, estava no terreiro brincando com suas bonecas, sentiu que despertára novo sentimento em seu coração. Esse sentimento não se confundia com o que ella experimentava minutos antes ouvindo os mesmos rumores e o mesmo canto; era differente, posto que acompanhado do mesmo natural cortejo.

A manhã estava esplendida. O sol aquecia, sem queimar as plantas e os animaes, vivificando-os. As vastas sombras dos matos e dos oiteiros, projectando-se sobre o capinzal donde iam desapparecendo os ultimos pingos da orvalhada brilhante da noite, poder-se-hiam comparar com as folhas fechadas de um livro immenso—o livro da natureza. Poucas horas depois essas folhas estavam de todo abertas, a luz patenteava nellas muitas bellezas, que a sombra occultava antes, a saber, as moitas figurando ninhos virados, as flôres inodoras, mas lindas, que costumam nascer pelos sopés das montanhas, as rolinhas, de duas em duas—modelos da união dos dois sexos estreitada pelos laços do affecto natural, modesto e sobrio que Deus plantou no coração dos irracionaes, e que só a razão, ou antes, a obliteração della perturba na especie humana—depinicando silenciosas, a fazer voltas em sentidos oppostos e a encontrar-se depois, como para affirmarem mutuamente que nunca jámais se separariam, a não ser momentaneamente. Nenhuma dessas manifestações da vida campestre, nem mesmo o conjuncto de todas ellas tinha despertado no coração de Marianninha o sentimento brando e indefinivel que ella começou a conhecer d'alli por diante. Francisco e Lourenço não se demoraram, tiraram para a mata a falar com Victorino; a impressão porém que a assaltou, quando ella viu pela primeira vez o menino, e que depois, acrescentada pelas relações de amizade e pelo tempo, se agigantou a ponto de constituir-se um mundo, uma immensidade, essa perdurou para sempre não só em seus olhos, enchendo-os de novos brilhos, mas em toda a sua alma, povoando-a de nuvens rosadas e de paysagens verdoengas.

Eis porque Marianninha olhava agora ás furtadellas para o rapaz, achando graça particular no modo como elle botava o cacête sobre a tulha do feijão.

Seriam dez para onze horas quando deram principio ao trabalho.

Com o calor e as cacetadas os caroços entraram a separar-se dos longos estojos. Duas horas depois um montão de pó cobria grossa camada de sementes alvas e luzidias. Então os batedores suspenderam os cacetes e entraram para descansar. Victorino foi direitinho a uma botija que estava sobre a mesa, e derramando aguardente dentro de uma chicara, offereceu o refrigerante licor ao compadre. Este não se fez rogar; de um trago enxugou a vazilha. A Lourenço, que não bebera do espirito, offereceu nesse momento Marianninha uma tijellinha com cajuada. A menina tinha preparado com suas proprias mãozinhas este refresco. Já então se achava ahi o Saturnino, que não podendo ver com bons olhos o agrado, quiz, com o pretexto de gracejar, tomal-o das mãos de Lourenço. Este porém entregou-o, sem a menor opposição, ao sobrinho de Victorino, dizendo-lhe estas palavras:

— Tome para você. Não gosto de ponche de cajú.

Marianninha, córando de contrariedade e confusão, voltou a trocar os bilros em sua almofada. Ella não queria mal ao primo, mas desde esse momento começou a tratal-o com manifesta frieza.

Entrava a esse tempo na sala a Bernardina trazendo um pedaço de canna. Lourenço foi-se a ella, no momento mesmo em que a menina o offerecia a Saturnino, e o arrancou da sua mão com sorpreza. Esta violencia irritou a moçoila que sem hesitar se atirou ao rapaz a fim de retomar a propriedade. Elle resiste. A resistencia leva a rapariga a insistir cada vez mais na sua resolução. Agarram-se os dous corpo a corpo. Agarrarem-se assim foi o mesmo que se abraçarem naturalmente. Os cachos dos negros cabellos da matutinha roçam pelas faces do travesso rapaz. Com ou sem intenção, conchega este aos seus seios os seios boleados da rapariguinha gentil e offegante. Era já tempo de Saturnino interpor-se e elle, comprehendendo a gravidade da luta, não se fez esperar.

Separam-se logo os discordes, um deles—Lourenço—com o pedaço do doce fructo disputado, o outro—Bernardina—com as mãos vasias.

— A canna não é para você, Lourenço—disse ella, resmungando com raiva. Eu a guardei para Saturnino.

— Ora deixe-se disso—respondeu o endiabrado rapaz. Saturnino ainda achou pouca a cajuada que lhe dei? Si quizer canna, vá cortal-a na baixada. Esta é minha. Está doce que sabe já a assucar.

Travou-se então um dize tu, direi eu que só teve fim quando os rapazes foram chamados pelos velhos para continuar o serviço interrompido. Ao sahir para o pateo, Lourenço, pondo os olhos casualmente em Marianninha, achou-a pallida e séria como nunca a vira. A menina tinha a vista pregada na renda, como estava esta pregada na almofada pelos espinhos de cardeiro que nella serviam de alfinetes, segundo era de costume por esses tempos entre os pobres. Marianninha não teve mais para o seu noivo in petto olhares nem sorrisos nem attenções durante o restante do dia. Quando á tardinha, levantado o papelão, que Joaquina lhe dera por tarefa, ella foi com sua mãi e irmã sessar o feijão na urupema para o expurgar da areia e do barro original, a menina tinha no rosto a grave expressão que é própria não da filha mas da mãe de familia. O despeito e o ciume mordiam pela primeira vez seu coração, antes merecedor do contentamento ineffavel a que ella aspirava, do que do pezar profundo que ahi tinham deixado os dentes envenenados destas duas serpentes interiores. Assim se passou esse dia, que projectou sombria nuvem, em forma de espectro ou de ave agoureira, na imaginação da pequena.

Tempos depois Francisco, levando em sua companhia Lourenço, fez nova digressão á casa do compadre.

Eram todos no roçado quebrando milho, que devia ser batido como fôra o feijão.

— Sempre chego em occasião de trabalho, compadre Victorino, disse Francisco.

— É verdade.

— A razão é porque meu compadre Francisco é muito trabalhador, observou Joaquina.

— Adeus, meninas.

— Sua benção, padrinho, disse Marianninha.

— Boa tarde, seu Francisco, acrescentou Bernardina.

Lourenço deu o andar para onde estava esta ultima, e baixinho lhe perguntou:

— Lembra-se ainda do pedaço de canna? Está zangada comigo?

— Eu não, respondeu ella.

— Eu fiz aquilo sómente para metter raiva a Saturnino.

— E você para que é máo, Lourenço?

— E você para que faz tantos agrados a elle?

— E você que tem com isso?

— Bernardina! Bernardina!

— É melhor que vá se importar com Marianninha, que é sua noiva e mais dia menos dia virá a ser sua mulher.

O semblante de Lourenço fechou-se subitamente. Mais depressa nuvem escura não cobre a face risonha de estrella gentil e namorada.

— Está bom, disse elle com visivel contrariedade. Eu não quero destas graças comigo.

E pois estavam conversando em vozes tão moderadas que ninguem podia ouvir o que diziam, Francisco, a quem não pareceu muito agradavel este colloquio, dirigiu-se nos seguintes termos ao filho:

— Ó Lourenço, vai ajudar alli a comadre, que mal póde com aquele braçado de espigas.

Em vez de levar a mal, o rapaz acceitou com as duas mãos o recurso, que se lhe offerecia, e foi prestar os seus serviços á Joaquina, não só tomando sobre si parte da carga que ella trazia, mas quebrando o milho maduro que encontrou em suas proximidades.

O aspecto do roçado era o mesmo que offerece qualquer destas plantações em occasiões identicas.

Em um ponto central via-se um montão de espigas seccas. Junto dellas estava Bernardina sentada sobre umas palhas. Sua obrigação consistia em as ir descascando e prendendo depois, de duas em duas, pelo filete de palha, de proposito deixado em cada uma para facilitar não só o trabalho da contagem sinão tambem o da conducção. Depois de assim atadas atirava-as para outro ponto, do qual tinham de ser levadas para casa.

O milharal, posto que na mór parte ainda de pé, estava quasi todo secco. As espigas volviam-se para a terra que alguns pés, dobrados pelos ventos fortes, beijavam com os pendões em sua maior parte despidos das flôres de que se compunham.

Quebrando aqui, alli os fructos, foi-se Francisco mettendo pelo roçado a dentro até chegar ao lugar onde estava a filha mais nova de Victorino.

— Venho ajudar-te, Marianninha, disse elle.

A menina tinha sobre os hombros alguns atilhos, de sorte que parte das espigas lhe cahiam por cima dos seios e parte se derramava pelas costas.

— Para que tem esse trabalho, meu padrinho? Estamos já acabando.

— Como me acho aqui, quero perguntar-te uma coisa. Tu estás mal com Lourenço?

— Porque vosmecê pergunta isso?

— Porque ainda ha pouco vi todos fallarem com elle, menos tu. Que é que houve entre vocês? Eu não gosto de malquerenças.

A menina parou involuntariamente. Seu braço direito que nesse momento ella tinha alçado para uma espiga, descahiu com si força occulta e desconhecida o fizera gravitar para a terra. Os olhos, vencidos pela mesma influencia, tendo relanceado primeiro para o matuto, cravou-os ella irresistivelmente no chão.

Conhecendo que tocára em uma ferida encoberta, Francisco adiantou-se a diminuir-lhe o vexame.

— Eu sei que tu gostavas de Lourenço até bem pouco tempo. Como é que apparece agora esta rixa?

Passado um instante, a rapariguinha respondeu, accêso o rosto em suave rubor:

— Mas elle não gostava de mim.

— Quem foi que te metteu isso na cabeça?

— Era preciso que alguem me dissesse o que eu estava vendo com os olhos?

— Engano teu.

— Não estou enganada, não senhor. Lourenço não se importa comigo.

— E tu não queres mais bem a elle? Anda, falla. Eu bem sei que tu gostas do pequeno. Si és capaz, nega.

Tomada da maior confusão, Marianninha não soube o que responder.

— Dize o que te pergunto—insistiu o matuto. Eu guardo segredo. Não tenhas vergonha de mim.

— Eu não sei disso—retorquio a menina, entre satisfeita e triste.

— Não sabes? Então quem é que ha de saber?

A filha de Victorino cahio novamente na mudez de ha pouco.

— Deixa estar, Marianinha, tornou Francisco. Lourenço hade casar comtigo. Si não fôr por gosto, ha de ser contra a vontade.

— Contra a vontade? Não, assim não—disse ella.

— E porque não ha de ser por gosto?

— Eu sei.. Elle não me quer bem, não. Si elle quizesse, me tratava de outra moda.

— Como é então que elle te trata?

— Eu não sei dizer como é, não, meu padrinho. Eu só sei que Lourenço é máo e ingrato.

Triste e cabisbaixa, a menina poz-se a chorar. Era muito intensa a dôr que feria seu coração.

— Não chores, pequena, disse Francisco abalado. Hei de fazer que elle venha a casar contigo. Pede bem a Nossa-senhora-da-conceição que eu não morra. Tanto farei que elle mesmo é que me ha de pedir licença para dar este passo.

Secreto pressentimento porém, dizia á menina, não obstante este formal compromisso do matuto, que nem o coração de Lourenço nem sua mão lhe pertenceriam jámais.

Entretanto a esperança que taes palavras infundiram em seu espirito, entrou ahi como luz serena e divina.

Momentos depois, voltaram todos para casa, conduzindo as mãos-de-milho. A uns derramavam-se espigas pelas costas, a outros cahiam os atilhos dos braços, ou das mãos. Marianninha, emquanto os demais tinham a attenção concentrada na colheita, volvendo em torno de se seus bellos olhos, ha pouco cheios de lagrimas, agora repletos dos fulgores do contentamento intimo, que se revelava, não por palavra mas pela luz do olhar meigo, pelo rapido sorriso, pela irradiação suavissima do semblante, tinha bem diversos pensamentos. Nas sombras crepusculares que começavam a cobrir a solidão ella descobria encantos e primores naturaes, que momentos antes, de caminho para o roçado, debalde buscara na verdura da natureza, formosamente illuminada pelo clarão immenso do sol.

Nem com entrar em seu espirito acompanhada das sombras e dos mysterios do deserto tinha para ella menos brilho e formosura a esperança.

Numeroso foi o concurso de pessoas de alta e distincta jerarchia durante a noite da vespera e o dia de S. João de 1711 no engenho do sargento-mór João da Cunha.

Esta respeitavel companhia compoz-se dos cavalleiros que diremos: os irmãos André Cavalcanti, Luiz Vidal e Cosme Bezerra; Filippe Cavalcanti, capitão de ordenanças; Jorge Cavalcanti, sargento-mór; José de Barros Cavalcanti; Mathias Vidal de Negreiros, sargento-mór honorario, e filho natural de André Vidal de Negreiros, o restaurador da Parahyba; Martinho de Bulhões, que veio do engenho Itambé, onde morava com seu sogro Mathias Vidal, a quem o dito engenho pertencia, bem como todas as terras da povoação fundada por aquele restaurador. Além destes apontavam-se outros muitos proprietarios e autoridades de Goyanna, mais ou menos ligados, por laços de parentesco, amizade ou dependencia particular com o senhor do engenho.

Foi uma festa que muito deu que fallar, não tanto pelo brilho, como principalmente pela concurrencia. Dos principaes nobres da villa não faltou nenhum. A posição social e politica de João da Cunha; sua procedencia illustre; seus haveres geralmente tidos por avultados asseguravam-lhe grande respeito da parte dos seus vizinhos.

Houve quem viu no importante ajuntamento, logo que elle se annunciou pela voz da fama, um pretexto para tratarem em familia e em secreto os nobres de Goyanna dos seus interesses ameaçados pelos mascates do Recife. Nem era mister grande penetração para fazer esta conjectura, depois do rompimento destes contra aquelles, rompimento que se realizou em 18 de junho do anno apontado, de uma para duas horas da tarde.

Para que fique inteirado do necessario o leitor que não fôr muito versado no conhecimento das lutas politicas de nossa terra nos tempos coloniaes, indispensavel nos parece examinarmos aqui, postoque de relance, a causa da agitação dos espiritos na época em que se passou esta historia.

De que procedeu o sobredito rompimento? De quererem os negociantes do Recife que esta povoação passasse a villa, e de o não quererem os nobres da cidade de Olinda. Qual a razão de quererem os negociantes do Recife e de não quererem os nobres de Olinda que passasse a villa aquella provação, que aliás já tinha sido cidade no dominio hollandez, por suas excellentes vantagens naturaes, posição physica, e principalmente por ser porto de mar e offerecer facil ancoradouro? A razão era porque, sendo o Recife quasi em sua totalidade habitado por negociantes portuguezes, passariam estes a ter, com a elevação da povoação a villa, preponderancia no senado da camara, e por seus votos poderiam reduzir a nada, visto que o seu numero era grande, os nobres da cidade na taxação dos generos, na arrematação dos contractos, em fim na governança que até então tinha sempre andado nas mãos da nobreza da terra. Um chronista, contemporaneo da guerra dos mascates, escreveu sobre este ponto as palavras que trasladaremos para melhor comprehensão do leitor. São as seguintes:

«A dar-se ao Recife o termo que o governador queria, perdia a nobreza do paiz; porquanto, igualando-se os nobres aos mascates, e sendo estes muito mais numerosos, vinham aquelles a ser excluidos nos pelouros dos lugares da republica; perdiam as rendas publicas na arrematação dos contractos, porquanto, sendo os arrematantes os mascates, e compondo estes o senado, perante quem se arrematavam, vinham elles a ser juizes e partes, e a seu salvo podiam arredar da arrematação os nobres que quizessem lançar; perdia finalmente toda a população productora, porquanto, competindo aos almotacés taxarem os preçós dos viveres, e sendo o almotacé do Recife mascate, seguia-se, como se seguiu, que os generos conduzidos a mercado pelos matutos se taxassem em preço mui baixo, e os que vendiam os mascates taberneiros se estimassem em subido preço».

Por onde se vê que nem era de todo sem fundamento o odio que nobres e mercadores se votavam mutuamente, nem a guerra a que esse odio deu lugar podia faltar em rebentar com a vehemencia e crueza que a caracterizaram. Emfim, a luta era menos de fidalgos e peões do que da agricultura ameaçada de ruina, e do commercio que apparecia como tyrano. Não ha luta mais fatal e terrivel em seus resultados do que a em que se empenham dois principios que devem constituir, nas épocas normaes, um só elemento de prosperidade publica, servindo cada qual de complemento natural do outro. Estamos por isso muito distantes dos que nesse memoravel movimento querem ver, antes um testemunho de ridiculos preconceitos, costumes e educação dominantes no seculo proximo passado, do que a séria collisão de interesses que ainda em nossos dias podem trazer, achando-se em desacôrdo como então se acharam, resultados ainda mais tristes e lastimosos.

Emquanto as pretensões dos mercadores não passaram de tentativas mallogradas, mantiveram-se as coisas em saudavel equilibrio. As pretensões, porém, de que é alma o interesse pecuniario ou a ambição de riquezas difficilmente se resignam a completa renuncia. Quando menos se espera ellas fazem explosão, e só então se reconhece que o silencio em que por algum tempo estiveram a modo de sepultados, não foi o silencio da morte, mas o da concentração espiritual e o do estudo dos meios de dar vitoria á dita ambição.

O governador a que allude o chronista na passagem sobremencionada, era Sebastião de Castro Caldas. Não foi o primeiro que chegando a Pernambuco e deixando-se quasi dirigir por seus conterraneos mais exaltados na sua pretensão capital, representara a el-rei a favor da creação da villa. Antes delle já o tinham feito alguns outros, inclinados sempre a proteger os interesses dos seus patricios. Nenhum, porém, o fizera com tão fortes razões como o novo governador, homem de grandes espiritos, de animo ousado e tão dado á pratica de actos de despotismo que o proprio rei lhe extranhara asperrissimamente, em data de 7 de outubro de 1709 o «ter invadido a jurisdição dos ministros, soltado presos, mandado tirar devassas, suspendido no procedimento della despoticamente, abusado das regias leis e provisões e commettido outros absurdos e excessos de grande prejuizo á boa igualdade da razão e em grande damno da justiça dos povos de Pernambuco.»

É fama que pouco tempo depois de haver entrado no exercicio do seu cargo, um negociante lhe foi dizer (não se sabe si havia verdade ou enredo na historia do officioso senhor) que alguns pernambucanos tinham jurado repetir com elle, si mettesse a tomar o partido dos do Recife na criação da villa, o mesmo que seus antepassados tinham praticado com o governador Jeronymo de Mendonça Furtado no seculo anterior.

A isso respondeu Caldas:—Si são nobres e tem, segundo dizem, por si o popular da capitania, repitam o procedimento dos seus maiores. O que eu lhes asseguro é que não hei de imitar Mendonça Furtado, e que, desembainhada a minha espada, não a metterei novamente na bainha antes de embebida no coração do primeiro conjurado.

Não aconteceu assim porém. Levado do capricho pessoal, ou do interesse, ou do odio, ou da vaidade de dar mostras de ser capaz de arrostar com a opposição da nobreza de Pernambuco em pezo, fez reiteradas instancias ao ministerio e ao rei para que se realizasse a elevação do Recife a villa. Esta elevação foi afinal ordenada pela carta regia de 19 de novembro de 1709; mas, como se verificaram logo no acto da divisão de novo termo grandes vexames e violencias, irritaram-se mais os animos de parte a parte. Caldas respondeu á reacção dos pernambucanos notaveis mandando-os prender. Foram do numero dos presos Leonardo Bezerra Cavalcanti, seu irmão Manoel Cavalcanti Bezerra, Luiz Barbalho, Afonso de Albuquerque e outros. O triste exemplo, produzindo impressão de terror em varios agricultores, obrigou-os a deixar suas propriedades e occultar-se foragidos nos bosques. Emquanto porém alguns se retiravam aterrados, a reacção concertava na sombra a sua desforra. Assim que pelas 4 horas da tarde de 17 de outubro de 1710, por occasião de passar o governador pela frente de uma casa desoccupada da Rua-das-aguas-verdes, um tiro lhe foi d'ahi desfechado, não tendo sido parte para que o não fizessem os dois mandatarios obscuros o ir Caldas acompanhado e guardado por uma escolta de 25 homens.

Longe de o chamar á razão, o tiro, que mais parece ter sido aviso de prudencia do que meio de dar cabo do poderoso inimigo, visto que, si esta fôra a intenção, não teriam posto na arma tão pequena carga que, não obstante ser muita curta a distancia, a bala produziu unicamente no governador ligeira escoriação, serviu antes para o arrojar de uma vez no caminho do attentado. Bastava ter contra si suspeita de cumplicidade no nefando delicto da Rua-das-aguas-verdes para qualquer ser atirado a horrorosa prisão. O capitão André Dias de Figueiredo foi talvez preso como complice, unicamente por ter por nome o mesmo que o do juiz ordinario que em 1666 intimou ao governador Mendonça Furtado a ordem de prisão em nome do rei. Emfim, foram tantos os excessos do governador Caldas, agora mandando abrir devassas, agora ordenando prisões indevidas; ora estabelecendo presidios, como fez em S.-Lourenço-da-mata e em Santo-Antão, ora determinando que o povo fosse desarmado sem ter em attenção siquer estar imminente a invasão franceza, segundo acertadamente pondera o nosso chronista, que, antes do dia 5 de novembro, em que devia romper a revolução rebentou esta por occasião de pretender o capitão João da Motta prender o capitão-mór de Santo-Antão Pedro Ribeiro da Silva. Foi em 2 do dito mez que, em lugar de Motta prender Ribeiro quando este ia ouvir missa na matriz, o sitiou elle em seu proprio presidio e o obrigou a capitular com a condição de não voltar ao Recife emquanto o povo, que tratava de reunir-se, não descesse a atacar a villa novamente creada. Emfim, no domingo (10 de novembro) uma multidão passante de 2.000 matutos tomou o Recife, e como não encontraram ahi o governador, foram aquartelar-se em Olinda, senhores da situação. Caldas tinha fugido de vespera para a Bahia sem ter cumprido a sua promessa de embeber, antes de partir, a sua espada em corações pernambucanos.

Foi logo chamado a tomar as redeas do governo, visto vir apontado na carta regia que prevenia as vacancias, o bispo d. Manoel Alvarez da Costa que se havia retirado, em visita pastoral, para a Parahyba com o ouvidor dr. José Ignácio de Arouche pouco sympáthico aos do Recife por não ter querido convir na ampliação do termo. D. Manoel volta a Olinda e assume o exercicio do novo cargo em 15 de novembro. O primeiro acto do seu governo foi perdoar aos povos a sublevação e o tiro dado em Sebastião de Castro Caldas.

Como era natural, o perdão irritou os parciaes do governador Caldas, os quaes, não só pelos odios proprios, mas tambem pelas reiteradas suggestões que lhes chegavam do mesmo governador para que, por sua vez rompessem contra os do outro partido, assegurando-lhes que o rei não deixaria de levar a bem semelhante serviço, não pensaram sinão em tomar estrondoso desforço. Ou porque acreditassem piamente no que escrevia Caldas, ou porque o seu odio não tinha outro objectivo que o de aniquilar a nobreza, a quem deviam tão grande revez, que os havia prejudicado em seus interesses e em sua politica, os europeus, que esposavam a causa da reacção, alimentavam em silencio os seus projectos de vingança e apparelhavam-se com sagacidade e tino para o rompimento formal. Neste intuito levaram muitos mezes a prover-se de mantimentos. A farinha, o feijão, o milho, o arroz, o assucar, a carne, o peixe entravam todos os dias para os seus armazens, onde ficavam em bom recato. Finalmente, no dia 18 de junho, aos gritos de «Viva el-rei d. João V, morram os traidores» puzeram elles nas ruas a revolta, tomaram conta das fortalezas do Brum, Buraco, e Cinco-pontas, e no presupposto de restaurarem a perdida autoridade de Caldas, consideraram o bispo suspenso de suas attribuições e o recolheram no collegio dos jesuitas. Nomeando um governo monstruoso, composto de João da Motta e de um preto mestre de campo do Terço-dos-Henriques, obrigaram o bispo a assignar ordens que importaram em os assegurar na posse da situação, assim violentamente roubada á legalidade.

Fosse porém qual fosse o verdadeiro motivo da reunião no engenho Bujary, o certo é que nunca em sua casa reuniu João da Cunha tão numeroso concurso de pessoas escolhidas, com ser costume de longa data ajuntarem-se ahi por S. João moradores de conta do lugar.

Não só por ser poderoso, sinão tambem por ser homem de resolução e de genio arrebatado, era João da Cunha muito temido em todo aquelle termo.

Uma tradição de sangue dava a seu nome e familia triste celebridade. Contava-se que varias pessoas, das quaes algumas por faltas muito leves, tinham sido mandadas matar por sua ordem e enterrar depois na bagaceira. Mais de um negro tinha morrido nos açoites, e de um até se dizia que fôra atirado vivo, não sabemos porque motivo, na fornalha do engenho, onde morreu queimado.

Naquelles tempos tradições semelhantes, em vez de diminuirem o tamanho moral do heróe dessas repugnantes ilíadas, recommendavam aos povos os sanguinarios Achilles, que por este modo se faziam conhecer e celebrizar.

Por isso todos tinham pelo senhor do engenho Bujary profundo respeito; e si seu nome não vem apontado nas incompletas chronicas do tempo, como muitos outros, que não obstante pertencerem a notaveis sujeitos, ficaram inteiramente esquecidos, a tradição ainda o não deixou desapparecer de todo no pó onde jazem sepultados os que por circumstancias inexplicaveis não puderam sobreviver aos acontecimentos.

Recebendo a influencia do tempo, da educação, dos preconceitos inveterados e dos exemplos de todo o dia, a mulher de João da Cunha, d. Damiana, que procedia, como seu marido, de troncos limpos, não lhe cedia a palma em altivez, posto qne de seu natural era branda e benevola.

Até a idade de doze annos, d. Damiana morou, para assim escrevermos, em casa dos pais de João da Cunha. Sua mãe era parenta muito chegada do casal fidalgo, e costumava passar tempos no engenho onde moravam.

Quando ela morreu, d. Damiana não contava mais do que quinze annos. O pai desta tinha fallecido dez annos atraz. Circunstancias especiaes influiram directamente para que, sendo elle um dos mais abastados agricultores do termo de Goyanna, só deixasse por morte á mulher um nome honrado e illustre, herança que esta transmittiu mais augmentada, porem ainda muito menos brilhante do que a recebera, á sua filha.

Dos cinco annos até casar-se pode-se dizer que a joven senhora viveu á sombra do rico fidalgo, pai do João e de Amador, de quem opportunamente se tratará. Por esse tempo João da Cunha já tinha contraHido o seu primeiro casamento. Enviuvando annos depois, contrahiu o segundo com d. Damiana, que, já se achando presa á familia pela gratidão, que lhe devia, entrava agora em suas relações intimas e começava a fazer parte della por laços mais perduraveis.

O senhor de engenho achou em d. Damiana afeições duplas—as de esposa e as de filha. Sua mulher, que já tinha para elle respeito, votava-lhe agora estima conjugal, que trouxe ao senhor de engenho uma reprodução da felicidade que gozára na constancia do primeiro matrimonio.

Quando d. Damiana punha sobre elle seus grandes olhos negros e ternos, João da Cunha sentia no intrinseco de sua alma uma impressão de brandura, que era talvez o reflexo da benevolencia da esposa penetrando na dureza natural do coração do marido, como raio de luar em profunda e escura caverna.

Então o porco selvagem fazia-se escravo da juruty meiga e naturalmente elegante. Voltava-se todo para ele e ficava como em contemplação ascetica. Os cabellos abundantes e pretos, o rosto emoldurado em oval correctissima, a cutis morena, fina e rozada, o nariz levemente erguido na ponta, a boca representante de altivez e bondade ao mesmo tempo faziam de d. Damiana um como centro luminozo diante do qual o orgulhoso e duro João da Cunha sentia deslumbramentos.

A influencia, porém, que a mulher exercitava sobre o senhor de engenho, não era absoluta.

Quando João da Cunha tomava uma resolução sobre objecto grave; quando seu orgulho exigia delle o preenchimento de um dos seus caprichos, —leis do seu caracter, nem o olhar, nem o sorriso, nem a meiguice, nem as lagrimas della venciam a dureza marmorea do espirito, que de outras vezes parecia de cêra.

O engenho Bujary estava situado em um ponto de que inteiramente se perdeu a memoria. O que se sabe ainda, pela tradição oral, é que tendo elle ficado, pelo tempo adiante, todo em capoeira em consequencia do longo desamparo, veiu a confundir-se com a mata virgem. O engenho que traz hoje esse nome fundou-se muito depois do desapparecimento do primeiro.

Nesse tempo—aureo periodo da vida do respectivo proprietario—era elle uma das mais importantes propriedades rusticas de Goyanna, e a sua situação uma das mais formosas do termo.

O tempo, na fórma do costume, não respeitou as prendas naturaes e ainda menos as obras de grosseira architectura da grande propriedade de João da Cunha. No lugar onde foi a casa-de-vivenda—sobrado acaçapado de telhado ennegrecido, que, por muito alto no centro, era a primeira parte da casa que se via de longe acima dos matos, com seis janellas quadradas, entre as quaes se rasgava a porta, para onde se subia por uma escada de tijolos grosseiros—existe hoje seguramente uma renque de sicupiras colossaes, cuja folhagem enche os vãos das duas salas fronteiras—uma reservada aos hospedes, a outra á familia—agora desapparecidas. Mais para o centro, no lugar dos aposentos interiores, floresce o amarello, o páo-d'arco, o jatobá. Na casa-de-purgar, que devia ficar á esquerda, nasceram cedros, que se mostram giganteos, cobertos de cipós, que entrelaçando-se com a vegetação circumvizinha, formam galerias e abobadas naturaes, onde não penetra luz e se acoitam durante o dia aves nocturnas e cobras venenosas. A direita no lugar da capella, é agora uma elevaçãosita, de que se atiram aos ares uns sambaquis, umas maniçóbas, uns marmeleiros, umas cabuatãs, cujos ramos e folhas se entretecortam e amigam. Por onde corria a rua dos negros, composta de vinte a vinte e cinco casinhas, de cada lado, veem-se adjuntos de embiribas e jucás. A casa-da-moenda foi substituida por um grupo de colossaes angicos. Enfim a actividade da grande propriedade passou, para dar lugar á serenidade, ao socego, ao silencio magestoso e solemne da mata virgem. Ás obras da arte substituiram-se as producções, desde as minimas até ás maximas, da natureza. Ao viver do homem succedeu o do bicho bravio. Assim são as coisas deste mundo. No topo de uma civilização germinam latentes as raizes de uma barbaria.

Uma excepção destaca-se, para confirmar a regra geral, do circulo vicioso em que gyram, após vidas, gerações, progressos humanos, os seres ou antes, as forças indestructiveis da materia. Por entre uns páos secos aqui, umas moitas enredadas alli, umas arvores frondosas além, arrasta ainda a existencia um ente contemporaneo de João da Cunha. Está mais selvagem porém mais vivo e bello. Suas forças não diminuiram, antes augmentaram. Em suas faces ha risos continuados. Não lhe alvejam na fronte as cans da velhice. Esse ente é o rio Capibaribe-mirim, de que em 1711 passava por dentro do cercado do engenho Bujary, um braço cheio e vigoroso, o qual se estendia então sobre limpo e arenoso leito emquanto hoje só o caçador ou algum viajor transviado o vê dilatar-se por entre matos e por baixo de frescas e amenas sombras. Semelhante ás cobras que rastejam em suas margens, elle serpêa desconhecido e caracolla, ora brando e vagaroso, ora barrento e assanhado, atravessando os proprios pontos onde no seculo passado brincava com a luz do dia e recebia os beijos da franca viração dos descampados. As aguas, com que refresca essa parte central da mata banham, antes de chegar ahi, as povoações denominadas Mocós e Timbaúba, unicos pontos populosos por onde passam. Toda a restante região que ellas percorrem é solitaria e erma. O morador do centro civilizado fez-se quasi exclusivo habitante da solidão e da floresta.

O negro André, carreiro do engenho, tinha descarregado, no pateo da casa-de-vivenda muito antes do anoitecer do dia 23 de junho de 1711 varios carros de lenha destinada ás fogueiras de S. João. De dispôr os grossos tóros de angico e cajueiro tinham sido encarregados tres ou quatro parceiros daquelle carreiro, de proposito dispensados com cedo do serviço diario para este fim.

No sobrado habitualmente silencioso, notava-se a animação, o bulicio que acompanham fatalmente esta festa popular.

Viam-se senhoras na sala dos hospedes. Algumas delas eram mulheres, outras eram filhas dos nobres propietarios convidados para a reunião; e conversavam sentadas nas cadeiras de sola com pregaria que guarneciam a sala e das quaes ainda se veem algumas, que são como as reliquias do tempo em que representaram grande adiantamento da arte.

A mobilia, não obstante ser de uma casa em que se professavam habitos de nobreza e riqueza não era de dar na vista; ao contrario pouco adiantava á que se encontra presentemente em alguns engenhos, donde grande parte dos habitos daquelle tempo não desappareceu inteiramente. Além das cadeiras viam-se dois canapés, tambem cobertos de sola, tres ou quatro bancas de acajú, e uma grande commoda de nogueira com muitas ordens de gavetas. Sobre as bancas havia alfaias de prata e sobre a meza estava assente um candieiro grande do mesmo metal. Pendiam da parêde, fronteiros e na mesma altura dois quadros em que appareciam retratados o senhor e a senhora do engenho.

A sala das mulheres, aquelle momento deserta, attestava melhor o gosto, a educação e a mocidade de d. Damiana. Sobre commoda de formas menos pezadas do que o da sala contigua, certamente obra de fóra, em que se procurara entalhar uns longes do gosto de Luiz XIV, via-se um rico sanctuario de jacarandá, que, estando aberto, deixava ver por entre ramalhetes de frescas flores naturaes, formosas e ricas imagens, adornadas com seda, ouro e pedras preciosas. Por junto da parede corria um estrado coberto de damasco, e fronteiro a elle mostrava-se o bufete de especial estimação da aristocratica senhora. Um tear ao canto, bancas de jacarandá de delicadas entalhas e sobre as bancas garrafinhas e frascos de vidro e crystal completavam, com o grande espelho affixado na parede a sala particular de d. Damiana.

Ao accender das fogueiras achavam-se os homens, não na sala-de-visitas, mas no aposento immediato—espécie de gabinete onde tinha João da Cunha cama para descançar, papeis, roupas e armas.

Á luz amarellenta de um candieiro, collocado sobre uma secretária de fórma de piano, lia o senhor de engenho, para os amigos ouvirem, as ultimas regras de uma carta que recebera de André da Cunha, morador em Olinda.

As regras rezavam assim:

«Eis o extremo a que chegamos. Os mascates em armas, senhores do porto, das fortalezas e agora do governo, visto que tem o bispo guardado por 150 soldados e ás ordens deles, tudo podem contra nós, enquanto nós muito pouco ou coisa nenhuma podemos contra elles. Si o bispo tivesse espiritos, ou si o seu espirito fosse tão grande como é o seu coração, certo as coisas presentes seriam para nós pequenas. Mas é fraco e entende pouco de estrategias e ciladas. Que força se póde esperar de um governador que se deixou cahir, por molleza, nas mãos dos seus proprios inimigos?»

— Que havia de fazer elle? inquiriu Mathias Vidal. Aquelle feixe de virtudes não é para semelhantes lutas.

— É isto exactamente o que escreve André, respondeu João da Cunha.

E proseguiu a leitura:

«Emfim o Recife está cercado de trincheiras, fortemente guarnecidas de gente e providas de munições de guerra.

«Como não tenho certeza de que esta vá ter ás suas mãos, por isso que a todo canto a nobreza se está picando nos espinhos da traição, finalizo rogando a Deus se sirva olhar por nós e por nossas familias ameaçadas de toda sorte de calamidades, das quais a menos crua será a morte.

«Olinda, 19 de junho de 1711. —André da Cunha

Após breve silêncio:

— Meus amigos—disse João da Cunha dobrando a carta e mettendo-a em um dos escaninhos da secretaria—foi menos para tomardes parte no meu prazer, do que na desgraça da patria, que me pareceu mandar chamar-vos a minha casa. Estão consternadoras para nós—os pernambucanos—as coisas publicas. Commandada a força militar por Miguel Corrêa, Manoel Clemente, Euzebio de Oliveira e Antonio de Souza Marinho, mascates conhecidos como odientos por todos nós, aos filhos da terra não nos resta, a meu parecer, outro recurso que o de lançarmos mãos das armas. Devemos accudir com as nossas fabricas e moradores, ao lugar do perigo, e ahi castigar a audacia dos rebeldes. Este recurso deve ser usado sem perda de tempo. Dar pancada mortal na cabeça da cobra peçonhenta.

Não obstante ser mais forte João da Cunha em preconceitos de fidalguia, do que em eloquencia, dote que vem do berço mas que a cultura acrescenta e apura, suas palavras resoaram, como echos de discurso divino nos corações dos amigos.

Entre estes viam-se algùns que eram mais bem versados em letras e em orações incendiarias do que o sargento-mór.

Contava-se neste numero Cosme Bezerra dentre todos os que ali se achavam o mais ardente membro da nobreza, e o que, por sua força de vontade e grandeza de espirito, maior nome deixou nas chornicas do tempo, porque degradado para a India em 1713, d'ahi não voltou mais a sua patria. Era juiz ordinario e capitão de ordenanças. Tinha a presença attractiva e gestos largos e arrebatados.

Cosme Bezerra, que foi dos primeiros que reagiram contra os mercadores, como dos que soffreram as consequencias dessa reação, quiz tomar a mão em seguida do sargento-mór; mas antecipou-se-lhe Manoel de Lacerda, ex-alcaide-mór, emprego que devera a seus longos e distinctos meritos.

— Estou de accôrdo convosco, disse Lacerda a João da Cunha. Querem grande e rude lição esses que só têm recebido de nós hospitalidade e favores? Pois satisfaçamos á sua vontade. Não gosto de violencias; mas quando sagrados direitos andam em perigo, não olho a desastres nem espero pelo dia de amanhã. O fogo, o sangue, a morte não me amedrontam, nem o receio de ser victima na luta me retem no regaço morno da vida domestica.

— Demais, observou Cosme Bezerra, que estava impaciente por manifestar-se sobre o assumpto, nas actuaes circumstancias a guerra é inevitavel. Certo os mascates a esperam. Si nós não formos leval-a a elles, hão de vir elles trazel-a a nós. Das fortalezas passarão ás estradas, e por estas virão ter ás villas mais importantes e enriquecidos, menos pela grandeza do seu trabalho do que do nosso coração e da nossa complacencia projevtam sobre as ruinas da agricultura, levantar em pedestaes de ouro o seu commercio illicito e plebeu. Quem julgar que elles ficam ahi, engana-se. Elles põem a mira em completar a obra do desmoronamento pernambucano, derramando o sangue daquelles que com os nobres portuguezes, e não com a gentalha de Portugal, sustentaram no mar e nos campos de batalha a honra e o poder da lusa monarchia. Hão de ir mais longe ainda, porque em seu bestunto suppoem, e até o dizem, que somos tão selvagens como os indios que elles destruiram ou escravizaram. Armarão ciladas a nossa honra, tentarão manchar nossas familias. Em seus tenebrosos planos, tem mais lugar a idéa de enxovalhar do que a de destruir a fidalguia, que os admitiu em sua terra, levada de dó pela miseria deles. E havemos de consentir em que esta baixeza sem nome se tente praticar ainda que não passe da tentativa? De modo nenhum. Cá por mim estou prestes para a luta e entendo que é tempo de a travar com esses vis e ingratos hospedes.

— Este ponto está fóra de duvidas, acrescentou Filippe Cavalcanti. Mas o essencial é assentarmos nos meios de ferir a batalha. Temos gente prompta para seguir á metropole da capitania? Convirá seguirmos? Ou será mais prudente esperarmos que de lá se nos peça o auxilio das nossas forças? A meu parecer são estes os pontos mais importantes e graves da presente conjunctura.

— E que mais esperaremos? Inquiriu Jorge Cavalcanti. A luva está atirada, e embora nos venha de villão, cumpre-nos apanhal-a para castigarmos a vinlania.

— A nobreza da capital, ajuntou Cosme Bezerra, está ameaçada. A tardança no soccorro poderá trazer males irremediaveis.

Estava neste ponto a discussão, quando Mathias Vidal tomou a mão, e disse:

— Senhores, tudo o que acabo de ouvir de vossas bocas, parece-me inspirado pelo principio da própria conservação de cada um de nós, pela dignidade da nobreza pernambucana, e pelo amor da terra de que os forasteiros querem assenhorear-se. Mas quem nos afiança que não estamos já ameaçados tambem de perdermos as nossas vidas e propriedades? Honroso seria corrermos immediatamente á capital, afim de reforçarmos a sua defeza; mas um dever que me parece superior a todos, exige talvez a nossa presença no seio das nossas familias. Teremos acaso tão seguros estes penhores da nossa estima que possamos, sem risco, deixal-os entregues a si proprios, emquanto vamos auxiliar os nossos parentes e amigos longe d'aqui? Certamente o plano dos forasteiros ficaria abaixo das suas ambições si nelle entrasse o pensamento de só hostilizar a nobreza dos arredores da villa de fresco creada. Tudo ao contrario faz crer que elles conspiram contra a nobreza de toda a provincia, porque sem a destruição total della não poderão ficar senhores de todo paiz. Não moro na vila de Goyanna, mas lá mesmo no meu mato soube que o ouro dos mascates andava por aqui nas mãos de baixos commissarios.

— Tendes razão, tendes razão—disse Manoel de Lacerda. O que dizeis é verdade.

— Antes de montar a cavallo para vir a esta reunião, disse-me um dos meus lavradores que soubera terem sido distribuidos em Goyanna, donde chegava, 14,000 cruzados para a compra de gente que apoie a causa dos mercadores. Si isto é veridico...

— É veridico—disseram muitos dos que se achavam presentes.

— Si assim é, proseguiu Mathias Vidal, não será imprudencia desampararmos nossas casas, que, privadas de nosso encosto e sem nenhum meio de defeza, visto que teremos de levar comnosco as nossas escravaturas, ficarão expostas a grandes desgraças?

A estas palavras que sahiram fracamente dos labios de Mathias Vidal, como d'entre duas pedras cahem gottas de agua nativa, seguiu-se um momento de silencio. Nellas vinha um cunho de madura prudencia que abatia e resfriava os impetos e os éstos dos precedentes oradores. Aqui estava o pai de familia, o agricultor, o matuto, sem exclusão do patriota. A inspiração sensata, a lúcida intuição que adivinhava os perigos proximos, ao mesmo tempo que via os remotos já descobertos, tomaram o lugar aos assomos da soberba de João da Cunha, da valentia de Lacerda, da ardencia de Bezerra, e apresentaram a solução natural do grave problema que os trazia alli reunidos.

— Elle é verdade—disse primeiro o ex-alcaide-mór, como quem cahia em si e via agora de todo clara a situação ha pouco envolvida em densas trevas. Junto, em torno de nós mandatarios disfarçados espreitam os nossos passos para os denunciarem aos mandantes, nossos inimigos.

— Que diz vôce a isto, irmão André? Perguntou Luiz Vidal a André Cavalcanti, que attento ouvira os varios conceitos dos conferentes.

— Digo que o nosso primeiro empenho deve consistir em tratarmos da nossa própria defeza. Estou por isso inteiramente de accordo com o parecer de Mathias Vidal. Quem sabe si dentro de poucas horas não teremos de haver-nos com revolta identica á do Recife.

— Nem devemos esperar coisa differente—disse Jorge Cavalcanti.

— A que fim, senão a este, mandaram para cá os mascates o seu ouro? Observou José de Barros.

— Hontem corria nas lojas e tabernas de Goyanna—disse Manoel de Lacerda, que um motim se preparava contra a nobreza. Antonio Coelho, cuja audacia todos nós sabemos, nunca se mostrou tão derramado em arrogancias e insultos. De noite houve ajuntamento em sua loja, ajuntamento, que só se desfez quando já era noite alta e depois de muitos hurrahs, que resoaram nas vizinhanças. Certo está Antonio Coelho incumbido de dirigir o movimento.

— Bom será que o não percamos de vista, disse João da Cunha.

— Hoje de manhã, passando eu pela frente de sua casa, vi-o fazendo gestos no balcão. Estava, ao parecer, ebrio; não tinha curtido de todo o vinho que bebera na vespera, porque lhe ouvi palavras insultuosas que me iam lançando fóra do caminho da prudencia.

— Que disse elle, Cosme Bezerra? interrogou o sargento-mór.

— Suas insolencias tinham por objeto a vossa propria pessoa. «Hei de ensinar o João da Cunha; é tempo delle pagar o novo e o velho. Hei de ir com minha gente revirar a bagaceira de seu engenho para pôr á mostra a ossada do mascate que elle mandou seus negros matar só porque...»

— Porque? porque? perguntou o sargento-mór, tomado de subita commoção, e fazendo-se livido. Que historia contou o villão?

— Contou que o mascate tinha sido assassinado por se queixar de lhe não terem pago certa quantia.

João da Cunha, sem o querer, tinha-se levantado.

— Querem saber como foi o caso? A mulher de um morador chamou o labrego para lhe comprar não sei que bugigangas, de que elle sahiu pago. Mas como vinha tonto, depressa esqueceu-lhe que tinha recebido a respectiva importancia. Ei-lo que volta e começa de exigir novo pagamento; e porque ninguem sahiu a dar-lhe mais dinheiro, a todos chamou ladrões, sem exceção do senhor do engenho. Dois negros foram-lhe ao encontro e castigaram sem que de ninguem tivessem recebido ordem para isso, a ousadia do mascate. Este cahiu e não se levantou mais. No outro dia vieram dizer-me que amanhecera um homem morto na estrada. Foi então que soube do occorrido. Castiguei os escravos, e mandei sepultar o morto, não na bagaceira, mas na capella. Si o não sepultaram onde eu disse não lhe fizeram injustiça; os animaes do campo enterram-se nos monturos. Mas deixemos a um lado esse vil mascate, e tratemos do que nos deve merecer mais atenção. Que se deve fazer, meus amigos? Devemos ir ao encontro dos rebeldes, ou esperar que elles nos venham buscar a nossas casas?

Após um momento, respondeu o ex-alcaide-mór:

— O que entendo que se deve fazer é cuidar, sem perda de tempo, de pôr em armas cada um de nós a sua gente para o que possa acontecer.

— Sahiremos ou ficaremos?

— Esperaremos prestes para dar-lhes lição tremenda.

— Para andarmos seguros, parece-me conveniente que se mande um proprio, sem perda de tempo, a Olinda, a fim de sabermos dos amigos si são precisos os nossos serviços. A sua resposta nos servirá de guia.

— Acho muito acertado este ultimo alvitre, indicado por Filippe—disse Cosme Bezerra.

— Pois bem, disse João da Cunha. Seja este o nosso primeiro passo.

A sala em que se achavam conferenciando sobre o grave assumpto os principaes vultos da nobreza de Goyanna, tinha janellas que cahiam sobre o pomar. Distante deste algumas braças passava o rio, aquella noite augmentado pelas chuvas dos dias anteriores. De seu natural escasso, volvia agora barrentas e volumosas aguas que estavam lavando as estivas das toscas pontes que o atravessavam.

Mal acabara de falar Cosme Bezerra quando chegou à sala o ruido que produziam as aguas cortadas por um cavalleiro.

Em qualquer engenho nada é mais natural do que semelhantes rumores. Fosse porém, porque se achavam sobreexcitados os espiritos pelo objecto da conversação, fosse porque o rumor tinha o quer que era particular e estranho, o certo é que João da Cunha julgou prudente chegar á janela, a fim de saber quem era que o produzia.

Ao clarão das fogueiras, de que a esse tempo já se atiravam aos ares longas linguas de fogo, reconheceu elle quem chegava.

Voltou-se então para os circumstantes, que guardavam silencio, e lhes disse com certo tom de voz, em que não seria diffícil adivinhar tres impressões diferentes—prazer, incerteza e anciedade:

— Vamos ter noticias frescas de Olinda.

Com pouco um matuto penetrou no aposento onde se estava celebrando a conferencia e entregou a João da Cunha um pacote de papeis.

O matuto era Francisco.

O S. João do mesmo modo que o natal, é festa essencialmente popular e campestre. Cada uma destas duas festas, com especialidade porém a primeira leva vantagem á da paschoa, que, com ser commemorativa da resurreição do proto-martyr, de quem só nos ficaram exemplos de humildade e singeleza, assumiu formas aristocraticas, e pertence hoje mais ao palacio e á cidade do que á choupana e ao povoado.

O engenho Bujary dava em 23 de junho de 1711 testemunho desta verdade. Não havia casa de lavrador ou de morador em que das 6 para as 7 horas da tarde o prazer não tivesse desabrochado entre risos e folgança.

João da Cunha, com ser de seu natural de poucos amigos, tinha em suas terras muitos lavradores e foreiros. Alguns escolhiam para se fixar, as terras do engenho Bujary, e havia razão para esta preferencia. João da Cunha era rispido, exigente e até poder-se-ha dizer—máo. Mas tinha uma grande qualidade, que em certo modo attenuava os seus grandes defeitos. Bulir com um morador do seu engenho era o mesmo que bulir com elle proprio. Excedia os limites da defesa quando algum delles era offendido. Tomava parte pelo morador em publico, ia pessoalmente aos juizes, para que ordenassem o castigo do delinquente, gastava do seu dinheiro com o pobre e sua familia, emfim, deixava o papel de tyranno e representava ao vivo o de pai ou zeloso protector. Por esta razão particularmente, e porque das magnificas situações que se apontavam em derredor de Goyanna onde os engenhos ainda não eram numerosos, as melhores lhe pertenciam, muitos eram os seus moradores, entre os quaes alguns abastados. Ao numero dos que o eram menos pertencia Victorino.

Na hora em que se discutiam, com a gravidade que vimos, os interesses das familias goyannistas de primeira representação, Lourenço descavalgava à porta de Victorino.

Ahi se estava festejando a noite com todo o enthusiasmo e calor do estylo. As filhas do dono da casa faziam as honras aos hospedes, de que já havia um bom numero no momento em que Lourenço penetrou na salinha.

Lourenço foi entrando, e foram ellas logo oferecendo a elle espigas de milho verde quebradinhas meia hora antes no roçado proximo e assadas na fogueira que illuminava o pateo e a frente da casa.

Joaquina não apareceu sinão mais tarde. Estava na cozinha preparando a deliciosa canjica, que é o primeiro prato das mezas grandes e pequenas do norte nessa noite de tão formosas e prazenteiras tradições.

Não o afamado bolo de S. João, que só nas mezas ricas ou ao menos abastadas costuma apparecer, mas uns bolos de mandioca estavam assando no forno, e por terem sido feitos pelas duas filhas de Victorino mereciam a honra de ser visitados por ellas enquanto não ficavam no tom de apresentar-se.

Entre os hospedes apontavam-se mais de meia duzia, que eram afamados tocadores de viola e guitarra. Alguns delles temperavam já os seus instrumentos para dar principio ao samba.

No pateo, junto da fogueira, uns meninos descalços, de camisas compridas, rodeavam Saturnino, que de quando em quando, cantarolando e pulando de alegria, descarregava um clavinote, em honra do santo folgazão. A estes tiros, soltados no terreiro, respondiam outros, tambem de armas de fogo, com que habitantes dos valles e da beira dos caminhos davam noticias suas. Trocavam assim os visinhos, atravez das distancias, seus comprimentos e as demonstrações do seu innocente prazer.

Aquelle que nunca sahiu da côrte, onde os regozijos publicos se vestem de fitas, sedas, bandeiras, arcarias de sarrafos pintados, illuminações graciosas, fogos de artificio, apresentando o conjuncto vistosas cores, caprichosas fórmas, elegantes perfis, não imagina que sem este apparato deslumbrante, e unicamente com a materia prima que offerece a natureza, possam preparar-se deleitosos momentos para os espiritos mais difficeis de contentar. Não é outra porém a verdade. Illumina-se com uma fogueira o pateo da casa, no qual se vê uma laranjeira florida, uma mangueira copada, um cajueiro ramalhudo. Enche-se o pateo do riso argentino das creanças, do assobio dos moleques, dos sons da viola, das saudosissimas toadas do matuto cantador, das harmonias melancolicas da gaita tocada pelo negro do engenho. Tanto basta para que vôe o tempo com a rapidez do raio e a satisfação das gentes de campo nada tenha que invejar á que trazem aos habitantes das cidades as musicas de pancadaria, os fogos artificiaes, os esplendores agradaveis á vista com que celebram suas alegrias.

Meia hora não se tinha ainda passado depois da chegada de Lourenço á casa de Victorino, quando nadava com os demais em um mar de indescriptivel contentamento. Todos os de casa e até os de fóra, já tinham visto a sombra de suas cabeças ao acender das fogueiras, signal de que não morreriam aquelle anno. Achando-se fóra de duvida este ponto, não havia razão para que a alegria não fosse a primeira sinão a unica expressão de todos os semblantes. Por isso uns gracejavam, outros riam, outros tocavam seus instrumentos, e todos comiam e bebiam no seio da plenissima confiança que caracterizava aquellas épocas como si foram todos membros da mesma familia.

Marianninha porém, no meio do prazer immenso de que cada um tinha o seu quinhão, deixava-se tomar naturalmente de ligeira sombra de tristeza, não obstante dever ser em verdade o seu quinhão de prazer muito mais avultado do que o de qualquer dos convivas.

Não era verdadeiramente uma sombra de tristeza a que annuviava interpoladamente o seu rosto illuminado pela suave pureza da juventude. Era, sim, a asa pardacenta de receio traiçoeiro ou de duvida intima a causa do intermitente eclipse daquelles olhos negros e vivos, daquelle sorriso franco e loução, daquella voz afinada pelas harpas dos sabiás e dos curiós que cantavam ao nascer e ao pôr do sol nas ramalhudas pitombeiras do quintal.

Quando seus olhos se encontravam com os de Lourenço, a nuvem se adelgaçava e desvanecia como fumo, e o brilho da face, antes escasso, parecia agora o de uma constellação. Si o filho de Francisco dirigia a Bernardina as mesmas palavras, os mesmos gracejos que tinham feito reaccender-se no rosto de Marianninha a graça, a vida interrompida quando não eram outros mais languidos e ternos, nova interrupção vinha cortar ahi a ventura recentemente morta e logo renascida. Havia naquelle coração de mulher o ciume antes mesmo do amor; havia o receio de perder a felicidade que aliás não existia sinão no seu desejo e na promessa, que lhe fizera Francisco.

Marianninha de feito enganava-se. Toda ella era affectos por Lourenço; mas este não tinha para ella especiaes attenções.

Mas, fosse engano, illusão ou infantil confiança, esse amor phantastico, ideal, impossivez talvez enchia-lhe o coração de suavissimos fulgores, a alma de todos os perfumes e canticos do paraizo terreal, de que ella tinha uma ligeira noticia por ouvir, quando era menina, a historia do principio do mundo a uma velhota das bandas de Nossa-senhora-do-ó. Quando na manhã seguinte ella foi achar murcho o dente d'alho que enterrara na horta ao accender da fogueira, o que importava prophetico signal de que Lourenço não casaria com ella, os olhos se lhe encheram de lagrimas. Supersticiosa e credula, como é a mulher em geral e a filha do povo em particular, a pobre menina por um triz não deu comsigo em terra, tão grande foi o golpe que atravessou seu coração.

Não aconteceu já o mesmo a Bernardina. Para esta a noite de S. João foi uma grande aurora sem intervallos. Suas aspirações sendo menos altas, a sorte apressou-se em cercal-as de risonhos annuncios. Era de feito modesto o objeto dellas. Este objecto era Saturnino, o qual posto não sentisse por ella grande inclinação, antes se inclinasse mais para Marianninha, se sentia inevitavelmente arrastrado pela gentileza franca, pelos requebros feiticeiros, pelos ditos engraçados, e especialmente pelos agrados da rapariga.

Sempre que Saturnino pensava em sua condição obscura—a condição do cargueiro, do almocreve sem eira, nem beira—não podia ser indifferente aos affectos de sua prima, a qual, quando por outra coisa não fôsse, tinha o direito de aspirar, por seus bellos olhos, a um casamento mais vantajoso. Bernardina porém não encaminhava seus pensamentos para o terreno arido e escabroso das condições sociaes. Tinha amor a seu primo, e este amor apagava, no conceito della, as differenças pessoaes e nivelava a sua condição e a de seu primo. O certo é que o alho que ella plantára ao pé do de sua irmã, amanheceu com o caule de fóra e como pendoado; o nome que ouviu publicar no momento de se accender a fogueira, principiava pela lettra inicial do de Saturnino. E para coroar as suas esperanças, achou o grão de arroz que ella metteu em um dos tres pedaços em que dividira o bocado de feijão por occasião do jantar, não no que tinha escondido na soleira da porta do fundo, não no do meio, mas no da frente. Não havia pois que duvidar. S. João dizia que ella se casaria, não d'ahi a tres ou a dois annos, mas no proprio anno presente.

Seriam oito horas quando Joaquina começou a distribuir pelos hospedes, em tijellinhas de barro, a cangica saborosa.

Marianninha, esquecida do que lhe acontecera por occasião de offerecer a Lourenço a cajuada, adiantou-se para o servir, corada e tremula. Desta vez não houve formal recusa como da outra, Lourenço recebeu a tijella e esvasiou-a em poucos instantes; mas, levantando-se immediatamente, pegou do chapéo, e encaminhando-se para a porta, disse:

— Vou-me embora, minha gente. A festa está muito boa, mas vem muita chuva, e eu tenho ainda de levar minha mãi do engenho para o Cajueiro. Entrei para me recolher da neblina, e ia-me esquecendo da minha obrigação.

— Ó xentes! Disseram do lado umas rapariguinhas das vizinhanças que tinham chegado minutos antes. Já vai tão cedo?

— Que é isso Lourenço? Perguntou Victorino collocando-se em frente do rapaz, como quem queria embargar-lhe o passo. Estás gracejando, ou fallas serio?

— Fallo sério, seu Victorino. Vou-me embora.

— Ora, deixa-te disso. Hoje é noite de S. João.

— Por isso mesmo. Minha mãi está esperando por mim, e não é bonito que eu me deixe ficar aqui a divertir-me quando ella está com os olhos no caminho para me ver chegar.

— E Francisco ainda não voltou da viagem á cidade?

— Até eu sahir para a villa, elle não tinha chegado. Mas prometteu que havia de vir comer comnosco milho assado hoje de noite.

— Pois então, si tens esta certeza, para que semelhante pressa? Assim que elle chegar, virá logo até cá.

— Elle não sabe que eu estou aqui.

— A comadre lhe ha de dizer logo, e elle ha de vir. Fica, rapaz. Precisamos de ti para cantares.

— Não posso, seu Victorino.

As filhas do almocreve, comprehendendo o perigo, em que se achavam, de perder tão boa perna para a folgança, como era Lourenço, espontaneamente uniram seus pedidos ao do pai.

— Fique, Lourenço, fique, disse Bernardina.

— Deixe-se de escusas, acrescentou Marianninha timidamente.

Estas e outras instancias e intervenções determinaram afinal o rapaz a mudar de resolução, e a satisfazer aos rogos geraes.

Tratou-se então de principiar logo o samba. Esta providencia era aconselhada pelo interesse commum. Era o meio de prender os hospedes á casa. Além disso não faltava nada para começar a dança. Uma das primeiras violas do lugar—o Chico Pedro; uma das primeiras vozes—Lourenço; os melhores dansadores—Nicoláo e Roberto, estavam todos alli. Não faltava aguardente, nem milho verde, nem bolos. As raparigas mostravam-se bem dispostas, e algumas até impacientes por verem formar-se a roda. A fogueira dava estalidos festivos. O tempo promettia limpar. O concurso dos convidados engrossava cada vez mais. Enfim, em menos de um quarto de hora bateu o pinho, e rompeu o samba de gosto.

Lourenço, tendo tomado uma pouca da cana, temperou a guélla e soltou sua grande voz ao pé do violeiro, enquanto Bernardina, Mariquinha, as filhas da Bernarda, os sobrinhos do velho Cosme, o Manoel João, o Jacinto da Luzia e muitos outros cahiam na roda por sua vez, tripudiando, fazendo recortes e negaças com o corpo, atirando embigadas na fórma do immemorial estylo.

O canto de Lourenço era monotono como o dos sambistas em geral, mas a lettra variava e tinha as graças naturaes das composições do povo.

Eis algumas das quadras com que o rapaz gratificou a companhia. Muitas dellas ainda hoje em dia tem extensa voga entre os matutos de Pernambuco, aos quaes as ouvi mais de uma vez, jornadeando, entre fins de novembro e principios de dezembro, do Recife para Goyanna nos meus tempos escolares. Ellas pertencem exclusivamente ao povo, e eu aqui as dou com a exactidão com que as recebi da grande musa que as produziu.

Minha mulata, eu tenho
Vontade de te servir;
De dia falta-me o tempo,
De noite quero dormir.


Vou-me embora, vou-me embora
Para minha terra vou;
Si eu aqui não sou querido,
Lá na minha terra sou.

Quando eu me for não choreis,
Que são penas que me dais;
Deixai o chorar p'ra mim,
Que eu me vou, não venho mais.

Mangericão verde-escuro
Tem a folha miudinha;
Só em te ver eu te amo;
Que fôra si fosses minha?

Passei pela tua porta,
Puz a mão na fechadura;
Eu fallei, tu não fallaste,
Coração de pedra dura.

Meu passarinho tão manso,
Das minhas mãos escapou;
Para mais penas me dar,
Pennas nas mãos me deixou.

— Molha a guela, Lourenço, molha a guela com a patrícia—disse neste ponto ao cantador o Ignacio Macambira. — A patrícia é o vinho do pobre—acrescentou Chico—rosado.

E Victorino, despejando aguardente na chicara, que não estava quiéta um só instante em cima da banquinha do canto da sala, apresentou-a a Lourenço que della tomou um trago forte.

Mas como se sentia cansado, poucos versos cantou ainda, e concluiu pelo seguinte:

As convivencias do mundo
São amparo da pobreza;
Emquanto o pobre convive
Não se lembra da riqueza.

— Aqui está o lugar para quem quizer, minha gente, disse ele, sentando-se.

— Déste tão cedo parte de fraco?

— É emquanto tomo folego.

— Quem vem? Quem vem? perguntou o violeiro. Quem vem, venha logo, que o fôgo está esfriando.

— Vai tu, Bernardina—disse Victorino.

— Muito bem, Victorino.

— Logo, logo, Bernardina.

A rapariga foi occupar o lugar deixado por Lourenço.

A voz de Bernardina era volumosa e limpida. As mulheres invejavam á filha mais velha do foreiro este grande dote que attrahia os homens a ella e lhe dava o prestigio e o renome de uma sereia. Não sendo tão bonita, como a irmã, via entretanto em roda como de se um sem número de enthusiastas e adoradores sempre que exercitava o seu divino privilegio. Por isso, quando a rapariga se encaminhou para o lugar, que Lourenço deixára desoccupado, surdo rumor, indicio da curiosidade, se fez ouvir em todos os cantos do casebre. Seguiu-se-lhe porém logo profundo silencio.

Eis os versos que a matutinha cantou por entre applausos repetidos e phreneticos:

Benzinho, quando te fôres,
Escreve-me do caminho;
Si não achares papel,
Nas azas de um passarinho.

— Assim, assim, Bernardina—disseram tres ou quatro convivas, enfeitiçados do desembaraço, já conhecido, da filha do dono da casa.

A rapariga, requebrando-se senhorilmente, proseguiu relanceando os olhos para o namorado, que a esse tempo, já tinha desamparado o terreiro e encostado a um canto o clavinote:

Da bocca faze o tinteiro,
Da lingua penna aparada,
Dos dentes lettra miuda,
Dos olhos carta fechada.

Oh, que rapariga candeia! exclamou o Ignacio Macambira, sem poder conter o enthusiasmo, acrescentado pela canna.

Bernardina proseguiu:

Mangericão verde cheira,
Elle secco cheira mais;
Mulher que se fia em homem
Anda sempre dando ais.

Eu de cá e tu de lá,
Fica um rio de permeio;
Tu de lá dás um suspiro,
Eu de cá suspiro e meio.

Meu coração é de vidro,
Feito de mil travações:
Com qualquer coisa se quebra,
Não atura ingratidões.

Longo tempo levou Bernardina a cantar, ora variando, ora repetindo as letgras ao paladar dos circumstantes.

No mais acceso do samba, quando não só se ouviam os sons das violas, mas tambem o aspero rechinar das costas da faca sobre a botija segundo praticam em ajuntamentos taes; quando os applausos se manifestavam por meio de gritos e gargalhadas estridentes; quando não se dansava só o côco e o bahiano, mas uma mistura de todas as dansas populares com o acrescimo da phantasia de cada um, escaldada pelos vapores espirituosos; quando emfim era tudo algazarra, derriços pouco decentes, demonstrações menos dignas, appareceu um novo conviva no meio da multidão. Era Francisco, o qual, depois da entrega das cartas no engenho, viera em busca do filho, pelo motivo que adiante saberemos.

Não podia o matuto chegar mais opportunamente áquele ponto. No momento exactamente em que elle se fez ver por entre a matutada que enchia a salinha, sentiu Lourenço bater-lhe no hombro pesada mão, que o obrigou a voltar-se a fim de saber quem era que lhe fazia tão estranho cumprimento. O rapaz reconheceu o Tunda-Cumbe.

Em poucas palavras poremos o leitor a par deste sujeito, que tão importante papel desempenhou na Guerra-dos-mascates. E para que o retrato venha com o cunho de severa authenticidade, preencheremos a nossa promessa trasladando aqui as proprias palavras em que um chronista pernambucano o descreveu para conhecimento da posteridade. «Este sujeito era um homem rustico e grosseiro, de idade já maior, que do reino de Portugal tinha ha annos vindo para esta terra, trazendo da sua, por divisa, uma grande cutilada no rosto, ou para que a si não desconhecesse, ou para que por ella fosse conhecido; mas diziam que por usar do officio de parteira: e para disfarçal-a de algum modo, conservava os seus bigodes, ou mustachos, em tempo que ninguem fazia caso delles. Buscando meios de poder accommodar-se fez em Goyanna assento de feitor, por seu salario em casa do sargento-mór Mathias Vidal, a fim de no serviço dirigir os negros; mas estes conspirando-se contra elle em certo dia, lhe deram uma pisa de pancadas que na ethiopica lingua chamam Tunda, e o lugar onde lhe deram chama-se Cumbe. Como se fez o caso publico, por antonomasia lhe chamavam o Tunda-Cumbe, e sendo por este nome de todos conhecido, como quem faz do sambenito gala, quiz do modo como era appellidado, appellidar-se. D'ahi se foi para a freguezia da Varzea, e nella esteve com o mesmo exercicio de feitor do Capitão Lourenço do Cunha Moreno, e depois tornou para Goyanna, e se fez almocreve de peixe, indo, com uma besta, a buscal-o pelas praias, e pelas portas dos moradores a vendel-o: nesta ordem de vida se manteve até que succedeu o levante do Recife» em que tomou a parte, que veremos.

— Então, menino cantador, disse o Tunda-Cumbe a Lourenço, com entono e arrogancia mais de quem aggredia, do qne perguntava—será certo que você está apaixonado pela Bernardina? Pois olhe, quero prevenil-o de uma coisa, para que depois não vá você chamar-se ao engano. Sabe muito bem que todas as semanas, da sexta para o sabbado, ando eu por estas bandas a vender o meu peixe.

— Sei, disse Lourenço, sem se alterar, com os olhos postos, como quem nisso tinha proposito, na funda cicatriz do Tunda-Cumbe não tão occulta pelo espesso bigode, que se não podesse deixar ver. Pois fique sabendo mais que aquilo é tainha que eu tenho contado ha de cahir, mais dia, menos dia, dentro do meu caçuá.

— Você refere-se a Bernardina?

— A ella mesma é que me estou referindo, sim, senhor.

— Pois eu tambem quero dizer-lhe uma coisa. Eu com ella nada tenho. Si canto e gracejo com a rapariga, é porque tenho amizade na casa. Nella não tenho intenção de especie nenhuma, porque, quando a gente não sente inclinação para uma mulher, por muito que ella se derrengue para a gente, não passa tudo isso de divertimento sem maldade. Mas como diz você que já conta com aquella tainha no seu caçuá, a coisa muda de figura.

— Menino—tornou o Tunda-Cumbe, você para ter comigo esta linguagem, preciso fôra primeiro que ou não estivesse no seu juizo, ou não me conhecesse devidamente. Saberá acaso com quem é que está fallando?

— Sei muito bem que estou fallando com seu Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.

— Pois então veja d'ora em diante como anda. Depois não vá dizendo que Santo Antonio o enganou.

— Você é que parece estar enganado comigo, retorquiu-lhe Lourenço, sentindo faiscar-lhe já os olhos. Eu ha muito tempo não faço uma das minhas, mas, em ocasião se offerecendo, não lhe hei de torcer a cara, e bem póde acontecer que, para ficar você melhor assignalado, lhe vá eu deixar no queixo direito o golpe que lhe falta para fazer parelha com o que lhe plantaram no outro queixo, quando você tinha o officio de partejar na santa terrinha.

A violencia desta represalia deixou perplexo, e como espantado por momentos o Tunda-Cumbe, pouco habituado, não obstante a tunda sabida, a ouvir cara á cara tão pezadas reprimendas.

Não conhecia elle o Lourenço sinão de o vêr uma vez por outra almocrevando, e pensou que com a simples ameaça, sendo tão conhecido por seus feitos que, em abono da verdade, davam para um in-folio, levaria logo o terror ao animo do rapaz. O seu desengano foi formal, ou como quem procurava recursos e força dentro em si mesmo, Tunda-Cumbe esteve um instante sem proferir palavra, dizendo porém mil coisas pelos olhos que não arredou de sobre a cara de Lourenço.

— Não embatuque por tão pouco, acrescentou este como em acrescentamento do pouco caso em que revelára ter o seu agressor. O que você disse está dito; não queira agora tornar atraz, que você seria mais desprezivel do que a besta em que costuma vender o seu peixe velho e moído, si recuasse depois desta avançada. Agora, de que eu sou capaz de fazer o que prometti, você a seu tempo ha de ter a prova. E para que fique logo conhecendo que eu não sou de caixas encoiradas e que aonde vou não mando, veja lá como me ponho já a derreter com a filha de seu Victorino, mesmo aqui nos seus bigodes.

Todo este dialogo, posto que faiscante e eriçado de perigos, não foi pressentido por nenhum dos circumstantes a não ser por Francisco. Este mesmo o não teria testemunhado si não fôra a circumstancia especial que diremos. Ao chegar, talvez por fugir de ser convidado a cantar, se collocára por traz de umas esteiras, que tinham sido postas de pé em um dos cantos do casebre. Foi d'ahi que tudo viu e ouviu sem ser visto, occulto pela concurrencia.

Lourenço, si bem o disse melhor fez. Logo que se lhe offereceu occasião, cahiu no meio da roda. Fez o seu sapateado, deu meia duzia de castanholas, atirou uma embigada na rapariga que lhe ficava mais perto, e foi collocar-se ao pé do violeiro, fronteiro á Bernardina que ainda estava deliciando os sambistas com suas graciosas vozes.

Quando Bernardina conheceu que Lourenço tinha ido collocar-se alli para alternar com ella as cantigas, empallideceu, mas sorriu. O desafio lhe era agradavel, posto que fosse mais forte do que ella o seu contendor. De seu natural vaidosa e leviana, nunca recusou demonstrações de apreço a Lourenço, embora tivesse o coração quasi todo occupado pela imagem de Saturnino.

Lourenço cantou este verso:

Boca de cravo da India,
Dentes de marfim dourado,
Quando meus olhos te viram,
Meu corpo fez um peccado.

Bernardina respondeu com est'outro:

Você vai p'ra sua terra,
Bem podéra me levar;
P'ra saber que eu quero ir
Não carece perguntar.

Lourenço retorquio:

Dei um nó na fita verde,
Dei-lhe a fita de presente;
Você falla, e não repara
Que estamos diante de gente.

Eis a resposta da rapariga:

Amores, quando te fores,
Antes de ir tira-me a vida,
Que eu não tenho coração
De ver a tua partida.

O desafio foi neste ponto interrompido por um rumor inesperado, identico ao que produz o arranco de onça por entre a folhagem. Não uma onça, mas o Tunda-Cumbe tinha atravessado de um salto, causa do rumor, a primeira ordem de pessoas que formavam o circulo, e achava-se ao pé de Lourenço, com a catana levantada contra o rapaz. Mas ainda bem não erguia o braço armado, quando um homem, sahido, como elle, violentamente dentre os circumstantes se interpunha entre o aggressor e o aggredido, tendo na mão fóra da bainha a faca que trazia ao cóes. O homem não era outro sinão Francisco.

Cessaram immediatamente as vozes dos cantores e instrumentos, e todas as vistas e attenções concentraram-se no ponto do conflicto.

— Que acção é esta, seu Tunda-Cumbe? perguntou Francisco a Manoel Gonçalves. O que vosmecê fizer a meu filho terá feito a mim mesmo.

— O que eu quero é que me digam o motivo deste barulho, disse Victorino apresentando-se.

— É que este menino ainda não achou quem lhe désse o ensino de que precisa, respondeu Manoel Gonçalves.

— O que eu quero saber é o motivo do barulho, repetiu Victorino.

— Você o saberá quando fôr tempo. Palavra de Manoel Gonçalves Tunda-Cumbe.

Lourenço, que até então guardára silencio, rugiu a meia voz:

— Eu si não me fôr embora d'aqui, faço as todinhas e acabo ainda com muito sol. O sangue está a ferver-me.

Entretanto o Tunda-Cumbe mettera a catana na bainha, e Francisco tinha feito o mesmo com a faca.

Victorino virou-se para este ultimo, emquanto aquelle se afastava dando a um e a outro a razão do seu procedimento; e a meia voz perguntou:

— Viu você o principio da briga, compadre? Si viu, conte-me a historia como foi.

— Para dizer a verdade, eu não sei bem a causa da contenda. Mas parece-me que a Bernardina anda no meio. Tenha paciencia, compadre, e perdôe o que lhe vou dizer. É preciso acabar com estes sambas em sua casa. Quem tem filhas, não abre as suas portas assim a Deus e ao mundo.

— Eu não convidei o Tunda-Cumbe para o meu divertimento. Se elle entrou aqui foi confiado em ser nosso freguez de peixe.

— Pois abra os olhos, que elle disse que a Bernardina é tainha que ainda ha de cahir no seu caçuá. E adeus, adeus. Vamos, Lourenço.

— Pois elle disse isto, meu compadre? Elle não conhece Victorino.

Quando Francisco chegou com o filho á porta do casebre, achou ahi da banda de fóra o Victorino, o Tunda-Cumbe e um pardo de Goyanna que tinha o officio de sapateiro. A este ultimo dizia o Tunda-Cumbe as seguintes palavras:

— Diga a seu Antonio Coelho, que fico entendido do recado, que me mandou por você e d'aqui a pouco la estarei.

O pardo, por nome Lauriano, sahiu, e o Victorino dirigiu-se nestes termos a Manoel Gonçalves:

— Seu Tunda-Cumbe, eu quero dizer-lhe os meus sentimentos. A Bernardina é solteira, mas já tem noivo. Por isso escusa andar vosmicê a fazer desordens na casa alheia por causa dela.

— Eu bem sei donde partem estas historias e por saber donde ellas partem é que as suas palavras me entram por um ouvido e me sahem pelo outro. Si a Bernardina tiver de ser minha, não ha de ser nem você nem seus parceiros que tenham forças para o impedir. Não seja tolo, Victorino.

Dizendo estas palavras, Manoel Gonçalves ganhou a besta de um salto e tomou a correr, a caminho de Goyanna.

— Que lhe disse eu, compadre? Observou Francisco, que chegára ao lado de fóra ainda a tempo de ouvir as ultimas palavras do Tunda-Cumbe. Tome suas cautelas. Aquelle malvado é traiçoeiro e está avezado a tirar moças solteiras da casa de seus paes.

— Elle poderá tirar alguma das minhas filhas; mas para fazer isso será preciso que primeiro me tenha morto e bem morto. Vou acabar já com esta festa.

Fosse, porêm, que os espiritos estavam muito exaltados para attenderem ás prudentes considerações do foreiro, fosse que Victorino não qniz desagradar áqueles que lhe honravam a casa com sua presença, o samba ferveu até o amanhecer do dia, aos estouros intermittentes do bacamarte de Saturnino, e aos gritos de—Viva S. João—soltados pelos diferentes sambistas, alguns apenas alegres, outros inteiramente entregues ao espirito vertiginoso da canna.

Que razão teve Francisco para, apenas chegado da capital, ir em demanda do filho? Seria acaso para evitar que o rapaz se deixasse envolver em algum disturbio como aconteceu? Seria para fazêl-o sahir da desordem, segundo fez, no caso de já o achar colhido nas malhas della?

A razão foi outra. Não temia Francisco os perigos do samba. Desde pequeno sentia paixão por este divertimento, de que fôra ardente cultôr na mocidade. Grande parte dos versos com que Lourenço deliciára os festeiros da casa de Victorino, elle os aprendera de Francisco, insigne cantador e repentista. A fama deste ultimo era tal, que muitos dos matutos daquellas vizinhanças andavam espreitando a occasião de ir Francisco ao Recife para fazerem com elle as suas viagens. É fácil a explicação deste procedimento.

Em sua companhia, as longas noites que tinham de curtir na travessa de muitas leguas de solidões quasi inteiramente inhabitadas, eram suavisadas pelos formosos cantares do matuto. Que suberbos serões não tiveram elles, ao luar, as redes armadas debaixo das arvores, os cavallos pastando peiados em frente da pousada, a viola quebrando com seus sons deleitosos a mudez da noite, e Francisco enchendo o deserto com as inspirações de sua musa soberana e as harmonias de sua voz rica de ternura e de saudade!

Razão muito differente teve o almocreve para procurar Lourenço.

As noticias da guerra, trazidas por elle da capital eram de summa gravidade. Elle proprio tinha ouvido em Olinda contar-se muito caso triste. Ahi soube o que projectavam os mascates e os nobres. Com seus proprios olhos testemunhou os aprestos para a guerra. Vio de perto a chamma immensa que começara a incendiar a provincia. João da Cunha, lidas as cartas, fez-lhe varias indagações, e com elle os amigos presentes, sobre o que tinha visto e sabia. Combinadas as informações pessoaes do morador com as noticias enviadas por Amador da Cunha, por André, e por outros, forçado lhe foi reconhecer que, atirado o facho da revolução aos quatro ventos, dentro em pouco prenderia fogo a vila de Goyanna, para onde emissarios particulares dos portuguezes tinham sido adrede mandados, e na qual contavam elles parciaes poderosos de meios e valorosos de animo.

Entre estes apontavam-se Antonio Coelho, sujeito de grandes espiritos; Jeronymo Paes dinheiroso marchante, não menos ardente do que o primeiro; Belchior Ferreira, rábula que, posto fosse filho da terra, bem como o meirinho Romão da Silva, que delle recebia diariamente lições incendiarias, destinadas a decidir a gentalha do lugar a tomar o partido dos mercadores, fazia grandes entradas nos espiritos por fallar em nome da liberdade do povo; Manoel Gaudencio, alfaiate pernóstico, patranheiro e ambicioso, que aspirava a melhorar de officio com a descida dos nobres e a subida dos negociantes.

O principio, ou antes os interesses contrarios aos que estes sujeitos, e outros de identicos sentimentos e intuitos, sustentavam eram representados pelos cavalheiros que já apontamos, isto é pelos senhores-de-engenho e pelas primeiras autoridades, assim civis, como militares da localidade.

Só uma vista curta não verá na guerra-dos-mascates, antes uma luta travada por dois grandes principios, do que uma revolta filha de preconceitos ridiculos e costumes atrazados. Certo concorreram não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexiveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundario do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramatica da acção, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades modernas, como das antigas—ao comércio e á agricultura, principios que, quando accordes em seu desenvolvimento, trazem a prosperidade e riqueza dos povos, e quando divergentes, o seu atrazo sinão o seu aniquilamento.

As cartas, de que Francisco foi portador, em substancia rezavam:

Que a guerra, declarada pelos forasteiros contra os pernambucanos e o governo legal, e já em principio de execução, promettia ser de vida e morte, attentos os meios de que dispunham aquelles, e o empenho em que se mostravam de aniquilar estes;

Que esses meios eram immensos e consistiam não só em viveres acumulados durante os seis mezes ultimos nos armazens do Recife, mas tambem em grossas quantias com que elles habilitavam os seus confidentes nas localidades mais importantes a propagar e alentar a premeditada hostilidade;

Que esta hostilidade era tanto mais digna de temer-se quanto a patrocinavam, dando toda a força que podiam aos negociantes do Recife, o governador Caldas, da Bahia, onde estava, e até alguns fidalgos portuguezes, por exemplo d. Francisco de Souza e seu filho d. João de Souza, que se achavam então no sul da provincia.

Á influencia destes dois fidalgos já deviam os mascates a forte cooperação do coronel dos indios do Cabo, d. Sebastião Pinheiro Camarão, parente do grande Camarão, que tanto brilhara na guerra hollandeza. D. Sebastião Pinheiro deixára seduzir-se por elles, bem como outros importantes moradores da freguezia do Cabo;

Que tinha Amador da Cunha (irmão de João da Cunha) recebido ordem do capitão-mór de Jaboatão para ir com sua gente pôr cêrco ao Recife, segundo o accordo havido com os capitãesmóres de Maranguape, Iguarassú, Varzea, Santo-Antão, São-Lourenço, Nossa-senhora-da-luz, Ipojuca, Tracunhaem, Serinhaem e outras freguezias, afim de ver si conseguia que se rendessem os revoltosos;

Que a elle Amador se lhe afigurava, pelos obstaculos conhecidos ou calculados, terem os pernambucanos guerra para muitos annos, si Deus não conjurasse o medonho cataclysmo que ameaçava devorar honras, fortunas e vidas.

Emfim, tanto as cartas de Amador, como as de André e outros, accordes em quasi todos os pontos e noticias, respiravam sobresaltos, inquietações e até desanimo. Havia porém no meio das trevas, que traziam, um ponto luminoso, que em todos os corações projectou um raio de esperança. Era a noticia de que o bispo se tinha libertado, por uma pia fraude, do poder dos mercadores.

O odio, a ira, o receio, a impaciencia e outros differentes sentimentos tiveram por minutos perplexo e mudo o senhor-de-engenho.

Quando estava para tomar parte nas reflexões que os outros, durante o seu silencio, iam fazendo sobre o objecto da correspondencia lida, umas das senhoras que se achavam na sala immediata, appareceu á porta do aposento. Era a mulher de Mathias Vidal.

— É então certo que os mascates se mostram fortes e insolentes? Perguntou ella ao sargento-mór.

— Quem vos disse tal, senhora d. Izabel? retorquio elle.

— As cartas que acabastes de lêr, respondeu d. Damiana, aparecendo tambem. Daqui ouvimos toda a leitura.

— Infelizmente parece que vamos ter guerra para muito tempo.

— Que vos dizia eu ainda hontem, Mathias? Disse d. Izabel, dirigindo-se ao marido.

— As guerras, observou Manoel de Lacerda, si trazem males, tambem trazem bens. Demos tempo ao tempo.

E levantando-se, encaminhou-se para a sala, aonde d. Damiana e d. Izabel retrocederam logo. Já ahi estavam Cosme Bezerra e Filippe Cavalcanti, que a elle tinham precedido e conversavam com outras senhoras presentes.

— Esses mascates não estão em si, dizia d. Maria Bezerra a seu marido. Não querem ver que não podem levar a melhor á nobreza da terra. Até os de Goyanna, que não são muitos, hão de apresentar-se contra os nobres, disse o alcaide-mor.

— Tambem os de Goyanna? Inquiriu com incredulidade a mulher de João da Cunha.

— A senhora d. Damiana duvida que o façam? É porque ignora que os do Recife mandaram grossas quantias para cá comprar a gentalha que nos odeia. Antonio Coelho, do balcão de sua loja, que considera um throno, só tem para os nobres injurias e desprezos. Belchior Ferreira, de certo tempo a esta parte, monta guarda a horas certas todos os dias, em companhia de Romão, na botica do Rogoberto, e leva horas a dizer maldades e aleives contra os senhores de engenho.

— Não admira. Traz sempre a imaginação excitada pelo vinho que lhe dá a beber Antonio Coelho, os olhos encandeiados pelo ouro que lhe mostra, mas não lhe dá, Jeronymo Paes, disse Cosme Bezerra.

— Tenha a senhora d. Izabel certeza de que dentro em pouco ha de soar em Goyanna o grito da rebellião. Quem sabe si a este momento não estão tramando nos escondrijos dos seus armazens, Antonio Coelho com seus sequazes a destruição de todos nós?

— Façam o que fizerem—observou a mulher do sargento-mór, Goyanna não ha de render-se a elles.

— Porque não ha de render-se?

— Não sabemos todos que Goyanna é invencível porque todas suas igrejas tem as frentes voltadas para dentro della?

— É verdade—disse uma senhora, que até esse ponto assistira á conversação sem tomar parte nella.

E d. Maria Bezerra accudiu em apoio da velha, confirmando o que della ouvira.

— Abusões do povo, contestou Cosme.

— Os antigos já o diziam, replicou d. Maria e os antigos não diziam sinão a verdade. Minha avó contava-me muitos casos de guerras, em que os que vinham a tomar Goyanna ficavam destruidos ou presos nella, e nunca a puderam dominar. Os santos das igrejas olham pelos moradores.

— Vão lá contar destas historias a Antonio Coelho e a Jeronymo Paes, que hão de vel-os responder á crença do povo com risos mofadores.

— É porque elles são dois refinados hereges —disse a velhota. E como hereges hão de acabar. Quem fôr vivo ha de vêr. Talvez que nesta guerra mesma que elles preparam, venha o seu fim encoberto.

O crepitar das labaredas com que as fogueiras illuminavam todo o largo pateo do engenho; as detonações das armas de fogo que de todos os lados estavam indicando quanto o S. João é estimado pelo povo, fizeram emfim inclinar para a festa as attenções até então absorvidas nas tristes aprehensões que o grave acontecimento suscitava.

Como si comprehendessem a conveniencia de auxiliar esta nova disposição dos espiritos as escravas copeiras entraram nesse momento na sala, conduzindo bandejas com bolos e doces de que começaram a servir-se os hospedes.

Dentro em pouco a conversação, ainda presa por uma ponta á guerra, espalhava-se pela outra em varios assumptos mais proximos e positivos. Praticou-se da abundancia das chuvas, e do mal que tinham feito ás cannas e á roça; da escassez da farinha; da carestia da fazenda.

— A razão porque a farinha não apparece no mercado, observou Manoel de Lacerda, é porque os mascates se atravessam e compram por atacado a que encontram. A razão do alto preço da fazenda é porque são elles os que a vendem.

— Vai por estes dias á praça o engenho de Martins por execução que lhe move o Porto, disse Felippe Cavalcanti. Por um anno que Porto levou a supprir o engenho de Martins, fez-se credor deste em avultada quantia. Absorveu-lhe tres ou quatro safras, e por fim, não contente com este resultado ainda, propoz-lhe acção em juizo e o obriga agora a dar o engenho a pagamento.

— Entretanto, observou Cosme Bezerra, Porto está rico. O assucar, que recebia do Martins, em pagamento, a 400 reis a arroba, remettia a seus correspondentes na Europa a razão de 1$400.

— Só por este modo poderia elle abrir os dois importantes armazens que estabeleceu no Beco-do-pavão, observou Jorge Cavalcanti.

— E que é feito de Martins? Perguntou um.

— Está pobre, e é hoje meu lavrador, respondeu Mathias Vidal.

— E não havemos de pegar em armas contra os mascates! Exclamou Cosme Bezerra.

Foi neste ponto interrompida a conversação pela entrada de Francisco e de Lourenço. Vendo-os, o sargento-mór chamou-os ao gabinete onde minutos antes se celebrára em familia a grave conferencia a que assistimos.

— Aqui está o rapaz, seu sargento-mór, disse Francisco, entrando no gabinete.

— Estava impaciente pela tua volta. Dize-me cá. O rapaz poderá partir para a capital, ao nascer da lua?

— Quem? Eu? perguntou Lourenço.

— Tu mesmo, Lourenço.

— Posso partir já, assim o ordene vosmecê.

— Estás prompto de tudo?

— De tudo estou, porque nada tenho que apromptar.

— Si Francisco não tivesse chegado ha pouco, elle é que havia de ir. A incumbencia é de gravidade.

— E que tem que eu tivesse chegado ha pouco? Perguntou o matuto.

— Estás cansado. Já não és menino para resistires a duas jornadas forçadas uma atrás da outra.

— Perdôe-me vosmecê, seu sargento-mór. Muito me agrada fazer pessoa em meu filho. Mas se é somente por me suppor cansado da viagem que o escolheu, de preferencia a mim, para ir á cidade, eu devo dizer a vosmecê que estou mais prompto do que elle para fazer a viagem. Faço de conta que tomei o rancho em Goyanna, e que a minha parada é na Parahyba. Lourenço é digno de toda a confiança dos homens de bem. Mas é ainda muito moço, tem viajado pouco por esses caminhos, e sem elle o querer, pode sahir o seu serviço mal feito. Vosmecê entregue-me o que tinha para elle, que em menos de uma hora já estou no caminho de Olinda. Só peço licença para ir ao Cajueiro dar um adeus á minha velha.

— Pois vai. Quando voltares, receberás as minhas ordens.

— Senhor, sim.

Dentro de poucos minutos pai e filho estavam no Cajueiro; e quando a luz apontava por cima da mata, já aquelle se achava uma legua distante da vila, em direitura para a capital.

Lauriano tinh sua tenda na rua do Rosario, perto da loja de Antonio Coelho. Era, como quasi todos os sapateiros, paroleiro, indagador da vida alheia, e por isso sabedor de muita particularidade e segredo intimo. Seus frequentadores não tinham nem podiam ter para elle reservas.

Na dita tenda ajuntava-se o povo baixo da villa, que o vinho e o cobre do famoso mercador, por interesseira generosidade delle, faziam sympathizar com a causa dos mascates. Para esta gente estava ella nas mesmas condições que a botica do Rogoberto para o rábula, o meirinho e outros sujeitos de igual estofa. Era o club permanente da plebe. Ahi se discutiam com vehemencia e largueza os negocios da amiga e da inimiga parcialidade. Não raras vezes, no estreito recinto desse singular parlamento, resolveram-se offensas e defezas da maxima importancia. O official de pedreiro, o servente de obras, o aprendiz e o official de outros officios, vinham deixar na tenda as noticias que colhiam nas ruas, e dahi levavam as que os outros, seus iguaes, tinham trazido para o ignobil commercio em que eram praticos.

O Tunda-Cumbe fazia parte deste congresso illicito. Então as repugnancias reciprocas entre os portuguezes e os homens de côr do paiz não estavam tão affirmadas como depois vieram a ficar. Eram ainda de fresca data os grandes exemplos da fraternidade que em conjuncturas gravissimas ligára raças estrangeiras com raças e castas nacionaes; aquellas representadas por João Fernandes Vieira e outros, estas por Filippe Camarão, Henrique Dias e tantos indios, mulatos e pretos que deixaram illustres nomes insculpidos nas paginas da historia e glorificados pela tradição. Não é pois de admirar que, vendido o seu peixe na villa, fosse o Tunda-Cumbe, não por obrigação mas por devoção, tirar a ferrugem da lingua na tenda do Lauriano, onde se reuniam outros mascates da sua laia.

Na antevespera de S. João o Tunda-Cumbe tinha estado com o sapateiro e lhe havia dito que iria divertir-se a noite seguinte em casa do Victorino. Em conversa familiar já revelára tempos antes as suas inclinações por Bernardina.

«Em toda esta redondeza por onde ando, disséra o vendedor de peixes ao de sapatos, não conheço rapariga que tanto tenha bolido com o meu sentimento como a filha do Victorino.»

O tendeiro, que com os defeitos próprios da sua condição, trazia alliado o de instigador das ruins paixões, tantas coisas lhe metteu na cabeça, que o mascate sahiu dalli cheio da falsa idéa de que ninguem melhor do que elle tinha direito á posse da rapariga.

Aquella manhã Antonio Coelho, passando pela porta de Lauriano, perguntara pelo Tunda-Cumbe. Respondera-lhe o tendeiro que lhe seria facil encontrar-se com o peixeiro á noite em um ponto, que sabia; e, como farejou negocio importante, offereceu-se para transmittir-lhe o recado que o mercador quizesse dar. Este contentou-se com lhe pedir que dissesse, de sua parte, ao Tunda-Cumbe que viesse fallar com elle impreterivelmente em sua casa aquella noite. Tunda-Cumbe, não obstante ter grandes desejos de não deixar o samba sinão depois de ausentes todos os convivas, correu sem demora á villa, calculando que de semelhante chamado só lhe poderiam provir vantagens, attento o estado das coisas na capital, do qual já tinham chegado as graves noticias á Goyanna.

Os inimigos da nobreza, divertindo-se, como esta, ao menos apparentemente, e festejando com fogos enterrados á frente de suas casas, com reuniões, dansas, comes e bebes a noite do precursor do Messias, projectavam tambem tenebrosas vinganças, seguindo, sem o saberem, os nobres, posto que o conjecturassem.

A morada de Coelho ficava por cima da propria loja. No vasto sobrado para isto destinado não faltava o luxo, que caracteriza a vida de larguezas e deleites que o commercio dá e tira com a facilidade natural do jogo das operações mercantis. As extensas relações que tinha entre os agricultores, e a circumstancia de ser o negociante de mais nota do lugar pelos meios pecuniarios de que dispunha, obrigal-o-hiam a essa vida fastosa, quando certa ambição de figurar e o proposito de competir no lustre e grandeza com os primeiros fidalgos de Goyanna não exigissem delle o tratamento luxuoso que sustentava.

Até certo tempo atraz, fôra visto com bons olhos por esses fidalgos. Mais de um delles lhe dera demonstrações de respeito e estima. Chegou-se a dizer que á influencia de alguns devia Coelho a nomeação de sargento-mór com que o distinguira el-rei. Fosse porque fazia de si grande conta; fosse porque lhe parecera tempo de firmar a sua posição ainda não de todo segura; fosse porque não podera resistir ás imposições do sentimento, deu Coelho um passo que, produzindo completa e radical mudança em sua vida, converteu em hostilidade e odios contra si proprio as afeições e benevolencias que tinham antes disso manifestado por elle os nobres da vila. Sabendo anos antes, que d. Damiana, pela qual sentia grande affecto, estava para ser dada em casamento a João da Cunha, antecipou-se elle e pediu-a para si. Foi-lhe peremptoriamente recusada; e não teve outra origem o eclipse da sua estrella, nem o odio que cavou entre elle e o sargento-mór o abysmo insondavel que os separava.

Ao principio sentiu-se Coelho como curvado debaixo do peso deste grande desastre; mas, por derradeiro, reaccendendo-se-lhe a chamma do forte animo, um momento apagada pelo sopro da tormenta, o negociante ergueu a cabeça, fixou vistas altivas em seu altivo inimigo, e assentou de lutar com elle e seus parentes e iguaes, até que os vencesse ou cahisse de todo exsangue e morto.

A esse tempo já se iam manifestando as rivalidades que trouxeram como resultado a guerra. Coelho, em vez de procurar dissipal-as, foi o primeiro que em Goyanna as ateiou e lhes deu vulto e desenvolvimento; de modo que, quando, pela creação da villa do Recife, ellas definitivamente fizeram explosão, á frente dos mascates appareceu elle, sedento de vingança, tomando para si toda a responsabilidade e direcção dos odios insurgentes e tornando-se o alvo dos rancores da nobreza.

Quando Tunda-Cumbe appareceu na sala, achavam-se ahi com o dono da casa Jeronimo Paes, o portuguez Manoel Rodrigues (taberneiro), Belchior, Romão e outros. O assumpto da conversação era a guerra, nem podia ser outro, o que os reunisse então. Mas aqui não se manifestavam apprehensões e temores, como no engenho, entre os nobres. Aqui se tinha por segura a victoria, não obstante já se saber que o bispo se evadira e se achava exercitando o governo contra os mascates.

— Que importa isso? inquiria Jeronymo Paes. As fortalezas, os arsenaes, a milicia de terra e a milicia naval, os homens bons do Recife, e o povo são todos nossos. Em nossos armazens temos generos acumulados para seis mezes. Fallava-se em que os mazombos tencionavam sitiar a vila. Estupido plano é este. Que mal nos pode trazer semelhante sitio, quando temos livre o porto, por onde podemos communicar-nos não só com as outras capitanias, mas até com importantes localidades do littoral de Pernambuco?

— Hão de cansar-se elles primeiro de nos guardarem, que nós de estarmos guardados por semelhante modo—acrescentou um dos circumstantes.

Dando com os olhos em Tunda-Cumbe, Antonio Coelho levantou-se e acenou-lhe com a mão que o acompanhasse ao aposento contiguo. Ahi chegados, Coelho offereceu ao peixeiro uma cadeira, e dando exemplo, disse-lhe:

— Senta-te, Manoel Gonçalves.

— Este, a modo de admirado da intimidade, que equivalia a uma honra, que elle estava longe de esperar, respondeu:

— Póde vosmecê dizer o que ordena. Ouvirei tão bem estando de pé, como si sentado estivera.

— Senta-te. O negocio exige pratica longa.

Tunda-Cumbe sentou-se.

Por todos os de Goyanna era o Tunda-Cumbe havido por meio mercador e meio bandido. Ninguem ignorava suas relações com certos sujeitos de ruim fama, alguns dos quaes se dizia serem associados ao peixeiro em criminosas negociações. Havia quem soubesse que no lugar denominado Sipó tinham elles um como rancho, onde celebravam seus conciliabulos.

— Mandei chamar-te, Manoel Gonçalves.

Aqui se interrompeu Antonio Coelho, e um momento depois continuou:

— Mas, antes de entrarmos no assumpto, não será máo que desmanches um pedaço de bolo fresco e laves a guella com um copo de vinho puro e velho, que ha dias me chegou do Porto.

Assim fallando, Coelho apontava para a commoda de cedro, onde se viam, em salvas de prata bolos de S. João de differentes tamanhos e formas, e em garrafas de crystal o vinho generoso a que alludira. — Tenha paciencia, seu Antonio Coelho, —respondeu o peixeiro. Acabo de chegar agora mesmo do divertimento em que estava, quando o Lauriano me deu o recado. Queira ter vosmecê a bondade de vir direitinho ao negocio, que eu fiquei de voltar ainda hoje ao dito divertimento, onde tenho uma grande empresa que executar, si para isso não me faltar o tempo.

— Que empresa é essa?

— Quebrar os dentes a um pé-rapado, por não terem mordido a lingua delle na occasião de me dizer meia duzia de liberdades que lhe hão de custar bem caro.

— Folgo em encontrar-te nestas boas disposições. Mas, para não dares passo em falso, trata primeiro de organizar as tuas forças. Não tens tu varios amigos com quem te podes ajuntar a qualquer hora que seja necessario?

Tunda-Cumbe, não sem dar mostras de confusão e hesitação, inclinou a cabeça como quem respondia affirmativamente.

— Pois bem; tornou o negociante. É da maxima conveniencia que de hoje para amanhã reunas todos elles e á sua frente trates de hostilizar por todos os meios imaginaveis, não só o pé-rapado a quem queres quebrar os dentes, mas tantos pés-rapados e masombos quantos poderem cair em tuas mãos. Já deves saber o que resolveram os nossos patricios e amigos do Recife...

— Tudo sei.

— É de nossa honra e de nosso interesse que o grito que elles soltaram na villa, ache echo em todos os pontos importantes da provincia, especialmente em Goyanna.

— E o governo está de nossa parte?

— O governo! O governador, o legitimo, o verdadeiro governador de Pernambuco, Sebastião de Castro Caldas, este está comnosco. D. Manoel é simplesmente o governador da rebeldia. Deu força aos insurgentes, e está exercendo attribuições que lhe não competem. Os que o sustentam e por elles são sustentados, tão criminosos são como ele. Oppuzeram-se á creação da villa, o que quer dizer que se oppuzeram á vontade e á ordem de el-rei; tentaram contra a vida do legitimo governador, e o obrigaram a refugiar-se na Bahia para escapar á morte; na ausencia delle, tomaram conta do poder tumultuaria e revolucionariamente; o bispo por infame covardia ou por indigna connivencia, assumio as redeas do governo e expedio perdão aos rebeldes e assassinos. Deviamos nós, leaes vassallos de el-rei, ter por justo e legal o infame perdão, quando as justiças do céo e da terra exigiam antes as cabeças dos rebeldes? Não, mil vezes não. Acumulámos viveres, ajuntámos dinheiro para que nos não faltasse nada na occasião do desforço. Julgando os nossos amigos do Recife chegada esta occasião, acabam de soltar o brado em favor da restauração da autoridade legal, vil e traiçoeiramente conspurcada pelos que se appellidam nobres, quando outra consa não são sinão rebeldes e sicarios. Assim, todo leal portuguez tem o dever de lançar mão das armas para derribar o governo de d. Manoel e levantar novamente o de Castro Caldas. Em favor desta empreza patriotica e gloriosa é que te proponho reunas todos os amigos que poderes. O programma da lucta é largo, mas resume-se nisto—destruir, seja por que meio fôr, qualquer força, qualquer bem, até a propria vida de todos os fidalgotes de Pernambuco. —Tudo o de que precisares, a saber, dinheiro, viveres, apoio, protecção illimitada para ti e para os teus a fim de se preencher este plano salvador das nossas fortunas, das nossas vidas e do nome portuguez, ser-te-ha promptamente dado ou feito, contanto que a represalia não fique nem por um instante retardada. Posso confiar em ti, e nos teus, Manoel Gonçalves? concluio Antonio Coelho com gestos e expressão de quem estava de corpo e alma entregue a este pensamento e por leval-o a effeito subiria a todas as eminencias e desceria a todos os abysmos.

Antonio Coelho era de boa estatura. Tinha os cabellos pretos e corridos os olhos rasgados e humidos. Espadaúdo e anafado, dir-se-hia que esse homem, uma vez sentado, não poderia levantar-se sinão com auxilio de outrem. Nada entretanto encontraria mais a verdade. Posto que macisso de fórmas, era prompto nos movimentos. Sua agilidade tinha o quer que fosse da electricidade. Em seu semblante estavam esparzidos os toques de uma expressão particular que o tornavam atractivo. Usava a palavra com vehemencia e mobilidade que interpretavam brilhantemente os caprichosos raptos e oscillações de seu espirito, umas vezes lento e tardo nas operações, outras franco e arrebatado até á inconveniencia e a temeridade.

— Ha então viveres e dinheiro bastante para serem distribuidos pela gente que eu ajuntar? inquiriu o peixeiro, como quem não queria ainda acreditar na fórmal promessa que acabava de fazer-lhe o negociante.

— Ha tudo de que precisares para as mais arriscadas e custosas arremettidas contra a nobreza, disse a com segurança Antonio Coelho, qual si fizesse um juramento solemne. Além disso, acrescentou como por demais, o saque entrará por muito na ordem dos meios de supprir qualquer falta que se não tenha podido prever.

— Eu quero ser franco a vosmecê. Tenho já comigo, não de hoje, mas de ha muito, vinte camaradas valentes e decididos. Se me autoriza a augmentar o numero, dentro de pouco tempo terei uma companhia organizada.

— Autorizo-te a organizares um batalhão. Pagarei a todos o soldo, e a ti aquelle que costumam vencer os coroneis.

— Muito bem, respondeu o Tunda-Cumbe. Pode contar comigo. De hoje a oito dias teremos gente para tomar Goyanna.

— Trata-se não de tomar Goyanna, que nossa é, mas de ir em soccorro dos nossos amigos do Recife, que estão ameaçados de um rigoroso sitio, posto pelos rebeldes de Olinda e das vilas mais proximas.

— Pois sim; é para o que quizer. Sou páo para toda obra.

— Fica pois assentado que de hoje em diante andaremos de acôrdo nesta grande obra.

— Sim, senhor. Está decidido.

— Em caso de necessidade, por quem poderia mandar chamar-te?

— Por Lauriano.

— Podemos confiar nele?

— É um negro interesseiro, que odeia muito os nobres, porque de um delles foi escravo e provou muito bacalháo. Elle sabe onde ha de procurar-me, nos dias em que não costumo vir a villa.

Antonio Coelho deu algumas ordens ao peixeiro, assaz aggradaveis para este, por serem acompanhados de algumaa moedas de prata.

Mettido o dinheiro na algibeira do gibão velho que trazia, o Tunda-Cumbe retirou-se, levando comsigo a convicção de que desde o momento, em que fôra autorizado a acrescentar o seu sequito, era elle tão poderoso chefe sinão mais do que o proprio que a isso o autorizara.

Nos primeiros dias de julho, em lugar dos vinte malfeitores que d'antes trazia mais ou menos ligados comsigo, contava o Tunda-Cumbe numero superior a duzentos; e por tal fórma lhes havia imposto a sua autoridade, que a seu grado os dirigia e movia tão bem como si foram puros automatos.

Os insultos, as arrogancias, os furtos de cavallo, os roubos, as atrocidades de toda especie começaram então a augmentar de modo assustador. Hoje era a casa de um foreiro assaltada, amanhã era um negro do engenho castigado cruelmente porque se tinha oposto a que tirassem a canna, a macaxeira, a gallinha, a ovelha, que elles por fim sempre tiravam.

Para a familia do pobre não houve mais respeito nem segurança. Mulheres honestas e recolhidas, moças solteiras que viviam honradamente sobre si ou em casa de seus pais eram raptadas sem o menor escrupulo, e iam contra a vontade dellas, os olhos arrazados de lagrimas, cevar a brutal concupiscencia de assassinos e ladrões, que, confiando na impunidade promettida para elles por seus protectores, as deixavam ao desamparo, nos braços da devassidão, ou entre as unhas felinas da miseria, depois de saciadas suas paixões reprovadas e vis.

Constituiu-se assim o Tunda-Cumbe dentro em pouco tempo o terror de todo o norte de Pernambuco, porque para suas correrias elle não escolhia lugares nem conhecia limites, e publicar o seu nome montava publicar, não já o nome de vinte ou duzentos facinorosos, mas o de quinhentos, affeitos a desrespeitar os homens serios, a roubar a honra das familias fracas e a fazenda do proprietario pacifico, a matar o matuto que lhes resistia, a destruir e aniquilar homens e coisas.

Pelo mesmo tempo outro caudilho truculento começou a representar no sul as mesmas tradições de saque, sangue e morte que celebrizaram tão tristemente o Tunda-Cumbe. Era o indio Sebastião Camarão, de quem se dizia que recebera tres mil cruzados dos mascates para ser por elles, com seu sequito na guerra, que se accendera. Este sequito, composto em sua maior parte de homens que tinham dado inteiramente as costas á honra, á moral, á lei e a Deus, chegou a ser muito numeroso e a contar quasi o dobro do do outro bandido. Os maiores criminosos do sul faziam parte delle, razão porque nos lugares por onde passavam, nenhum principio ou interesse veneravel ficava sem receber delles as mais graves violações e offensas.

De todos os senhores-de-engenho das cercanias de Goyanna, o que servia de alvo ao odio mais apurado do Tunda-Cumbe era Mathias Vidal de Negreiros. A razão é obvia.

Durante o seu almocrevar, quando succedia passar, não por fazer negocio, mas por encurtar distancias ou evitar grandes atoleiros ou rios cheios, pelo engenho de Mathias, fazia o Tunda-Cumbe, rosnando como cão irritado, esta acerba jura:

— Hei de vingar-me algum dia neste villão ruim do que me fizeram seus negros.

O dia pareceu-lhe ter chegado duas semanas depois da conferencia que tivéra com Antonio Coelho, e para lá se encaminhou com cerca de sessenta dos seus valentões no intuito de tomar a desforra longamente premeditada.

Quando chegou a Itambé seria meia-noite. Fazia brando luar. Tendo sido muito abundantes as chuvas aquelle anno, o mato fechára consideravelmente e quasi tomára os cinco ou seis caminhos que iam ter na casa, Tunda-Cumbe dividiu a gente em partidas iguaes, cada uma das quaes tomou a direcção conveniente pelo caminho que lhe incumbiu percorrer. A casa não poderia resistir a sessenta homens, que simultaneamente a atacassem por todos os lados; mas não surtiu o plano o menor effeito, porque antes de chegados os atacantes ao ponto, differentes tiros, partidos de dentro dos matos e cannaviaes lançaram susto e pavor no animo daquelles que tomavam da sorpresa ou emboscada a sua principal valentia. Tunda-Cumbe, receioso de forças que não conhecia, ordenou a retirada.

Foi o caso que tendo Mathias Vidal negros e moradores de sua confiança, devidamente espalhados por dentro do mato, e empregados em vigiar durante a noite os caminhos, por signaes assentados antes tinham estes vigias dado aviso da aproximação do bando aos outros negros e moradores, que correram sem demora a impedir o passo aos assaltantes. De ha muito suspeitava Mathias que o Tunda-Cumbe, em offerecendo-se occasião opportuna, não deixaria para mais tarde a sua desforra. Todavia, não estaria preparado para frustrar tão facilmente este ataque inopinado, si outra razão o não determinasse a ter promptos meios de debellar qualquer aggressão, por forte e subita que fosse. É a razão que diremos. Assentado ficára entre os nobres em casa de João da Cunha, antes de dissolvido o ajuntamento ahi celebrado na noite de S. João, que, não obstante dever-se esperar, para resolução definitiva, por noticias e indicações formaes das autoridades e amigos da capital, prudente era que cada um dos proprietarios presentes tratasse de organizar sem perda de tempo terços defensivos, com seus moradores e escravos. Dado este importante passo, era facil dentro em pouco tempo, no caso de necessidade, mobilizar-se em Goyanna uma grande massa de gente, que acudisse ao primeiro reclamo da capital, quer para engrossar o cerco, si esta fosse a idéa predominante, quer para tomar de assalto o Recife e destruir o governo constituido pelos mascates dentro nesta villa. Se não fossem reclamados soccorros, nem por isso se perderia o que estivesse feito, visto que, devendo-se ter por mais que provavel que a reacção se generalizasse mais dia menos dia, ter cada um dos senhores-de-engenho junto de si seu contingente, era o mesmo que estar defendido em sua familia e propriedade. A demonstração pratica da excellencia e sabedoria deste acôrdo, foi Mathias Vidal o primeiro que a teve, pelo que fica escripto.

Esta lição, porém, longe de encurtar, posto que fosse incruenta, os arrojos do chefe dos bandoleiros, o incitou a investida ainda mais grave.

O dia seguinte sendo domingo, apresentou-se elle muito cêdo na villa, deliberado a praticar qualquer disturbio, que produzindo escandalo, para logo désse lugar a que seu nome soasse como o de um diligente e fiel servidor dos mascates, tauto em Goyanna, testemunha do insulto, como no Recife, aonde logo havia de chegar a noticia dele.

Estava-se em 3 de julho. Os espiritos achavam-se por extremo excitados. Os parciaes da nobreza, animados por saberem que tinha ella por si o governador, já restituido á sua liberdade, não perdiam ensejo de exaltar a sua força e ostentar o poder que dá a autoridade. Os parciaes dos mascates não faziam por menos, publicando que sem dinheiro comprariam os mais nobres da terra, inventando innumeraveis relações de communidade entre os rebeldes preeminentes e o governador geral do Brazil, d. Francisco de Souza, seu filho, e outros importantes vultos da Bahia e de Portugal.

Varias eram as pessoas que na botica do Rogoberto matavam o tempo emquanto o sino da matriz não vibrava a segunda chamada para a missa conventual. Entre essas pessoas apontavam-se Jeronymo Paes e Belchior. Serviam de assumpto as ultimas noticias chegadas do Recife. Eis a substancia de tais noticias. D. Manoel, logo que se achou de novo de posse da autoridade, mandou publicar na villa o edital pelo qual eram intimados os officiaes da milicia e os demais moradores que estavam em armas a retirar-se das fortalezas com as respectivas guarnições, a fim de entrarem os povos no socego do costume, sob pena de serem havidos por traidores e inimigos da paz, e ficarem por isso sujeitos ao rigor das leis. Não tendo querido, porém, os revoltosos acceitar estes avisos, e devendo-se por isso dar começo a providencias mais energicas, para as quaes, por ser de paz e perdão o seu ministerio, não se julgava o mais proprio, resolveu encarregar do governo militar o ouvidor geral, dr. Luiz de Valenzuela Ortiz, o mestre de campo Christovão de Mendonça Arraez e o senado da camara de Olinda, que se compunha do coronel Domingos Bezerra Monteiro, capitão Antonio Bezerra Cavalcanti e tenente Estevão Soares de Aragão.

O procedimento do prelado era considerado como covardia no congresso da botica. Belchior, para dar mais autoridade a este juizo, recordava differentes circumstancias passadas, a saber, a partida de d. Manoel para a Parahyba quando desfecharam o tiro no governador Caldas; o ter-se deixado prender pelos mercadores no dia 18 do mez anterior; e outras circumstancias que não são para o nosso caso.

— O bispo não é mais do que um villão ruim, um desprezivel instrumento dos Cavalcantis que querem ter sempre curvados a seus pés, como tem os negros dos seus engenhos, os povos de Pernambuco. Os mascates não precisam delle para castigarem a soberba e arrogancia dessa nobreza de meia tigella, que o que traz limpo em seu sangue deve a esses mesmos mascates; porque o que d'ahi não procede, é côr da noite de África ou côr do fogo das aldeias.

Palavras não eram ditas quando um filho de Jorge Cavalcanti, que vinha montado em fogoso ginete, chegando-se a porta da botica assim retorquiu montado como estava, a Belchior com o calor e a imprudencia dos primeiros annos:

— Villões ruins são aquelles brazileiros desnaturados que se vendem ao ouro ou rendem ás labias dos estrangeiros, cujo sentimento não é outro que o de revolverem a terra onde encontraram hospedagem. Esses, sim, são os mais infames villões que pizam na terra de Camarão e de Henrique Dias. Sua baixeza não se compara nem mesmo com a dos que mordem a mão que deveriam beijar.

Replicou-lhe Belchior com quatro pedras na mão; o filho de Jorge treplicou, já com mostras de quem queria usar o chicote que trazia. Quando o gesto indicou a intenção quasi todos os que estavam na botica tomaram o partido de Belchior, mas não tardou que varias pessoas das vizinhanças e da rua vieram em soccorro do outro contendor.

Estavam justamente as coisas neste ponto quando appareceu o chefe dos bandoleiros. Ao gibão surrado, aos calções em differentes partes serzidos e aos sapatões grosseiros com que costumava andar, tinham-se substituido casaca e calções de velludo, e sapatos de entrada baixa com fivellas. Trazia pendente um espadim que parecia novo, como o chapéo de pluma e a roupa. Naquelles tempos já o habito fazia o monge. Tanto que o Tunda-Cumbe se apresentou vestido com este apuro e galhardia, não foi preciso mais para que todos logo conjecturassem que grande transformação se operára na vida do ex-peixeiro, e já alguns lhe tirassem o chapéo como demonstração de respeitosa cortezia. Tal houve que se afastou para que elle tivesse livre acesso ao ponto central do conflicto. Muitos dos circumstantes explicaram esta attenção, attribuindo-a a vir elle acompanhado de dez a doze valentões conhecidos, pouco tempo antes seus companheiros, agora seus guarda-costas.

— Donde vem esta grandeza e este poderio a Tunda-Cumbe, que ainda não ha um mez vendia bodiões e amorés pelas portas? perguntou a meia voz um parcial dos nobres.

Respondeu-lhe no mesmo diapasão o companheiro:

— Dizem que tem ordem franca dos mascates para ajuntar gente, e do Recife lhe promettem a patente de coronel em paga dos serviços, já vendidos a elles por bom dinheiro.

Entretanto o Tunda-Cumbe chegara ao ponto onde se déra o vehemente bate-barbas. Achou sómente ahi o Belchior. O filho do Jorge Cavalcanti tinha tomado já a direcção da matriz, e com pouco descavalgava e entrava.

Entendendo Tunda-Cumbe que não devia perder aquella occasião de dar a mostra do pano, puxou do espadim e assentou-o de chapa sobre as costas de um sujeito que no canto da rua mais publica da villa exaltava a causa da nobreza e desfazia na reacção dos mercadores. Não foi preciso mais para que se désse novo conflicto, que dentro de alguns minutos redundou em serio motim. Houve muitas contusões, muitos ferimentos, muito sangue inutilmente derramado. Estando ainda nas mãos da nobreza a autoridade e a força publica, pôde-se dominar no fim de algum tempo a assuada. O nome porém, de Tunda-Cumbe e os dos bandoleiros mais violentos que com elle percorreram as ruas, espancando e ferindo os adversarios que encontraram desprevenidos e inermes, esses nomes, especialmente o de Manoel Gonçalves começaram desde esse momento a voar nas asas da fama, e poucos dias depois designaram celebridades que todos entraram a respeitar e temer.

Uma semana depois, Goyanna foi testemunha de novas scenas, mais graves do que as primeiras, as quaes chegaram a durar tres dias.

Por ordem de João da Maia da Gama, capitão-mór da Parahyba, tão dedicado aos mascates que pelo senado da camara de Olinda foi appellidado em officio de 26 de junho de 1711 «a pedra fundamental em que os do Recife se levantaram e formaram o chimerico edifício e fabrica do industrioso levantamento», veiu Luiz Soares reunir-se com o Tunda-Cumbe afim de irem ao Recife com sua gente, passante de oitocentos homens, levantar o cerco.

Achavam-se entre os da Parahyba, não só Joaquim de Almeida, espirito por assim escrevermos, inspirador do capitão-mór João da Maia, mas tambem Pedro de Mello, um dos instrumentos da revolta sustentados pelo Almeida. Tendo esta por base, para tornar uniforme o movimento, dar Goyanna como unida á Parahyba, veiu desta Pedro de Melo eleito capitão-mór daquella. Feita a juncção em Pedras-de-fogo, tomam posse com elle em Goyanna os officiaes da nova camara, distribuem-se lugares aos mais esforçados cabos da rebellião, constitue-se emfim o governo da villa independente do de Pernambuco. Pedro de Mello entra no exercicio do seu lugar com toda a solemnidade do estylo. Sahe da igreja do Carmo para a casa da camara debaixo do pallio, acompanhado dos camaristas, tão legitimos como elle, e dos frades carmelitas, executores das ordens dos da recoleta do Recife. A villa, achando-se desguarnecida de força militar, visto que a que havia tinha ido atacar o rancho do Sipó, no presupposto de sorprender ahi o Tunda-Cumbe, viu-se obrigada a aceitar este desatino quasi a portas fechadas. E o intruso e illegitimo governo se consolidaria talvez, sustentado por Maia, si logo depois da sua posse, em 14 de julho, não tivesse chegado a guarnição incumbida da diligencia e ao mesmo tempo as forças legaes mandadas de Olinda para impedir que seguissem os revoltosos e dissolver o governo intruso. Estas forças vinham commandadas pelo ajudante Bernardo de Alemão e Mendonça, o qual se unira com o capitão Bento Bezerra de Menezes que commandava a companhia de Araripe, e com o ajudante Filippe Bandeira de Mello e os que com elle estavam na ilha de Itamaracá. Posto que não eram numerosas, tendo feito juncção com a guarnição da villa, poderam pôr em violento e vergonhoso regresso todos os revoltosos parahybanos.

No intuito de deixarem inteiramente serenados os espiritos dos pacificos habitantes e restabelecida a ordem em Goyanna, fixaram-se essas forças no engenho do capitão Bento Corrêa de Lima, que ficava á vista da villa, e onde estiveram por muitos dias.

O Tunda-Cumbe, sagaz e prevenido, tinha-se retirado com os seus ao valhacouto do Sipó logo depois de constituido o governo que teve tão ephemera existencia, o que não concorreu pouco para o augmento dos creditos da sua manha e penetração.

Antes de chegar á Goyanna, praticou em Pedras-de-fogo o bando que viera da Parahyba, capitaneado por Luiz Soares, uma infame tragedia.

Essa povoação, da qual, por effeito de nossa viciosa divisão territorial, uma parte pertence á provincia da Parahyba, e a outra parte a Pernambuco, já naquelle tempo representava certo espirito de resistencia ao elemento estrangeiro, que depois da referida tragedia se acentuou e manteve até bem pouco tempo, segundo direi.

A principal familia de Pedras-de-fogo em 1711 não se caracterizava por clara linhagem nem por haveres, mas pelo numero de seus membros, pelo espirito de trabalho de cada um, pela harmonia que os trazia unidos uns aos outros, e pela valentia que de qualquer delles fazia um leão.

Manoel do Ó, sujeito tirante a pardo, natural de Nossa-senhora-do-ó fôra ainda muito novo estabelecer-se com sua tenda de alfaiate em Pedras-de-fogo.

Esse logar, que ainda hoje não é notável sinão por sua grande feira de gados, a qual ahi se faz semanalmente, por então começava apenas a povoar-se. Poder-se-hia compôr de quinze a vinte casinhas, em sua maior parte cobertas de palha.

O alfaiate casou-se com a filha de um mulato por nome José da Luz, que tinha na Rua-da-feira a casa de morada e defronte desta a tenda de ourives. A união foi fecunda. Cada anno nascia a Manoel do Ó um filho; e de tal sorte foram as coisas, que em 1710 a sua descendencia se compunha de dez filhos e vinte e dois netos. Alguns destes já taludos.

Não havia nenhum que não tivesse seu meio de vida. Alguns não o tinham muito decente e legitimo; não ha familia numerosa em que se não aponte qualquer lepra. Em sua maioria, porem, eram os descendentes varões de Manoel do Ó de regular procedimento e muito bemquistos no lugar.

Posto que, como meio de levantar a gentalha a seu favor, os mascates fizeram publicar que a sua causa era a da liberdade e da igualdade do povo contra a tyrannia constituida e os privilegios antigos da nobreza, meio a que deveram a maior parte dos auxilios dos naturaes da terra, Manoel do Ó que não era tolo, convidado por Maia a adherir aos motins, escusou-se, dizendo que nada tinha nem com os nobres, nem com os mascates, visto que era elle, como todos os seus, mecanico, plebeu e homem de côr.

Tanto bastou para excitar o desagrado dos insurgentes, dos quaes foram, dentro em pouco, tão positivas e repetidas as hostilidades e arrogancias contra Manoel do Ó, que, offendido este, ao principio simplesmente no seu melindre de familia, e por derradeiro na propria pessoa de um filho, certo dia, de um genro dahi a pouco, e de um neto semanas depois, resolveu declarar-se pela causa dos nobres; e uma das tentativas de Maia para fazer juncção em Goyanninha com o bando do Tunda-Cumbe, a fim de se dirigirem ao Recife, foi frustrada por Manoel com sua companhia de filhos, genros e alguns moradores d'alli mesmo, mais ou menos ligados com elle por laços particulares. Foi tão forte e acertada a opposição, que a fôrça mandada por Maia não pode passar siquer os limites da Parahyba.

Não foi só esta a unica tentativa de juncção malograda; nenhuma houve de 11 de julho para traz que surtisse effeito. Manoel do Ó achava-se diante de todas com sua gente como barreira intransponivel e fatal.

Estas e outras identicas contrariedades, exacerbaram por tal fórma o capitão-mór da Parahyba, que este assentou de queimar o ultimo cartucho para as fazer cessar de todo.

— Diga a esse negro Manoel do Ó, assim se exprimia elle uma vez a certo sujeito que tinha relações com o alfaiate, que muito breve lhe hei de provar que O é o mesmo que zero; e a seus filhos José da Luz e Antonio da Luz, diga igualmente que hei de mandar apagar as luzes de sêbo de Pedras-de-fogo pelo meu escravo Euzebio, com tiros de bacamarte.

Dito e feito. Em 10 de julho, quando menos se esperava no povoado, rompeu o fogo para as bandas da Baixinha, lugar de Pedras-de-fogo que pertence á Parahyba. Tinham sido dados os tiros pela gente de Luiz Soares contra uns sobrinhos do alfaiate que moravam desse lado.

Manoel do Ó que não obstante a sua avançada idade tinha ainda grandes espiritos e não perdia de vista os passos de Maia, sahiu logo com sua gente; e pois na vespera de noite seu filho Anacleto do Espirito-Santo, que chegára do Limoeiro aonde tinha ido a destrocar uns cavallos, lhe dissera ter visto ahi o Tunda-Cumbe, não pensou em proteger a retaguarda, até porque, sendo muito numeroso o concurso dos aggressores, toda a gente viu-se obrigada a empenhar-se em lhe fazer frente.

Este foi o seu mal, porque momentos depois teve a retaguarda atacada por forças não menos numerosas, que as de Luiz Soares. Foi o caso, que tendo-se entendido Maia previamente por carta com Antonio Coelho e concertado com elle o ataque ao obstaculo commum, não se fizera esperar do lado de Goyanna o reforço do Tunda-Cumbe.

Vendo-se entre dois fogos o povo de Manoel do Ó, não houve esforço que não empregasse para romper qualquer dos lados, nem actos de bravura que não praticasse, a fim de levar a melhor aos aggressores. Tudo porém foi de balde. Trinta homens não podiam triunphar de oitocentos.

A cabo de uma hora de peleja que não se póde descrever, Manoel com quasi todos seus parentes estavam destroçados e vencidos. Restavam unicamente da familia as mulheres, dois filhos e tres sobrinhos, que lograram escapar-se quando reconheceram que a sorte das armas lhes era adversa. Estes para não perderem a vida, ganharam o mato.

Não se podem imaginar as atrocidades que, vendo-se senhores do campo, commemteram na povoação, desamparada no mais acceso da luta, os bandoleiros desenfreados e sedentos.

Refugiaram-se no mato os homens feridos e as mulheres chorosas e consternadas que constituiam os ultimos restos da parentela de Manoel do Ó. Ahi o seu odio cresceu e radicou-se profundamente no coração de cada um dos foragidos. Exagerados em seus desejos de desaggravar-se, juraram na solidão da selva, testemunha da sua adversidade e depositaria dos seus prantos, que, si podessem voltar com vida a Pedras-de-fogo, como lei de sua honra, não consentiriam jámais que nenhum portuguez se demorasse mais de vinte e quatro horas na povoação fundada pela illustre victima cuja memoria elles deste modo queriam honrar. Julgavam, jurando preencher esta promessa solemne, que cumpriam um preceito de alta justiça. Não era porém outro sentimento o delles, assim promettendo, que o sentimento da vingança pessoal, sempre cego e injusto.

Transmittindo-se de pai a filho, de filho a neto, nem foi esquecida a tradição do morticinio nem ficou sem preenchimento a promessa feita entre prantos e angustias ha mais de um seculo.

Não ha no que ahi fica relatado invenção de romancista. Até bem pouco tempo, logo que chegava qualquer filho de Portugal a Pedras-de-fogo, era intimado de ordinario por moradores pertencentes ás primeiras familias, para que dentro de poucas horas se retirasse.

Este exagero passou de todo. A civilização, polindo o brazileiro do interior, deixou-lhe inteiramente livres os movimentos de natural generosidade e brandura, que constituem a parte essencial de seu genio.

Emquanto estas scenas e outras semelhantes se passavam em differentes pontos do termo de Goyanna, acertadas providencias eram dadas pelo governo da capital a fim de que ellas não se reproduzissem.

Não sem razão inspirava aos nobres plena confiança o ajudante-de-tenente Francisco Gil Ribeiro. A galhardia e a bravura militar de Gil eram tradicionaes, e constituiam um dos mais ricos e illustres patrimonios da gloria pernambucana. Para descançar das fadigas da sua longa e trabalhosa vida, acolhera-se o ancião na sombra do lar domestico. Affectos brandos, inclinações respeitaveis, tinham-se substituido ás violentas explosões da paixão guerreira. Estabelecêra elle sua residencia nas Salinas (hoje Santo-Amaro), á margem direita do Beberibe entre cajueiros e sapotiseiros pittorescos. Dahi o foi tirar o governo, para lhe entregar o commando da fortaleza de Itamaracá, ameaçada de cahir no poder dos amotinados de Goyanna. As noticias, porém, dos graves e successivos conflictos havidos nesta villa, determinaram o governo a ordenar que o ajudante-de-tenente, á frente de quarenta homens, e acompanhado dos alferes Carlos Teixeira e Francisco Alves, e do ajudante Felippe Bandeira de Mello, se dirigissem sem perda de tempo a pacificar aquella localidade.

Ao entrarem na estrada geral do norte, um matuto que passava do Recife, vendo a força, recuou o cavallo, para deixar livre o caminho. Parecendo suspeito a Gil este movimento de pura cortezia ou respeito, fez signal a alguns soldados que segurassem o matuto. Este porém, que não era outro que Francisco, adivinhando a intenção, poz-se a respeitosa distancia, aos primeiros gestos dos soldados.

— Que idéa faz de mim, seu commandante? perguntou elle com serenidade. Pensará que sou pela mascataria? Pois se pensa, está malenganado.

Ouvindo estas palavras, Gil, com gesto imperioso e grave chamou o matuto para mais perto de si; e lhe disse:

— Quem foi que te ensinou este recado para me illudires?

— Não quero illudir ninguem.

— Cuidado com esta gente, senhor ajudante, disse Fellippe Bandeira á meia voz a Gil. Parecendo simplorios, são finos e manhosos.

— Mas quem lhe disse que eu sou pela mascataria? tornou Gil a Francisco.

— Si é ou si não é eu não posso jurar. Cá eu é que não sou nem serei por elles nem neste mundo nem no outro.

— Então, si eu tivesse necessidade de uma pessoa que me ensinasse os atalhos para chegar á villa sem ser presentido pelos nobres, não me prestava você de boa vontade este serviço tão pequeno?

— Saberá vossa senhoria que nem de bôa nem de má vontade eu lhe ensinava os caminhos da villa para este fim. Daqui mesmo destorcia para traz no meu castanho, porque para servir a tais individuos não ha forças humanas que me obriguem, nem dinheiro que me compre.

— Grande odio tem você a esses homens que só cuidam em viver do seu trabalho.

— Eu cá sei em que elles cuidam. Querem enriquecer á nossa custa. Vendem a fazenda pela hora da morte, agora os generos da terra querem comprar por pouco mais que nada. Não fazem isto só com o pobre matuto, como eu; até os senhores-de-engenho gemem entre as unhas delles. O que não tem o olho vivo, quando dá acôrdo de si está com as terras, as cannas, os negros de sua propriedade mettidinhos todos dentro da gaveta do mascate, que faz os suprimentos e adiantamentos. Muito francos em fiarem são os taes mascates, quando vêm que a pessoa a quem fazem seus offerecimentos, tem bens de seus. Agora, quando a conta está bem augmentada, tomam tudo pela justiça, e ficam donos de casas, escravos e fazendas do dia para noite. Si isto é ser bom, o inimigo leve esta bondade para si, que eu não a quero nem de graça, quanto mais á custa do meu roçado, do meu cavallo e da minha casinha.

Tendo dito estas palavras, Francisco, chegou a espora que trazia no pé direito á barriga do castanho e virou para o Recife. Não pôde porém, avançar muitos passos, porque Gil, pondo as pernas a sua cavalgadura, tomou-lhe logo o caminho.

— Para onde vai? Venha cá. Estamos de acôrdo, e podemos ir juntos até Goyanna. Você é muito desconfiado, camarada, disse em tom de quem gracejava.

— Não me fiz por minhas mãos, respondeu Francisco. Foi assim que nasci da barriga de minha mãi.

— Mas não tem que desconfiar de mim.

— Meu senhor, a gente vê cara e não vê coração. Eu sei lá si vosmecê vem contra os mascates ou pelos mascates...

— Pois você não está vendo a tropa?

— Que tem a tropa? Não podia ser delles?

— Então, você vem da capital e não sabe que elles estão cercados?

— Eu sei muito bem que elles estão cercados. Sou capaz de dizer até por quem.

— Diga lá.

— Pois escute. Nas trincheiras levantadas junto do muro do S. Bento está a companhia do capitão Dionizio, e a dos Estudantes, commandada pelo capitão Antonio Tavares; nos presidios do Varadouro, Porto-dos-padres, Porto-das-lavadeiras, Carreira-dos-masombos e Tacaruna, estão o tenente José Tavares e o sargento-mór Domingos Freire; as forças de S. Amarinho, Campina-da-cerca, Curtume e Santo-André são commandadas pelo padre Paulo; na Conceição, Sacco, Olaria e Arraial-da-bôa-vista está o capitão Carlos Ferreira; na Barreta e no Arraial-dos-affogados está o commandante João de Barros.

— Bem informado anda você da distribuição das forças do governo.

— Si eu passei por todas ellas, porque tive de ir a Jaboatão.

— Mas então porque é que duvida se somos pelos mascates ou pelos nobres? Inquiriu Felippe Bandeira.

— Porque duvido? Então os mascates tambem não tem tropas na villa? Elles não podiam mandar gente por mar do Recife para Itamaracá? Mas enfim, como vosmecês dizem que vem por parte do governo, estou calado. Eu não duvido da palavra dos homens.

A esse tempo a tropa, que um instante estivera parada, seguia já o caminho de Goyanna. Gil, Felippe Bandeira e os outros officiaes iam no couce. Francisco tinha mettido o cavallo entre o de Felippe Bandeira e o de Gil.

Passado um momento perguntou o ajudante-de-tenente ao matuto:

— Poderemos saber quem é você, camarada?

— Chamo-me Francisco dos Prazeres, e sou morador do engenho Bujary.

— A quem pertence esse engenho?

— A seu sargento-mór João da Cunha.

— Sei quem é.

— Havemos de passar por dentro mesmo do engenho. Vou deixar vosmecês em Goyanna, e volto ao Cajueiro, onde tenho minha familia. Ha mais de mez não sei della, nem nova, nem mandado. Quem sabe o que não terá acontecido a minha mulher e a meu filho durante a minha ausencia?

— Você vai encontrar todos em paz.

— E si não encontrar, o Tunda-Cumbe é quem me hade pagar. Eu nunca matei ninguem. Trago uma faca de ponta aqui no cós para me defender. Mas si o diabo do pé-de-chumbo tiver feito alguma das suas a gente que me pertença, não pregarei olhos emquanto não lhe pregar primeiro a faca na barriga. Hei de tirar-lhe o couro como se faz aos bodes para secar e delle fazer suador do meu cavallo.

Quando chegaram ao engenho Itapirema, em cuja capella estivera occulto em outubro do anno anterior para escapar á prisão ordenada pelo governador Castro Caldas, o ouvidor de Olinda dr. José Ignácio de Arouche, era quasi noite. O rio tinha tomado muita agua e estava de nado.

— Como hade ser isso agora? perguntou Gil, pondo os olhos naquelle mar d'agua, que se estorcia por baixo de galerias de folhagens, estrepitoso e medonho. Para atravessarmos esta immensidade agora de noite, corremos o risco de perder algum companheiro. É entretanto necessario passarmos hoje mesmo da outra banda; porque, antes que a alva esclareça, devemos achar-nos na villa. Aliás poderemos chegar já fóra de tempo.

— Eu já sei porque é esta pressa toda, disse Francisco.

— Porque é?

— É porque em Goyanna se receia que da Parahyba passe a gente promettida aos mascates pelo capitão-mór. Eu de tudo sei, seu commandante.

— Mas então vê lá si nos dás remedio a isto.

— Porque não havemos de passar já? respondeu Francisco, saltando do cavallo á beira do rio, onde a tropa fora obrigada a fazer alto. Ha aqui um ponto onde o Itapirema dá váo. Mas está tudo encoberto e não se póde saber onde fica a trilha.

Quasi meia hora gastou elle em procurar, sempre de balde, a occulta passagem. Com agua, ora pela cintura, ora pelos peitos, ora pela bocca, percorreu uma extensão de cerca de vinte braças ao longo da margem. De uma vez cahiu dentro de um poço, de que só se salvou por ser forte nadador.

Estava já quasi de todo escuro quando, exhausto do muito lutar com o impetuoso elemento, que puchava com extrema velocidade lhe pareceu ter dado com o váo desejado, que elle proprio já perdera a esperança de achar.

Veiu á terra, muniu-se de um facão, e atirou-se novamente a nado para o meio do rio. Distante da margem cerca de seis braças, um mulunguzeiro, cujo tronco o impeto da corrente retorcera e cuja folhagem redemoinhava açoitada pelos novellões revoltos, foi o ponto negro para onde se dirigiu o matuto. Em torno da arvore desacompanhada as aguas fremiam vertiginosas, accusando de baixo dellas abysmo insondavel.

— Eh, meu negro! Exclamou Francisco, dirigindo-se ao rio. Estás assobiando e gemendo? Não vês aqui o teu amigo, famanaz do Cajueiro? Deixa as tuas raivas para outros. Eu sou teu antigo conhecido. Faz-te de cêra, coração.

Assim gracejando, deixou-se o matuto levar pela força da corrente, e quando á claridade duvidosa do crepúsculo pareceu a todos os que da margem tinham os olhos postos nelle, inevitável a sua perda, o matuto barafustou na folhagem retorcida e apagou-se um momento da vista dos presentes.

— Morreu!

— Afogou-se.

Taes foram as vozes que partiram de differentes boccas.

Súbito ouviu-se bater o facão sobre os galhos superiores do mulunguzeiro. Ninguem viu mais Francisco, mas todos ouviram o rumor dos golpes da pesada arma, movida por sua mão possante contra o athleta vegetal que o Itapirema trabalhava por engolir. Não se demorou muito que os golpes cessaram e uma sombra negra, passando rapida, vertiginosa, como nuvem phantastica, aos olhos da tropa, sumiu-se no turbilhão. Era a ramagem do mulunguzeiro que fugia, deixando apparecer núa, escalavrada, á cima da superficie do rio a parte superior da arvore, e no cimo desta o destemido matuto.

Mas não estava completo o serviço. Francisco veiu outra vez á terra, e tendo tirado um fuzil do saco vazio que pendia do cabeçote da cangalha, encaminhou-se para uma macahybeira que a alguns passos apparecia solitaria. Umas folhas seccas, que a tempestade tinha abatido ahi foram apanhadas pelo intrepido matuto, e com ellas improvisou elle um facho.

Então, voltando-se para a tropa, disse:

— Vamos passar o rio. Eu vou na frente, feito guia. Com o homem ninguem póde, commandante. É o bicho mais valente que eu conheço. Qual cobra, nem onça, nem rio, nem raio! Quando o homem é homem, fique certo que vence pedras, agua, o proprio fogo.

E metteu-se immediatamente no liquido elemento.

Quem souber o que é um rio cheio, nos caminhos do norte, especialmente o Itapirema, que pelo inverno costumava arrebatar e ainda arrebata ás vezes algumas vidas ajuizará da coragem de Francisco e do serviço que prestava. O rio roncava e estorcia-se ainda irritado e ameaçador. Mas a furia que causava horror a quem um momento atraz levára a vista ao mulunguzeiro, essa, com a ausencia da folhagem, tinha diminuido, deixando que as aguas corressem mais livremente e menos arrebatadas que antes.

Levaram talvez um quarto de hora a romper o vasto mar, ora em linha reta na direcção do norte, ora contornando cotovellos de terra firme.

De repente uma luzinha appareceu como santelmo, na margem fronteira. Era o lume da casinha de um morador do engenho.

— Estamos da outra banda, minha gente. Ali está a casa do Manoel Felix, onde poderemos tomar algum trago. Acho-me todo resfriado.

Quando pizaram terra, Gil Ribeiro, aproximando-se de Francisco, dirigiu-lhes estas palavras:

— Obrigado, camarada. Você nos prestou um serviço que não tem preço.

— Ora qual, seu commandante. Eu tambem estou doido por ver a minha gente.

A noite estava fria, mas clara. A solidão era profunda, e o mato, onde como fogos fatuos, luziam interpolladamente os pyrilampos, soturno e medonho.

Mas por entre arvores ramalhudas, moitas bastas, barreiras nuas, mostrava-se a estrada a todas as vistas, figurando o leito arenosos de um riacho que seccara.

O dia vinha rompendo, quando descobriram a massa sombria da mata de Bujary. O Cajueiro estava a menos de cem braças, occulto por um cotovello que formava a estrada.

Sentindo o coração pular-lhe de contente, Francisco virou-se para Gil:

— Seu commandante, vossa senhoria dá licença que eu vá adiante acordar minha mulher e meu filho? Estou que não posso me conter.

— Póde ir, meu bom companheiro. Corra já. É natural a sua impaciencia.

— A nossa casinha fica ali adiante, na beira do caminho, á direita, continuou Francisco. A que fica a esquerda é a de seu padre Antonio. Até logo, seu commandante.

Francisco esporeou o castanho, que não obstante vir cahindo de fome e enfado se empinou ainda debaixo das pernas do senhor naturalmente por ter sentido o cheiro da manjedoura de casa, e contornando o cotovello da estrada, desappareceu quasi de repente da vista dos que ficavam atraz.

— Estou captivo deste matuto, disse Gil, voltando-se para os companheiros.

— Este profundo amor da familia, commandante, é um dos dotes naturaes do nosso almocreve, disse Felippe Bandeira.

— Bem sei. Em minha longa vida poucos tenho encontrado que desmintam este modelo. Mas o que acho especial em Francisco é o desembaraço, a graça, a franqueza que põe em suas palavras e acções.

— É verdade, disse o alferes Teixeira. Quasi sempre os matutos se tornam bisonhos, quando se acham com pessoas a quem devem respeito.

— Si tivesse meios era capaz de obsequiar-nos com um lauto banquete.

— Assim parece. Mas... que vem a ser aquillo, commandante? perguntou Felippe Bandeira, apontando para frente.

Tinham dado a volta do caminho e entravam no Cajueiro. A casa do padre Antonio appareceu logo aos olhos de todos, á esquerda, como dissera Francisco; mas no ponto onde se devia mostrar a casa deste, o que elles viram foi um montão de cinzas, de que se levantavam ainda fumo e restos de chamma por entre algumas parêdes, esburacadas e enegrecidas.

— O cavallo castanho, entregue de todo á fome que trazia, devorava, sem cavalleiro, a grama verde, que guarnecia a estrada.

— Grande desgraça houve por aqui! exclamou Gil.

E atirou-se para diante da tropa e com pouco chegou ao pé das ruínas fumegantes.

— Francisco? Francisco? Chamou elle, sem poder dominar a sua commoção. Que foi isto, meu amigo?

O matuto, quasi a queimar-se nos barrotes e caibros que ainda ardiam por entre o barro cahido das paredes, revolvia com um ferro de cova, semelhando visão phantastica, os páos e a terra abrazada. Ouvindo a voz de Gil, respondeu:

— Estou desgraçado, seu commandante. Puseram-me fogo na casa, como vê. Mas o que me aterra é pensar que podem estar debaixo destes torrões minha mulher e meu filho queimados!

— Não ha de ser assim, Francisco.

— Marcellina! Lourenço! exclamava de momento a momento o matuto, cavando e revolvendo sempre os entulhos eriçados de lascas, algumas flammejantes, muitas reduzidas a carvão. Ninguem me responde, commandante. Morreram todos! Morreram! Estou sem mulher, sem filho, sem casa. Só me deixaram a miseria e o luto.

As feições do matuto mostravam-se desfiguradas. Por cima de suas faces de quarenta annos, que ha pouco pareciam de trinta, porque as refrescava o reflexo do jubilo intimo, obra da esperança que lhe assegurava veria elle com brevidade os entes predilectos de sua alma, escorriam agora lagrimas lentas, e nellas se lia, em vez do prazer, a dor, a aflição, o desespero. Foi facil a todos os circumstantes conhecer a subita mudança, porque a esse momento o dia estava claro, e a aurora illuminava o céo e a terra com reflexos que nenhum pintor pôde ainda reproduzir na téla.

Gil, sentindo a gravidade daquella crise, correu ao matuto, lançou-lhe os braços sobre os hombros, e disse-lhe em face:

— Então, que é isso, Francisco? Estás a chamar a todo instante por teu filho e tua mulher? Não vês que não podem estar aqui?

— Mas então onde estão elles, commandante? Na casa do padre Antonio não ha ninguem. Já cansei de bater na porta. Ninguem me falou de dentro. Oh! meu Deus! Por aqui andou de certo o Tunda-Cumbe. Malvado! Malvado! Tu me pagarás.

— Isto, sim, disse Gil, conhecendo que a loucura um momento imminente ia fugindo, espancada pelo sentimento da vingança, que acordára emfim, para salval-o, no coração do matuto. Havemos de vingar-nos desses perversos, que queimam as casas pacificas e levantam ranchos para novos salteadores. Não percamos tempo. Salta no teu cavallo. Quem sabe o que não estarão praticando a esta hora na villa os infames bandoleiros. Vamos, Francisco. Quero-te a meu lado.

O matuto saltou sobre o castanho. Tinha os olhos e as faces em fôgo. Na respiração sentia calor de fornalha. Da mão, em vez do chiqueirador de buranhêm que trazia, pendia agora uma catana fóra da bainha.

Mas de momento a momento ia repetindo, como de si para si:

— Lourenço, Marcellina, que terá sido de vocês? Ó coração, tu estás a annunciar-me uma desgraça sem nome. Deus se lembre de mim, Deus se lembre de mim.

Eis o que tinha acontecido no Cajueiro, ao escurecer do dia anterior.

Lourenço, que depois do que se passara no samba esperava a cada momento ser offendido por Tunda-Cumbe ou por algum dos seus sequazes, vendo entrar um vulto desconhecido no caminho das carvoeiras, pegou da espingarda de Francisco, e, sem que Marcellina soubesse, encaminhou-se para aquelle ponto.

Detraz da palhoça dos negros existia uma cova immensa, em que um homem podia metter-se até aos peitos. Com as ultimas chuvas tomára ella muita agua, e se convertera em barreiro, donde os sapos estavam a essa hora soltando suas monotonas toadas. O rapaz avançou para ella por baixo das ramas rasteiras dos cajueiros. Na parte mais funda a agua deu-lhe pela cintura. Lourenço pouco se importou com isto. O que elle queria era saber quem era o vulto e o que ia fazer alli. Eis o que viu e ouviu.

Estavam dentro da palhoça, com os habitantes do costume, um negro do serviço domestico de João da Cunha por nome Germano e o Pedro de Lima, cabra destemido do sequito de Tunda-Cumbe, braço direito deste para assim escrevermos, que deixou nome na historia da guerra, pelas «extorsões, mortes, roubos e outras desenvolturas que commetteu em Goyanna, de que fôra o terror».

No momento em que Lourenço pôde enxergal-os através das palhas da choupana, estava Pedro de Lima, a frente voltada para o casal de negros e o Germano, justamente a dizer-lhes estas palavras:

— É certinho o que digo; podem crer que terão vocês sua liberdade. Guardarei todo o segredo.

Lourenço compreendeu logo, por estas palavras, que o cabra promettia aos negros a alforria a troco de um levante contra João da Cunha.

— Então, então, Germano, que dizes a esta proposta? perguntou Moçambique ao negro da confiança do sargento-mór. Pois a liberdade é coisa que se engeite?

— A liberdade é bôa coisa, e eu a não engeito, assim ella venha, respondeu Germano. Mas si os outros parceiros não quizerem aceitar a proposta, e meu senhor vier a saber que eu é que andei nisso, quem me livrará de ir ao carro ou á fornalha?

— És um pateta, moleque, disse Pedro de Lima. De hoje até amanhã hei de dar no engenho de teu senhor. Si acontecer o que eu cá espero, amanhã demanhãsinha o chumbo assobia nas urupemas de sua casa e a faca trabalha nas banhas da barriga delle. Si os negros que elle lá tem comsigo promptos para dar e apanhar, faltarem na hora do apuro, não haverá santos que o livrem de ir direitinho para a bagaceira servir de pasto aos urubús.

— Mas ahi é que está a historia, observou Germano. Eu sei lá se elles querem faltar ou não?

— Negros safados são todos vocês. Não prestam nem para tratar de libertar-se. Não sabem nem ao menos deixar a senzala, onde andam curtidos de fome e somno pela mata virgem. Negros de patente eram os dos Palmares. Aquelles sim. Foram quarenta os que primeiro metteram a cabeça no mato; dahi a pouco já eram não sei quantos mil. Vocês são ao pé de duzentos e tem medo do chicote do feitor. Vai, Germano, fallar a João-Congo, a Thomaz, a Januario e a Jacintho. Si elles não tiverem coragem para a tragedia, faze tu o que te vou dizer.

— Diga lá.

— Quando o engenho fôr atacado por nós, corre a botar agua dentro dos canos das armas de fogo. Isto é coisa muito facil, e que tu podes fazer sem ninguem saber, nem ser preciso que alguem te ajude neste serviço.

Germano nada disse, e pelos modos, deu mostras de que dentre differentes alvitres indicados pelo audaz bandoleiro, era este o que mais lhe quadrava. Mas subito com gesto de quem tinha tomado uma resolução decisiva, assim falou a Pedro de Lima:

— Sabe que mais, seu Pedro de Lima? Eu não faço a meu senhor isso que vosmicê propõe. Elle para mim é bem bom senhor. Até minha senhora, que é uma soberbona, essa mesma já uma vez me prometteu alforia.

— Pateta! Estás com medo, moleque ruim.

— Este moleque é assim mesmo, disse Quitéria. Promette as coisas e não faz. Quer e não quer. — Tem medo do bacalhau—disse o cabra despeitado. Não tem agora medo de minha faca, ou do bacamarte de Gonçalo Ferreira. Eu só digo uma coisa: encontrando-te diante de mim, no momento do ataque ha de ser para ti a minha primeira facada ou o meu primeiro tiro.

— Não se zangue comigo, seu Pedro de Lima, disse Germano com certa expressão e revirado de olhos, para dar a entender ao mulato que elle tinha intenção reservada.

— Pois si eu visse Germano mettido na dansa, eu tambem me mettia nela, disse Moçambique.

— Estás ouvindo? Olha lá o que perdemos. Eu porém não quero que ninguem me acompanhe contra a vontade. Nunca pensei que não acceitasses a minha proposta. Quando te vi passar de tarde para esta banda, eu logo conheci que vinhas ao sitio das carvoeiras, e disse comigo: «Vou fallar com Germano para ver si elle quer, a troco da sua liberdade, prestar-nos um servicinho.» Eu estava na mente de que havia de te chamar para nós; mas, como não queres, nem por isso te farei mal. O que eu disse ha pouco foi gracejo. De ti, pobre negro captivo, o que eu tenho não é odio, é pena. E adeus. Perdi meu tempo e minhas razões. De outra feita talvez a coisa já não seja assim.

— Eu tambem me vou embora, que já é tarde; disse Germano. Adeus, tio Moçambique. Com Deus amanheça, tia Quiteria.

— Vai-te embora d'ahi que tu não prestas sinão para chôtear de jaqueta de galão atraz de teu senhor, abrir-lhe as porteiras para elle passar, e limpar as botas delle quando vêm cheias de lama—respondeu Moçambique.

— Você tambem de que serve? Perguntou Germano despeitado. Não é tambem escravo delle, como eu sou? Não é mais que a gente se levantar contra seu senhor! Mestre Moçambique, sabe que mais? Vá contar a outro as suas valentias, que eu nellas não creio, e tanto caso faço dellas, como dos latidos de cachorro velho, carregado de rabuje, que já não morde, porque nem dentes tem.

— Está bom, está bom, vai-te embora, meu pimpão—disse o Moçambique. Amanhã, tu me dirás quem é o cachorro velho que não morde. Talvez que a esta hora tu estejas na ponta da faca de Pedro de Lima, e eu na mata virgem.

Germano deu o andar para a vereda, onde já entrara Pedro de Lima, que sahira antes delle.

Adiante, debaixo de um cajueiro, um vulto estava parado. Era o mulato.

— Eu bem te entendi, Germano. E para saber todo o teu pensamento, aqui fiquei a tua espera.

— Quando é que vão atacar o engenho?

— Para te fallar verdade, eu não sei bem quando ha de ser o ataque.

— Mas vamos cá saber uma coisa, seu Pedro de Lima: como posso ter eu certeza de que serei livre si fizer o que vosmecê propõe?

— Não ha duvida que tudo ha de ser conforme te digo. Pois queres melhor certeza do que a nossa victoria? Olha cá. Si vencermos a nobreza, o governo passará a ser outra vez dos mascates, e passando a ser dos mascates o novo governo, está bem visto que todos aquelles escravos que nos tiverem ajudado a dar com o governo da nobreza em terra, terão em recompensa a sua liberdade.

— E si, em lugar de darem a elles a liberdade os mascates ficarem com os negros na escravidão, não virá tudo a dar no mesmo?

— Mas si eu te afianço que tu pelo menos ganharás a tua alforria, que mais garantia queres do que minha palavra? Não duvides da promessa. Ajuda-nos a dar um ensino de mestre a esses senhores soberbões, e eu te asseguro que não te has de arrepender.

— Pois, sim, seu Pedro. Eu, como confio na sua palavra, estarei prompto, quando chegar o momento, a molhar as armas. Mas, olhe: todo o meu serviço não passará disso, porque eu não quero historias comigo.

— Nem eu exijo outro serviço além deste. Ficarei com elle muito satisfeito, e elle só será bastante para te forrares.

— Então, fica assentado isso mesmo, não é verdade?

— Isso mesmo. E eu vou já dizer ao Tunda-Cumbe a tua promessa, que é para não haver duvida.

Os dois tinham chegado á beira da estrada.

— Ah! Esqueci-me do sacco de batatas que Moçambique mandava lá para casa. Volto a buscal-o.

Separaram-se, Germano para tornar, como disse, á palhoça dos negros, Pedro de Lima para tomar á direita a direcção da mata.

Quando elles desappareceram, sahiu do mato um vulto com passo sorrateiro e cauteloso. Era Lourenço, que por entre o arvoredo os havia seguido, amparado pelas folhagens, quasi hombro a hombro com elles, sem que o vissem. Elle entretanto, que tambem os não vira, ouvira, sem perder uma palavra siquer, toda a conversa que tinham tido os dois conjurados desde a palhoça até a beira do caminho.

Marcellina estava na porta da casa.

Vendo o filho com a espingarda, as primeiras palavras que para elle teve foram estas:

— Que andas fazendo pelo mato a esta hora, Lourenço? Nem sabes que susto acabo de ter.

— Que foi que aconteceu, minha mãe?

— Passou por aqui mesmo, ha instantinho um homem, que, depois de passar, ficou alli de pé a olhar para cá e a fazer geito de quem queria saber ou ouvir alguma coisa de cá de casa.

— Sabe quem era? Pedro de Lima.

— Pedro de Lima, aquelle malvado?! Virgem-da-conceição. Entra, Lourenço, que quero fechar logo a porta. Ele que anda por aqui a esta hora, fazendo bem não é.

— Quer saber o que estava fazendo o cabra?

— Falla baixo, que elle ainda pode estar por ahi. Mas o que foi?

— Uma das suas. Mas o peior foi o que fez o ladrão do moleque, o Germano. Em vez de ser pelo senhor prometteu ser pelos mascates e botar agua dentro das armas, quando o engenho for atacado. Que negro ingrato e perverso! Tive desejos de lhe dar um tiro na cabeça, quando lhe ouvi as traidoras palavras. Mas eu nunca atirei em ninguem.

— Virgem Maria! exclamou Marcellina. Pois querem atacar o engenho?

— Foi o que disse Pedro de Lima. Germano não tarda a passar por aqui. Ah! Alli vem ele.

— E que queres fazer? Queres dizer-lhe alguma coisa?

— Quero, sim senhora.

— Vai para dentro, que eu fallo ao moleque. Elle a mim ha de atender mais do que a ti.

Ainda bem não tinha Lourenço entrado, quando o negro passava pela frente da casa trazendo o sacco de batatas nas costas.

— Si não me engano, é Germano que vai ahi, disse Marcellina em voz alta a fim de ser ouvida.

— Sou eu mesmo, sinha Marcellina, respondeu o negro. Quer alguma coisa?

— Eu logo vi que tu ainda havias de andar por aqui.

— Porque diz vosmecê isso?

— Si não vás com muita pressa dá-me cá uma palavra.

O negro parou á porta da casa.

— Senta-te nessa pedra que te quero dizer uma coisa.

— A pedra está muito quente. Eu oiço mesmo de pé o que tiver de me dizer.

— Pois olha; nessa pedra mesma esteve elle sentado, ha pouquinho.

— Ó xentes! Elle quem, sinha Marcellina?

— Anda cá. Pois tu não sabes quem podia ser? O Pedro de Lima.

— Seu Pedro de Lima?! perguntou o negro subitamente alterado. Ó xentes! Seu Pedro de Lima!

— Então, elle não andou por estas beiradas ainda agorinha? Quererás negar?

— Elle andou, é verdade, respondeu Germano, entre aterrado e tremulo.

— E que coisas te disse ele?

— Pois vosmecê sabe o que elle me disse?

— Chega-te para perto de mim, que eu não te quero botar a perder, Germano.

O negro aproximou-se, com passo tardo, porque em cada pé começou a sentir o peso de uma arroba depois que ouvira as ultimas palavras da cabocla.

— Queres saber o que foi?

— Diga, sinha Marcellina.

— Elle esteve comtigo na palhoça de Moçambique, e fallando-se ahi sobre os motins que tem havido na villa e a revolta dos mascates do Recife, tu te offereceste a botar agua dentro das armas de teu senhor, para ellas não pegarem fôgo, quando o bando de Tunda-Cumbe atacasse o engenho.

Não se póde imaginar a impressão de medo, dôr, arrependimento e colera, que estas palavras produziram no espirito do negro.

Sem o querer cahiu-lhe do hombro o sacco, e elle proprio, para sustentar-se de , teve de apoiar-se no ferro de cova que trazia em uma das mãos.

— Ora, dize-me, Germano, proseguiu Marcellina: isto era coisa que tu dissesses aquelle malvado? Podias tu prometter semelhante traição contra teu senhor, que te estima, e que, até já tem por vezes promettido forrar-te? És um escravo indigno de ter liberdade.

O negro não respondeu. Triste, cabisbaixo, immovel não sabia o que dizer á cabocla.

Esta prosseguiu:

— Pois não seria muito mais bonito que, em vez de seres traidor e ingrato a seu sargento-mór, fosses o primeiro a defendel-o na hora do ataque? Não terias tu muito mais segura a tua alforria, si, quando Pedro da Lima partisse contra seu sargento-mór, tu partisses contra Pedro de Lima, e com a foice, o facão, o chuço ou o bacamarte impedisses que elle fizesse mal a teu senhor ou a tua senhora?

Germano não era um negro bronco.

Ouvindo estas palavras, percebeu que nellas se lhe offerecia uma porta para sahir da situação cruel e desprezivel á que fôra arrastado.

Então soltou-se-lhe a voz, que estava presa.

— Eu quero contar a vosmecê a historia como foi. Seu Pedro de Lima foi quem me fez esta proposta, com a promessa de minha liberdade. Vosmecê bem pode saber que todo captivo deseja ficar livre, ainda que seja muito bem tratado por seu senhor, como sou eu na escravidão. Eu prometti fazer isso que elle disse, mas depois que ouvi suas palavras, estou arrependido; e posso jurar que não cumprirei a promessa que fiz a seu Pedro.

— Estarás tu dizendo a verdade, Germano?

— Eu sou negro, sinha Marcellina, mas não minto. Pode vosmecê crer que estou muito arrependido da minha ruim acção. Só uma coisa lhe peço: é que não vá dizer isso a minha senhora.

— Si eu quizesse fazer mal, já tinha corrido para lá a metter-lhe tudo no ouvido. Mas tu sabes que eu tenho bom coração. Antes quiz aconselhar-te, do que fazer-te a cama, mesmo porque esperava que mudasses de parecer. Tu estás muito moço; não te apresses que has de ter a tua liberdade não pela mão de Pedro de Lima, ou do Tunda-Cumbe, mas pela mão de teu senhor mesmo. Vai-te embora descançado, que nada por minha bocca se ha de saber do que temos conversado. Pela bocca de Pedro de Lima é que eu não respondo.

O negro levantou o saco, pol-o novamente no hombro, e disse:

— Pela boca delle, sinha Marcellina, respondo eu. O que elle acaba de fazer comigo ha de pagar-me com lingua de palmo e meio.

— Olha bem não te vás espetar em alguma tragedia. O cabra é malvado e traiçoeiro.

— Elle é cabra, e eu sou negro, mas porém si elle não andar muito ligeiro, eu passo-lhe o pé adiante. Elle não sabe com que negro está pegado. Louvado seja nosso Senhor Jesus Christo.

Ainda bem Germano não tinha entrado na mata, quando novo vulto se mostrava na estrada, do lado oposto.

— Não te recolhas já, Marcellina, disse o vulto de longe.

Quem fallava era o padre Antonio.

— É vosmecê, seu padre? perguntou a cabocla admirada.

— Que será isso? disse Lourenço apparecendo. Seu padre por aqui.

— Vocês admiram-se, hein? E não deixam de ter sua razão.

Os tres tornaram para dentro de casa. Marcellina, que foi a ultima a fazel-o, encostou a porta de baixo, e pois a sala era muito pequena, e d'ahi mesmo, com os olhos na estrada e nos outros dois interlocutores, alternativamente, fez-se toda ouvidos.

O padre então sentou-se em uma tripeça, ao pé da mesinha da sala, emquanto Lourenço, de pé, com as mãos sobre o espeque onde descansava a porta da janellinha, quando estava aberta, esperava impaciente que o sacerdote quebrasse os sêllos do mysterio que o levava ali.

— Venho pedir-te um serviço que, na ausencia de teu pai, só tu me poderás prestar, Lourenço.

— Vosmecê não pede, manda, seu padre, respondeu o rapaz.

— Como tenho de fazer uma viagem esta madrugada para fora de Goyanna, quero que vás agora mesmo ajudar o José a arrumar as minhas malas. Olha. Põe tudo o que é meu dentro dellas. Deixa só o que absolutamente não poder ir.

— Si vosmecê quer, vou eu, disse Marcellina. Lourenço não sabe fazer bem estas coisas.

— Sabe, sabe, respondeu o padre. Demais eu tenho que te fallar. Vai, Lourenço.

Quando se acharam sós o padre Antonio e Marcellina, disse aquelle a esta:

— Marcellina, venho fazer-te uma confissão tão verdadeira e sincera como si a fizesse a um padre do senhor.

— Uma confissão! Quem sou eu para merecer tanta honra e confiança?

— O que tu és bem o sei eu. Tu és merecedora de honras e distincções muito mais altas do que esta, porque em ti a virtude fez sua morada, e a honestidade dá seus saudaveis fructos. Todos os elogios da terra ficariam ainda áquem do teu merecimento. O lar domestico ainda não encontrou nem encontrará jámais quem o represente melhor do que tu o representas.

— Seu padre está exagerando.

— Não estou, não. Ha quatro annos que moro no Cajueiro. Estou por isso habilitado a conhecer as tuas qualidades, a saber os teus sacrificios, a admirar a rara belleza de tua alma. Mas venhamos já ao que importa. De duas partes se compõe a minha confissão. Começarei pela segunda. Estou-me vendo em uma collisão cruel. Avalia por ti mesma. Não viste entrar hoje em minha casa o sargento-mór?

— Vi, sim senhor.

— Veiu pedir-me, antes impor-me que eu partisse hoje até amanhã para Goyanninha, a fim de por meio de praticas publicas, chamar ao partido dos nobres o povo que se declarou e tomou armas pelos mascates. Si o pedido fosse exclusivamente delle, eu acharia logo meios de escursar-me, posto que são muitos os obsequios e as attenções que me prendem ao sargento-mór. Mas infelizmente não é assim; e o sargento-mór foi portador de uma carta em que o bispo supplica que eu vá pacificar os animos daquelle povo; e de lá siga até os limites da Parahyba com o mesmo fim. Alguem no meu caso recusaria este favor ao seu prelado e ao seu amigo? Ninguem. Pois eu acabo de recusar, quando já estava determinado a pratical-o. Sabes porque recuei? Escuta lá, Marcellina. Não viste hoje de tarde sahir de lá de casa um frade carmelita?

— Não vi, mas Lourenço me disse.

— Era o prior do convento do Carmo. Veio de proposito—vê lá tu como as coisas se ajuntam—com uma carta, antes ordem da recoleta do Recife, exigindo que eu sem perda de tempo me dirija a Parahyba a fim de levantar os animos do capitão-mór João da Maia, que começam a resfriar. Esta providencia foi resolvida pelo padre João da Costa, a quem devo grandes beneficios, e pelos drs. Ferreira Castro e Mendes de Aragão, conselheiros do governo dos mascates. Não contentes com incumbir-me deste gravissimo mister, exigem que eu me ponha a caminho de hoje para amanhã. Neste sentido recebi, á entrada da noite, nova carta de frei José de Monte Carmelo, que Antonio Coelho me mandou trazer por Pedro de Lima. entre as tres e as quatro horas da madrugada hão de estar por aqui os meus companheiros de jornada á Parahyba. Oh, que collisão cruel, Marcellina?

— E seu padre vai fazer este serviço aos mascates? Perguntou a cabocla.

— Eu deixo o Cajueiro, mas aqui em particular, que ninguem nos oiça, devo dizer-te: não vou nem para Parahyba, nem para Goyanninha. Vou para... Nem sei para onde vou eu. Vou fugindo de mascates e de nobres.

— Mas, meu Deus, como ha de ser isso? Pois vosmecê nos deixa assim?

— Nem uns nem outros tem razão, Marcellina. São exagerados ambos em suas paixões. Cegou-os a vaidade, o interesse, o capricho condemnavel. Deviam estimar-se e auxiliar-se mutuamente como dantes; mas não; hostilizam-se, como se fossem dois povos barbaros e inimigos, como si não tivessem laços communs—a mesma nacionalidade, a mesma religião, a mesma lingua, as mesmas leis. Porque é que brigam elles? Por um pedacinho de governo? Por uns vinténs de mais ou de menos? Por uma villa? Mas em uma terra immensa, como esta, que ainda por muitos seculos ha de ser um mundo universo, onde poderão aposentar-se todas as nações da Europa, brigar por uma villa, por um engenho, um armazem, uma loja, um assento no senado da camara, é dar testemunho de ter o entendimento obscurecido pelas trevas da ignorancia ou da loucura. Querem destruir-se os dois loucos? Pois destruam-se, como querem; eu é que não hei de ir metter-me entre elles dois. Ambos são meus irmãos; mas como não posso nem mesmo com um só delles, quanto mais com ambos juntos, o recurso que tenho é deixal-os pegados até que, pela dôr physica, pelo sangue derramado, pela fome criem ambos mêdo á luta e volte um para a loja e o outro para o engenho a tratar, já com as paixões castigadas e o juizo claro, dos seus interesses particulares.

O padre inclinou a cabeça, como quem meditava, e, passado um momento, voltando-se para Marcellina, disse-lhe com evidente desprazer e tristeza:

— Vou passar ao segundo ponto de minha confissão.

— Seu padre póde fallar, que eu estou ouvindo com toda a attenção, respondeu a cabocla.

E sentou-se para escutar melhor.

O padre proseguiu assim a sua confidencia:

— Abro o livro da minha vida sacerdotal para lêr a triste e vergonhosa historia que te quero confiar. Custa-me por extremo volver a folha negra, em que está escripta, além desta historia, a minha propria condemnação. Mas fio que serás indulgente para os culpados. Na juventude, Marcellina, são vehementes e cegas as paixões, a carne obra como tyranna; a phantasia, mais tarde estrella de branda luz, não passa então de chamma afogueada—illumina, mas queima. Quando chega a idade madura, e o entendimento, como magistrado intimo, examinando, apreciando e julgando os actos da mocidade, descobre os montões de cinzas a que o fogo da paixão juvenil reduzio sentimentos e principios respeitáveis, e por baixo dessas cinzas fundos abysmos e tenebrosas sepulturas; quando a razão, já educada pelos annos e fortalecida com o conhecimento exato das coisas, transmitte á consciencia suas severissimas leis, e exige o preenchimento dellas, a fragil peessoalidade humana não tem para sua defeza outra voz além desta: «Perdão, ó homens! Perdão, ó Deus!» Presta attenção, Marcellina. É chegado o momento do terrível sacrificio. Vou emfim abrir a teus olhos o lugar mais recondito do meu coração. Não te aterres com o espetaculo, nem digas a ninguem que debaixo das cinzas de minha velhice se aninha uma serpente que me prende, como annel de fogo, ao inferno.

— Seu padre! exclamou a cabocla profundamente abalada. Juro-lhe que lhe guardarei segredo até á morte.

— Houve aqui ha annos uma terrivel epidemia de bexigas desde o Recife até á Parahyba. Morreu gente sem conta por esses povoados e estradas a fóra. Tu has de estar lembrada.

— Ainda me lembro dessa peste. Si eu estive ás portas da morte...

— Pois bem. Por esse tempo achava-me eu no convento de Iguarassú, donde, por ordem do bispo, parti para Tres-ladeiras, a fim de prestar os soccorros espirituaes á pobreza, que estava ahi morrendo no maior desamparo e impenitencia. Uma noite de muita chuva, tenho ainda na memoria bem frescos todos os passos, especialmente os primeiros do meu erro, quando eu voltava de um sitio aonde tinha ido ouvir de confissão um moribundo, senti-me de repente assaltado de tremedeiras tão fortes que não sei como não vim do cavallo em terra; estava pesteado. Felizmente alguns passos adiante havia uma casa na beira do caminho, e dentro della vi lume aceso. Pedi agazalho, o qual não se fez esperar. As moradoras, que me conheciam de ver-me passar todo dia pela porta, acolheram-me com as maiores attenções. Era uma mãi com sua filha, ambas viuvas. Não só durante o periodo agudo da enfermidade, mas durante a convalescença, que foi longa, nunca resfriou o zelo dellas. A filha era nova e mui gentil. Emfim, Marcellina, quando voltei um mez depois á minha casa, levava comigo dois inimigos crueis, uma paixão e um remorso. O primeiro destes inimigos pude vencer, pretextando cansaço e fraqueza, e voltando ao convento; o segundo porém nunca mais sahiu de minha consciencia; ha de baixar comigo á sepultura. Só Deus sabe, Marcellina, si esse crime não chamou sabre minh'alma a condemnação eterna.

— Deus tem sempre o perdão para os bons.

— E eu fui bom? Fui pusillanime e réprobo. Tempos depois dentro de minha cella, recebi uma carta. Aquella, que me fizera cahir e que eu arrastára em minha queda, tinha sido mãi e pedia-me que olhasse por ella e pelo filho. A velha tinha fallecido, deixando a filha só no mundo, com o testemunho vivo do meu crime. Nos primeiros tempos olhei de longe pela infeliz e pelo fructo do nosso amor fatal; mas sabendo depois que ella se havia desmandado em sua vida, faltou-me generosidade para continuar-lhe os meus auxilios. Todavia eu não perdia de vista esses entes com os quaes o destino me prendera por inquebrantaveis cadeias. Quando ella se mudava de uma terra para outra, como muitas vezes aconteceu, eu achava sempre em o novo lugar pessoa de minha confiança a quem recommendar a criança que, rendendo a homenagem devida á decencia, eu dizia ser ligada comigo por parentesco remoto. Essa pessoa era o vigario ou outro qualquer sacerdote. Um dia recebo uma carta em que o vigario da freguezia onde a mulher e o menino estavam ultimamente residindo, me informava da morte da mãi e do abandono do filho. A carta fôra retardada, de sorte que quando me chegou ás mãos, mais de um anno tinha decorrido depois de sua data. Sendo-me então mais facil tomar o menino á minha conta, não só pelo fallecimento daquella que a elle tinha melhor direito do que eu, mas pela minha secularização, corro ao ponto em que o devia encontrar, impaciente por ver e conhecer aquelle que na fórma de espinho eu trazia incessantemente na consciencia. Oh que amargas desillusões não foram as minhas quando ahi cheguei! O menino tinha no lugar as mais tristes tradições, que se podem imaginar, e para cúmulo do meu desgosto, mão desconhecida o tirára violentamente, posto que com satisfação de todos os moradores.

— Meu Deus! Que está dizendo, seu padre? inquiriu Marcellina abalada e confusa destas noticias, que cahiam em seu espirito na forma de raios de luz.

— Tu sabes o resto, Marcellina.

— Eu, eu?

— Sim. Não te lembra o que fiz quando, de volta do engenho entrei em tua casa?

— Já me não lembra, seu padre.

— Pois lembra-me eu. Chamei Lourenço para junto de mim, metti-o entre as minhas pernas e abracei-o. Ah! era a primeira vez que eu via meu filho.

— Seu filho! Pois Lourenço é seu filho, seu padre! exclamou a cabocla, fazendo gestos e meneios, que acusavam intenso e subito prazer. Oh! meu Deus, como eu sou feliz!

As lagrimas saltavam dos olhos della, mas não eram desacompanhadas; o padre tambem chorava.

— Feliz foi Lourenço, feliz fui eu, disse ele. Si não fôras tu, alma privilegiada, mãe perfeita, honra das mulheres, brilho do lar, si não fôras tu, o que seria desse menino que vivia como animal immundo na povoação condemnada? Mas... estou ouvindo o rumor de passos. É talvez Lourenço, que se aproxima. Mudemos de assumpto. Não te esqueças, Marcellina, do que me prometteste. Não reveles a ninguem a minha fealdade moral.

— Ninguem saberá o que vosmecê acaba de contar, menos Francisco.

— Francisco? Tens razão. A Francisco, primeiro instrumento da Providencia para a mudança radical do destino de Lourenço, podes e deves referir toda esta historia. Agora uma ultima palavra. Retiro-me deste lugar sem saber para onde vou. Si eu vier a morrer antes de terminada esta guerra, que me aparta de vocês contra a minha vontade, logo que tiveres noticia, faze Lourenço senhor do seu proprio segredo e entrega-lhe este papel, que elle deve apresentar ás justiças. Não é meu testamento, é a doação, que lhe faço, de meu sitio e de todas as terras que me pertencem.

— O padre Antonio entregou a Marcellina o papel a que se referira. Era tempo. Lourenço entrava para dizer que seus serviços já não eram necessarios no sitio.

— Por derradeiro quero dar-te um conselho, Marcellina, disse o padre levantando-se. Ao que parece, está projectado um ataque ao engenho. Devem passar por aqui os assaltantes, e natural é que tentem algum desacato a vocês, por se vingarem das relações que Francisco mantém com o sargento-mór. Por isso prudente me parece que não pernoitem aqui por estes tempos. No engenho, onde ha mais força, deve haver mais segurança. Seu padre tem razão, respondeu Marcellina.

— Mas no engenho é que elles têm sêde, observou Lourenço.

— Pois façam o que lhes parece melhor, tornou o sacerdote.

— O melhor é irmos para a casa grande emquanto é cedo, disse a cabocla.

— Verdade seja—acrescentou o rapaz—que eu devo estar junto de Germano, para ver esse negro o que faz. Vosmecê bem sabe porque é que eu digo isto, minha mãi.

— Está assentado. Vamos já.

— Adeus, Marcellina. Deus te abençôe, Lourenço, disse o padre Antonio, limpando a furto duas lagrimas que lhe apontaram nos olhos, e encaminhando-se para a estrada.

Dahi voltou-se para dizer: —Escuta de lá, Lourenço. A chave da casa, na occasião de sahir mando pôr debaixo da porta. Quando voltares do engenho, achal-a-has da banda de dentro.

— Senhor sim.

Uma hora depois Lourenço e Marcellina tomavam para o Bujary. Não se metteu muito que o padre Antonio com seu escravo José deixou como elles a estrada, seguindo porém differente direcção. Era madrugada velha quando entrou pelo Cajueiro o Tunda-Cumbe com sua gente. Pedro de Lima bateu com o coice do bacamarte sobre a porta da casa de Francisco, e como d'ahi ninguem lhe respondeu, foi elle o primeiro que poz fogo nella. Outros bandidos o imitaram, tomados da volupia feroz que caracteriza os scelerados. A casa do padre foi poupada por ser de quem era. Mal sabiam elles que poucas horas antes tinham voltado d'ahi, inteiramente frustrados em sua expectativa e sem poderem explicar o facto que profundamente os contrariara, dois parciaes dos mascates mandados por Antonio Coelho com todo o necessario para acompanharem o padre á Parahyba.

Ao clarão do incendio, penetraram os malvados na mata, caminho do engenho, supondo que iam sorprender o sargento-mór. Este porém, advertido desde muitos dias atraz por differentes circumstancias, suspeitas e até boatos, tinha-se passado aquella tarde para o sobrado que costumava occupar, quando festas publicas ou negocios particulares exigiam a sua estada temporária na villa. Marcellina e Lourenço, não tendo encontrado a familia na casa grande, foram reunir-se com ella em Goyanna.

O sobrado estava situado no quarteirão fronteiro á igreja do Carmo. Ficava olhando para o cruzeiro de pedra que ahi se vê e do qual se diz que em seus alicerces se acha enterrado grande thesouro destinado pelo instituidor á reedificação do convento si succeder que venha a cahir em ruinas.

Esta tradição existia já em 1711 porque, por occasião de um dos oito motins de que, durante a guerra dos mascates, foi theatro Goyanna, um bando da gente do Tunda-Cumbe atirou-se ao cruzeiro, e a uso dos vandalos, que tudo destruiam, mutilou parte da larga e solida peanha, sobre a qual ainda hoje se mostra assente a cruz, e fez profundas excavações, afim de vêr si davam com o cabedal occulto. Não se sabe si a sua espectativa foi satisfeita ou illudida. Neste ponto a tradição nada adianta.

Com o sargento-mór tinha ido para Goyanna grande parte da escravatura; o restante ficára no engenho para o guardar e defender, sob as ordens de alguns moradores entre os quaes se apontava o Victorino, cuja intrepidez era por todos conhecida. A mudança fôra subita.

Quando a columna invasora chegou ao engenho, já era ahi esperada; e por isso foi recebida com todas as honras. A defeza tinha sido bem organizada por Victorino e seus companheiros. A casa grande semelhava uma cidadella fortificada. Mas infelizmente o animo que sobejava nos moradores, faltava nos escravos. Emquanto aquelles faziam prodigios de valor, estes defendiam as entradas frouxamente. Dentro em pouco tempo conheceram os assaltantes, superiores aos assaltados não só em numero, mas no manejo das armas, que a praça não tardaria em cahir debaixo do seu poder. Conscio desta verdade, o Tunda-Cumbe chamou de parte o Pedro Lima e o Gonçalo Ferreira, deu-lhes ordens á puridade, e, pondo as pernas ao cavallo, desappareceu por entre uns cannaviaes que do lado direito vinham morrer no cercado. Victorino que de uma das janellas tinha debaixo das vistas o movimento inimigo viu aos primeiros clarões do amanhecer, tomar o caminho de sua casa o chefe da quadrilha.

Não foi preciso mais para comprehender a intenção do bandido.

A honra de suas filhas, único thesouro, unico dote dellas e principal orgulho da familia afigurou-se-lhe, não sem razão, ameaçada de imminente desastre. O almocreve esqueceu o sobrado pela palhoça. Naquelle estava uma fortuna de grande valor, consistente em joias, moveis e outros muitos objectos preciosos; nesta havia a pureza de duas graciosas donzellas, que representavam a seus olhos annos de trabalho, de sacrificios, e de bem querer. Em seu coração, em sua alma tinham muito mais pezo os risos gentis, as graças meigas, o amor modesto, de Marianninha e Bernardina do que toda a prata, todo o ouro, todos os brilhantes de João da Cunha e de d. Damiana. Victorino desceu a modo de impellido por sopro de tempestade, montou em seu cavallo, que, por cautela retivera amarrado no vão do sobrado, e por uma aberta que fez na cavallariça pôde ganhar os cannaviaes sem ser visto pelos assaltantes.

Antes de chegar á casa, encontrou-se com Joaquina que já vinha, como louca, em procura delle.

— Corre, corre, Victorino, que talvez ainda pegues o malvado, o Tunda-Cumbe, que nos vai roubando a nossa filha, gritou a pobre mulher, os cabellos desgrenhados, as faces cobertas de lagrimas, e no semblante os traços violentos do maior desgosto que ella tinha sentido até esse momento na vida. Eu tudo vi da casa grande, disse elle. Miserável!

E logo acrescentou, descobrindo umas cincoenta braças adiante de si o Tunda-Cumbe, já a perder-se de vista, pela veloz corrida do cavallo, por entre o mato com a Bernardina atravessada sobre as pernas:

— Ou tu me matas, ou tu morres!

— Ah! minha filha, minha querida filha! dizia Joaquina, carpindo-se na sua grande afflição. E onde está Marianninha? Ó Marianninha? chamou a agoniada mãe.

Dentre umas moitas emergiu então a alguns passos de Joaquina a rapariga, por quem ella acabava de chamar. Os matos tinham-lhe rasgado a coberta em que se envolvera na occasião de fugir com medo do malfeitor.

Vinha chorando, e estava pálida, triste, trêmula. Do grande susto o coração parecia querer sahir-lhe pela boca. Ella semelhava rolinha espantada por tiro de caçador.

— Minha mãi! minha mãi! Que desgraça foi esta?

— Não podia ser maior, minha filha.

— Não fale assim, que ainda pode ser peior, minha mãi!

— Olha. Lá vai o malvado com tua irmã.

E Joaquina apontou para uma baixada, onde nesse momento appareceu o Tunda-Cumbe.

— E lá vai meu pai, lá vai meu pai já a pegar seu Manoel Gonçalves. Oh meu Deus! Que é que me está dizendo baixinho, minha mãi?

— Nada, Marianninha. estou rezando, para que Deus se lembre de nós neste cruel transe.

De repente, aquella mãi e aquella filha, como si tivessem a mesma impressão, e a mesma idéa, ou se deixassem vencer pela mesma força intuitiva e fatal, deram alguns passos violentos para diante, com os olhos, para não escrevermos o coração, a alma, postos nos dois cavalleiros que corriam na baixada. Ambas tinham visto o que ia na frente, voltar arrebatadamente o animal e esperar o segundo; tinham visto este atirar-se para aquelle com sua arma de fogo em uma das mãos e na outra o facão desembainhado; tinham ouvido a detonação de um tiro á qual se seguira uma nuvem de fumo que envolveu os dois contendores.

Mas não se metteu muito que as mulheres recuaram espavoridas, levantando alto brado de dôr, que atroou todo o deserto. O Tunda-Cumbe acabava de desapparecer no mato com sua presa, emquanto Victorino ficava cahido na baixada, estorcendo-se nas convulsões da morte.

O engenho, que ainda defendido por Victorino, teria de render-se ás armas numerosas e práticas dos aggressores, não podia, na ausencia delle sustentar-se a não ser por poucos momentos.

De feito não era ainda de todo claro o dia, quando as portas da casa grande abalada em seus fundamentos, cahiam a poder de machados e por cima dellas entravam em borbotões os malfeitores impacientes pelo saque.

Este foi feito com desabrimento incrivel. Aquella malta de homens perdidos que no rancho do Sipó, explorados pelo chefe, se haviam acostumado a odiar os nobres e a cobiçar os seus haveres, deparava emfim, depois de esforços e tentativas mallogradas, occasião opportuna para matar a sêde de vingança e ouro que os abrazava. Para quasi todos havia sabor especial nesta negra victoria. A casa, que destruiam, saqueavam e humiliavam, era propriedade de João da Cunha, dentre os nobres o mais odiado por ser talvez o mais poderoso e vingativo deles. Por isso destroem e aniquilam o que não lhes excita a ambição ou não podem conduzir em seus saccos. Moveis preciosos são jogados das janellas ao pateo, onde se despedaçam. Cada queda, cada destruição serve de objecto a indecentes motejos e dá lugar a indignos commentarios. Emfim, longe iríamos se quizessemos descrever as scenas aviltantes e lastimaveis que dentro de horas se representaram na aristocratica vivenda do sargento-mór.

Tinham elles dado com o deposito dos vinhos—a rica adega do fidalgo—e já se entregavam aos deliciosos espiritos quando, tremulos e aterrados, entraram correndo alguns dos espias {SIC|qne|que}}, por ordem do Tunda-Cumbe, estavam vigiando nos cantos mais importantes do cercado.

— Fujamos, fujamos, que ahi vem uma grande força.

— Bem se dizia que ella havia de vir—disse Pedro de Lima.

— Vamos a seu encontro—gritou Gonçalo Ferreira.

— Não, não—replicou Pedro de Lima. Ganhemos o mato sem demora. Quando tiver passado, iremos atraz della, que ficará entre dois fogos—o nosso, pela retaguarda, e o de Luiz Soares pela vanguarda. Luiz Soares a esta hora, si entrou pelo Tanquinho, já deve de estar senhor da villa. Faremos a juncção e queimaremos os pés-rapados um por um.

— Está dito.

«Sahir» foi o grito que irrompeu de todos os peitos.

Ao grito seguiu-se o exemplo.

A força, como o leitor já deve ter comprehendido, era a que Gil Ribeiro commandava.

Vendo da estrada abertas as portas e janellas do sobrado, espalhados pelo pateo os moveis, alguns dos quaes, formando pequenos adjuntos eram nesse momento presa das chammas, não pode Francisco acabar comsigo que não fosse de perto verificar este lastimoso espectaculo.

Quando esbarrou na frente da casa e reconheceu a terrivel verdade, uma idéia lhe atravessou o cérebro, illuminando-o como relampago. Esta idéa lhe dizia que a sua casa tinha sido abandonada por Lourenço e Marcellina, como o engenho lhe pareceu que o fôra por João da Cunha.

— Eles não morreram. Estão todos no sobrado. Oh meu Deus! Permitti que assim seja.

Estas palavras consoladoras, que lhe sahiram irresistivelmente dos labios foram como as primeiras manifestações de nova alma que lhe entrara no cerebro. Voltou immediatamente á estrada e se incorporou outra vez na tropa que já corria a marche-marche para a villa, por ordem de Gil.

Pedro de Lima não se enganava. Desde o amanhecer achava-se Luiz Soares com suas forças em Goyanna e dava ahi que fazer á nobreza.

Nesta villa lavrava a anarchia, ora mais ora menos extensamente desde 3 de julho, data do primeiro motim. Não menos de oito foram elles, numero que se elevará a muito mais, si aos movimentos das ruas, em certo modo organizados, juntarmos as disputas particulares, os desforços pessoaes, as affrontas e os desaggravos feitos em publico, emfim todos os conflictos naturaes de duas forças politicas que se hostilizam a todo o transe no presupposto de aniquilar-se mutuamente.

Além destas circumstancias communs a todas as guerras civis, uma circumstancia especial tornava mais perigosas e frequentes as aggressões e as représalias em Goyanna—a de serem os goianistas ardentes assim nas lutas da razão, como nas do sentimento.

De data imemorial é a terra de Nunes Machado, de Arruda Camara e de tantos outros vultos eminentes foco de faculdades viris facil de acender-se, diffcil de apagar-se. Filha legitima do Recife—vasto laboratório, em que fermentam as paixões populares sem intermittencia, ainda que fria serenidade pareça algumas vezes indicar enfraquecimento ou somno da grande alma pernambucana que tem ahi a sua séde, Goyanna sempre representou conspicuo papel nas agitações da provincia.

Conhecedores da influencia, não só commercial, mas tambem politica da villa, puzeram os mascates particular empenho em tel-a de seu lado; e neste presupposto fizeram della sua segunda praça forte, ou o principal ponto dos seus recursos e forças, depois da capital.

Logo que no Recife se fez sentir a falta de viveres, foi de Goyanna que trataram de os enviar para os sitiados. Um obice porém apresentou-se immediatamente, o qual muito deu que pensar aos insurgentes—a rixa em que estavam com os habitantes de Goyanna, os da Ilha, rixa, que tem sua natural explicação, que é a seguinte:

De Itamaracá séde de uma capitania independente de Pernambuco, por doação que a Pero Lopes de Souza fizera por carta de 1º de setembro de 1534 d. João III, fôra mudada a camara para Goyanna em 1685. Despeitados, começaram desde então os moradores de Itamaracá a ter para os de Goyanna o sobr'olho carregado, e não perdiam occasião de lhes dar mostras do seu desagrado. Altos empenhos a favor da ilha, si não foram falsas informações movidas secretamente contra a villa, deram lugar a expedir-se em data de 20 de novembro de 1709 ordem regia determinando voltasse para aquella a camara que de lá sahira. Este acto veiu converter em novos odios ressentimentos antigos. Por isso não foi preciso, para que os da ilha tomassem o lado do governo, isto é o da nobreza, mais do que saberem que Goyanna se amotinára contra elle. Não podendo porém a primeira competir com a segunda, e havendo até suspeitas de que, para impedirem que fossem tomadas pelas autoridades da ilha os generos remettidos pelos mascates para o Recife, tentavam estes apossar-se della, encarregaram os governadores militares o ajudante-de-tenente Gil Ribeiro de occupar o Forte-de-Orange. O ajudante ahi esteve até que partiu, por nova ordem, para Goyanna, segundo vimos.

A pacificação desta villa era na realidade empreza que exigia animo e espiritos fortissimos. Nunca estivera tão accesa alli a fogueira das paixões partidarias, como nos ultimos dias que precederam ao da chegada de Gil Ribeiro. A nobreza, em consequencia da voz, que corrêra dias antes, de que o bando da Parahyba, de passagem para o Recife tomaria em Goyanna larga desforra das anteriores represalias, entendeu em fortificar-se, posto que sem ostentação, visto como os seus recursos não eram grandes, nas mais importantes embocaduras.

Nesse tempo a vasta campina que hoje se interpõe entre a ponte de Goyanna, na Rua-do-rio, e o ancoradouro das barcaças, denominado Porto-da-conceição, era um sitio occupado por Jorge Cavalcanti, no qual tinha elle grandes olarias. A casa de morada ficava no centro das terras. Do mirante punha-se debaixo das vistas toda a volta do rio Goyanna que vinha do Porto-da-conceição; passava pela frente da campina e ia morrer como ainda hoje no lugar onde se vê o trapiche, que ha poucos annos serviu de casa de theatro.

Não estava então obstruido o rio. Barcos e sumacas chegavam até ao pé das casas da rua e ahi recebiam ou deixavam os seus carregamentos.

Com o pretexto de fortalecer as barreiras para o embarque de tijolos e louça, mandou Jorge Cavalcanti levantar em varios pontos estacadas de páo-a-pique. Por traz das estacadas vastas tulhas de barro, e pela frente, no espaço da margem que ficava descoberto, largos e traiçoeiros fojos, eriçados de mortiferos espeques, davam a esta posição as vantagens da primeira fortificação da nobreza, visto que cortava quaesquer inimigas communicações da Parahyba com a villa pelo rio.

Do lado do norte eis em que condições se achava a defeza.

Nas terras que ainda se denominam—Tanquinho—tinha o ex-alcaide-mór Manoel Cavalcanti de Lacerda sua casa de morada, a qual ficava na beira da estrada que vinha da Parahyba.

O ex-alcaide-mór sem hesitar um só momento aproveitou-se dessa importante posição. Não sómente concentrou ahi seus recursos, mas tambem mandou levantar ao longo da estrada e por dentro dos matos, trincheiras singulares, que grandes damnos deveram causar aos assaltantes, si elles por ahi tivessem feito a sua entrada. Mas não foi isto o que aconteceu, e assim destas amplas defezas, como das de Jorge Cavalcanti, que não o eram menos sinão mais, como vimos, não se disparou um só tiro contra os da Parahyba, visto que, de tudo informados, não obstante serem grandes as cautelas tomadas e o segredo mantido sobre taes fortificações, cortando por differentes caminhos, entraram na villa por onde não eram esperados como adiante veremos.

Cosme Cavalcante ocupava o sobrado que ainda existe do lado direito no fim do Bêco-do-pavão e que dá para a Rua-do-meio.

Chamou para junto de si e lhe entregou o commando de varias ordenanças, que estavam de promptidão no pavimento terreo do sobrado, o alferes Diogo de Carvalho Maciel, o qual tão brilhante nome deixou por seus feitos nessa guerra. Felippe Cavalcanti, que morava na Rua-da-Soledade, e José de Barros na Rua-das-porteiras tinham tambem comsigo gente armada, e só esperavam qualquer indicio de rompimento para caírem sobre os inimigos.

Guarnecia a cadeia o illustre capitão Antonio Rabello, que por occasião dos primeiros motins, fôra destacado pelo governo para auxiliar na villa a defensão das autoridades e dos moradores pacificos; e a todos inspirava a maior confiança.

João da Cunha trazia a sua gente no vasto armazem que ficava por baixo do sobrado por elle occupado. Varias caixas de assucar, que a esse tempo ainda ahi se viam, porque tanto que se trocaram as primeiras hostilidades, cessaram as transações entre os agricultores e os commerciantes, haviam sido collocadas por traz das portas da frente de modo que pudessem servir de trincheiras com avançada para o Pateo-do Carmo.

Estava sujeito a especiaes perigos o ponto occupado por João da Cunha, em consequencia de se achar fronteiro ao convento, que era, para assim escrevermos, o quartel-general dos mascates, sendo por estes os frades, graças á influeucia dos da recolêta. No convento achavam-se recolhidas armas e munições mandadas do Recife para serem distribuidas pelos amotinados.

Eram estas as condições da defeza dos nobres em Goyanna. Volvamos agora rapida vista-d'olhos sobre as dos seus adversarios.

O plano destes era realmente tenebroso, e não ficava a dever ao da nobreza.

João da Maia não obstante se mostrar mais moderado em sua ardencia contra os senhores-de-engenho, do que ao principio, escrevera na vespera a Antonio Coelho:

«Amanhã ha de estar logo muito cedinho ahi Luiz Soares com seu terço, passante de quinhentos homens.» O proprio Luiz Soares mandara dizer a Jeronymo Paes por seu parente Joaquim Silverio: «Espere por mim com minha gente para almoçarmos. Queremos panellada gôrda e bom vinho.» O Tunda-Cumbe a quem Antonio Coelho escrevera aconselhando-lhe a que entrasse ao mesmo tempo que Luiz Soares a fim de ser decisivo o golpe que se desfechasse sobre a nobreza, respondera dizendo que não faltaria.

Por volta das cinco horas da tarde do dia anterior ao da entrada de Gil, justamente quando em sua casa fazia Antonio Coelho com Jeronymo Paes o computo das forças, que deviam no dia seguinte tomar Goyanna, entrou na sala um pardo, escuro, corpulento, mal encarado, por nome Bartholomeu. Era o mestre de uma barcaça de Antonio Coelho, circumstancia a que talvez devia a particular confiança que nelle tinham os principais negociantes da villa.

Ao parecer, sua chegada não era esperada, visto que deu lugar a revelarem sorpreza, posto que agradavel, os dois amigos.

— Já de volta, Bartholomeu! exclamou Antonio Coelho. Prosperos te foram os ventos.

— Cheguei ha poucas horas, respondeu o barcaceiro.

— Então? inquiriu Jeronymo Paes. Foste feliz na viagem? Chegaram ao Recife sem novidade os viveres que mandamos?

— Por força, respondeu Bartholomeu com segurança.

— É um heróe, disse Coelho.

— Não foi sem perigo que cheguei ao meu destino. Da ilha tentaram cortar-me a marcha da embarcação. Mas eu fiz-me ao largo em tão bôa hora, que ainda me procuram suppondo-me fóra da barra, quando eu já fui e já aqui estou. — E que novas nos trazes? Boas ou más? interrogou Coelho.

— As novas mais importantes devem vir nestas cartas—disse o barcaceiro, entregando ao negociante um alentado masso de papel.

Coelho rasgou com violencia o envoltorio que reunia em um só volume a sua correspondencia, e poz-se a devoral-a.

Entretanto Jeronymo Paes não cessava as indagações sobre o estado do Recife e dos seus habitantes sitiados.

— O que eu sei dizer é que a fome dentro da villa é de metter horror, —disse o barcaceiro. Dá-se um vintem por uma espiga de milho e não se encontra. Não ha carne de especie nenhuma. De farinha não havia nem um caroço antes de eu lá chegar. Um papagaio já serviu de gallinha para caldo de um doente. O forte da população é o marisco-pedra, tirado nas coroas quando a vasante as descobre. Mas vosmecê não sabe que perigo corre o que lá os vai apanhar. Mais de cincoenta negras mariscadeiras tem cahido no poder dos pés-rapados que fazem o cêrco da villa. Muito pescador de marisco tem morrido de tiro.

— E porque não rompem o cêrco? Para que servem os que estão dentro? Onde está o animo dessa gente? Que faz Motta? Oh que gente! que gente!

— A coisa não é tão facil como parece. Seu governador João da Motta tem mettido a cabeça muitas vezes para romper o cêrco; mas os pés-rapados são muitos; teem toda a villa rodeada de corpos de guarda. Dormem ainda menos do que tetéu. Estão sempre álerta.

— E que tem feito d. Francisco e o Camarão? Acham cêdo ainda para avançar contra os sitiantes?

— Ainda não poderam ser bons em nada. Os pés-rapados cada dia fazem uma das suas pelos caminhos e engenhos onde vão topando gente contraria. Si o cêrco durar mais um mez, a villa entrega-se; porque á fome ninguem resiste. Fome tem cara de herege, patrão.

— Não hade ser assim—disse Coelho, atirando sobre a meza junto á qual estava sentado, as cartas que acabava de ler—não ha de ser assim. Em poucos dias nós os de Goyanna havemos de romper o assedio e levantar nas ruas do Recife, livres de qualquer embaraço a autoridade real, agora vilmente abatida pelos rebeldes, já que os de lá não dão accordo de si. Ahi tendes, sr. Paes o que me escrevem Motta, Correia Gomes e Simão Ribeiro, acrescentou dirigindo-se a Jeronymo Paes. Lêde. Quando acabardes, mandai levar ao provincial esta carta do padre João da Costa.

E voltando-se para o barcaceiro, perguntou-lhe como por encher o tempo:

— Que mais, Bartholomeu?

— Na botica do Rogoberto estava muito povo reunido agora mesmo. Dizia um que seu João da Cunha tem a fabrica e os moradores na villa para em caso de necessidade saírem armados contra os mascates. Dizia outro que Antonio Coelho e seu Jeronymo Paes não tem armas nem dinheiro para dar ao povo que os quizer acompanhar ao Recife.

— Qual foi o infame pé-rapado que aventurou semelhante aleivosia?

— Quem estava dizendo isto era o Ricardo.

— Ajustaremos já estas contas, disse Paes. Irei á botica para o desmentir, falarei ao povo. Isso não se atura. Hão de ver para quanto presto.

— Sim, sim, meu amigo. É da maior conveniencia oppôr á mentira o desmentido. Ireis á botica sem falta, não é assim, sr. Paes?

— Irei. Porque não? Irei já, agora mesmo—disse o marchante, levantando-se para sahir.

— Antes de irdes, quero lembrar-vos uma providencia. Bem sabeis, sr. Paes, que sem dinheiro não se fundam reinos. Vinde comigo até cá dentro. Acompanha-nos, Bartholomeu. Quero que vejas com teus proprios olhos as coisas quaes são, a fim que possas com segurança saber quanto são infames os que nos irrogam faltas e fraquezas que não temos.

— O pavimento inferior era repartido em duas ametades. Para a da frente, na qual estava a loja com todas as suas dependencias, entrava-se pelo lado da rua; para a outra descia-se por uma escada que communicava com o primeiro andar por dentro de um gabinete secreto. Coelho, Paz e Bartholomeu atravessaram esse gabinete, desceram a escada e chegaram ao pavimento, que se esclareceu á luz de um candieirinho de prata de que se munira Coelho quando teve de descer. O vão occupava uma quinta parte do predio. Não tinha portas nem janellas, nem siquer frestas. Era um como tumulo, sem nenhuma outra communicação com o ar e o mundo, a não ser a que se prendia á escada. Espalhados pelo chão viam-se alguns caixões de pinho, e encostados a um canto objectos que reluziam. Coelho levantou a tampa de um desses caixões para que o barcaceiro visse o seu conteúdo.

— Que é que estás vendo, Bartholomeu? perguntou elle a modo de desvairado.

— Armas de fogo, patrão.

— É verdade; são armas. Foste tu mesmo que as trouxeste suppondo que trazias ferragens para o engenho que estou construindo. São tresentas espingardas e duzentos bacamartes. Aquillo que reluz d'alli do canto são espadas, catanas e parnahybas. Já vês que Ricardo não passa de um mentiroso, um desprezivel villão. Agora subamos.

Subiram.

Ao penetrarem no gabinete, onde se escondia a escada, Coelho indicou ao barcaceiro um animal de tamanho descommunal, deitado aos pés da cama de seu uso.

— Que te parece isto, Bartholomeu? perguntou Coelho.

— Um grande cachorro. Oh que monstro!

— É o meu defensor. Elle agora está dormindo. Aproxima-te. Tens medo? É um cão que só tem dentes para os ladrões.

— O barcaceiro, em vez de se aproximar, afastou-se. Coelho e Jeronymo sorriram.

— Não fujas. O animal é benévolo e inoffensivo. Pega neste candieiro e encosta-te bem a mim para o poderes ver de perto. Ficarás sabendo o que elle vale.

Não sem receio, Bartholomeu fez o que mandara o mascate. Este metteu então no canto de um dos olhos do animal adormecido um pequeno objecto que tirára do bolço. Houve um como movimento na féra, o que fez o barcaceiro recuar amedrontado.

— Não fujas, Bartholomeu. Estou aqui. Aproxima-te.

— Aos olhos de Bartholomeu mostrou-se então um sonho, uma visão deslumbrante e incrivel. O animal tinha-se aberto pelo ventre de banda á banda; e naquella sobre a qual estava deitado, o que o barcaceiro descobriu foram dobras em pequenas tulhas, formando carreiras pelo longo vão.

— Ó xentes! exclamou Bartholomeu maravilhado. Quanta moeda, quanto ouro! Meu Deus! Pois é esta a burra de seu Coelho?!

— Todo este dinheiro, disse o negociante, ganhei-o eu pela minha industria nesta terra. Devo-o acaso á terra ou ao meu trabalho, ás minhas economias? Devo-o ao meu trabalho; a terra não dá dinheiro. Os preguiçosos não serão capazes de o ajuntar, ainda que morram de velhos no paiz mais fecundo e rico do globo. Dizem que esta terra é delles. Não ha tal. O mundo é da humanidade. Povos que vivem hoje em um ponto, podem viver amanhã em outro com o mesmo direito. Assim os homens que trabalham. Pois bem, todo este cabedal, adquirido com o suor do meu rosto será applicado em defeza da autoridade real e do interesse do povo, a que os nobres tencionam antepôr o seu bem estar, a sua rebeldia. Mas não percamos tempo, sr. Paes, disse ao marchante, pegando de um açafate e atirando dentro nelle algumas das tulhasinhas de dobrões, que se viam enfileiradas no ventre do cão de bronze. Eis a minha idéa. É preciso desfazer immediatamente, com dinheiro, as invenções de Ricardo. Correi á botica do Rogoberto, meu amigo e sr. Paes. Fallai do despotismo da nobreza, da covardia do bispo, da estupidez do bispo e dos nobres. Discorrei com o fervor que vos é natural, sobre igualdade, fraternidade e liberdade. O povo é perdido por estes sentimentos. Espraiai-vos em demonstrardes a conveniencia de acabar-se com o cêrco do Recife, o qual impede de sahirem os nossos productos, que tem bom preço nas praças estrangeiras, e de entrarem os productos estrangeiros de que precisamos. Acrescentai que a fome e a nudez hão de chegar dentro de pouco tempo aos campos e aos sertões. Talvez que estimulados ou advertidos por vossas palavras, muitos dos que vos escutarem queiram pegar em armas contra o juiz ordinario, o sargento-mór, emfim contra as autoridades actuaes que tiveram quasi todas por origem monstruosa rebeldia. Si o povo se mostrar deliberado a pegar em armas...

— E porque não se ha de mostrar? interrogou Jeronymo Paes.

— Tendes razão, tendes razão. Emfim deixo o resto por vossa conta, sr. Paes. Bem sabeis que o povo de Goyanna deve pegar em armas de hoje até amanhã contra os que se dizem nobres. É indispensavel que isto aconteça. É absolutamente necessario que a excitação publica, em vez de se moderar, vá por diante cade vez mais. Ajudados por ella, os amigos, que esperamos, poderão penetrar facilmente na villa e assenhorear-se della. Acharão os animos preparados para a grande empreza.

Estas palavras levaram, como electricamente, a exaltação, a vertigem ao animo do marchante já de si ardente.

— Dou-vos minha palavra que em menos de uma hora havemos de ter o povo solto pelas ruas em procura de nobres para amarrar como se foram carangueijos.

A modo de alucinado, Jeronymo correu immediatamente de escadas abaixo, fazendo tinir as moedas dentro do açafate, e dizendo em altas vozes:

— São rosas que me caíram do céo. [1] Cheguem-se a mim, que hão de ver como são bonitas e cheirosas estas flôres consoladoras.

Notas do autor

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  1. Historico.

Jeronymo Paes mostrava ter quarenta annos. As soalheiras que apanhava em suas frequentes jornadas para Pedras-de-fogo a comprar gado e para o Recife a revendel-o, tinham-lhe dado ao moreno do rosto e das mãos o trigueiro carregado que o fazia parecer homem de côr. Trazia o cabello cortado rente e a barba inteira.

Esta era negra, espessa e algum tanto hirsuta. Em seu rosto lia-se a energia, a firmeza, e a tenacidade do tribuno. A fronte estreita no alto, alargava-se para os olhos, que eram pequenos, mas vivos e avermelhados. O nariz tinha o quer que era do bico da arára.

Jeronymo enviuvára meia duzia de annos depois de casado. Ficaram-lhe tres filhos, a saber Justino, Miguel e Victor, os quaes ao tempo desta historia viviam com certa folga de meios, que equivalia a abastança, ou melhor á independencia. Além destes, já senhores de si, tinha Jeronymo em sua companhia a caçula, por nome Josefa. Em casa chamavam-n'a Zefinha.

Não era ella nem feia nem bonita, nem alta nem baixa, nem muito morena nem muito clara. Era um todo correcto, proporcionado e como feito de proposito para existir justamente na burguezia. Tinha os cabellos corridos e acastanhados, os olhos pretos e algum tanto cahidos, o sorriso engraçado, mas sem o colorido, sem o reflexo indefenivel que accusa louras esperanças, sonhos purpurinos, anhelos vagos mas não de todos cegos, férvido sentimento em quem o sorri.

Sua instrucção era vulgar, e a falta dos conhecimentos moraes, necessarios á mulher por honra sua e segurança do lar que possa ser chamada pelo destino a formar mais tarde, ella a suppria com o admiravel bom senso e immensa brandura de coração, que a tornavam a primeira prenda da familia.

A preoccupação principal de Jeronymo Paes, depois de ver seus tres filhos casados, vivendo cada um do seu negocio, era achar um homem limpo que quizesse casar com Zefinha.

Um Domingo, em que á porta do sitio que tinha nas proximidades do Poço-do-rei, Jeronymo esperava pela filha para ir á missa na Soledade, passou pela frente da casa Antonio Coelho. Como já se conheciam e eram até afreguezados, o marchante tirou conversa com o negociante e o teve preso ao pé de si até que Zefinha appareceu. Seguiram então os tres para a villa, e juntos ouviram a sua missa que teve para o jovem portuguez e a cachopa goyannista, particular, posto que vaga delicia.

Zefinha voltou apaixonada. Sentiu durante todo o dia e ainda no seguinte certo bem estar, certa inquietação, certa harmonia, que lhe tiraram a vontade de comer e o somno.

Com o jovem portuguez não se deu o mesmo. De noite já não lhe lembravam outras feições, outros feitiços, que os de d. Damiana, cuja imagem elle trazia permanentemente em seu olhos.

Desse dia por diante começou Jeronymo a approximar-se mais vezes de Coelho. Primeiro vieram os presentes, depois as visitas, e por fim os convites para almoços ou jantares em sua casa. Dentro em pouco estavam amigos.

Mas ao passo que o marchante não poupava finezas nem esforços para prender definitivamente o negociante, lançava-lhe este outras contas muito differentes. Gostava de Jeronymo, não desgostava de Zefinha, mas seu ser moral revoava em torno da imagem da jovem senhora de engenho, como em torno de roza gentil e delicada, revôa, absorvendo-lhe o saudavel cheiro, namorado beija-flôr. Quando Jeronymo dizia comsigo estas palavras: «Como não havia de ser feliz Zefinha si casasse com Antonio Coelho!» monologava este de si para si do seguinte modo: «Damiana, Damiana, meu amor, meu bem, minha vida, minha alma, que será de mim dentro em pouco tempo, si sorte propicia não vier arrazar a muralha que nos separa? Ah! eu não posso viver sem ti, delicia cruel de minha existencia, doce fatalidade que fizeste de mim escravo e desgraçado!»

Não foi preciso muito para que Zefinha comprehendesse que os sonhos de Coelho, seus pensamentos, suas ambições affectivas tinham por objecto outra mulher. Mas, por infelicidade, já sentia ella por elle todos os estremecimentos que revelam a existencia da paixão. Herpe corrosivo, o amor infeliz alastrava suas vesiculas peçonhentas pelo coração virgem da rapariga, envolvendo-o em camada de fogo que o abrazava. Ella sentia o rapaz nos olhos, na phantasia, na luz, na sombra, entre a costura e a agulha, entre o sorriso e as lagrimas, entre a esperança vã e o desengano previsto ou adivinhado. «Elle não quer saber de mim» dizia Zefinha em seu entendimento. E chorava tristemente. Mas se Coelho apparecia, já ella sorria de novo, não porque volvesse a acreditar, ccmo nos primeiros tempos que o portuguez retribuía o seu affecto, mas porque sua doce imagem lhe trazia o prazer que fugia quando elle se ausentava.

A poder de esforço, Zefinha mostrou-se apparentemente senhora de sua paixão. Sem indifferenças despeitosas, sem contentamentos exagerados ella conseguiu levar ao espirito de seu pae e ao do proprio Coelho a convicção de que, si não era feliz, tambem não era desgraçada; que sobre o lago azul dos seus affectos pairava a calma da innocencia; que por ahi não sopravam os bulcões que revolvem o cêo de anil da mocidade, e são antes lavas abrazadas do que sopros de tormenta.

Para chegar a tamanho resultado a moça pôz em contribuição toda sua energia, que nunca fora tão grande nem tão bem sucedida. Aquella natureza a modo de morna e indolente, accendeu-se para a luta, e com suas proprias forças pôde triunphar de si mesma. O espirito dominou tyrannamente o coração. O bom senso impôz silencio ao desprezado affecto. Poucas lutas interiores já foram maiores em uma mulher ignorante e de vulgar condição do que a sustentada nesse asphyxiar de um amôr immenso que morria ás mãos de quem o devia ameigar e chegar bem ao seio, como fazia ás rolinhas gentis de casa.

Pelo proceder da filha veiu Jeronymo a conhecer que seus desejos e esperanças estavam longe de ser preenchidos. O descontentamento, o pezar trouxe a frieza, não a quebra das relações de amizade que o prendiam ao negociante. Esta frieza durou pouco, porque de certo dia em diante Coelho, fazendo-se mais assiduo em casa do marchante, reanimou, por seu modo de tratar Zefinha, no espirito do pae della a quasi de todo extincta esperança. Si para ter explicação desta rapida e inesperada mudança o marchante houvesse podido penetrar no espirito de Coelho, teria achado ahi a seguinte ordem de idéas: Despeitado com João da Cunha, voltava-se para Jeronymo, fazia-o entrever a possibilidade de vir elle Coelho a casar com Zefinha, e por este meio chamava para seu lado o primeiro elemento de hostilidade aos nobres de Goyanna, o dito Jeronymo, que por seus sentimentos francamente populares, era o homem mais proprio para levantar as massas e encaminhal-as ao fim que lhe aprouvesse.

Fosse que, desconhecendo a politica tortuosa e dissimulada que certos homens, praticos em explorar as paixões alheias, usam no seu proprio interesse, se prestava de boa fé ao calculo do jovem europeu; fosse que obedecia simplesmente a impulsos do seu coração, votado ao povo por quem era capaz de derramar a ultima gotta do seu sangue; fosse que só tinha em mente, concorrendo com todos os auxilios possíveis a Coelho penhoral-o pela gratidão, a fim de tornar facil a retribuição dos seus serviços com o desejado consorcio, o certo é que Jeronymo se identificou com a causa dos mascates fervorosamente, arrastando após de si seus filhos, amigos, affeiçoados, o proprio povo, segundo se vê pela historia.

O que se póde considerar fóra de duvida é que Antonio Coelho não tinha grande empenho no aniquilamento da nobreza, mas no de um nobre, João da Cunha, nem pensava verdadeiramente em outra mulher que não fosse d. Damiana. Completemos com algumas palavras mais o esboço desse caracter, que vem na historia da guerra a par com o de Jeronymo Paes.

Tendo chegado ao Brazil de pequena idade, cêdo revelou Coelho particulares propensões para a vida commercial, pelos progressos que fez. Quando João da Cunha o conheceu, era elle caixeiro em um dos armazens do Recife. Ou por suas feições e maneiras attractivas, ou por seu talento que talvez fosse ainda mais attractivo do que as feições, o certo que o senhor-de-engenho, sympathizando vivamente com elle, convidou-o para recebedor de seus assucares em Goyanna, convite que o jovem Antonio aceitou, attentas as vantagens promettidas pelo sargento-mór. Ali os seus serviços cêdo attrahiram-lhe tantos creditos que em poucos annos Coelho foi geralmente estimado na villa, e conhecido no Recife; teve entrada nas principaes casas commerciaes destes dois centros; emfim tratou de estabelecer-se por sua conta. Revelando suas intenções a João da Cunha, em vez de se oppôr a ellas, o senhor-de-engenho fez que elle as realizasse logo, e a este effeito lhe prestou os necessarios auxilios.

Coelho teria por então seus vinte annos. Era elegante e bem parecido. Tinha sedução no olhar, e graça especial na conversação. Sabia de cór paginas do Palmeirim-de-Inglaterra e as repetia tão possuido das gentilezas namoradas que enchem a obra de Francisco de Moraes, que mais valia ouvil-as ao moço portuguez do que as lêr no proprio autor. Sentindo particular predilecção pelos nobres em cujas relações se ufanava de apparecer ligado, foi pouco a pouco ascendendo da esfera opaca onde principiara a vida ás alturas douradas em que calculava collocar-se definitivamente como um dos astros que formavam a constellação. Seus dotes pessoaes grangearam-lhe as inclinações das jovens damas e a benevolencia dos cavalheiros de seu conhecimento.

Por então d. Damiana, solteira ainda, passava temporadas, como já se referiu, em casa de João da Cunha. Era muito nova mas trazia já em torno de si um circulo de adoradores em cujo numero Coelho soube apparecer tão conspicuamente que, passados alguns mezes, os outros bateram em retirada, deixando-o senhor exclusivo do campo. É porém de notar que nem a idade de d. Damiana nem os costumes da época deram lugar a que ella tivesse conhecimento ou sequer suspeita dessa luta travada entre os primeiros jovens assim agricultores como commerciantes da villa. Contavam-se por sua raridade as reuniões familiares que se effectuavam na roda do anno ainda nas casas ricas; e mesmo nessas reuniões era tão respeitoso e cortez o trato entre os cavalheiros e as damas que, para assim escrevermos, o amor, ao contrario do que hoje acontece em nossos salões, mais se fazia adivinhar do que declarava. Todavia, por occasião de uma festa do orago da freguezia, em que houve cavalhadas e fandango, na qual se achou d. Damiana, pôde Coelho fazer-lhe protestos de amor, que, em sua mente, foram por ella bem aceitos. Mas veio logo o desengano com a recusa que o leitor sabe.

Sendo até ahi um dos primeiros amigos da nobreza e seu commensal, converteu-se Coelho em seu acerrimo inimigo. O odio que começou a votar a João da Cunha foi tanto mais intenso e profundo quanto tinha elle para si que nenhum outro, a não ser o senhor-de-engenho poderia triumphar de seu triumpho. O golpe, que a desgraça vibrára em seu affecto, o fez ainda mais injusto para com aquelle que lhe déra a mão no principio da carreira. Coelho assegurava que d. Damiana fôra constrangida a renunciar á affeição que consagrava a elle, e casára com o sargento-mór não mais livremente do que fizera a dita renuncia. Minucias são estas em que escrupulizo entrar. O coração da mulher assemelha-se á gruta profunda e inacessivel: quem emprehende descer-lhe ao fundo, corre varios riscos, sendo o primeiro delles o de dar com estranhos reptis não classificados ainda pela physiologia.

A verdade é que o mercador nunca mais pôde apagar do coração a imagem suavissima de d. Damianna. Fôra aquelle o seu primeiro amor. O objecto d'elle insculpira-se-lhe por tal modo na alma, que fazia parte integrante do seu ser o olhar, o sorriso, o gesto, a voz da gentil dama. Ha paixões fataes que acompanham toda a vida aquelles a que se apegaram como a Nesso a tunica fatidica.

O negociante era victima de uma paixão semelhante. Ás vezes a chamma incessante abrandava; a vida agitada costuma trazer este effeito aos sentimentos; mas bastava encontrar suas vistas com as da senhora-de-engenho, para que logo sentisse reaccender-se-lhe mais intensamente o fogo, um momento diminuido ou serenado. Emfim a idea de a possuir—não importava quando—nunca mais o deixou, e essa illusão, esse desconhecido que vagamente lhe promettia a felicidade alentava a labareda que elle trazia como deliciosa chaga no coração, illuminava-lhe a phantasia como estrella que fulge em canto de ceu prenhe de tempestades.

O barcaceiro deu o andar para descer após o marchante, mas foi atalhado pelo mercador que lhe disse:

— Fica, Bartholomeu. Quero perguntar-te uma coisa: Em caso de aperto, amanhã ou depois, terás animo para te fazeres á vela novamente em direitura ao Recife?

— Agora mesmo abro as asas á Borboleta e largo-me por estes mares á fóra, assim o patrão ordene. Eu sou páo para toda obra.

— Conjeturo que amanhã a esta hora não exista mais um nobre em Goyanna a não ser amarrado com bôas cordas. Mas, como é preciso contar tambem com o mal, e não unicamente com o bem, ordena a prudencia que tenhamos promptos os meios de escapar-nos aos inimigos si a elles pertencer a victoria. Ora, nenhum outro se me afigura mais prompto nem mais efficaz do que a viagem pelo rio.

— Vosmecê tem razão. Montado na Borboleta, só por um oculo poderão ver-me os pés-rapados.

— E as olarias de Jorge Cavalcanti?

— Que tem ellas?

— Tem bocas de fogo sobre o rio.

— Taparemos essas bocas de fogo com as balas dos nossos bacamartes.

— Tens então animo para passar em frente ás trincheiras, Bartholomeu?

— Porque não, seu Coelho? Vosmecê não conhece ainda este cabra com quem está fallando. Ora escute: Nesta mesma viagem, de que acabo de chegar, mandaram-me, quando eu ia, da fortaleza de Itamaracá um chuveiro de balas, que a outro que não fôra o Bartholomeu teria feito perder a tramontana. Mas eu peguei na canna-do-leme da Borboleta e fiz com ella taes córtes e recórtes por cima das ondas que nem uma tainha seria capaz de a ganhar. Eram balas de uma banda e da outra, pela pôpa e pela prôa; mas dentro só o que cahia eram as escumas dos mares que ella atravessava como jangadinha do alto.

— Pois bem, Bartholomeu, disse Coelho a cabo de alguns minutos de silencio em que, ao parecer, estivera meditando sobre grave assumpto. Fica assentado que dormirás hoje a bordo da Borboleta, e de lá não virás a terra sinão por ordem minha. Vai ver tua mulher e teus filhos, que deves estar impaciente por abraçal-os. Ás nove horas recolhe-te á embarcação. Acharás já ahi todas as provisões e munições necessárias para a viagem.

Mal tinha o negociante terminado estas palavras quando se fez ouvir do lado de fóra descommunal arruido de povo, retinir de armas, rumor de passos de cavallo. Quasi no mesmo instante as portas da loja se fecharam com estrondo, e logo apóz os caixeiros de Coelho corriam pelas escadas acima amedrontados e confusos.

— Que é isto? Que quer dizer isto? inquiriu o negociante, vencendo sua sorpresa, ao que primeiro penetrou na sala.

— A casa está cercada, e ahi vem o juiz ordinario com ordenaças e officiais do seu juizo.

No mesmo instante uma voz que soou aos ouvidos de Coelho como echo das gemonias infernaes fez ouvir a seguinte intimação:

— Da parte d'el-rei, componde a casa, que vimos fazer uma diligencia.

A esse tempo Cosme Bezerra assomava na porta da sala.

Trajava calções e casaca preta, meias de seda amarela, sapatos com fivelas d'ouro. Trazia chapeu com pluma branca, e espada pendente do talim.

Coelho foi ao encontro de Cosme Bezerra, e com irritante altivez que as circumstancias actuaes até certo ponto justificavam, rompeu o silencio que se seguira á intimação:

— Da parte d'el-rei, que quereis em minha casa ao lusco-fusco e com este apparato de força, senhor juiz?

— Usais de um direito que pertence á justiça—o de interrogar—respondeu Cosme Bezerra com affectada serenidade que lhe era muito custosa de manter. Mandais distribuir armas e dinheiro pelo povo a fim de derribar as autoridades legaes, e vos admirais de ter a justiça em vossa porta.

— O que se diz é o contrario, retorquiu Coelho sem diminuir sua arrogancia. Diz-se que nós os portuguezes, e os que nos acompanham, nós os fieis subditos d'el-rei nosso senhor não temos nem dinheiro nem armas com que rebater a rebellião da nobreza.

— Pouco importa ás justiças saberem si tendes dinheiro. Fallei-vos em dinheiro, porque em dinheiro se fala pelas ruas da villa, sr. negociante.

— Chamai-me mascate, já que não quereis chamar-me sargento-mór, titulo que não podeis tirar-me.

— Titulo que a nós deveis.

— Devo-o a el-rei, não a vós.

— Não vim a praticar convosco. Vim a saber si de feito tendes armas defesas que destinais aos populares por vós comprados para executores ostensivos de vossos tenebrosos designios.

— Si tenho armas! exclamou Coelho. Si eu armas tivesse não as deixaria passar sinão depois de morto, das minhas para as vossas mãos. De armas precisamos nós para defender a verdadeira autoridade, villãmente ultrajada por uma nobreza, que na rebeldia suppõe consistir a sua maior força e o seu primeiro brazão.

— Em nome da lei, mascate! gritou Cosme em tom de quem impunha silencio. Sois apontado como perturbador da ordem, protector de rebeldes, e um delles. Á frente de todos os motins que ha dois mezes perturbam o socego desta villa, todos vos vêem comprando os venaes, desencabeçando os ignorantes, encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os desordeiros por habito e condição. Os homens bons estão já cansados de aturar as vossas provocações, a autoridade de ser desrespeitada, as familias fracas de receber insultos e violencias dos malfeitores a que estendeis a mão cheia de ouro. É tempo de espezinhar a cascavel que tanta peçonha mortal tem vasado de sua boca immunda; e como o melhor meio de aniquilar a cobra é atacal-a em seu proprio covil, pareceu á autoridade competente que a vossa casa seja corrida, e de vosso crime se tire a devassa, si chegar á certeza de que sois criminoso.

— O direito, que vos arrogaes, de violar o meu asylo domestico, nem o achais na lei, nem eu o reconheço sinão como filho do vosso violento natural, de todos conhecido. O testemunho de que não sou criminoso está em sujeitar-me ao vosso desatino. Outro fôra eu, que já me terieis pago a vossa ousadia. Correi, correi a minha casa. Este procedimento condiz com a fidalguia de que rezam os vossos encardidos pergaminhos. Quanto a dizerdes que sou rebelde e amotinador, cégo seja para sempre aquelle que ousar affirmar que primeiro se insurgiram contra a legalidade os mascates que os nobres.

Cosme voltou as costas ao negociante como quem não levava em conta suas acerbas ironias e rudes exprobrações.

A verdade, porém, é que ellas o feriam, como pontas de punhaes acerados no coração. Os beleguins cumpriram o seu dever, e o proprio juiz, não podendo vencer o seu despeito hostil e apaixonado, encaminhou-se ao interior da habitação.

A esse tempo Bartholomeu que ainda não podera descer, chegou-se a Coelho e lhe disse á puridade:

— Quer sahir, patrão? Atiro-me daqui ao soldado, que alli está de guarda na porta, e quando elle menos esperar estará suffocado entre as minhas mãos. Então vosmecê poderá descer com seus caixeiros, ganhar a rua e desapparecer por traz dessas moitas de jerobebas que cobrem os fundos da igreja. Eu lhe guardarei as costas. Póde ir descansado.

— Pensas que eu poderia realizar o que estás indicando? Olha. A rua está cheia de gente. A casa está cercada. Ali em baixo varios soldados espreitam quem entra e quem sai. Mas porque me ausentaria eu? Que crimes commetti para fugir?

— É que as armas que estão lá embaixo... tornou o barcaceiro a meia voz.

— Duvido que as encontres tu mesmo que comigo as viste, quanto mais elle. E si queres ter a prova do que te digo, vae á escada por onde ha pouco descemos ao subterraneo.

Sem dizer palavra, o barcaceiro encaminhou-se ao gabinete, atravessou-o e chegou ao ponto indicado.

Descia o juiz, beleguins e soldados. Verificou então por seus proprios olhos o que lhe dissera o negociante. A escada fazia uma volta para a direita e ia dar na loja, não no escondrijo. Bartholomeu ficou um instante confuso. Lembrava-se que por alli descera para o subterraneo, por uma volta que a escada fazia á esquerda: mas, essa tinha desapparecido como por encanto, sem deixar o menor vestigio por onde se pudesse descobrir o segredo.

Quando Cosme volveu á sala, Coelho foi a seu encontro, e com expressão de mal disfarçado odio, lhe disse:

— Não achastes nem uma adaga, nem um arcabuz no meu armazem. Voltastes em branco. Pois bem. Eu vos asseguro, senhor Cosme Cavalcanti, que dentro em pouco tempo a nobreza de Goyanna ha de saber para quanto prestam as armas dos mascates, que as teem e de fina tempera.

— Ah! Elles as tem?

— Elles as tem, e tenho-as eu proprio a meu alcance.

— Melhor, melhor. Servirão para atravessar ou degollar os mesmos que as guardam em seus escondrijos.

— Veremos qual de nós se engana, respondeu Coelho.

— Veremos, veremos, mascate—disse Cosme descendo com seu sequito.

Os olhos de Coelho despediam insolito brilho. Na face que a ira fazia subitamente contrahir-se e dilatar-se, havia certos tons de ferocidade felina.

— Misereveis! exclamou elle quando ainda o juiz não tinha descido de todo a escada. São ineptos na propria hostilidade com que pretendem impor seu ridículo poderio.

Então, voltando-se para um dos caixeiros:

— Vai já, já em procura de Jeronymo Paes —disse. É preciso que elle me falle sem perda de tempo.

— O patrão precisa de mim? perguntou-lhe Bartholomeu.

— Hoje não, amanhã, talvez. Podes sahir. Espera. Quando passares pela porta do Laurianno, dize-lhe que venha fallar-me agora mesmo.

Coelho deu alguns passos pela sala, penetrou no gabinete, voltou e logo após tornou a tomar para o interior. Antes de transpor a porta que dava para o quarto secreto, parou e perguntou ao segundo dos seus caixeiros si havia ainda soldados pela rua. Quando o rapaz tomava para a sacada, entrava na sala Luiz de Gouveia, mulatinho musico, de violento e desvairado patriotismo. Vinha acompanhado por differentes homens do povo, trazia as feições demudadas, os cabellos revoltos.

— Que novos ultrajes e attentados nos vens annunciar, Luiz? inquirio o negociante, antes que o musico fallasse.

— Um attentado nefando. Seu Jeronymo Paes acaba de ser ferido de um tiro de pistola, que lhe dispararam da rua, quando estava fallando.

— Eu esperava por isso, tornou o negociante. É natural que ao ultrage se seguisse o assassinato. Mas enganam-se. Suppondo aniquilar-nos, não fazem mais do que apressar a sua propria queda.

— Mas que mais esperamos, sr. Coelho? Interrogou Luiz. Não será ainda tempo de armar o povo e atiral-o contra os fidalgotes? Havemos de morrer ás mãos deles, e só então nos metterão nas mãos as armas? Vamos com isso, senhor, vamos com isso. O povo não pede senão armas, não quer sinão ir contra os nobres.

— E ha muito povo pelas ruas?

— A villa inteira está nas ruas. O tiro desfechado irritou todos os animos. Homens e mulheres correram á botica a saber o que tinha succedido. Si apanham o assassino, fazem-no em postas. Dizem que é um escravo de João da Cunha.

— Ha de ser, ha de ser. Não tem elle mandado fazer tantas mortes? Não é useiro e vezeiro nesse officio? Não é elle o gran senhor desta herdade, e não somos nós seus servos? Mas que a façam bem feita, porque si assim a não fizerem, com seu sangue serão lavados os insultos e aggravos com que todo o dia nos batem ás faces.

Coelho foi interrompido neste ponto por uma voz rouca e tremula, que partia do meio da rua.

— É a voz de Jeronymo—disse elle.

Todos correram á sacada.

— Ali vem elle—disse o musico.

— Querem a perturbação, o sangue, a morte? Dizia o marchante. Pois hão de ter todas estas calamidades. Sou o procurador do povo de Goyanna. Ainda ha pouco vos dizia eu que da nobreza só tinhamos que esperar desdens e despotismos. Agora já posso acrescentar que temos tambem que esperar o assassinato ás escurinhas e traiçoeiramente. Não me mataram; apenas feriram-me no hombro; mas a morte dos que defendem os direitos do povo e a autoridade real, essa elles a tem decretado como meio de consolidarem o seu poder, filho da violencia e do artificio. São réos de crime de primeira cabeça. Ah! o que nos fazem—tenham certeza—não o botam em sacco rôto.

Antes de ser ferido pelo tiro que lhe foi disparado por mão até hoje desconhecida, Jeronymo Paes tinha já encaminhado parte do povo para o movimento insurrecional.

Quando chegou á botica, ainda estava ahi o Ricardo pérorando em favor da nobreza. Ricardo era um rapaz de condição obscura, que á protecção de um nobre devia certo emprego de que vivia. Não tendo podido completar a carreira sacerdotal, que encetára em vida do pae, viu-se obrigado, por morte deste, a voltar á Goyanna onde esperava por elle a familia acéphala.

Jeronymo não teve para elle a menor cortezia na linguagem, e muito menos no gesto.

— Tuas palavras são suspeitas, rufião—disse elle ao rapaz rudemente, mostrando-lhe um punho cerrado. Cada uma dellas representa uma das migalhas com que teu protector te matou a fome, dando-te o emprego que tens. Disseste ha pouco que não temos nem armas nem dinheiro. Enganas-te, villão. Em nossos armazens temos armas para levantar a villa inteira contra a nobreza sem freio que jurou aniquilar-nos. Quanto a dinheiro, olha d'ahi, e dize lá si já viste rosas tão bonitas como estas, que me cahiram das alturas.

Assim fallando, Jeronymo Paes fez saltar as dobras ao ar e as aparou com o açafate.

Ao sonido das moedas, um sem-numero de mãos se estendem para sua banda, e differentes vozes dizem á porfia:

— Dê-me uma rosa.

— Uma ao menos dessas rosinhas amarellas, seu Jeronymo Paes.

Cosme Cavalcanti, a quem foram logo levar a declaração, imprudentemente feita por Jeronymo, de que havia armamento nos armazens dos mascates, corre a cercar a casa de Coelho que vareja, segundo vimos.

Entretanto Jeronymo, no ardor da exaltação e calculando o effeito da sua generosidade distribue, pelos que lhe parecem mais dignos do presente, uma por uma, as dobras tentadoras.

E ao mesmo tempo que com a mão as distribue, segreda com os labios quasi á puridade, ao que as recebe:

— Quando sahir daqui vá a casa de Coelho, José. Não deixes de ir, Antonio. Vê lá o que fazes, Martinho. Elle tem que fallar a vocês á cerca de uma diligencia importante e rendosa. Não faltes, Justino; nem tu, Jacintho; nem tu, Sebastião.

Todos estes sujeitos respondiam affirmativamente e embolsavam a moeda.

O ouro dá calor e eloquencia; dos timidos faz audazes, dos prudentes temerarios. A corrupção é feia, mas efficaz no momento; que tem que depois semelhe chaga podre, nojenta mortal? Quando o tiro feriu o marchante, todos aquelles que tinham na algibeira uma rosa, tomaram immediatamente parte pelo offendido e em altas vozes pediram armas para o desagravarem. Era mais o cheiro da flor do que o impulso da indignação natural o que lhes dava esta animação.

— Armas, armas, meu amigo, eis as primeiras palavras de Jeronymo quando entrou em casa de Antonio Coelho. Armas ao povo! Elle as pede; elle as quer. A villa é por nós.

Em menos de meia hora Goyanna estava nos braços da anarchia. As paixões populares, exacerbadas e açuladas por Jeronymo Paes, por seus filhos, que correram em seu favor tanto que souberam do acontecido, por Belchior—o rabula, Manoel Gaudencio—o alfaiate, Romão da Silva—o meirinho, Manoel Rodrigues—o taverneiro, e por outros conhecidos e desconhecidos parciaes, desaffogavam em gritos, ameaças, insultos.

O sinos e os tambores deram logo signal de rebate.

Dos moradores, uns, manifestado o motim, correram a tomar parte nelle; outros, já escarmentados das violencias praticadas por occasião dos motins anteriores, fugiam, como podiam, com suas familias, para fóra da villa; outros, não tendo para onde ir, ou receiando pôr pé na rua com tanto povo revolto, se deixavam ficar em suas casas, resolutos a defender-se ou a resistir si acaso fossem atacados pelas turbas. Dos que se atiravam na vertigem muitos não o faziam tendo a mira em outro alvo que o de ser sua casa respeitada pelo saque—epilogo negro de quasi todos os motins populares.

Gritos contrarios começaram a ressoar de pontos differentes.

D'aqui se ouvia este:

— Vivam os mascates! Morram os nobres!

D'acolá já era est'outro:

— Viva a nobreza de Goyanna! Viva a nobreza de Pernambuco! Morra pé-de-chumbo.

Os adjuntos donde partiam estes ultimos gritos, eram menos numerosos e menos densos. Dir-se-hia que estavam ainda em formação ou que tinham medo de formar-se. Resoavam á porta de fidalgos conhecidos e d'ahi não se alongavam muito.

Quando algum forte bando se aproximava delles, as manifestações diminuiam ainda mais. Era medo, desdem, ou prudencia?

— Silencio, escravos! respondiam de cá os mais exaltados.

Os de lá não retorquiam.

E o dragão popular passava revôlto, espumante, vertiginoso, cuspindo injurias e obscenidades contra os que considerava seus adversarios, e pensando no desforço pessoal e no roubo publico.

Cosme Bezerra voltou a esquina, acompanhado de ordenanças e parciaes, entrou na Rua-da-matriz e foi descavalgar no Pateo-do-Carmo, á porta de João da Cunha.

— Ufa! Ufa! O ladrão do mascate é insolente, mas não tem armas, por mais que diga que tem. E onde as teria elle que me escapassem? Não houve escaninho que não batessemos.

Taes foram as palavras que dirigiu ás pessoas que se achavam reunidas na sala de visitas do senhor-de-engenho, onde fez a sua entrada já com luzes accezas.

Então contou miudamente tudo o que acabava de acontecer, e de que ahi já tinha chegado vaga e confusa noticia.

Estavam presentes os principaes nobres do lugar, que para esse ponto se haviam encaminhado ás primeiras manifestações da desordem, como para a casa de Coelho haviam corrido os principaes negociantes. E cumpre notar antes de tudo que Coelho interiormente estava satisfeito com as circumstancias que pareciam collocal-o no mesmo plano do senhor-de-engenho e fronteiro a elle. «Si elle é sargento-mór, tambem eu o sou—dizia o negociante em sua mente escaldada pelo odio e pelo despeito. Si o cercam seus amigos, a mim tambem me cercam os meus no momento diffcil. Si projecta aniquilar-me, eu de ha muito jurei reduzil-o a cinzas. O futuro ha de decidir qual dos dois ficará com a victoria de seu lado.» Por onde se vê que o alvo em que o portuguez tinha as vistas era singular, unico—João da Cunha.

Já não eram os mesmos os intuitos deste—abrangiam a mais vasto theatro. Esquecido inteiramente da origem principal do odio com que o distinguia o mercador, elle explicava a opposição dos mascates attribuindo-lhes ambições de mando e fortuna. Nunca lhe passou pela imaginação que pudesse o amor contrariado dar inspiração e impulso áquelle movimento.

A seus olhos Coelho era mais um instrumento dos mascates do Recife, instrumento cego e habilmente manejado por elles, do que uma mola importante, uma força de seu natural independente e vivaz do estranho artefato que perturbava a sociedade goyannista. A verdade entretanto era justamente o contrario do que julgava o fidalgo. A acção de Coelho no movimento hostil á nobreza partia de si mesmo. A não ser esse amor contrariado, o moço portuguez estaria ao lado dos nobres, como estiveram durante a guerra varios portuguezes, por exemplo Martinho de Bulhões, genro de Mathias Vidal.

Em verdade, seus sentimentos casavam-se mais com os daquelles contra os quaes movia seus recursos, do que com os sentimentos daquelles com quem apparecia identificado tanto para a offensa como para a defeza. A nobreza semelhava ainda então uma arvore de extensas raizes que penetrava profundamente no solo das sociedades, e cuja folhagem tinha a magestade das grandes alturas e das vastas sombras; a democracia era planta rasteira, sem raizes, sem ramas; era vegetação de vida duvidosa, incipiente; promettia, mas não assegurava assumir as proporções gigantes, com que um seculo depois sombreou o solo da patria e abrigou as instituições a que este imperio deve a sua grandeza e o seu renome. Mas Coelho não tinha melhor motivo. O senhor-de-engenho julgava indigno e ingrato aquelle que aliás fôra atirado na luta pelo amor immenso e pelo despeito feroz.

Em casa de João da Cunha estavam sobresaltados não sem razão os espiritos. As noticias aterradoras que de momento a momento chegavam; os gritos dos magotes de povo que passavam, vociferando pela frente do sobrado ao principio desordenadamente, logo após organizados para o acommettimento e a pilhagem; o rebate dado pelos sinos e pelos tambores; as familias que fugiam amedrontadas e como sem saberem caminho nem carreira; os soldados que corriam, acudindo aos toques dos clarins; enfim, todo o medonho cortejo de circumstancias que se prende ao furor e á anarchia das turbas, e que são como o collear, o sibillar, o bote, a dentada e a peçonha de enorme reptil, solto, mas assanhado em espaço estreito, não podiam gerar no animo de quem se via, como os que ali se achavam, ameaçados de ser o alvo unico da ferocidade da insurreição, impressões differentes dessas.

João da Cunha e Cosme Bezerra, comprehendendo a gravidade do momento, trataram logo de assentar nos meios de conjurar o cataclysmo, que ameaçava engulir fortunas e vidas preciosas.

— O melhor meio—disse Cosme—é reunir as ordenanças e mandar varrer as ruas a pannos de espada e a tiros de arcabuz.

— Não, não—disse Filippe Cavalcanti. Nem todos os que enchem as ruas são desordeiros. Procedendo assim, a força publica arrisca-se a ferir familias inoffensivas que fogem da anarchia, e até muitos que são por nós.

— Entendeis então que de outro modo tereis restabelecido o socego publico? Enganai-vos. Em momentos semelhantes ao presente, quem se deixa guiar pelo coração corre o perigo de morrer ás unhas inimigas. O raciocinio, a justiça, o sentimento de humanidade devem estar na ponta da espada, na boca do clavinote, nas patas dos cavallos. Que dizeis, Luiz? perguntou Cosme voltando-se para seu irmão Luiz Vidal, que, de pé olhava, com mostras de quem tinha o espirito occupado em acertar com o verdadeiro caminho, ora para o capitão de ordenanças, ora para o sargento-mór.

— Em verdade não vejo outro meio de combater a insurreição, respondeu Luiz Vidal. Entendo, porém, que não ha necessidade de levar-se a repressão ao extremo que vós indicais. A força publica deve apresentar-se immediatamente nos pontos em que a perturbação se mostrar mais vehemente e ameaçadora; mas deve haver particular empenho em que sua presença sirva antes para serenar os espiritos, do que exaltal-os ainda mais, e muito menos para proceder a excessos que possam trazer o sangue e a morte.

— Com quem estou mettido! exclamou Cosme. Que dous philosophos humanitarios! Observasse eu estes preceitos de refinada brandura, que amanhã Goyanna em peso estaria nas garras de Antonio Coelho e de Jeronymo Paes, e cada um de nós teria o seu gasnête entre as unhas do Lauriano, do Bartholomeu ou de outros vis instrumentos do odio portuguez. Basta, meus amigos; dispenso os vossos conselhos. Olá, Mathias? gritou elle a um soldado, que da porta da sala assistia, sem tugir nem mugir, como era seu dever, á conversação dos nobres senhores. Corre já á casa, e dize ao alferes Maciel que espere por mim com toda a força que lá tem sob suas ordens. Põe nova carga nas minhas pistolas e mete-as nos meus coldres.

Luiz Vidal, tendo ouvido estas ordens do irmão, deu o andar pela sala e voltou ao ponto em que se achava um minuto antes.

— Faço-vos companhia, Cosme, disse elle.

— Muito folgo de o saber.

— Eu tambem vou, disse João da Cunha, encaminhando-se para a porta. Pois não hei de acompanhal-os? Não é o lugar dos cavalheiros o seio quente da familia quando a patria está em perigo.

Chegando á porta que dava para a escada, o sargento-mór chamou:

— Ó debaixo? Venha cá um de vocês.

Um negro appareceu logo após.

— Onde está Germano?

— Foi chamar Moçambique e Benedicto.

— E vocês estão todos ahí?

— Estamos todos, sim senhor.

— Sella o meu cavallo.

Entretanto d. Damiana chegara-se para onde estavam Cosme, Luiz Vidal e Filippe Cavalcanti e com elles conversava sobre os sucessos vistos e previstos.

— Ides tambem percorrer as ruas, sr. João da Cunha? perguntou ella ao marido que, dada a ordem, tornara a seu lugar.

— Meu dever impõe-me este procedimento.

— Não sei se seria mais prudente não vos expordes ás iras dos vossos inimigos.

— Penso, ao contrario, que devo ir ao encontro delles a fim de os castigar.

— Mas é que em vossa ausencia podem vir atacar o sobrado, observou Filippe Cavalcanti.

— Meus escravos estão ahi para defendêl-o. Não nos ha de faltar nem polvora nem bala.

— E não ha de ser só a escravatura que o defenda. Eu tambem sei pegar de uma espingarda e disparal-a, disse graciosamente a jovem senhora-de-engenho.

— Bonito, prima! exclamou Cosme Bezerra, sorrindo. Quizera estar de parte a ver a galhardia desta valente amazona.

— Não façais pouco em mim, sr. Cosme, respondeu d. Damiana. Bem me conheceis. Si entrardes na sala das mulheres ficareis admirado do armamento que lá existe. Ha mais de uma semana não tinha eu no engenho outra occupação que fazer cartuchame. Podeis pois levar tranquillo vosso espirito. Na casa de João da Cunha só penetrará mascate depois que Damiana da Cunha tiver exhalado o ultimo suspiro.

A gentileza com que a senhora-de-engenho dizia estas palavras não se descreve, nem se imagina siquer. Outros fossem aquelles a quem ella se dirigia nesse momento, que teriam por vã e ridicula bravata, essa affirmação a que a autorizava o conhecimento intimo do quanto valia o seu animo. D. Damiana era de feito perita em atirar desde os quatorze para os quinze annos. Manhãs inteiras levava ella por junto das capoeiras proximas do cercado do engenho a passarinhar por distração. Mais de uma aposta ganhou a parentes seus com quem atirára ao alvo. As detonações das armas de fogo, longe de amedrontal-a, levantavam seus espiritos. Sentia nellas certa voluptuaria harmonia que lhe trazia deleite. Naquella fórma juvenil, graciosa e fresca havia animos viris, que se impunham á vontade e condição feminil como leis fataes e impreteriveis. Emfim era tradicional esta qualidade da mulher do sargento-mór, e lhe acarretára entre o povo certa alcunha, com que as más linguas supunham injurial-a. Chamavam-n'a—a Escopeteira. Longe, porém de se dar por offendida, a mulher de João da Cunha não perdia occasião de mostrar praticamente que esta alcunha lhe era agradavel e que a ella tinha indisputavel direito.

— Bem sei quanto valeis, senhora prima, tornou Cosme. Mas é que differe muito atirar em rolinhas e sanhassús de atirar em salteadores affeitos a torcer o corpo ás balas e aos mais mortaes golpes.

— Seja como fôr, sr. Cosme. Guardem os negros o baixo da casa, que eu guardarei o alto. Mas receio por meu marido, porque sei quanto o odeiam os mascates e a plebe.

— Nada o ha de offender. Demais vamos apenas dar uma volta pelas ruas mais agitadas, disse Luiz Vidal.

— E estaremos dentro em pouco tempo de volta, acrescentou João da Cunha.

Como a esse tempo estavam já promptos os cavallos, desceram a montal-os os cavalleiros presentes.

Antes de sahir, João da Cunha entrou no armazem.

— Todos estão ahi, Roberto? perguntou elle.

Roberto era o feitor.

— Todos, menos Germano que ainda não voltou do engenho.

— Tem cuidado, Roberto, emquanto volto.

— Senhor sim. Não ha de acontecer nada.

Nesse momento, de um bando que passava pela frente do sobrado, partiu um grito insultuoso, que veiu ferir o senhor-de-engenho no coração:

— Morra o assassino! Morra a escopeteira!

João da Cunha, a modo de gelado de colera, mal pôde ir ter com os amigos que á porta da casa punham os pés nos estribos.

— Conhecestes aquella voz, sr. João? Perguntou lhe, já montado Cosme Bezerra, mal podendo conter a raiva, que o assaltara.

— Ha de ser de algum vendido ao dinheiro de Coelho ou de Paes.

— É a voz desse rábula infame, que imagina fundar em Goyanna uma republica atheniense.

— Quem? O Belchior?

— Elle mesmo, esse velhaco, essa pústula do fôro, que vive especialmente de promover a alforria dos negros dos engenhos por passar as unhas no magro cobre delles e fazer pirraça aos senhores. Ninguem ainda se inculcou tão amante da liberdade, tão independente, tão probo como elle: a verdade, porem, é que elle não passa de um saltimbanco audaz, um charlatão formado em tretas e torpezas que despertam nojo.

Mal acabadas estas palavras, novo bando que vinha nas pizadas do primeiro, parou diante da casa e repetiu o pregão, que ainda soava aos ouvidos dos fidalgos:

— Morra o assassino! Morra a escopeteira!

— Quereis saber, sr. Cosme? disse subitamente o sargento-mór. Ide vós a vosso destino, que eu fico. Ha de vir terceiro grupo parar em frente de minha casa, e é preciso que eu esteja presente para dar-lhe a resposta que merecem. Roberto, Roberto? gritou João da Cunha da porta que punha em communicação o armazem com a entrada. Carreguem as armas e venham collocar-se todos vocês em seus postos. Ao terceiro insulto quero ouvir soar o fogo.

— Os cavalleiros partiram, emquanto o sargento-mór, quasi fóra de si, subia para junto de sua mulher. Por seu gosto estaria nas ruas, promovendo a reacção ou a contrarevolta. Mas comprehendia que naquelle momento não lhe era licito arredar-se de casa.

— Prestai attenção, sr. João da Cunha, disse-lhe d. Damiana, chegando a uma das janellas da sacada onde estava o marido. Não ouvis ruido de pancadas contra as portas na Rua-direita?

— Estou ouvindo. Quem sabe si já não é o saque?

— O saque!

— Quando a plebe se solta, é ahi que vai parar. Mas onde está e o que tem feito desde a tarde Antonio Rabello com sua força? Oh não poder eu sahir!

Emquanto assim fallava o senhor-de-engenho, Cosme corria á Rua-do-meio a tomar o commando da pequena força que se achava sob as ordens do alferes Maciel. Seus grandes espiritos não se compadeciam com a reacção morna e frouxa. De caminho, elle descavalgava aqui para dar uma ordem, ou combinar uma providencia; arrojava-se acolá temerariamente sobre os adjuntos e impunha-lhes que se desfizessem. Si era attendido, passava; si não era empregava meios indirectos de o ser. Esses meios eram a brandura, a persuasão, a ameaça. Faltava-lhe gente para desempenhar satisfactoriamente o papel que teve nesse, como nos principaes motins de Goyanna; mas todas as faltas suppria admiravelmente sua intrepidez por todos reconhecida de ha muito e glorificada depois pelo historiador.

Logo que tomou o commando da força, encaminhou-se com ella á cadeia, para onde tinham ido Luiz Vidal e Filippe Cavalcanti a reunir-se com Antonio Rabello, receiosos de que os amotinados tentassem soltar os presos.

Antonio Rabello foi de parecer que se não procurasse dissolver os ajuntamentos.

— Onde temos nós gente sufficiente para dissolver essas multidões numerosas, sr. Capitão? perguntou elle a Cosme. Guarnecem a cadeia dezeseis praças unicamente. Si d'aqui arredarem o pé, o povo levantado virá abrir as prisões, e augmentará com os criminosos o seu numero e a sua ferocidade. Vós não tendes ahi comvosco mais de vinte ordenanças. Julgais que com tão pequena força poderemos bater os rebeldes e ficar senhores do campo?

— Basta uma corrida forte e violenta sobre os inimigos, para que, cobrando medo, se dispersem.

— Estais enganado. Elles são muitos e não lhes faltam armas.

— Armas? Não as têm.

— Tem-n'as, sr. capitão, tem-n'as. Reparai nos que passam. Haveis de ver, cada um com seu arcabuz. Os mascates fizeram e fazem larga distribuição dellas por seus asséclas. O que me espanta é que ainda não se tenham lembrado de vir atacar este posto, tão fraco, quão arriscado.

Mal tinha Antonio Rabello acabado estas palavras, quando uma massa negra começou a apparecer no principio da rua.

— Deus queira que eu me engane. Mas, ao que parece, vem alli gente para nos dar que fazer toda esta noite—disse Antonio Rabello.

E logo mandou dobrar as guardas, e á frente da cadeia estendeu o restante da força.

— Quereis ir ao encontro do bando, sr. capitão? perguntou Diogo Maciel, impaciente por atirar-se ao tumulto onde mais tarde praticou actos de distincta bravura.

— Não; agora não enfraquecerei este ponto com a minha ausencia. Os rebeldes veem direitinhos para cá.

De feito não tomaram elles outra direcção.

O bando, passante de cem homens, vinha preparado para entrar em fogo e era capitaneado por Jeronymo Paes e seus filhos. Sua intenção era a que já tinha sido prevista—a de soltar os criminosos.

Obra de cincoenta passos antes, Antonio Rabello intimou-lhes que passassem de largo.

Jeronymo Paes, sem se importar com esta voz, deu ainda alguns passos para diante. Rabello mandou distribuir cartuchos e carregar. Então a multidão fez alto a respeitosa distancia.

— Que querem, bandidos? perguntou fóra de si Cosme Bezerra, mal podendo suster as redeas ao cavallo pela colera que o tomava.

— Bandido sois vós—respondeu Jeronymo Paes.

A esta voz, Cosme poz as pernas ao cavallo, cravou-lhe as esporas com movimento nervoso e atirou-se para a frente da multidão. Quando parou a tres passos de Jeronymo Paes, trinta bacamartes tinham as bocas voltadas para elle. A seu lado tinham arrancado como arrastados no impeto vertiginoso da sua carreira, Diogo Maciel á esquerda, Filippe Cavalcanti e Luiz Vidal á direita, e atrás delles cerca de dez ordenanças bisonhas, mas animosas.

— Podeis assassinar-me—disse Cosme. É o mais que podeis fazer, porque é só o que sabeis, miseraveis. Mas ainda que corra perigo a minha vida, como si me achasse diante de féras bravias, nem por isso hei de deixar passar sem opposição a vossa rebeldia.

— Quem falla em rebeldia! disse Jeronymo. — Rebelde és tu, mazombo infame! disse para Cosme um dos filhos de Jeronymo.

E cincoenta, oitenta, cem vozes gritaram:

— Tu é que és o rebelde, tu é que és o perturbador da ordem. Fóra fidalgos! Fóra.

Quando esta alarida serenou, ouviu-se a voz de Cosme Bezerra. Tinha todos os tons de colera mal soffreiada.

— Goyananistas, goyannistas, gera em mim extremo pezar este vosso procedimento! Eu não fallo aos mascates, fallo a vós, povo de Goyanna, que meia duzia de estrangeiros ingratos tem desnorteado e pervertido.

— Cala-te, cala-te, mazombo. Não te queremos ouvir. Sahe de nossa presença, si não te queres arrepender.

— Infame canalha! exclamou fóra de si Cosme Bezerra, desembainhando a espada, e dando mostras de quem queria investir.

— Cosme, contende-vos, disse Filippe Cavalcanti, entrevendo os perigos que levantava contra si por suas palavras e gestos o capitão das ordenanças.

Seu aviso já não produziu o effeito saudavel. O magote atirou-se sobre todos elles como vara de porcos do mato salta sobre imprudente caçador. Alguns tiros foram disparados, mas nenhuma morte se seguiu a elles. Os que pretendiam tirar a vida ao destemido capitão, cedo tiveram a prova de seu engano, vendo Cosme de espada núa abrindo caminho por entre a multidão. Seu cavallo, esse tinha sido derrubado pela descarga.

Cerca de dez minutos durava já a luta desigual de treze homens contra cem, que os queriam enlaçar quando ao lado do Carmo appareceu uma mó de gente que corria para o ponto do conflicto. Era uma parte da escravatura de João da Cunha que, com elle á frente, vinha a soccorro dos parentes e amigos. Os tiros tinham servido ao senhor-de-engenho de aviso da luta proxima. Acompanhavam-n'o o feitor e outros moradores. Lourenço ficára com Germano, já então no sobrado e o restante dos escravos no armazem, guardando a casa.

No momento em que este auxilio chegou a Cosme, o conflicto já tinha tomado feição differente. Como a intenção principal da multidão era abrir as portas da cadeia, a fim de sahirem com os criminosos, dois mascates, Braga e Bernardino, ahi recolhidos por delitos communs, ella atirou-se em pezo contra as entradas. Cosme, Filippe, Maciel e os demais que tinham resistido ao furacão insurreccional, agora, escapos de seus novenlos, serviam, com Antonio Rabello e sua brava guarnição, de baluartes inexpugnaveis ante os quaes se quebravam as investidas dos insurgentes. Achando seus parentes e amigos salvos, João da Cunha, que estava impaciente por tomar parte na luta, veio collocar-se ao lado delles. Tornou-se assim quasi impossivel aos revoltosos lograrem o seu principal intento. Mas isto os não dissuadiu delle. Collocados emfrente da cadeia, vociferavam contra os sustentadores da ordem. Alguns jogavam projectis immensos e mortaes sobre os que defendiam o importante passo. Garrafas vazias, grandes seixos da rua iam a miudo bater e despedaçar-se nas portas e grades, impellidos pelas mãos dos amotinados. Seus estilhaços continuados, feriam os impavidos defensores.

De repente um homem, que vinha das bandas do Carmo, procura a cadeia. Alguns dos amotinados, suspeitando nelle um mensageiro da nobreza, atravessam-se diante dos seus passos. Loucos que foram esses! Um jagunço enorme, que o desconhecido manejava tão facilmente como si fôra delicado espadim, prostrou dois delles por terra sem sentidos. Corre então a seu encontro maior numero que não tem sucesso melhor. O desconhecido não é muito alto, nem muito corpulento. Mas sua força muscular faria inveja a mais possante féra. Quando seu braço descarrega a arma, semelha esta troço de marmore e abate a seus pés os maiores obstáculos.

Elle atira-se de hombro sobre um dos mais alentados de fórmas e dá com elle em terra. Consegue, emfim derribando e ferindo os que pretendem cortar-lhe a passagem, chegar ao pé do sargento-mór.

— Lourenço! Que vens fazer aqui? Alguma novidade por lá?

— Vim chamar vosmecê a toda pressa. Do lado do rio dirigem-se para o sobrado forças numerosas. No sobrado se diz que são as forças de Luiz Soares.

— Luiz Soares! exclamou o sargento-mór.

— Luiz Soares! repetiram Filippe e Cosme Bezerra.

— E que faremos agora? Inquiriu João da Cunha.

Sabendo do que havia, Antonio Rabello aproximou-se e disse-lhes:

— Podeis ir, senhores. Eu defenderei o meu posto até exhalar o ultimo suspiro.

— Pois bem. Partiremos a cortar-lhe a vanguarda, —disse Cosme a Antonio Rabello. Mas ao vosso lado, senhor capitão, ficará o alferes Diogo Maciel. Tende certeza de que estareis bem acompanhado.

Com as espadas nuas nas mãos, os fidalgos afastaram-se formando uma mó impenetravel. Alguns dos do bando de Jeronymo Paes, que lhes sahiram ao encontro, cahiram ao pezo da terrivel massa de Lourenço, o qual ia na frente abrindo caminho temerariamente.

Seguiam após elles as ordenanças de Cosme Bezerra e os escravos de João da Cunha.

Penosa, mas rapida tinha corrido a noite.

Raiava emfim o dia 23 de agosto de 1711, que ficou sendo memoravel nos fastos de Goyanna.

Não tinha ainda amanhecido de todo, quando as balas dos assaltantes já sibillavam pelas urupemas do sobrado de João da Cunha como pelas enxarcias de navio no alto mar esfusiam as lufadas de atroz procella.

Porque fôra esse o lugar escolhido para as primeiras honras do assalto? Porque, em vez de correr immediatamente á cadeia, forçal-a, quebrar-lhe os ferrolhos, soltar os sentenciados, tinha Luiz Soares tomado para o pateo do Carmo, deixando entrever a intenção de atacar a habitação do fidalgo antes do que qualquer outro ponto?

A resposta é facil. Antonio Coelho sabia a hora precisa em que Luiz Soares teria de entrar na villa. Sabia o lugar onde essa entrada devia effectuar-se: era áquem do Tanquinho, e quasi fronteiro ao oitão da igreja do Senhor-dos-martyrios. Tomando essa direcção escapava às trincheiras de Manoel de Lacerda, como aconteceu.

O negociante, tanto que viu approximar-se o momento, montou a cavallo e para lá se encaminhou, seguido de cêrca de cem homens. Este troço era composto em grande parte de europeus. Era o corpo de sua especial confiança. Coelho o denominava seu estado-maior. Partiram da Rua-de-rosario, ao mesmo tempo que a multidão capitaneada por Jeronymo se dirigia para o lugar onde estacionou.

Quando a gente de Luiz Soares, rompendo os ultimos matos, sahiu na Rua-dos-martyrios, que não era então mais do que o caminho do Tanquinho, achou já ahi para o receber o estado-maior dos mascates.

Vendo o commandante da tropa, Coelho correu a elle, chamou-o de parte e fallou-lhe á puridade. Quando a cabo de alguns minutos se separaram, estava assentado o plano do ataque. Luiz Soares devia levar suas primeiras investidas contra a frente da casa do sargento-mór, emquanto o negociante a atacaria pelo lado opposto. Entre dois fogos, o soberbo fidalgo cairia no poder dos inimigos sem grande custo, e tanto bastaria para que cessasse a resistencia, visto que nenhum dos outros, nem Cosme nem Filippe, nem Jorge Cavalcanti, nem Manoel de Lacerda, em uma palavra nenhum delles tinha gente para fazer frente a seus adversarios. Então tudo tornar-se-hia facil. O povo já estava solto; a villa abandonada por mais da metade dos habitantes pacificos; seguir-se-hia a revolta como se seguiu. As tropas invasoras engrossariam com os subsidios que desse a insurreição, e tomariam sem perda de tempo o caminho do Recife, a fim de romper o cerco.

Estas foram as razões que publicou Coelho para autorizar o seu plano. Elle porem tinha a sua razão particular em querer que prevalecesse este a outros planos indicados pelo destemido parahybano. O leitor já sabe qual ella seja. Acabar com João da Cunha era o seu fim, a sua preoccupação de todo o instante. Acabado elle, poderia finalizar a guerra, que elle não teria por isso pezar nem descontentamento.

No momento em que, dando a volta da rua descobriram os fidalgos, aos primeiros clarões da manhã, a vasta multidão, superior a seis centos homens, uma idéa assaltou incontinenti o espirito de Bezerra. Com sua lúcida previsão a que devia tantos snccessos felizes no periodo de agitação, de que se trata, concebeu logo elle um projecto de opposição.

— Um cavallo já para Lourenço.

E voltando-se para o rapaz, disse-lhe:

— Tu me acompanharás. Não preciso de mais ninguem.

— Aonde tencionais ir, Cosme? perguntou Filippe Cavalcanti.

— Vou a Jorge Cavalcanti, que já póde abandonar a sua fortificação, visto que as forças inimigas, a quem elle pretendia impedir a entrada, já estão tomando conta da villa. Lourenço correrá ao Tanquinho a dizer a Manoel de Lacerda que venha em nosso soccorro. Com a gente que cada um destes amigos tiver junta, bateremos esses bandidos. Só o que desejo me façais, João da Cunha, é que sustenteis a resistencia até que eu chegue. Bastam-me cincoenta, quarenta, vinte goyannistas da gemma para levar estes salteadores a pannos de espada, esta canalha a patas de cavallo.

Em menos de dois minutos Cosme e Lourenço, tomando pela Rua-do-meio, corriam á desfilada. O momento era decisivo.

Chegando á sala, Filippe, Cavalcanti, Luiz Vidal e João da Cunha deram com um espectaculo novo e singular. Cada uma das mulheres que ahi se achavam—eram oito, a saber d. Damiana, Marcellina e seis mulatas escravas—mostrava-se apparelhada para travar a luta homerica. A capitôa era a mulher do sargento-mór. Seu espirito bellicoso tinha-se communicado a todas as outras, exceptuada Gertrudes, velha que a amamentára e que a um canto da sala tremia de medo. Sobre os bufetes, as mezas, os estrados viam-se açafates cheios de cartuchos, obra das suas mãos e das de algumas de suas mucamas durante os dias e as noites anteriores.

— Que é isto, senhora? perguntou o sargento-mór a sua mulher, tanto que seus olhos leram na face della a expressão da energia intima, reflexo do seu sangue e do seu orgulho.

— De que vos admirais? Mandei trazer para a sala as armas e munições que estavam nas camarinhas. Será ainda cedo para apparecerem?

— Cêdo não é, disse o sargento-mór. Mas é que em mãos de uma dama e de escravas ellas se me afiguram postas com muita anticipação. Em occasiões, como esta, e em havendo ainda homens, as mulheres não devem usar outras armas que os seus rosarios.

— Tem vosmecê razão, seu sargento-mór, disse a velha. Eu cá por mim não posso entender-me com armas de fogo. As minhas armas são d'agua—são as lagrimas. As de fogo, quando alguma vez as tenho, como agora debaixo das mãos, já me parece que vão estourar e despedaçar-me.

Gertrudes tinha de feito nesse momento a mão posta sobre o cano de um mosquete, que estava a seu lado sobre o estrado. Mal acabára de fallar um estrepito estranho e inesperado rebentou perto della, A anciã recuou espavorida. Pareceu-lhe que se confirmava seu receio. Déra causa ao ruido uma bala inimiga que batendo no espelho da sala, o puzera em farellos.

— Credo! Virgem santissima! Exclamaram quasi ao mesmo tempo as mulheres.

D. Damiana tinha corrido para junto do marido, como quem queria defendel-o.

— Correis aqui perigo de vida, disse Felippe Cavalcanti. O meu parecer é que vos retireis ao interior da casa, onde estareis mais resguardadas das balas perdidas. Ide ahi encommendar nossas vidas a Deus, e pedir para as nossas armas a victoria.

A senhora-de-engenho não quiz parecer obstinada. Deu o andar para dentro com sua antiga aia, Marcellina e as mucamas. É, porém, certo que seus espiritos, alvoroçados com a eminencia do perigo não se deixaram lá ficar, antes vieram emparelhar-se a João da Cunha, vigiando sobre elle, estremecendo por sua existencia, a qualquer detonação, a qualquer vibração suspeita de lhe ser offensiva.

Quando se acharam sós, correram os tres fidalgos ás urupemas a examinar o aspecto do campo inimigo.

— Estais vendo, Felippe? Inquiriu Luiz Vidal.

— Que quereis dizer?

— Aquella mó de gente de negro que se move do lado de lá do cruzeiro?

— Estou vendo. São frades ao que parece.

— São os proprios frades do convento—disse João da Cunha—que distribuem armas e munições pelos matutos esfarrapados e immundos. Oh! os frades, os frades do Recife e de Goyanna tem tido grande parte nesta guerra.

Tendo dito estas palavras o senhor-de-engenho deu o andar para descer.

— Para onde ides? perguntou-lhe Luiz Vidal, carregando o mosquete de que lançara mão.

— Vou mandar subir para cá a metade dos negros. Precisamos dar logo signal de nós, rompendo o fogo sobre aquelles magotes ferozes.

— Prudencia, amigo, prudencia! Observou Filippe. Vêde bem não vá esta provocação decidil-os a commetter logo o sobrado.

— Que tem que venham? Tenho forças bastantes não só a resistir-lhes, mas a batel-os.

— Não estareis enganado? Demais não será mais acertado nada tentarmos contra elles, antes de chegarem os reforços que Cosme foi buscar? Si aquella gente toda, reunida com a que está na frente da cadeia, vier assaltar-nos, achais que poderemos ficar vencedores?

— Só por milagre, ajuntou Luiz Vidal. Mas olhai para a força inimiga, Filippe. Não comprehendeis aquella manobra, ordenada por Luiz Soares?

As forças deste caudilho tinham-se dividido em tres grandes pelotões. O do centro, formando uma extensa linha ao longo da praça, parecia querer adiantar-se até ao cruzeiro, e de feito se encaminhou para ahi; os das extremidades, mais numerosos e compactos, desceram, correndo a marche-marche, a tomar as embocaduras, ao norte e ao sul da rua.

— Claro está o plano do caudilho, disse o sargento-mór. Attentai nelle. A linha do centro manterá sobre nossa frente incessante fogo emquanto as outras duas, ganhando os lados, vem reunir-se com ella no ponto commum, que não é outro sinão as nossas portas.

Houve um momento de silencio. Os fidalgos, por traz das rotulas olhavam para um lado e para outro, como quem estava estudando as posições inimigas. Emfim Luiz Vidal voltou-se para o senhor-de-engenho e lhe disse:

— Não percamos mais um momento. As forças ahi vem. Si não resistirmos, em dez minutos estaremos no poder dos rebeldes. Descei, descei, e mandai a gente para cá. O forte della deve ficar lá em baixo. Cá em cima precisamos unicamente de quem saiba carregar e descarregar sua arma. Lá em baixo requerem-se animos viris. Será lá o nosso posto de honra.

João da Cunha desceu e tornou logo. Vinham com elle o Roberto e mais dez negros.

— Vês aquella linha de homens que alli vem avançando e atirando para cá? perguntou o sargento-mór indicando ao feitor a parte da força que era commandada pelo proprio Luiz Soares.

— Estou vendo, sim senhor.

— Sobre ella devem ser feitas todas as pontarias. De lá debaixo, quero ver cahir aquelles salteadores, atravessados pelas balas dos meus escravos.

— Senhor sim, disse Roberto.

Os negros foram distribuidos pelas janellas. Pelos intersticios das urupemas introduziram os canos dos bacamartes, e esperaram a voz de—fogo. O sargento-mór, tanto que viu as armas abocadas na direcção conveniente, ordenou uma descarga. Queria por seus proprios olhos ter uma prova, antes de descer ao outro pavimento, do valor e da disciplina da sua gente.

No mesmo instante um só e infernal estampido encheu o ambito da sala, e foi reboando pelos aposentos e salas immediatas. A casa, em que predominava a pesada alvenaria daquelles tempos, estremeceu, não obstante, como si fôra de taipa de sébe, desde os fundamentos até ao tecto, de cujo estuque se desaggregaram particulas calcinadas. Dir-se-hia que ali o mundo acabava de ter uma das suas medonhas commoções, um desses terriveis cataclysmos, que se resolvem no apparecimento de mais um vulcão, na abertura de mais um abysmo.

— Misericordia! Misericordia! Gritaram dentro algumas mulheres aterradas.

Quando iam descendo, ouviram os fidalgos o estrondear de uma forte descarga do lado de fóra. Era a resposta que os da rua davam aos do sobrado. Era mais do que uma simples resposta; era principalmente intimação, feita pelo fogo, a que se rendessem, sinão a acerba ameaça de que dentro em pouco tempo não passariam de vencidos e prisioneiros.

A luta estava terrivelmente travada. Em alguns minutos ninguem mais pôde entender-se. A mosquetaria atroava os ares com suas vozes assustadoras. As descargas succediam-se incessantemente umas ás outras. Contra os paredões e muralhas de solida e antiga fortaleza não batem com mais furia as balas de canhões inimigos do que as dos mosquetes dos matutos contra as paredes, as portas, as janellas do sobrado do sargento-mór em quem elles consideravam encastellado o despotismo, o orgulho e a maldade de um senhor feudal.

— Germano? Germano? Chamou o sargento-mór, ao penetrar no vasto aposento em que tinha o grosso de sua tropa. Onde estás, moleque? Não vês que as portas da entrada se acham desamparadas? Para a frente, demonios!

João da Cunha trazia na cava do collete um punhal, no cós dos calções uma pistola, e na mão esquerda um clavinote curto. Por cima do gibão de seu uso corria-lhe, cingindo-o, o talim, donde lhe pendia uma espada-de-ponta-direita. Do hombro esquerdo para o quadril direito cahia transversalmente uma correia lustrosa na qual se via segura uma patrona cheia de cartuchos fabricados por sua mulher. Trazia na cabeça chapeu de palha de largas abas. Com o trigueiro do rosto contrastava a barba grisalha, com o longo nariz aquilino os olhos pequeninos e redondos, como os de pomba. Em sua physionomia liam-se sentimentos encontrados e violentos: a temeridade para avançar, a firmeza para resistir.

Á voz do senhor, Germano chamou os outros e tornou com elles para as portas. Por traz destas tinham sido collocadas diversas caixas-de-assucar com dobrado fim—amparar as entradas e dar aos atiradores posição sobranceira.

Subiram ás caixas os negros, e nos pequenos olhaes, acinte feitos nas portas por ordem do sargento-mór, puzeram elles as bocas das armas.

Então o sargento-mór deu ordem para atirar. As pedras bateram nos fuzis, algumas escorvas arderam, mas nem um tiro soou.

João da Cunha, espantado, sorprezo, olhou successivamente para os negros e para os dois fidalgos. Rapida lividez passou pelas faces destes ultimos. Uma só idéa, uma suspeita cruel que lhes atravessara o cerebro, fez chegar ao rosto delles a sombra de sua aza negra.

Puzeram os escravos novas escorvas nos mosquetes, que levaram novamente aos orifícios das portas. Á voz de—fogo!—as escorvas arderam, mas, como da primeira vez, nenhuma arma disparou seu tiro.

Fóra de si, o sargento-mór vai cahir de um pulo junto de Germano, emquanto Filippe Cavalcanti e Luiz Vidal, desembainhando suas espadas, se collocam em atitude ameaçadora diante dos outros escravos.

— Negro infame, quero saber o que tem estas armas. Confessa a verdade, sinão te atravesso da outra banda.

João da Cunha parecia uma visão infernal. Todos os musculos do rosto, as mais delicadas linhas de seus olhos despediam duras e mudas ameaças, que fallavam mais claro do que seus gestos e expressões violentas.

— Senhor, as armas estão molhadas, respondeu Germano. Não fui eu que as molhei, foi elle; mas já pagou.

— Molhadas as armas! exclamou Filippe. Traidores!

— Elle quem? Elle quem? Dize já quem foi o autor deste crime.

— Moçambique.

Eis o que se tinha passado depois da subida do Roberto e dos seus companheiros para o andar superior.

Moçambique chegou-se a Germano e lhe disse:

— Que esperas, moleque? D'aqui a pouco o branco vem chamar-nos para o sobrado, e nós levamos as armas enxutas. Bota logo agua dentro dellas.

— Cala a boca, tio Moçambique. Estás doido? Agua dentro das armas! Para que fim?

— Ah! Tão depressa te esqueceste da promessa que fizeste a seu Pedro de Lima?

— Eu nada prometti, Moçambique, eu nada prometti do que você está inventando ahi.

— Pois já te não lembras da conversa que tiveste hontem de tarde no mucambo?

— E que prometti eu, negro velho tonto? Melhor será que você cale sua boca.

Calou Moçambique a bocca um momento, mas seu espirito embrutecido, seu interesse, que sua ignorancia o fazia suppôr muito bem amparado pelas promessas de Pedro de Lima, alteou dentro em sua mente cada vez mais as vozes fallazes e persuasivas. O negro deu uma volta, como para disfarçar a intenção serpentina, dirigiu-se ao canto onde estavam encostadas as armas, e começou a esvaziar no cano de cada uma o côco, que enchia no pote d'agua destinada a matar-lhes a sêde.

Germano deu pela operação, no momento precisamente em que Moçambique molhava o ultimo mosquete.

Correr ao negro velho, tomar-lhe a arma da mão, exprobral-o, foram actos que o moleque praticou em um momento.

— Tio Moçambique! Você sempre fez o que queria?! exclamou na realidade aterrado Germano.

— Fiz o que tu prometeste, mas não tiveste coragem para fazer, respondeu Moçambique. — Negro safado! Tu ouviste eu prometer alguma coisa?

— Ouvi, sim. E si tu quizeres agora negar, eu tudo contarei a senhor—disse Moçambique, dando mostras de querer envolver em sua queda o parceiro.

Germano era fino. Viu de um lance d'olhos todo o horror da situação, toda a immensidade do seu infame procedimento. Comprehendeu que si o senhor-de-engenho sahisse daquelle aperto e viesse a ter conhecimento do que se passára no mucambo, a forca seria o seu fim, si não fosse a morte nos açoites. Então lembrou-lhe uma idéa, unica que o podia salvar do abysmo a borda do qual cambaleava mais morto do que vivo. Era destruir a unica testemunha da sua entrevista com Pedro de Lima. Morto Moçambique, estaria elle livre da responsabilidade que o negro queria repartir com elle, e poderia até, si a victoria pertencesse aos mascates tão completamente como figurára Pedro de Lima, exigir deste o preenchimento da promessa feita. Tanto que esta ordem de idéas se accentuou bem em sua mente, para o que não foi preciso mais do que um instante, o moleque puxou resolutamente do facão, que comsigo trazia, e com elle traspassou o parceiro.

Tendo contado pela rama este fatal acontecimento a João da Cunha, Germano para dar inteira autoridade ao que dizia, indicou o canto do armazem onde se achava morto, dentro de uma poça de sangue ainda quente, o negro que punha sentido nas carvoeiras.

O sargento-mór soltou então o moleque, dizendo-lhe estas palavras:

— Em recompensa da acção que praticaste, Germano, dou-te a liberdade. De ora por diante já não és meu escravo, mas meu amigo. Estás forro.

— Eu forro, eu livre senhor! exclamou, duvidoso ainda o negro, como quem não podia acreditar fosse senhor do summo bem a que aspirava desde que tivera o uso da razão, mas cuja posse só em sonho considerava possivel.

— Estás livre. Palavra de João da Cunha.

As lagrimas saltaram dos olhos do moleque, mas uma sombra escurecendo-lhe o espirito e aguando o contentamento ineffavel que o repassava, volitou diante dos seus olhos. Esta sombra tinha a forma de um espectro agoureiro e medonho. Parecia com o negro morto, mas não era sinão o remorso, porque em consciencia, o moleque se reconhecia traidor e assassino.

Nesse momento Roberto appareceu no armazem.

— Polvora, senhor, queremos polvora—disse elle. Acabaram-se todas as munições que havia lá em cima.

— E que fazem os inimigos? interrogou Filippe Cavalcanti.

— Avançam, respondeu Roberto. Estão já batendo nas portas.

— Polvora, Germano! Gritou o sargento-mór.

E uma idéa sinistra, semelhante a sombra do inferno, atravessou seu espirito atribulado. «Si Moçambique molhou a polvora, que será de nós?» pensou elle.

Germano corre ao barril que primeiro se lhe mostra. O sargento-mór, sobresaltado, impaciente por saber immediatamente a sorte que lhe estava reservada naquelle tremendo apuro, correu após o moleque. Germano pára diante do barril, abre-o com arrebatamento nervoso, e voltando-se immediatamente ao sargento-mór que tinha os olhos postos nelle, exclama:

— A polvora está molhada, senhor!

— Molhada! Molhada! exclamam quatro vozes ao mesmo tempo, quatro vozes que se confundiram na mesma angustia, e que pareciam um só grito de maldição e de horror. Eram as vozes de João da Cunha, Filippe Cavalcanti, Luiz Vidal e Roberto.

Para se certificar o sargento-mór metteu suas proprias mãos dentro do primeiro barril, do segundo, de todos elles. Retirou-as cobertas de uma camada espessa e humida, semelhante á lama da rua, que se lhes adhirira. Não havia mais que duvidar. O tremendo drama caminhava rapidamente a sua ultima scena.

Mas em Germano, que não gritára, que não se sorprendera com esse grande desastre, parecia não obstante haver elle penetrado mais profunda e dolorosamente do que nos outros. Havia nisso o effeito de uma lei physiologica, sinão moral. Fôra elle, elle proprio quem tinha derramado agua nos barris, logo depois da morte de Moçambique. Então nem siquer lhe passára pela imaginação a idéa de ser alforriado por seu senhor. Pensava porêm no que lhe dissera Pedro de Lima. Para justificar-se perante João da Cunha, se este vencesse, tinha elle o seu procedimento com o parceiro; matára-o: não podia dar melhor prova de sua lealdade. Para appareeer diante do bandido com direito a ser livre, necessario lhe era algum facto de grande alcance, cuja responsabilidade pudesse attribuir a si proprio, no caso de sahirem vencedores os estrangeiros, em nome de quem o cabra promettia essas grandes recompensas. Eis porque puzera agua na polvora.

Mas a inesperada generosidade do senhor tornara-o perplexo, confuso, sem saber o que fazer. O remorso, o arrependimento, o pezar, a dor abafada e temerosa o tiveram por um momento fóra do uso das suas faculdades. Germano não era máo negro. Tinha sido até ao momento de se entender com elle o Pedro de Lima, muito dos seu senhores. Ainda depois nós o vimos como arrependido em consequencia das reflexões que lhe fizera Marcellina. Desencabeçado, porem, em nome da liberdade atirara-se naquelle escabroso despenhadeiro a modo de fatalmente.

Vendo agora de perto os resultados de sua perfidia; conhecendo-se assassino, sem ter nunca pensado sel-o; vendo seus senhores sujeitos aos duros azares que a victoria dos contrarios poderia trazer; vendo a elle proprio sem acção, sem meios para afastar todos aquelles horrores, vencer todas aquellas crueis fatalidades, encher o grande abysmo que ameaçava engulil-os, emfim reparar aquella immensa desgraça de seu natural irreparaval, só faltou ao negro completar o seu martyrio mudo e imponderavel, cortando com suas proprias mãos o fio da existencia a que um momento se haviam rasgado horizontes côr de rosa logo após convertidos em profundas e infernaes escuridões. Ó liberdade, quanto pareceste dolorosa nesse transe ao pobre escravo, victima da natural ambição de te possuir!

O estampido de uma nova descarga, abalando violentamente todos os espiritos, veio como reacender a perdida vehemencia do de Germano. Sua impetuosidade ethiopica rebentou pujante, como a catadupa que jorra subitamente de solo frio e pedregoso.

O negro tivera uma inspiração grandiosa, digna da heroicidade romana. Pondo-a em pratica rehabilitava-se perante sua propria consciencia e dava manifesto testemunho ao senhor-de-engenho da sua gratidão.

— Senhor, senhor, —disse elle a João da Cunha, tendo na mão desembainhado o facão com que tirára a vida a Moçambique—a agua molhou as armas e a polvora, mas não molhou o facão de Germano. Ainda que estivesse molhado era agora a occasião de o enxugar nos corações dos mascates. Si senhor dá licença, vou esperar os inimigos da banda de fóra com meus companheiros.

— Quantos estão aqui?

— Dezenove, respondeu Germano.

— Não, agora somos trinta respondeu ao pé do sargento-mór o Roberto, que descera.

Nesse momento nova descarga soou na sala do sobrado. João da Cunha, espantado, perguntou a Roberto:

— Quem é que ainda atira lá em cima? Não estão vocês todos cá embaixo?

De feito, todos os negros, que Roberto capitaneava, achavam-se com os outros no armazem.

— É a senhora d. Damiana com as negras.

— Que loucura! E onde acharam munições? Onde acharam munições?

— Lá em cima. A senhora d. Damiana tinha muitas duzias de cartuchos guardados. Cada um de nós tem já a patrona cheia.

— Graças, meu Deus! exclamaram os fidalgos. Mas então porque desceram, porque abandonaram seu posto? perguntou o sargento-mór.

— Foi ella que nos mandou para baixo. Ella disse que havia mais necessidade de nós cá embaixo onde nenhum tiro se disparava, do que lá em cima.

— E a senhora d. Damiana teve razão—disse Filippe Cavalcanti, que, tendo ido olhar pelos olhaes, voltára correndo ao lugar onde estas coisas se passavam. Accudam todos. Os bandidos batem-nos á porta. Uma descarga agora contra elles deve ser de grande proveito para nós.

Correram todos os que tinham as armas carregadas. Um estampido immenso echoou dentro do vasto armazem. No chão da rua cahiram varios dos assaltantes—muitos feridos, alguns mortos. Era o primeiro signal de vida que dava de si para o lado de fóra o armazem.

Tomando por estrategia o silencio que até então ahi reinara, recuaram os assaltantes amedrontados, mas não o fizeram tão promptamente que ficassem logo fóra do alcance de novos tiros disparados do sobrado, desta vez mais certeiros do que das outras. Novas perdas contou a força invasora.

Quando cessou de todo o estrondo da ultima descarga, uma voz vibrou nos ares, forte e pujante, por entre as exclamações de dôr dos feridos. Partia ella do cruzeiro e parecia dirigir-se aos do sobrado.

— Mulheres impias, mulheres impias, que atirais contra a cruz do redemptor, vêde lá não venhais rasgar as veias sacrosantas daquelle que em espirito está aqui pregado nella.

Ergueram-se todas as vistas ao ponto donde taes palavras cahiam.

Um vulto vestido de negro destacava sobre a larga peanha do cruzeiro. Estava de pé, o braço esquerdo passado em torno da haste petrea, emquanto o direito destendido parecia acompanhar e completar a direcção e o echo de sua voz. A cara branca e macilenta, o perfil negro e esguio, a voz fina e vibrante davam áquelle vulto certa apparencia magestosa e pathetica. O que sobresahia nelle, cercando-o de uma como virtude mysteriosa e fatal, era o animo térso, a temeridade a modo de barbara, a fé passiva e animal que o fizera levantar-se diante das balas inimigas, que em torno de si cortavam o fio de muitas vidas. Esse vulto, esse espectro, esse animo que excedia a medida humana, era um membro da Companhia-de-Jesus. Era o padre Henrique Celini. Fôra mandado expressamente do Recife para prégar contra os nobres e a favor dos mercadores. Seu nome devia figurar depois na carta monitoria em que o bispo commettia ao Padre Manoel Lopes todas as necessarias faculdades a fim de que «notificasse certos clérigos para apparecerem em sua presença, e os corrigisse da escandalosa missão de andarem seduzindo os animos dos que os ouviam a seguirem por selecta e segura a nova doutrina sustentada pelos conjurados do Recife, com a qual agitaram o povo e deram tanto abalo a toda a terra.»

Apenas ouviu as primeiras palavras do jesuita, o sargento-mór correu á sala superior. As balas parahybanas tinham deixado ahi traços medonhos. Viam-se nas paredes, por entre superficiaes escoriações, profundos ferimentos. Parte do estuque do tecto estava por terra. Das rotulas algumas se mostravam despedaçadas, outras com immensos rombos por onde do pateo se via grande parte do que se fazia na sala. A frente da casa poder-se-hia comparar com a carêta de um homem vesgo e desdentado.

D. Damiana, de pé por traz de uma das rotulas mais destruidas, olhava para o prégador por um dos rombos, no momento em que seu marido entrou na sala. As outras mulheres imitavam a senhora-de-engenho das outras janellas.

— Vinde ouvir, sr. João da Cunha, vinde ouvir o prégador—disse ela. — Ainda está fallando ahi essa sombra do inferno? perguntou elle, lançando as vistas para o pateo, por cima do hombro da mulher.

E rapidamente levou ao rosto o clavinote como quem o queria desfechar sobre aquelle novo sustentador da desordem e da destruição que aluiam a sua posição e o seu poder.

Mas no mesmo instante sentiu-se apertado entre dois braços fortes, roliços e deliciosos. Sentiu uma macia mão pegar-lhe do pulso e obrigal-o a abaixar a arma. Ouviu uma voz terna, afflicta, plangente pedir-lhe que não atirasse.

— Não atireis, não atireis, sr. João da Cunha, sobre o padre. Seria um grande peccado.

— Atreveis-vos a dizer-me estas palavras, senhora? exclamou o fidalgo. O que ali está não é um padre, um ministro de Deus. É o espirito de Satanaz. É um perverso, que deve cahir atravessado por uma bala.

— Peço-vos tambem eu, que não atireis, seu sargento-mór—disse-lhe outra voz ao pé de si.

João da Cunha voltou-se e deu de face com Marcellina, que dava mostras de quem ia ajoelhar-se. Alongando os olhos algum tanto mais, viu todas as mulatas na mesma attitude, sua physionomia os mesmos sentimentos manifestados pela senhora-de-engenho e pela cabocla. A forte guarnição que até aquelle momento mantivéra nutrido e mortifero fogo sobre os invasores; desamparava as posições, abaixava as armas á voz de um padre; e quando elle trovejava contra ellas proprias, corriam medrosas, a impedir, com supplicas e prantos, que lhe tirassem a vida.

O jesuita entretanto proseguia assim a sua terrivel jaculação.

— Atirastes sobre a cruz do redemptor. Estaes por isso condemnadas ás profundas dos infernos. Suspendei, suspendei, filha de Satanaz, a vossa impiedade. A maldicção de Deus pezará eternamente sobre vós si ousardes levantar ainda armas infernaes para o lado onde está o symbolo da fé e da religião catholica. Batei nas faces, mulheres impias. Pedi misericordia a Deus.

— Misericordia! Misericordia! Exclamaram irresistivelmente todas as mulheres presentes.

E suas mãos, ainda quentes dos cannos das armas, flagellaram a modo de impellidas por occulta e fatal força as faces ha pouco afogueadas, agora pallidas, sinão lívidas.

Um dos traços caracteristicos daquelles tempos era a fé cega no padre e na sua doutrina. O sentimento religioso confundia-se com a superstição e della recebia a influencia que ainda em nossos dias alenta no lar do rico e do pobre, do pequeno e do grande crenças deleterias e habitos fatalissimos. D. Damiana, educada no seio da familia catholica, ao paladar da fé antiga—misto de sombra e luz, como a nuvem que no deserto guiava o povo de Israel—sentia-se fraca diante do sacerdote, não obstante ter-se mostrado um momento antes brava, sinão temeraria diante das forças e das armas rebeldes. É que ella estava acostumada a ver no padre o representante de Deus na terra; a considerar suas palavras como sentenças do codigo divino.

Mas o sargento-mór que já não pensava assim, ergueu o clavinote e disparou-o. A bala foi bater nos pés da cruz, e arrancar uma lasca de pedra. No mesmo instante uma fita de sangue vivo escorre do lugar onde a bala deixára profunda e alongada ferida. Viram todos o sangue descer pela pedra. Era o do padre Henrique, cujo corpo cahia traspassado aos pés do cruzeiro.

— Meu Deus, que horror! Exclamou d. Damiana. Estamos perdidos. Deus não ha de ser mais por nós.

E inclinou sobre as mãos, pequenas de mais para occultarem o horror que lhe vinha do intimo, o rosto desfigurado e abatido.

O senhor-de-engenho, como si sua propria obra tivesse excedido a medida da sua intenção, teve por momentos os olhos, pasmos e desvairados, sobre o traço vermelho que descrevêra um como hyeroglipho ou symbolo infernal na pedra secular do symbolo santo.

Nesse momento diziam da rua:

— O tiro, que o matou, veiu do sobrado, onde estão a mulher e as negras do malvado.

— Sim, sim, veiu de cima; veiu.

— Foi a escopeteira que atirou.

— Foi ella, foi ella.

— Morra a escopeteira!

— Morra, morra.

— Ao sobrado, ao sobrado! gritaram os frades em torno do cadáver do jesuita.

— Ao sobrado! respondeu a multidão.

O sobrado foi fortemente atacado, mas á força exterior oppozeram os que estavam dentro nelle heroica resistencia, impossivel de descrever-se.

Nos ultimos momentos os negros dirigidos por Germano, tinham-se batido quaes féras. Promettêra-lhes o sargento-mór a liberdade a todos, e tanto bastou para que os guaribas lutassem como si foram leões.

Mas Germano devia ser punido da sua perfidia. Defendendo a facão e a chuço com os parceiros uma das portas que os invasores tinham logrado romper, elle cahira traspassado de golpes. Com o sangue e a vida resgátara a culpa.

Tanto que considerou perdida a esperança de salvação, o sargento-mór pediu a Filippe Cavalcanti e a Luiz Vidal que puzessem a salvo sua mulher.

— E porque não nos salvaremos todos? inquiriu um delles. Roberto póde resistir com os negros que restam, ainda alguns minutos. Teremos tempo de ganhar a cavallariça. Tomaremos os animaes e ficaremos fóra do alcance dos malvados.

— Desamparar a minha casa seria uma covardia, que eu nunca havia de perdoar-me, disse o sargento-mór. Ide vós. Correi, correi, senhores. Salvai-me Damiana, e não vos importeis comigo. Hei de resistir até á minha derradeira. Talvez que nesse entrementes chegue Cosme.

Mal tinha acabado estas palavras que poderiam considerar-se inspiradas pela intuição do momento final, quando as outras portas que ainda estavam de pé, cahiram debaixo do pezo dos machados e alavancas fortemente vibrados pela turba sedenta de vingança. Na primeira linha dos atacantes viam-se movendo os terriveis instrumentos differentes frades carmelitas, que assim entendiam dever resarcir a perda do jesuita.

A vista desta scena extrema, não havia mais que hesitar. Os dois fidalgos, dois sós, porque João da Cunha ficava embaixo, resistindo ainda, lutando sempre! atiraram-se de escada acima a fim de tentarem a fuga, com a senhora-de-engenho, pelos fundos do sobrado, unica communicação para uns casebres com frente para a Rua-do-meio. Mas qual não foi o seu espanto e tristeza quando se encontraram com as mucamas de d. Damiana que, espavoridas e chorosas, corriam de escada abaixo pedindo soccorro?

Uma malta, não inferior a cincoenta homens, entrando justamente pela parte da casa por onde Felippe e Luiz tencionavam escapar-se, tinha já tomado o andar superior.

— A senhora?! Onde está a senhora?! perguntaram os fidalgos, passados de impaciencia e afflicção indescriptivel.

— Não sei—responde uma das escravas.

— Fugiu, responde outra.

— Trancou-se por dentro em um quarto, —acrescenta a terceira.

— Negras do diabo! exclamou Luiz Vidal.

E atira-se com Felippe, desesperado, agoniado, na direcção que levava. A indignação e o vexame faiscavam-lhes dos olhos. Mas do topo da escada não passaram elles. Parte da multidão veiu ao seu encontro e embargou-lhes o caminho.

— Afastai-vos, miseraveis! gritou Luiz Vidal. Vou a salvar uma dona honrada. Para o lado, villões! Para o lado.

— A quem vás tu salvar, mazombo infame! perguntou-lhe o sujeito que vinha na frente da onda.

Os fidalgos reconheceram o que lhes dirigira este apodo acerbo. Era o Belchior.

— Será a escopeteira? perguntou outro sujeito em quem elles reconheceram Manoel Rodrigues—o taverneiro.

— A escopeteira! A escopeteira! articulou terceiro com ares de mofa. Está nas unhas do nosso commandante, o bravo Antonio Coelho.

Quem assim fallava era o alfaiate Manoel Gaudencio.

Coelho de feito, entrando no sobrado do momento em que de fóra ainda se pedia o coração, a cabeça de d. Damiana em paga da vida do frade, correu á senhora-de-engenho e disse:

— Senhora, senhora minha, si não vos entregais em minhas mãos, mata-vos a multidão!

E dizer-lhe estas palavras foi o mesmo que tomar pela mão a senhora-de-engenho, atravessar com ella por entre o seu proprio sequito, accomodando os mais exaltados e exigentes, com a promessa de que ella pagaria a sua culpa ás justiças, e desapparecer por onde havia entrado na casa do sargento-mór.

Irritados pelo pouco caso e mofa que mostravam os invasores, os fidalgos precipitam-se contra elles, resolutos a abrir caminho por cima de cadaveres. Seus golpes não conseguem mais do que ferir alguns mascates. Accende-se logo prompta e terrivel represalia. Tomam-n'os ás mãos, arrebatam-lhes as armas, descarregam sobre elles pancadas e cutiladas, assacam-lhes mil improperios.

Então já as duas multidões, pondo-se em communicação pela escada, formavam um só corpo, uma como serpente immensa, irrequieta, assanhada, que se esfregava pelas paredes, sacudia-se pelas salas, sumia-se pelos quartos a dentro, penetrando nos pontos mais secretos da casa do fidalgo, emquanto este desarmado, ferido, coberto de baldões, via-se com seus proprios escravos entre os primeiros cabos da força de Luiz Soares, e era apontado por elle, que não occultava a sua satisfação, como o seu primeiro tropheu.

De todas as que estavam na casa de João da Cunha, só uma pessoa pôde escapar-se com sua liberdade. Foi Marcellina, que corrêra, não por fugir, sinão por acompanhar d. Damiana, no momento em que com ella rompia Antonio Coelho por entre os seus partidarios.

— Hei de ir com ella até ao infinito! Dizia a cabocla correndo após a senhora-de-engenho. Não hei de perder de vista a pobre senhora. Meu Deus! Como tudo se mudou!

Mas a Coelho não fazia conta ser acompanhado por essa terrivel testemunha, e cêdo achou um meio de afastal-a de suas pizadas, por mais que a senhora-de-engenho pedisse depois que a deixasse passar. Para penetrar no quintal do sobrado, tinha Coelho feito caminho por um dos casebres que abriam sobre a Rua-do-meio. O mascate estugou os passos, atravessou o casebre, e, quando se achou com sua presa na rua, trancou pelo lado de fóra a porta. Marcellina não era mulher a quem semelhante obstaculo cortasse a carreira em que ia. Mas quando, desimpedida a sahida a poder de esforço e violencia, ella passou da outra banda, Coelho e d. Damiana tinham desapparecido.

— Pobre senhora! exclamou a cabocla em lagrimas. Que não fará com ella o barbaro?

Seriam então oito horas da manhã. O dia, risonho e esplendido, appareceu aos olhos da cabocla como a carranca de um malvado. A viração, que brincava com as folhas dos mamoeiros dos quintaes, soou a seus ouvidos como a ameaça de um assassino, o riso infernal de um demonio.

Marcellina tinha até certo ponto razão deixando formar-se em seu espirito esta illusão mentirosa. Era geral o destroço, lugubre o espectaculo que seus olhos descobriram na rua. Homens de feia catadura passavam carregados dos despojos da noite. Outros agora é que iam a colher os fructos que sabe a pilhagem descobrir no meio do desamparo, e por entre as lagrimas dos afflictos. Dos armazens, onde alguns senhores-de-engenho tinham recolhidos seus assucares, sahiam sujeitos maltrapilhos arrastando saccos e caixas, que deixavam pelas calçadas rastilhos brancos ou amarellados. Varios troços da força de Luiz Soares, tanto que fôra conhecida a victoria, espalhavam-se derribando as portas de novos armazens, invadindo as casas de familias affeiçoadas á nobreza que tinham fugido para pontos desconhecidos, e d'ahi tirando tudo o que tentava sua cubiça e podia aprazer a sua voracidade. Essas hordas passavam impunemente, sem que ninguem se atrevesse a ir ao seu encontro; porque os proprios grupos que na vespera se tinham organizado em favor dos nobres e durante a noite haviam sido em muitos pontos obstaculo ao saque, desfizera-os a noticia de que o sobrado do sargento-mór, que era como a praça-forte dos nobres, fôra tomado pelo partido contrario. A plebe tomára conta da villa e levava por diante a sua obra de destruição e rapina. Emfim o que Marcellina tinha diante dos olhos era o saque em toda sua hediondez—o saque, serpente de vasta guélla e insondavel estomago, que tudo engole, viveres, joias, moveis, roupas, e o que não lhe apraz ingerir, despedaça, destróe, inutiliza, como faz a enchente de um grande rio quando inunda um ponto habitado.

Marcellina vagou sem norte, tendo o juizo em quasi completa confusão, pelas ruas cheias de figuras sinistras, e de vozes e ruidos ingratos. Lembrou-se de Lourenço e de Cosme Bezerra. «Que será feito de meu filho?! Quem sabe o que não lhe terá acontecido? E seu Cosme que foi buscar gente e nunca mais appareceu?»

Estas interrogações tinham resposta facil. Cosme, quando vinha com os poucos trabalhadores e escravos de Jorge Cavalcanti, encontrou-se com o bando de Tunda-Cumbe—aquelle mesmo que saqueara o engenho—Bujary—, e foi batido. Voltou então, com Jorge Cavalcanti, derrotado e ferido. Mas ainda assim dirigira-se ao engenho Jacaré, a fim de ver si decidia o respectivo proprietario, até então indeciso, a tomar o partido da nobreza e a vir em auxilio da villa com sua fabrica e aggregados. Quanto a Lourenço, tendo preenchido a commissão que o levára ao Tanquinho, lembrou-se de correr ao engenho Bujary a fim de chamar a gente que ahi ficára. Mal sabia elle o negro drama de que tinha sido theatro a risonha propriedade de sargento-mór.

Andando sempre sem destino, ora para um lado, ora para o outro, por fugir das turbas revoltas que não cessava, em seu phrenesi, de botar a baixo portas, roubar o que lhe aprazia, despedaçar o que não fallava á sua ambição, quando Marcellina deu acordo de si estava no oitão de uma igreja. Era a da Misericordia. Seriam nove horas. No lugar, com ser deserto, passavam com intervallos, maltas de homens, vociferando, gritando, muitos delles já nos braços da embriaguez.

De repente ella viu vir correndo a marche-marche, pela Rua-das-porteiras, em procura do oitão da igreja, onde ella se sentára, uma longa fileira de soldados, os pés nús, as calças arregaçadas. Capitaneavam-os dous cavalleiros.

— Virgem Maria! exclamou ella tomada de novo horror. Aonde irá isso parar! Goyanna hoje arraza-se, acaba-se de uma vez.

Suppondo que era novo reforço de bandidos, correu a metter-se dentro de um fechado de arbustos que havia a um lado do oitão. A pobre mulher estava possuida de terror. Em todos via inimigos.

Abaixou-se quanto pôde, e nesta posição ficou immovel, quieta, rezando baixinho a Magnificat.

Quando estava nisso, passou por junto da moita o bando sempre a correr. Não fallavam. Pareciam mudos. Todos corriam apressados. Adiante ia um official e atraz outro, acompanhado de um paisano. Estes tres vinham a cavallo.

Subito uma voz soou aos ouvidos da cabocla.

— Veja, seu ajudante. Olhe como corre o povo sôlto lá embaixo.

Estas palavras tinham sido ditas pelo paisano ao militar, apontando o que as dissera para o largo das Portas-de-Roma.

Ellas produziram em Marcellina o effeito de um choque electrico. Tinha reconhecido a voz de Francisco.

Marcellina não se pôde ter mais occulta um só instante. Correu de dentro dos arbustos, gritando:

— Francisco, Francisco, foi Nossa-senhora que te botou por aqui.

Não se póde descrever o prazer que tomou o matuto. Saltar do cavallo abaixo e correr, louco, delirante ao encontro de sua mulher foram actos que elle praticou a modo de impellido por uma mola magica. Apertou-a entre os braços extasiado. Por cima de suas barbas que iam pintando, mas ainda negras, desceram-lhe duas lagrimas nitentes. Sobre seus labios crestados perpassou sorriso de ineffavel contentamento.

— Marcellina, meu amor, que andas fazendo por aqui só, escondida? Estás com mêdo dos mascates, já sei. Ah! Marcellina, Deus se lembrou de mim. Vim fugindo dos facinorosos. Os mascates estão senhores de toda a villa. Seu sargento-mór, tenho que já o mataram. As forças de Luiz Soares atacaram o sobrado e levaram tudo a ferro e a fogo. Nós resistimos, mas por fim não podemos mais, e demos os braços.

— Já sei de tudo, Marcellina. Lá embaixo soubemos logo do que havia. Esta tropa, que estás vendo, vem de Itamaracá por ordem do governo de Olinda para acabar com os mascates. Eu vinha fóra de mim, minha mulher. Nem tu sabes o que fizeram os ladrões, ao passarem pelo Cajueiro.

— Que fizeram eles?

— Queimaram a nossa casa, mulher, a nossa casinha, que nunca lhes fez mal.

— A nossa casinha! Que dizes tu, Francisco? Pois esses endemoniados chegaram a queimar a nossa moradinha de casa? Oh meu Deus! Cada um havia de ter sua parte nessa desgraça geral?! Até o nosso suor havia de pagar pelos males dos outros?! Mas isso não ha de ficar assim. Deus ha de castigar esses malvados, essas féras malfazejas!

— E que novas me dás tu de Lourenço?

— Anda ahi mesmo pela villa com seu Cosme lutando com os mascates. Mas a minha casa, a minha casinha, tão bonitinha! Tudo queimado e destruido! Ah! malvados do inferno! A luz ha de faltar a vocês na hora da morte.

— E as lagrimas arrazaram os olhos de Marcellina, que tinha nas faces pallidez mortal, nos olhos a expressão de profunda e entranhável dôr.

— Não chores, mulher. Foi-se uma, faz-se outra casa.

— E a minha caixa teria ardido tambem?

— Qual caixa?

— A nossa caixa, aquella onde tu guardavas o dinheiro.

— Si não a tiraste antes, ardeu tambem. Tudo lá estava em cinzas.

— Ah Lourenço, lá se foi a tua fortuna. Era na caixa que eu tinha guardado o papel que me deu seu padre Antonio no momento da despedida.

— Que papel era esse?

— Vamos ao Cajueiro, Francisco. Talvez ainda se possa salvar alguma coisa.

— Tem paciencia. Agora não é possivel o que queres. Vou aqui servindo de guia á tropa. Mas se queres ir, vai. Aqui te deixo o cavallo, coitado! que já não pode andar de enfadado. Vê como vás, Marcellina. Si vires alguem que te possa offender, mette-te no mato. Eu hei de dar comtigo onde estiveres.

— Vou direitinho á minha casa. Mas antes que me esqueça, quero dizer-te uma coisa: Vê si podes descobrir sinha d. Damiana que seu Antonio Coelho prendeu e levou comsigo para entregar á justiça. Pobre senhora!

Francisco alcançou logo adiante a tropa, emquanto Marcellina, tendo arregaçado as saias, saltára sobre a cangalha e pozéra o cavallo para traz.

A tropa que Francisco tinha guiado não era sinão uma parte das forças commandadas pelo ajudante-de-tenente.

Tinha este planejado, antes de entrar na villa, formar um como cêrco que avançasse das ruas de fóra para as de dentro, afim de apertar e suffocar a insurreição de modo que ella não tivesse por onde escapar.

Obedecendo a este intuito Gil Ribeiro dividiu as forças em duas columnas, e ficando com a mais forte, entregou o commando da outra ao ajudante Filippe Bandeira com o alferes Carlos Teixeira. Elle fez a sua entrada pelo lado do occidente, e um quarto de hora depois entrava no Pateo-do-Carmo pelo lado do rio. Ao mesmo tempo a columna commandada pelo ajudante Filippe Bandeira, e habilmente encaminhada por Francisco, desembocava ahi pelo Beco-do-limoeiro. As forças inimigas estavam ainda no Pateo-do-Carmo, tendo á sua frente Luiz Soares, Gonçalo Ferreira, e os mais importantes mascates seus parciaes.

João da Cunha, Luiz Vidal e Filippe Cavalcanti, eram conduzidos á cadeia por Jeronymo Paes no momento em que as duas columnas desembocaram no pateo. Elles deviam ficar alli ocupando o lugar dos criminosos que a multidão ainda não tinha podido soltar, em consequencia da tenaz resistencia de Antonio Rabello. A demais nobreza menos Cosme Bezerra, Jorge Cavalcanti e Manoel de Lacerda que já se achavam de volta novamente á villa para bater os invasores, tinha fugido para o mato. Todavia Gil encontrou já uma nova reacção principiada contra os amotinados. Grande numero de cidadãos pacificos, indignados com a scena do saque, tinham-se armado, e começavam a bater os que continuavam a pratical-o. De sorte que, alguns pontos por onde passaram as duas columnas, as receberam com vivas demonstrações de contentamento.

Emfim seriam dez horas da manhã quando o ajudante-de-tenente atacou os revoltosos. O povo é vário, como as ondas. Não foi preciso muito para que operando-se o quasi fatal reviramento logo se declarasse pelos vencidos.

Rompeu vivissimo fogo de uma parte sobre a outra. Mas os matutos bisonhos, cansados, e quasi famintos que constituiam as forças de Luiz Soares, não podiam resistir por muito tempo ás forças frescas, adestradas no manejo das armas e impacientes por darem tremenda lição, que trazia Gil.

Luiz Soares, em pouco tempo convencendo-se de que a sua estrella attingia o occaso, tratou da retirada.

Esta operou-se por dentro do proprio convento do Carmo. Os frades ainda desta vez com as armas nas mãos, protegeram a causa dos estrangeiros.

Mas não foi pequeno o numero dos mortos e feridos que deixavam os que fugiam com medo de sua propria sombra.

No mais acceso do combate, Francisco corrêra a soltar os tres fidalgos que eram conduzidos por um troço dirigido por Jeronymo Paes e seus tres filhos.

— Eu nunca matei ninguem, meus senhores—disse Francisco ao bando. Mas para salvar esses homens, mato e morro; faço tudo, contanto que lhes dê a liberdade.

Miguel ouvindo estas palavras decisivas, partiu contra elle com o facão, e Victor imitou-o. A esse momento estavam já com o matuto algumas pessoas de Goyanna, que descarregaram terriveis golpes sobre os aggressores. Aproveitando a confusão, Francisco consegue chegar-se aos prisioneiros e cortar-lhes as cordas que lhes prendiam os pulsos. A um dá o facão, a outro a arma de fogo. Então elles investem terrivelmente. Pareciam féras soltas das jaulas. Em poucos instantes Jeronymo cahe como morto; tinha sido alvo de golpes tremendos a que não pôde resistir. Os filhos, porém, ainda que feridos levantam o procurador do povo (Jeronymo Paes dava-se esta denominação) e fogem com elle. João da Cunha quer perseguil-os, mas de repente pára, como si o mundo lhe desabára aos pés tanto que ouviu estas vozes de Francisco:

— Seu sargento-mór, os mascates estão vencidos. Mas o principal para nós está ainda por fazer. Sinha d. Damiana...

— E que é feito da senhora d. Damiana?

— Que é feito? Está no poder do principal dos mascates.

— Quem? Antonio Coelho?

— Sim, senhor.

— Oh! Não me digas isto, Francisco. E eu ainda aqui. Vamos, corramos. Mas aonde iremos? Para onde correremos?!

— Para a casa do mascate.

Correram os fidalgos e o matuto como loucos pela rua a fóra. João da Cunha levava o inferno no coração. Aquella triste nova dava-lhe a esgotar as fezes do calix de amargura que bebia desde a vespera. Em toda a sua vida nunca sentira tão profunda, tão desumana dor penetrar-lhe a alma.

Todas as portas, tanto as inferiores como as superiores estavam hermeticamente fechadas. Do lado de dentro o silencio era profundo. Tudo indicava que na casa não havia viva alma.

A João da Cunha, perdido em cogitações e incertezas, só faltava desesperar.

— Meu Deus, meu Deus, que hei de fazer? Onde irei descobrir o infame? Onde irei achar minha infeliz mulher?

Estiveram um momento curtindo silenciosos de pé, a modo de privados do exercicio da razão aquella angustia sem nome.

Subito uma detonação que parecia partir do interior do sobrado, veiu resoar do lado de fora.

— Estão ahi, estão dentro. Matou-a o malvado, exclamou o sargento-mór. Adivinho tudo. Quiz violental-a, ella resistiu e elle matou-a. Mas eu o matarei tambem. Matarei o villão.

Lividos, como cadaveres, atiraram-se á porta que lhes pareceu menos resistente. A coices de arcabuz, conseguem mettel-a dentro. Voam de escadas acima como quatro sombras, quatro espectros phantasticos. A claridade do dia chegava ao interior da casa como luz crepuscular; mas aos olhos delles o que se apresentava eram trevas profundas. Francisco foi o primeiro que abriu uma das portas, e João da Cunha o que se atirou para o interior da casa, que não conhecia. O cheiro da polvora e a nuvem de fumo ainda ondulante, indicaram a direcção que elles deviam tomar. Chegam emfim ao dormitorio do negociante. Uma voz enfraquecida fez ouvir então estas palavras:

— Não me matem, não me matem.

Aos pés do leito havia um vulto sentado e outro estendido.

— Por Nosso-Senhor-Jesus-Christo, não acabem comigo.

— Quem és tu, miseravel? Perguntou o sargento-mór.

Era Bartholomeu o barcaceiro.

Contou tudo. Tinha estado na vespera com o negociante. Tinha concertado esperar por elle na Borboleta; mas tendo visto os dobrões que o negociante inadvertidamente lhe mostrara projectou logo apossar-se delles furtivamente. Esteve na barcaça até a hora em que a sorte pareceu ser pelas armas dos mascates; mas tanto que soube da entrada da tropa do governo, correu ao sobrado, calculando que Coelho seria morto, ou ao menos preso. Chegando ahi, fechou-se por dentro para afastar qualquer suspeita, e forçou a burra. Quando a tampa cedeu á violencia, um tiro partio de dentro, e o ferio acima do ventre. Era o tiro que elles tinham ouvido. Em vão procurou o dinheiro que o tinha tentado. O que encontrou foi uma pistola presa ao cofre por occulto apparelho, ali posto intencionalmente para a fazer disparar sobre quem o violasse.

— E a Borboleta?

— Deve de estar ainda no porto á minha espera. Os quatro amigos atiraram-se immediatamente fóra do aposento e ganharam a rua em violenta carreira para o porto.

A enormidade e a imminencia do perigo abateram o grande animo da senhora-de-engenho, a qual, percebendo levantar-se diante de seus olhos o vulto horripilante da morte, não escolheu meios de fugir a esta funebre visão, e deixou-se arrastar sem resistencia e como sem consciencia pelo mercador.

De feito ella ouvira centenas de vozes pedir do lado de fóra a sua cabeça em resgate do crime, que fôra aliás praticado por seu marido; vira a casa tomada pelos amotinados, resolutos a não terem para ninguem, e muito menos para ella, si não fosse o negociante, a menor contemplação; conhecera emfim que sua vida, posto que á sombra da protecção delle, não se podia considerar ainda de todo segura. Então não hesitou, não refletiu. Pegou da mão que se lhe estendia. O instinto da propria conservação impõe-se como uma fatalidade. D. Damiana não podia mostrar-se superior a essa lei absoluta e impreterivel.

Para Coelho a crise tinha chegado á solução natural e unica. João da Cunha, uma vez nas mãos dos inimigos, não haveria sahir dellas com vida. E o homicidio, previsto pelo mercador, não esteve longe de ser commettido nos primeiros momentos depois da prisão do senhor-de-engenho; mas interpoz-se uma circumstancia, menos filha do acaso do que da clemencia com que o ceo quiz vir a seu soccorro. Os filhos de Jeronymo Paes assentaram não lhe tirar a vida sinão depois de perdida a esperança de um resgate em dinheiro, por então muito em voga.

Coelho não pensou mais senão em effectuar a sua viagem para o Recife. Ahi esperaria a ultima palavra dos acontecimentos, que para elle não era duvidosa. Ahi realizaria o seu sonho. Mas para que este resultado não estivesse sujeito ao minimo contraste, urgia deixar Goyanna. Demais as turbas achavam-se exacerbadas e podiam ter o capricho feroz de preencher a sua vingança derramando o sangue da infeliz senhora. Emfim, apresentando-se todas estas idéas ao espirito do negociante, correu elle á casa, metteu em si todo o ouro que tinha em segredo no cofre, e dizendo a d. Damiana que a ia recolher em lugar onde o povo não podesse suspeitar seu homizio, encaminhou-se com ella em direitura para a Rua-do-rio.

D. Damiana não votava desaffeição a Coelho. Elle tinha sido, por assim escrevermos, seu companheiro de infancia, e tanto bastava para que a seus olhos o jovem europeu não apparecesse sinão como um amigo, ou um irmão. É verdade que mais tarde distancia maior se estendera entre elles dois, filha da desigualdade de condição que naquelles tempos tanto predominava nas relações sociais e de familia. Mas as tradições da primeira idade, que, como os hieroglyphos dos egypcios e os caracteres cuneifórmes dos persas, que tem atravessado as eras e dizem idéas tão duradouras como as pedras em que existem entalhados, não se apagam, sinão com a morte, da imaginação ou, melhor, do coração onde se gravaram e donde dizem a todo tempo a sua muda e eloquente linguagem, essas tradições extinctas e sempre vivas prendiam irresistivelmente a gentil senhora-de-engenho, pelo passado, ao jovem portuguez, como na escriptura commum, o traço de união liga o verbo com o pronome, e de duas vozes differentes faz uma só.

Em sua consciencia mais de uma vez protestou contra certas manifestações do desdem de João da Cunha, para com o negociante; e, comquanto melhor do que ninguem ajuizasse da profundeza do abysmo que entre elles cavára a fatalidade, nem por isso negava a Coelho certas attenções, aquellas que, pela propria fidalguia dos seus sentimentos, entendia que devia ter para o antigo amigo da casa. Nunca deixou sem retribuição os comprimentos e as saudações do mercador, nem lhe recusou falas respeitosas, por occasião de se encontrarem. Seu natural espirito de justiça levava-a até a justificar os profundos ressentimentos de Coelho, quando comprehendeu a verdadeira causa delles. «Elle cuidava—dizia d. Damiana comsigo mesma—elle cuidava que poderia casar comigo. Julgava que, tendo entrada em nossas relações, estava habilitado para prender-se á familia por laços que só o parentesco e a igualdade de condição podem crear»

Taes eram as idéas e os sentimentos de d. Damiana. Por isso, sentindo a gravidade do momento, ella não escrupulisou acompanhar o negociante, unica taboa de salvação que nos cruzados mares da subita adversidade lhe apparecia como instrumento do céo.

E antes de passarmos adiante, justo é que deixemos bem claro este ponto essencial da presente narrativa: Coelho não era indigno da confiança que, por força das circumstancias actuaes, ou por influencia irresistivel de circumstancias anteriores e remotas, depositou nelle a jovem fidalga. O amor, que elle lhe consagrava, era sublime e puro; tinha origem immediata no sentimento, não nos sentidos. O portuguez estava na flôr dos annos, e seu caracter não se tinha polluido ainda no trato das relações sociaes. Nessa epoca da vida e com esta circumstancia, o amor é mais do que um sentimento, é uma virtude. Tende sempre a elevar-se, e nunca a rebaixar-se. O negociante amava em d. Damiana um ente, uma creatura, um composto de qualidades corporaes e immateriaes, não unicamente uma feitura plástica, uma fórma physica, não obstante se acharem colligidas nessa fórma todas as perfeições que elle sonhava para o seu ideal. Sua aspiração não se limitava á posse do olhar, do sorriso, do carinho dessa creatura; elle aspirava, não menos do que a isto, ás suas perfeições morais, á parte immaterial da pessoa humana, a essa porção do ser que não é a figura corporal, o arredondado dos contornos, o donaire da talhe, o avelludado da face e da mão, o colorido da cutis, a vibração da voz, mas, mostrando-se intimamente ligada com todas estas prendas não se confunde com ellas, e sem se deixar ver, porque não é visivel, deixa-se adivinhar, conhecer, sentir na bondade, na dedicação, na conformidade com o sentir da pessoa que lhe é identica nas inclinações, nos gostos, no estado espiritual que lhes é commum.

Certamente elle imaginava ser feliz ao lado dessa existencia selecta, dessa alma que constituia a essencia dos seus desejos, das suas vaidades, do seu nobre orgulho; mas essa felicidade elle nunca a imaginou de outra fórma. Por isso, tanto que viu entre suas mãos o thesouro longamente appetecido, a unica idéa que lhe passou pela mente foi a de que cessára emfim o seu tormento e começára, pelo gozo dos bens sonhados, o resgate dos males curtidos; a idéa de, prevalecendo-se das circumstancias, sujeitar o ente querido e alcançado ao papel de instrumento de paixões menos dignas, essa elle não a teve então, porque não a tivera nunca. No coração do jovem portuguez havia o affecto generoso do amante, não os ardores animaes do barregão.

Cortando pelas ruas exteriores, dando rodeios, atravessando beccos desertos, Coelho chegou com a senhora-de-engenho ao embarcadouro. A Borboleta era a unica embarcação surta no rio.

Como a revolta se concentrára, deste lado a villa apparecia quasi deserta. O dia estava em seu começo, mas assim as casas de morada como as de negocio mostravam-se fechadas; e só por intervallos passavam pela frente dellas os magotes, que andavam exercitando o ignobil officio da rapina.

— Vamos embarcar, senhora—disse Coelho, descendo a margem, onde então se viam grandes mangues de basta e estendida folhagem.

— Embarcar? inquiriu a senhora-de-engenho, não sem sorpreza. Embarcar para onde, sr. Coelho?

— Senhora, o momento é grave, e não me dá lugar a reflectir sobre a escolha do porto de salvamento. Correremos á mercê das aguas e dos ventos, e, uma vez longe dos perigos que vos ameaçam, pensaremos então com serenidade sobre esse objecto.

— Que estais dizendo? tornou d. Damiana, maís pallida, e por ventura mais abalada do que estava antes.

Talvez só nesse momento a sua desgraça se lhe desenhou tal qual era na imaginação, até então tolhida e obscurecida pelo terror que, por mais proximo da morte devera ser maior e mais intenso.

— Tencionais então levar-me para fora de Goyanna? perguntou ella, com trémula e quasi chorosa voz.

— Certamente, minha senhora, certamente. Goyanna neste momento tem para vós sentimentos de madrasta, não de mãe. Não ouvis aquelles tiros, aquelles ruidos sinistros, aquelle vozeiar confuso e medonho? Elles indicam que o povo é o triumphador, que os mascates estão senhores da villa...

— Já sei, já sei tudo isto—interrompeu ella freneticamente.

— Pois bem. O povo é exigente, e vinga-se neste momento dos nobres. Vosso marido, senhora minha, deve já ter acabado ás mãos dos populares. — Pois si elle acabou, acabarei tambem eu—disse a senhor-de-engenho soluçando.

— Não, isso nunca. Já não pertenceis nem a vos, nem a elle, observou Coelho.

— E a quem pertenço então? perguntou ella com altivez.

— O destino confiou de mim a vossa guarda, e hei de salvar-vos, ainda que a troco do meu sangue.

— Sem meu marido, senhor, não quero a vida.

— Senhora d. Damiana! exclamou Coelho com entranhavel amargura que lhe estalara nos labios como si fora vesicula de fel.

— É o que vos digo, Sr. Coelho—repetiu a gentil senhora com a firmeza que indica as profundas convicções. Só agora, continuou ella, só agora comprehendo todo o horror da minha situação. Porque fugi eu? Porque não me deixei matar pelo povo, ao lado de meu marido?

— Porque a sorte tinha já assentado que vós devieis sobreviver a elle, talvez para completar uma existencia que vegeta entre as luzes e as sombras do mundo, sem experimentar outras impressões que não sejam as que as sombras, não as luzes, despertam — respondeu o jovem negociante em tom sentido. Mas para que fallais ainda—continuou logo, como quem se reanimava ao calor de uma inspiração subita—para que fallais ainda em uma existencia que já deve pertencer ao passado? A esta hora, senhora minha, deveis estar viuva, isto é livre...

— Sois cruel, sr. Coelho! —retorquiu com voz amargurada a mulher do sargento-mór. Porque trazeis ao meu espirito este funebre pensamento? Houve um momento na minha vida em que cheguei a suppôr que em vosso coração existia um sentimento fidalgo.

— Que quereis dizer, sra. d. Damiana? interrogou o negociante.

— Que pensei que não obstante o rancor que tendes ao sr. João da Cunha, e que vós explicais attribuindo-o á contrariedade de certo affecto que vos inspirei, não hesitarieis um só momento em salvardes do acabamento o objecto desse rancor, si a salvação dependesse de vós e eu vol-a lembrasse com as lagrimas nos olhos, como agora faço. Vejo, porém, sr. Coelho, que o vosso odio é maior do que o vosso amor, e que só a minha desgraça, esta sim não tem medida nem limite na terra.

— Pensaveis então, senhora... —retrucou o portuguez—Que pensaveis vós? Dizei francamente a vossa idéa.

— Ah! Quereis ouvir-me? Pois bem, senhor, escutai. O que eu pensava era muito natural, e não era improprio de vós nem de mim. Pensava que, em vez dos sentimentos ferozes que tendes mais de uma vez manifestado, deverieis ter para meu marido antes benevolencia e attenções respeitosas.

— Esqueceis, sra. d. Damiana, que nenhum homem, que se prezasse dignamente, beijaria jamais a mão do algoz que lhe houvesse afogado as mais caras esperanças, que lhe tivesse destruido uma felicidade irreparavel.

— Vós é que esqueceis, Sr. Coelho, o passado que devieis ter bem presente na memoria. A meu marido deveis não a desgraça, mas a posição de que soubestes fazer-vos digno. Sua mão generosa e amiga indicou-vos o caminho para a vossa independencia. Por muito tempo não tivestes nesta villa outra protecção, outro amparo, outro pai além de João da Cunha. A vossa entrada nas primeiras casas, a estima que para vós tiveram os mais ricos e os mais nobres de Goyanna, a quem as devestes principalmente, sr. Coelho, quando ereis sem relações, sem nome, e sem haveres? Não vos lembro estas causas por magoar-vos, mas por ver si desperto em vosso coração o nobre sentimento que sempre conheci em vós antes do fatal desastre que levantou uma muralha entre vós e meu marido—o sentimento da gratidão.

— Sra. d. Damiana, vossas palavras trazem-me terror e confusão, disse o jovem europeu, a modo de atordoado.

Seu espirito nadava em um mar de hesitações.

— Que esse sentimento acorde emfim, senhor. É talvez tempo ainda de produzir sua acção consoladora. Não vos importeis comigo, importai-vos com o homem que um dia vos tratou como se fosseis seu filho. Correi e livral-o do furor dos vossos parciaes. Porque tanto odio? Porque tanta vingança?

Não pode continuar este singular dialogo, que promettia chegar a um desenlace talvez pathetico e imprevisto. Bem perto dos dois interlocutores soaram vozes confusas e retintim de armas. O chão estremeceu, batido por um sem-numero de pés que precipitada carreira movia em direitura ao rio.

Afigurou-se então aos fugitivos uma visão sinistra, um desfecho medonho.

— É o povo que vem em vossa procura, sra. d. Damiana. Não percamos um só momento. Salvai-vos, senhora, salvai-vos emquanto é tempo.

Elles tinham chegado ao pé de uma das arvores que da margem estendiam sua grande copa sobre o rio. Perto desta arvore levantava-se um armazem, feito de taboas onde se fazia o embarque dos assucares, e o desembarque dos generos importados pelas barcaças, quando a maré estava cheia e ellas podiam ficar ao nivel da estiva do armazem, do lado que entrava pelo rio sobre solidas estacas. Nesse momento a maré cheia dava ao rio a sua natural plenitude, e a Borboleta, librando-se sobre as aguas banzeiras que accusavam a aproximação da preamar, estava em communicação com o tosco trapiche por meio de uma prancha que para elle partia do embono de bombordo.

Coelho, sem perder mais um instante, arrastou d. Damiana contra a vontade della para dentro do armazem, e, todo preoccupações e temores pela sua salvação indicou-lhe a Borboleta, que apparecia no fim da estiva:

— Correi, senhora, entrai na barcaça, mandai atirar dentro da agua a prancha, e ordenai, em meu nome, que sigam incontinente rio abaixo. Nada temais, que elles d'aqui não hão de passar. Contel-os-hei.

Disse, e retrocedeu acceso em brio, mas pallido como um cadaver. Seu olhar fuzilava. Os musculos, obedecendo ás impressões nervosas, experimentavam subitos estremecimentos. A terra parecia fugir-lhe sob os pés, ao mesmo tempo pesados e céleres.

— Meus amigos—gritou elle, alguns passos distante do trapiche, dirigindo-se ao magote que vinha para seu lado, até onde quereis levar o vosso desforço? A lição satisfaz. A nobreza está vencida em Goyanna. Tratemos agora de ir vencel-a no seu reducto principal—em Olinda. Não percamos tempo.

Então do bando que corria, com as armas nuas reluzindo ao sol, um grito partiu, e não foi preciso mais, ouvindo-o, para que o chefe dos mascates comprehendesse que se enganára e que seus dias, esses, sim, estavam contados.

— Ainda fallas, mascate infame?!

Seguiu-se uma scena, só propria de cannibaes mas que os excessos das paixões humanas estão reproduzindo todos os dias, ainda nos centros da mais adiantada civilização. Varios soldados da tropa que chegára, e que se haviam reunido aos fidalgos e a Francisco ao saberem que elles vinham em demanda do negociante, de catanas desembainhadas se atiram sobre elle e covardemente o degolam. [1]

Ao darem de face com este repugnante espectaculo, os fidalgos estacam horrorizados. Só um deles, a cabo de um momento de confusão, que se diria antes remorso pôde proferir estas palavras:

— E minha mulher? Onde está ela? Onde está a senhora d. Damiana?

— Na Borboleta—lembrou Luiz Vidal. Corramos.

Mas eis que perto delles sôa um grito, que não só traz a tranquilidade, mas descommunal prazer ao espirito de todos.

— Aqui estou, minha gente. E vós salvo, sr. João da Cunha! Foi Nossa-senhora-do-rozario quem vos salvou.

Os fidalgos apertaram em seus braços a senhora-de-engenho, a cujo encontro fôra Francisco o primeiro que corrêra.

— Em poucas horas tudo estará acabado e pacificado—exclamou o sargento-mór. Os mascates serão vencidos, os populares hão de ter uma rude lição.

— E até os frades tambem hão de ter a sua, para não serem tão audazes e mettidos nas coisas do mundo—acrescentou Luiz Vidal.

— E Antonio Coelho? interrogou d. Damiana, que ainda ignorava o tragico fim do negociante.

— Deste estamos livres. Eil-o alli morto, degollado—respondeu o sargento-mór, apontando para o cadaver que a poucos passos se mostrava rodeiado pela mó de soldados, agora occupados em apanhar o ouro, que, na occasião de cahir, se lhe entornara das algibeiras.

— Morto! Morto! Fostes crueis, senhores! Exclamou como allucinada a senhora-de-engenho. Quem praticou tamanho latrocinio? Oh meu Deus! Que horror!

— Não foi nenhum de nós—responderam Francisco e Filippe ao mesmo tempo.

— Não foi nenhum de nós, repetiu o sargento-mór, fitando na mulher seu olhar inflammado e a modo de pasmo. Mas eu o mataria, si fosse eu o primeiro a encontral-o. Era um espirito damnado.

— Engana-vos. Era uma alma generosa, um bom coração; era um martyr—respondeu d. Damiana em lagrimas. Elle ia a salvar-vos, sr. João da Cunha, suppondo em perigo a vossa vida. Oh! meu Deus, por que razão as grandes creaturas não se hão de entender melhor e formar uma companhia só na terra? Mas fujamos daqui. Não posso ter os olhos nesta desgraça que me esmaga.

E a senhora-de-engenho foi a primeira que deu o exemplo da retirada.

Era tempo de se ausentarem todos desse ponto deserto, porque Luiz Soares, batido fortemente pelo ajudante-de-tenente Gil Ribeiro, pelo ajudante Felippe Bandeira e pelo capitão Antonio Rabello, demandava esse lado para escapulir-se com sua gente. Conseguiu-o, com mais quinhentos, entre parahybanos e portuguezes.

Emfim, segundo annunciara o sargento-mór, algumas horas depois Goyanna estava pacificada.

Mas era contristador o aspecto que apresentava, como facilmente se imagina. O saque tinha deixado nas casas vestigios profundos de sua passagem fecunda em ruinas e desastres. O sangue manchava a terra, berço de tantos heróes illustres e afamados. No Pateo-do-Carmo, de mistura com varios cadaveres pertencentes aos invasores viam-se alguns das forças legaes, e muitos da escravatura de João da Cunha.

Jeronymo Paes, os filhos, Belchior, e outros preeminentes vultos do partido vencido tinham sido presos, e d'ahi a tres dias seguiam para Olinda, no meio da tropa victoriosa de Gil Ribeiro. Paes, mal podia comsigo. Recebera durante a luta nove tiros, e innumeraveis cutiladas na cabeça. [2]

Conta-se que, por occasião de lhe darem na prisão a noticia da morte de Coelho, dissera elle o seguinte, formaes palavras:

— Si desta não morrer, hei de vingar-me ainda de João da Cunha. O que elle devia a Antonio Coelho ha de pagar a mim quando tivermos de ajustar as nossas contas. Estão muito anchos com o successo esses infames mazombos. Já pensam que os mascates se acabaram de uma vez. Estão enganados. Hei de ver ainda João da Cunha e Cosme Bezerra correrem as ruas de Goyanna, amarrados com cordas pelas minhas mãos como si fossem negros fugidos.

Estas palavras foram propheticas. Mas não antecipemos acontecimentos que tem lugar proprio na continuação desta historia.

Diz-se que Zefinha falleceu a cabo de algumas semanas depois do lastimoso fim de Antomio Coelho, e da prisão do pae e dos irmãos. Attribuem seu fallecimento á profunda impressão que produziram nella tão estranhos e crueis golpes.

Porque não havia de ser assim?

Era uma excellente alma a rapariga.

Notas do autor

[editar]
  1. Historico.
  2. Historico.

Lourenço tinha tirado para o engenho á desfilada, e antes de chegar ahi nuvens de fumo já lhe tinham indicado o que elle suspeitava pelo que fôra vendo ao sahir da villa. Em seu trajeto do Cajueiro para esta, os bandoleiros de Pedro de Lima tinham posto fogo nos cannaviaes, e casas fechadas ou desamparadas, que ardiam agora como si a terra por alli, na combustão primitiva, lhes houvesse communicado o incendio.

— Não ha que duvidar—disse o rapaz. Andaram por aqui os ladrões. Estiveram no engenho, e quem sabe o que por lá fizeram?

Como tinham cortado quasi por dentro do mato os bandoleiros, pôde o rapaz chegar ao Cajueiro sem com elles se encontrar; e cêdo testemunhou com seus proprios olhos dando de face com a casa de Victorino, o estrago, o desbarato, as ruinas, que ahi deixára a horda sem freio.

Das portas algumas tinham sido arrancadas, outras postas por terra. Só as janellas estavam nos seus lugares.

Lourenço não pôde fugir de entrar, não obstante sua pressa em chegar á casa grande. O estado interior da habitação do almocreve não era mais animador do que o seu estado exterior. Tamborêtes, caixas de madeira, giráos de varas, potes, estavam despedaçados e destruidos. Lia-se ali só perversidade, porque nesses moveis e vasilhas ninguem suspeitava a existencia de objectos que podessem tentar a cobiça, e explicar até certo ponto a sua violação ou arrombamento.

— E para onde teriam fugido as mulheres? inquiriu de si para si o matuto.

Ao montar de novo, o espirito cheio de pezar e incertezas, lançou Lourenço as vistas casualmente ao chiqueiro onde Joaquina tinha o cevado, que devia dar uma fartadella á familia dia de S. Thomé. A sangueira, que cobria o chão desde o chiqueiro até á meia-agua de palha a cuja sombra as mulheres lavavam a sua roupa, fazia certo que o cevado passára pela execução capital antes do dia aprazado, e que se tinham aproveitado delle, não a familia, que devia encher de alegrias, mas os salteadores e assassinos. O banco de lavar roupa coberto de sangue, e aos pés delle uns restos de palha queimada indicavam que alli mesmo se praticara o cruento sacrificio.

Triste e colerico ao mesmo tempo, Lourenço proseguiu o caminho.

Adiante appareceu-lhe a casa de Manoel das Dores, matuto muito pegado com Victorino, de quem se dizia contra-parente. Este sujeito era solteirão do lugar. Vivia muito mettido comsigo mesmo, e só uma vez ou outra surdia sem ser esperado em casa dos vizinhos.

Ainda de longe o rapaz reconheceu que por alli passára tambem o devastador soão. As portas, ás escancaras, deixavam á mostra a destruição effectuada dentro. Não havia ficado ahi pedra sobre pedra. Pela estreita sala viam-se espalhadas esteiras e roupas velhas. O chão fóra revolvido á ponta de espada ou de ferro-de-cova. Praticando assim, os salteadores deixavam manifesta a sua intenção. Tinham procurado dar com o mealheiro em que se dizia guardava o velho a pratinha que podia ajuntar.

— Oh meu Deus! Não vejo ninguem. Onde se meteu esse povo? Nem morador nem negro do engenho! Parece que todos fugiram para o mato com medo dos ladrões.

Estas palavras escaparam dos labios de Lourenço como uma dor que não cabia no coração.

Adiante da casa do velhote, era a de Sabino, em cuja companhia morava Saturnino. Do lado de fóra, ao pé da porta da frente, via-se um volume immovel, no meio de uma poça de sangue, por cima do qual esvoaçava um enxame de moscas. Era o cão de Sabino, que por ser fiel defensor da morada de seu senhor, e ter feito fortes e repetidas investidas sobre os assaltantes, para impedir que entrassem, recebera uma bala, que o deixou por terra, com a cabeça aberta e a lingua a nadar sobre sanguinolento escumeiro.

Começou a impressionar-se Lourenço com esta solidão, este deserto cruel em que só se lhe deparavam indicios de atrocidades e carnificinas, de fraqueza e terror.

Tinha já descoberto o oitão da casa grande e ia passar para ella por entre a capella e o pomar, quando um vulto se lhe apresenta do lado dos cannaviaes. Affirmando a vista, reconheceu Marianninha.

Correu para ella tomado de subita alegria. As antigas reservas e aborrecimentos não lhe lembraram nesse momento. A presença da moça fora como um raio de luz que atravessara as densas sombras que enchiam o espirito do rapaz.

— Você por aqui, Marianninha?! Estou cansado de ver solidão, estragos e sangue. Onde está sua gente? Não ouço nenhum rumor, nem vejo ninguem na casa grande. Que quer dizer isto?

A primeira resposta da moça foram as lagrimas. Depois, em rapidas palavras ella contou toda a desgraça, ou antes a serie de desgraças de que o engenho fôra theatro momentos antes.

Ouvindo a funebre narração, Lourenço não soube o que dizer por alguns instantes. Ficou a modo de privado do uso da razão. O pezar, a colera, o desejo de vingar-se o tiveram entre o idiotismo e a loucura. O estado melindroso de suas faculdades augmentou ainda mais quando elle soube que no engenho não havia ninguem com quem contar para ir em soccorro dos que estavam precisando delle na villa. Alguns corpos sem vida era só o que restava das forças que tinham ficado para defeza da casa grande. Os negros que no combate não tinham cahido mortos ou feridos, esses haviam fugido para o mato, determinados a não voltarem segunda vez para a escravidão.

— Para contar o acontecido, Marianninha parára ao pé da ingazeira centenaria que se levantava de um dos lados do caminho, e que com outras formavam uma como galeria por cima do braço de rio que cortava por dentro do cercado. Foi ahi na sombra e no retiro, que davam mais solemnidade ás suas palavras, mais gravidade a seus prantos, que ella desfiou o rosario dos episodios de que tinha conhecimento. Quando chegou ao da morte de Victorino a pobre rapariga entrou a chorar como louca.

— Vamos para fóra, Marianninha, disse Lourenço, vencendo a custo sua commoção. Quero ver sua mãe.

— Vamos, sim, disse a moça. Eu tinha vindo em busca de Saturnino para ajudar minha mãi...

— Ajudal-a a que...?

— Você vai já saber, Lourenço—respondeu a moça, deixando-se banhar cada vez mais em suas afflictas lagrimas. Do lado de fora da galeria, á luz livre da manhã, luz graciosa e tepida que parecia um sorriso de noiva, luz que patenteava os minimos accidentes da natureza, pôde Lourenço ver melhor Marianninha.

Trazia ella os cabellos revoltos, avermelhados os olhos do muito chorar, crestada a macia pellucia das faces, que não obstante mais accesas se mostravam de natural rubor. Mas esses olhos, postoque chorosos, tristes e affligidos, eram ainda tão matadores, tão ternos, que parecia concentrarem em si toda a suavissima belleza, esparzida pelas varzeas, pelos valles distantes, na luz que cahia do céo como chuva de ouro, nas fluctuações da folhagem, na frescura das vastas sombras, atiradas como leitos de paz e tranquilidade no meio da solidão rica de esplendores e cantos.

Entraram na capella pela portinha da sacristia.

Ao penetrar na estreita e sombria nave, o espectaculo, que a Lourenço se mostrou, foi o seguinte:

No meio da igreja, ao lado de um monte de terra fresca, jazia um cadaver; era o de Victorino. Entre esse cadaver e o monte uma mulher tirava do chão onde estava abrindo uma cova, pás de terra, que atirava sobre a que havia fóra. Era Joaquina.

Lourenço quasi a não conheceu, tão demudado estava o resto da infeliz. A dor envelhecera-a em poucas horas. A dor tem mais violencia e rapidez na sua obra do que o proprio tempo.

Joaquina só se deixava ver da cintura para cima. A outra parte do corpo estava mettida na cova. Os cabellos, em sua maior parte embranquecidos pelas necessidades usuaes da vida do pobre, e agora pelo sopro da adversidade que lhe enregelára os ultimos alentos, cahindo sobre as faces murchadas e macilentas, davam-lhe uma feição que gerava vexame em quem a via.

Sem dizer uma palavra siquer Lourenço que aprendera de Marcellina a ter para os cadaveres pias demonstrações, ajoelhou-se aos pés do corpo de Victorino, rezou em silencio sua oração, e, erguendo-se, aproximou-se de Joaquina, tomou-lhe a pá das mãos e poz-se em lugar della a proseguir o ultimo trabalho que o morto exigia dos vivos na terra. A mãi e a filha, mudas e taciturnas, acompanharam com suas lagrimas as que o rapaz verteu, abrindo o leito final do seu vizinho, amigo de seu pae e quasi seu parente a quem votava estima e prestava respeito.

Chegou em fim o momento de ser entregue á sepultura o corpo do finado. O pranto das mulheres redobrou. Marianninha fazia exclamações de cortar o coração. Joaquina carpia-se inconsolavel, envolvendo com o nome do marido o da filha mais velha que lhe fôra arrebatada momentos antes da perda do primeiro. A mão tremula, o braço hesitante, começou Lourenço a impellir para dentro da cova, depois de se haver sumido nella para sempre o seu mudo habitador, com a pá que lhe pezava como barra de ferro, a terra acumulada nas bordas. A tristeza era profunda, solemne o momento, indescriptivel o espectaculo.

— Que será de mim sem meu marido? exclamou Joaquina soluçando.

— Que será de mim sem meu pai? accrescentou Marianninha, desfazendo-se em lagrimas e suspiros.

Lourenço tinha posto na cova a ultima pá de terra. Sua mão descahira sobre o cabo do instrumento.

Por impulso irresistivel de espirito, elle voltou-se para as mulheres, ouvindo aquellas palavras, e disse-lhes:

— E onde estão os outros filhos de Deus? Onde está meu pai? Onde está minha mãi? Onde estou eu? Deus é Deus em toda a parte, e quando tira um arrimo ao necessitado, já tem posto outro diante dos olhos delle.

Ouvindo estas palavras, Marianninha sentiu descer-lhe ao intimo do coração um como balsamo reparador e divino. Ergueu os olhos ao rapaz. Estavam inundados de um clarão suave. Havia alli talvez um agradecimento que lhe dirigia pela doce esperança que, depois de tantas contrariedades, penas e agonias, muitas dellas occasionadas por elle proprio, resurgia agora, posto que banhada em prantos, no solo crestado, que de repente se tornava fresco e fecundo ao calor dessa bemdita consolação.

Nesse momento ouviram bater a porteira do engenho, e logo após o estrepito das pisadas de um animal que corria á toda a brida. Lourenço lança-se á porta da igreja a fim de ver quem era o cavalleiro e dá com os olhos em Marcellina.

O conforto no coração de Joaquina e de Marianninha augmentou com a chegada da cabocla, e especialmente depois que souberam que Francisco estava na villa, e que os mascates naquelle momento deviam ter já perdido a mão.

Lourenço quiz voltar immediatamente a Goyanna, mas Marcellina não consentiu que o fizesse, dizendo-lhe que em pouco tempo Francisco se acharia com elles.

De feito não se metteram duas horas que o matuto se reuniu á familia, trazendo a importante nova da victoria. Para Marianninha a victoria maior foi a que o matuto exprimiu nestas palavras:

— Não chores, Marianninha. Perdeste teu pai, mas alli tens teu marido.

E indicou Lourenço que, com os olhos pregados na imagem do Crucificado, se mostrava nesse momento diante do altar, inteiramente alheio ao que se fallava a seu lado.

Eis em que estava absorvido o rapaz.

Quando viéra de Goyanna horas antes, encontrára cahido entre a casa de Victorino e a de Manoel das Dores um bandoleiro do Pedro de Lima á sombra de uma arvore. O malfeitor tinha passado a noite em claro, e na adega do senhor-de-engenho fôra dos que mais entraram pelo vinho generoso, o qual, dando-lhe na fraqueza, o impossibilitou para preencher o seu officio naquelle dia. Em uma das mãos tinha ainda um sacco, de que marejava sangue.

Lourenço saltou do cavallo abaixo, tirou o sacco das mãos do dono que estava resomnando, e abriu-o para ver o que continha. Era a cabeça do cevado de Joaquina, com que o salteador tencionava augmentar o almoço que por elles devia estar esperando, segundo calculava, em casa de Coelho ou de Paes.

Teve então o rapaz a idéa de tomar uma vingança original. Com cordas do seu cavallo suspendeu por baixo dos braços o bandido ao alto da arvore. Ligou um pé ao outro, para que não tivesse meios de passar as pernas no tronco, e desprender os braços que atou pelos pulsos na altura da cabeça da victima, porém affastados. Emfim o todo figurava uma crucificação.

Planejava Lourenço queimar vivo o infeliz. Além de ser de seu natural máo, acabava de ver os males trazidos pela horda, de que o malfeitor fazia parte, á inoffensiva propriedade de pessoas de seu conhecimento e estima. Apanhára-o mesmo com o roubo na mão, praticado na casa a que mais se sentia preso por gratos élos dentre todas as casas das vizinhanças. Emfim, vinha da villa trazendo o coração repleto de fel e chamma pelo que ahi faziam desde a noite anterior os companheiros do malfeitor. Por tudo isso não hesitou em levar a effeito a abominavel inspiração do seu odio e da sua maldade. Quem o visse então, o acharia outro do que era. A brandura de coração, obra de Marcellina, tinha cedido o lugar, que não era ainda exclusiva propriedade sua, á paixão animal, que o acompanhava do berço. A educação póde muito, quando ajudada de muitas lições e exemplos e ao cabo de tempo bastante a converter, pelo processo que em physiologia é ainda um mysterio, o espinho original em rosa filha do artificio, da delicadeza e da perseverança.

Como tinha pressa, Lourenço deixára ahi bem segura a sua presa calculando sujeital-a ao repugnante supplicio depois de vencidos os inimigos.

Agora, porém, casualmente erguendo as vistas ao crucificado lembrára-lhe a crucificação, de que um momento o tinham feito esquecer-se os ultimos acontecimentos.

Francisco aproximou-se do rapaz, bateu-lhe no hombro e perguntou-lhe a causa do seu enleio.

— Vosmecê não viu suspenso na gameleira do caminho o cabra que matou o porco de sinha Joaquina? tornou elle.

— Vi, sim. Sabes quem era? Leonardo, sobrinho de Gonçalo Ferreira. Quem foi que lhe fez aquella crueldade? Coitado! Por um pouquinho não morreu.

— Pois eu estava agora mesmo pensando em ir acabar de matar aquelle ladrão, aquelle assassino.

— Quem? Tu, Lourenço?

— Eu mesmo, sim senhor.

— Não digas isto. Estás já um homem e deves pensar melhor. Até onde quererás levar o teu máo natural?

— Mas então eu não devia ter feito o que fiz? O ladrão não botou portas abaixo, não poz fogo nos cannaviaes e nas casas dos outros, não tirou o que não era seu?

— Fez tudo isso, mas tu não és juiz, não és Deus para julgar os homens.

— Eu pensei—replicou o rapaz com ironia—que qualquer homem podia por suas mãos vingar-se de um malfazejo, matar um malvado que tivesse tirado a vida a muita gente.

— Estás enganado. Nem eu te quero para palmatoria ou espada do mundo. Sabes o que fiz quando vi o pobre gemendo e esperneando pendurado sem saber o que fazer para soltar-se? Subi-me ao páo, cortei as cordas e disse a Leonardo que corresse, que fugisse para não cahir no poder dos soldados do ajudante-de-tenente. Foge dessas maldades, Lourenço, foge dellas. Deus não hade permittir, por esta hora, em que estou fallando, que pratiques ainda acções como essa. Olha. Eu te quero para bom, e não para máo. Quero-te para servires de arrimo aos teus na velhice. Quero-te para casares com esta pobre menina, que hoje mais do que nunca precisa de quem olhe por ella, e que está morrendo de te querer bem.

E indicou a filha de Victorino.

Lourenço que tivera os olhos postos no chão durante todo o tempo em que Francisco discorria com tão boa moral, levou-os á cova, a Marianinha, ao Crucificado, ao templo—morada de Deus, seja o templo catholico, judaico, chinez ou arabe—e não disse nada.

Marianinha cruzou os della. ainda rasos de lagrimas, com os do rapaz, e enrubesceu.

Mais córada não se mostra fresca rosa de maio, aljofrada pelo orvalho da madrugada.


FIM DO MATUTO.