Anexo:Imprimir/Lágrimas Abençoadas
Índice
[editar]Livro I
[editar]- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
- Capítulo XXI
- Capítulo XXII
- Capítulo XXIII
- Capítulo XXIV
Livro II
[editar]- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
- Capítulo XXI
- Capítulo XXII
- Capítulo XXIII
- Capítulo XXIV
Livro III
[editar]- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
- Capítulo XXI
- Capítulo XXII
- Capítulo XXIII
- Capítulo XXIV
- Capítulo XXV
- Capítulo XXVI
- Capítulo XXVII
- Capítulo XXVIII
Livro Último
[editar]- Capítulo I
- Capítulo II
- Capítulo III
- Capítulo IV
- Capítulo V
- Capítulo VI
- Capítulo VII
- Capítulo VIII
- Capítulo IX
- Capítulo X
- Capítulo XI
- Capítulo XII
- Capítulo XIII
- Capítulo XIV
- Capítulo XV
- Capítulo XVI
- Capítulo XVII
- Capítulo XVIII
- Capítulo XIX
- Capítulo XX
Disseram muitos dos que estavam em redor de uma creancinha, na pia do baptismo, que na face d'ella havia uma luz mysteriosa, como a projecção de um cirio invisivel, que, n'aquelle instante solemne, allumiasse, nas mãos de um anjo, as cerimonias do sacramento augusto. Visão de boas almas.
Era uma menina de nove dias.
Sua madrinha era Nossa Senhora da Conceição, fulgurante de mil lumes, no seu docel de seda e prata, com as mãos cruzadas sobre o seio, com os olhos extaticos no céo, como seguindo o trilho de estrellas por onde, aos pés do Eterno, voejava o anjo da ANNUNCIAÇÃO.
Seu padrinho era um duque, vestido de ouro, com as suas insignias de general em chefe, com o seu thesouro de condecorações guerreiras a cobrirem-lhe o peito, onde pulsava sangue de reis, que não valia mais, por isso, em coração de homem.
Seu pae era um coronel, fidalgo dos que primeiro o foram n'esta terra, valente como o primeiro e o ultimo da sua linhagem, e honrado como aquelle de seus avós, que morrera desterrado, em Tanger, por não denunciar o que lhe fôra amigo desleal, embora traidor ao rei D. João II.
Era o coronel... que vos importa o nome?!...
Sua mãe nascera dama de D. Maria I, crescera mimo de galanteria e docilidade, emancipára-se donzella de todas as virtudes, casára-se, mulher, exemplo das mais santas affeições de um marido, e fôra mãe como póde se'-lo a mulher, depois que a Virgem Maria alimentou um filho, depois que Jesus Christo rehabilitou a fascinada da serpente, depois que a filha de Eva entrou no seu reconquistado Eden, a colher a flor da dignidade, regada pelo sangue do filho de Maria.
Este dia, jubilo de anjos, para os quaes os orvalhos do céo, fecundando as aguas do baptismo, geram na terra um irmão; jubilo de seus paes, que, depois de quatro filhos, tinham um novo penhor de innocencia para, em seu nome, agradecer, com labios puros, as esmolas do céo; jubilo da egreja catholica, que estremece de felicidade, quando entra em seu seio um filho, que lhe gosta o leite da virtude, como sustento da immortalidade: este dia amanheceu em 1827.
Maria era o incentivo de tanta alegria. Nos braços de sua mãe, com o seu olhar errante pelas faces desmaiadas d'ella, que parecia sorve'-la com os seus beijos, como se aquelles fossem os ultimos; Maria, a afilhada da Senhora da Conceição estava alli asseverando o que tantos diziam da luz mysteriosa, que na pia do baptismo, lhe illuminava a face.
A pureza dos anjos, não será como a santidade do predestinado!? E o justo, na ultima hora da sua passagem na terra, quando o anjo da serenidade lhe alveja o rosto com as suas azas transparentes, não será como a creancinha immaculada, cuja alma vem brincar-lhe ao rosto com toda a pureza e innocencia, que o halito creador lhe bafejou!?
A mãe de Maria chorava e as suas lagrimas desconsolavam o pae, que as não queria ver n'aquelle dia, n'aquella hora, tão faustosa, tão de gala para os parentes, que se abraçavam em redor do leito.
Mas fossem calar-lhe o presentimento no coração! Digam á flôr que não penda amortecida sobre a haste, quando o sol se esconde! Digam ás lagrimas, que estanquem nos olhos, quando o que chora não sabe d'onde ellas nascem, nem o que contempla sabe a linguagem do espirito, para consola'-lo em seus presentimentos sobrenaturaes!
Porque é que aquella mãe não buscava o allivio no sorriso de seu marido? Porque não olha ella para os seus? Que é tão consolador ahi como a presença de um marido amado, quando a fraca mulher quer desafogo?
Não bastam allivios do mundo para essas ancias.
Deus! sim, para todas as afflicções, para todos os presagios, para todos os temores, para todas as mães que vaticinam desventuras a suas filhas!
Deus! E na sua imagem é que aquella mãe fitava os olhos. Depois, ao lado de Christo, estava outra imagem: era Nossa Senhora da Conceição. Que lhe dizia aquella pallida mulher, com sua filhinha nos braços? Ouviram-lhe só as derradeiras palavras:
«Minha Mae Santissima! entrego-vos a vossa afilhada!»
Viram um sorriso nos labios de Maria. Seria um acto maquinal dos labios? Porque é que os adultos não sorriem maquinalmente?... Lisongeiras duvidas para o homem que pensa nos segredos do homem.
Decorreram sete annos.
Eu não devo aqui pintar um quadro de guerra. Seria salpicar de sangue a tela onde me propuz traçar uma figura grandiosa, com o colorido suave da religião. Abomino a historia, se é força lembra'-la a testemunhas oculares. Ha ahi muitos escolhos que ludibriam os mais atilados pilotos. Escandecencias politicas não se refrigeram com o orvalho do céo. Se do pulpito o hyssope muitas vezes as exacerba, que fará d'aqui?!
E tomára eu que estas linhas, pallido reflexo do que ha de incommunicavel no meu coração, accendessem o amor de Deus, apagando a flamma das inimizades humanas! Tomára eu lagrimas e dó, e paz e esquecimento para os homens, que não devem aqui encher uma pagina de odio n'um livro que aconselha a resignação. Durmam uns e outros o breve somno, que vae do anoitecer da vida á alvorada do archanjo. Ver-nos-hemos em volta do juiz, que, nos seus dias de réo entre a humanidade pervertida, dissera:
«Só a mim pertence julgar os bons e os maus!»
Bemaventurados os que esperam.
1834!
Foi um anno de muitas lagrimas. Debaixo d'este formoso céo esperdiçou-se muito sangue. As espadas terçavam por duas causas, quando dois corações do mesmo sangue, na vanguarda de dois exercitos irmãos, anciavam aniquilarem-se. E, se, após o ruido das armas, se fazia o silencio tetrico da morte, prorompiam depois os gritos das mães, das viuvas e dos orphãos. Paiz, onde esta harmonia de angustias se levanta de milhares de labios para o céo, prova-se no supremo infortunio, e symbolisa o holocausto de uma vingança tremenda.
Tremenda... como a de Gaza e Moab!
«Que é dos teus edificios de marmore, cidade dos obeliscos!?» dizia o propheta das lagrimas.
Não vedes em Portugal os fustes das columnas dispersas na ruina dos grandes edificios?
Não vedes!—Pois que tem esta terra de commum com Moab e Gaza?
Que tem?!
O enviado de Deus responderia:
«Que é dos teus edificios de virtude, terra da honra e da probidade?»
«Que importam os coruchéos de vossos palacios, Balthazares do tempo, se lá não está a cruz veladora das felicidades da vida?!»
Mãe de Maria, porque choravas tu?
As tuas lagrimas já não eram um mysterio;
Uma vez, a esposa do coronel, com sua filhinha de sete annos, ajoelhava diante da imagem da Senhora da Conceição e murmurava esta prece:
«Virgem Maria, nunca a vossos pés caíram mais afflictas lagrimas! Attendei-me, Senhora, que eu sou uma fraca mulher, mãe de cinco filhos, esposa de um homem, que é o amparo d'esta pobre familia, que vos ajoelha! Vêde, ó Mãe dos afflictos, que o tumulo de meu marido é o tumulo d'estes orphãos, e o d'esta mãe desvalida, que não tem um palmo de terra onde possa regar com suas lagrimas um fructo, que mate a fome de seus filhos. Protegei-o, ó Senhora, n'esta guerra desastrosa, em que a cada instante cáe um pae de familia, tão desgraçada como a minha! Eu não vos peço as honras, e a subsistencia que meu marido ganhára no serviço da sua patria: o que eu vos peço é muito mais... é a vida de meu marido, mas só a vida, sem a gloria de vencedor, sem o premio do seu sangue derramado, sem mais outra riqueza que a do coração que elle tem, e a resignação com que vós, consoladora do infortunio, e eu, esposa extremosa, lhe adoçaremos a desgraça! Os labios da vossa afilhada não murmuram a oração de sua mãe, mas o seu coração é aquelle que vós lhe déstes ha sete annos! Eu vos supplico em nome d'ella. Fazei que estes olhos não sintam tão cedo o travo das lagrimas, que chora sua mãe! Piedade para todos nós!... amparo para meu marido... compaixão para todas as mães atribuladas, que, n'este momento, vos pedem, como eu, a vida de seus maridos...»
E era esta a oração que os suspiros não poderam cortar. Assim simples e angustiada, confirmava a verdade de uma grande dor que não escolhe palavras, nem se atavia das pompas do estylo. Quem orou n'um d'estes lances, sublimes no tormento, pela explosão da agonia com que se refugiam no céo, compreenderá o cunho pungente, marcando a mais insignificante d'essas palavras, que proferiam os labios febris da mulher consternada entre seus filhos.
E, depois, a mãe de Maria foi deitar sua filha, e, acalentando-a, estremecia ás vezes, como se os accessos de uma convulsão a não deixassem aquietar-se ao lado do seu anjo. É que a cada trom remoto da artilharia, nas linhas de Lisboa, aquella afflicta esposa de um homem de guerra sentia o véo da viuvez descer-lhe na face, e o luto da orphandade envolver aquellas cinco existencias, para nunca mais se mostrarem no mundo com direito a serem amadas por alguem. E os outros quatro meninos aconchegavam-se no regaço d'ella; fitavam-n'a, como os passageiros de um barco em perigo fitam o semblante do homem a quem se confiaram; e, no choro, modelado pelos gemidos de sua mãe, compunham uma consonancia de vagidos, e brados, e soluços. Quando assim se soffre, a indifferença do Eterno seria um cruel desengano para os infelizes, que se acolhem ao abrigo das suas misericordias... Não haveria Deus: a justiça divina seria uma astucia humana.
A oração é um respiradouro de espirito, quando a mão da desventura o comprime até lhe abafar a derradeira esperança na terra. A oração não tem nada com este mundo. Pedir a justiça do céo para as injustiças da terra e renunciar a toda a vingança, é pedir a felicidade de nossos inimigos, porque Deus é misericordioso, e não precisa de fulminar o poderoso para vingar o fraco. Orar é caír de joelhos, e muitas vezes não articular dois sons de uma supplica: é não atinar com a linguagem de falar a Deus, porque a sciencia do mal, exclusiva do homem, só inspira ao desgraçado expressões para que os homens o compreendam. Aquella mãe afflicta, quando orou, orava assim. Seu marido com o peito na frente de regimento era o alvo das balas inimigas. Na sua frente um outro coronel, escravo das suas convicções, da sua honra talvez, e pae de familia tambem, ouvia o zumbir da metralha, como halito da morte a afflar-lhe os cabellos. Mas a mãe de Maria pedia por ambos; e, quando a oração assim é feita, o espirito de Deus está nos labios do que ora.
Enxuga as tuas lagrimas, sorve as de teus filhos com teus beijos, mãe e esposa, que o pae d'essas creanças, o homem, que traz no coração os alentos de que te sustentas no mundo, não ha de a bala ou a espada cortar-lhe os vinculos a que prendeste a tua melindrosa existencia.
Não ha de, que teu marido entrou na guerra de irmãos com o coração enlutado, como em arena fratricida, e, ao ouvir o som rispido da trombeta que mandava morrer matando, muitas vezes eleva ao Senhor o espirito atribulado, supplicando-lhe a reconciliação dos portuguezes.
Não ha de, que, nas vesperas angustiosas de uma peleja, teu piedoso marido, refugiando-se dos cabos de guerra que tripudiam e blasphemam farejando o sangue da carnagem do dia seguinte, ergue as mãos ao Senhor, supplicando-lhe que acceite no regaço da sua misericordia, uma viuva desvalida, filhinhos desamparados, aos quaes a mão do vencedor não extenderá mão esmoler, seja qual fôr o triumphante.
Não ha de, atribulada mãe e esposa, porque as paixões clamorosas dos impios não ensurdecem o céo aos rogos de um justo, que lava com lagrimas cada gota de sangue de irmãos que lhe salpica a farda.
Expande o teu coração opprimido no seio de Deus, dolorida mãe.
Deixa rugir lá fóra o phrenesi dos odios civis, e acolhe-te, mulher cortada de agonias, acolhe-te ao refugio da religião, respira ahi em lagrimas a oppressão que os meigos carinhos de teus filhos não podem consolar-te.
Ao mesmo tempo que oras no meio d'elles, o coração de teu esposo comtigo se ala para a região serena da paz e bemaventurança eterna. Sois duas almas puras que se encontraram na terra, juntas ascendem a Deus na oração, juntas hão de compartir as amarguras da pobreza, juntas hão de receber a corôa triumphal no dia marcado á recompensa dos que choram na terra.
Assim lhe segredava o anjo da resignação alentos que a faziam confiar no regresso de seu marido. Rodeada de seus filhos, a esposa do coronel, fantasiava com Maria as venturas, que, ainda na pobreza, podem deliciar corações enriquecidos pelos dons da amizade. Maria, tão joven e innocentinha, compreendia as alegrias de sua mãe, e respondia a ellas festejando a volta de seu pae, como se elle viesse já caminhando a indemnisar-se dos trabalhos no goso da paz, no amor santo da familia, nas donosas alegrias de uma obscuridade feliz.
Mas estas esperanças eram a cada hora desvanecidas pelas más novas que vinham do campo da batalha. O sobresalto da pobre mãe era constantemente despertado aos trons da artilharia que jogava nas linhas de Lisboa.
O coronel... (já não era coronel) o homem da honra e da coragem amanheceu um dia á porta de sua mulher. Trazia nas faces aquella magreza livida que o sopro das batalhas, e o enervamento da fome estampam no rosto do vencedor, e do vencido. Vencido era elle. Não trazia espada, que a pureza, não aos pés do vencedor, mas sobre a acta de uma capitulação, deixára ao bravo a consciencia da sua intrepidez. Nem uma lagrima lhe escapou involuntaria dos olhos, quando, exauctorado e desvalido, se collocou entre os derradeiros thesouros que lhe restavam: sua esposa, e seus cinco filhos. Esses, sim, eram d'elle, eram de seu coração como a virtude, emanação de Deus, é quasi sempre o unico patrimonio do virtuoso.
E é por isso que não houveram lagrimas, que assombrassem n'aquelles labios o jubilo do sorriso. É por isso que paes e filhos caíram de joelhos; e, no silencio de seus corações, Deus sabe a acção de graças, que lhe subira aos pés de seu throno n'aquellas extaticas elevações de alegria reconhecida.
Ao levantarem-se, abraçaram-se, uma e muitas vezes; e quando as palavras venceram a suffocação da surpresa, uma só voz, a de todos, exclamou:
«Somos muito felizes! Bemdito seja Deus!»
Caír de elevada jerarchia, quando os braços da religião não amparam o infeliz na queda, deve ser morrer!
Altearmo'-nos a despeito de muitos, que não podem voejar tanto acima, é provocar-lhes a inveja. Olha'-los em baixo, quando nos cospem o fel da inveja, deve ser-lhes o maior dos castigos; mas, se d'ahi a mão de Deus nos atira ao raso dos invejosos, se a desgraça nos marca, no meio d'elles, um circulo onde rodar com o peso de affrontas, que a nossa arrogancia enfardára... tal vida é a preexistencia do inferno.
Ha tres remedios para alliviar angustias de tal lance:
A resignação;
O cynismo;
O suicidio.
A resignação não é só o amparo d'aquelle que resvala no precipicio das honras d'este mundo; é mais: a resignação não deixa caír o homem, que olha sempre, com temor, o despenhadeiro, em que de ao pé de si se abysmaram colossos, e ruiram edificios fundados sobre areia. Levantado pela Providencia, o homem, que teme a Deus, não se julga, no vertice das glorias, posto ahi pela mão do destino. Quem lhe promette o dia de ámanhã, vinculado aos acontecimentos de hoje? Quem lhe diz hoje que a taça do seu mel ha de ámanhã trasbordar de lagrimas? Quem affiança á aguia, dominadora dos espaços, que, de mais alto, o açor se libra para abate'-la nas urzes?
E, quando a nuvem do infortunio escurece aquellas alegrias, que formavam o cortejo da nossa riqueza:—quando a sociedade nos retira os contentamentos, vendidos pelo ouro, que perdemos... quem é esse destino que accusamos? onde existe essa mentirosa fatalidade que nos humilhou? onde encontraremos o primeiro acaso, que nos felicitára, e o segundo que nos empobrecera? Não ha lagrimas que suavisem as ferocidades da nossa sina, nem ameaças que a forcem a desmentir-se? Será obrigatorio o punhal ou o veneno, porque estava escripto o meu suicidio!?...
A providencia é a acção da Divindade.
O grande da terra julgára-se grande na terra pela providencia. Era um magestoso edificio aos olhos da humanidade, e fragil barro entre as mãos de Deus. Quando o sopro da desventura lhe assolou as columnas, o grande, só, e proscripto das ovações, em que elle fôra o menos laureado, era ainda o grande na desgraça, na esperança, na humildade, na renuncia, e na confiança.
Esperava... o tumulo, e antes d'elle um saldo de contas com o mundo, onde o rico deixa debitos enormes a solver.
Humilhava-se diante Deus, que o abatera, não como um cego destino, mas como um decreto, sanccionado no céo, cumprido na terra, e explicado no dia das tremendas explicações dos mysterios, incompreensiveis aqui. Humilhava-se diante dos homens que nunca humilhára; diante d'aquelles, que puderam abandona'-lo, mas não escarnece'-lo pelo seu passado orgulho.
Renunciára quantas prerogativas o seu ouro lhe dera na sociedade; quantas pompas lhe caíam ao encontro na sua estrada de flôres; quantas esperanças idealisára, que mais o engrandecessem, na perspectiva do mundo, sem adulterar as mercês do Creador.
Confiava na humildade da oração, no pão de cada dia, no repouso providencial de cada noite, porque no mundo nenhuma existencia vira abandonada, nem a da ave que se levanta com a aurora, e louva ao Creador, e vae procurar o alimento, que não deixou de vespera.
Não é assim o cynico.
Herdára um thesouro que seus paes lhe prepararam; e preparára elle em seu coração todos os elementos para augmenta'-lo.
Que o ouro augmenta, quando é lançado no cadinho da perversidade. E o coração, ferido de avareza, é um segundo thesouro para quem herdou o primeiro. O mais efficaz instrumento da caridade, o ouro, nas mãos do avaro, converte-se em ferro de dois gumes: um que lhe entra no proprio coração, outro no coração que lhe pede o obulo.
É assim o cynico.
Em cada degrau da sua escala de grandeza espirrava o sangue das faces que calcava. Entre elle, e um circulo de victimas, que o rodearam, fascinadas pelo brilho da sua auréola, erguia-se o anteparo da irreligião.
Quem lhe déra o sorriso feroz fôra a impiedade.
Quem lhe alimentara as ancias de cevar-se em gosos, adubados em lagrimas e sangue, fôra a impiedade.
Quem lhe segredára os derradeiros segredos do crime, para que o enojo de crimes repetidos lhe não esfriasse o amor sordido da vida, fôra a impiedade.
Quem lhe disséra que no tumulo para dentro não ha pobres para repellir, nem corôas de virgem para desfolhar, nem faces lagrimosas para cuspir, nem amigos para vender a inimigos, fôra a impiedade.
E, depois, a mão de Deus despenhou o cynico.
No tremedal, onde caíra, roeram-n'o os vermes dos cadaveres que elle fizera.
E riu-se.
Cobriram-n'o os improperios, e os sarcasmos de tantos, que elle enxovalhára, sacudindo-lhes ás faces a lama das ruas com as rodas do seu carro insultuoso.
E riu-se.
Teve que aceitar uma esmola, que, por escarneo lhe lançou ao chapéo um d'aquelles que lh'a pedira, em vão, anceado de fome.
E riu-se.
Bateu á porta de seus creados, que medravam nas prodigalidades do amo: pediu um bocado de pão, e responderam-lhe de dentro com uma gargalhada.
E riu-se.
Este é o cynico.
E quando lhe aconselharam o suicidio, riu-se, e riu até morrer porque a morte de cynico é uma risada na blasphemia.
Lamentae o suicida, porque a sua ultima hora foi uma lucta horrivel entre a desesperação, a incerteza, e, talvez a saudade.
Ao ver-se pobre no mundo, considerou-se o homem sem vida social; mas a vida physica, onde as frechas do desprezo lhe rasgavam até o coração, era-lhe uma algema insoffrivel a maneata'-lo ao poste da vergonha.
Feliz pelo destino, ou desgraçado pela fatalidade, o Lucifer, despenhado d'este céo da terra, que a impiedade lhe deu, optou pelo tumulo entre duas idéas: pobreza e impotencia.
Impotente para vencer a sociedade que lhe não restituia o seu ouro, o desesperado, aborrecendo a morte tanto como a vida, crava-se um punhal, que nem elle sabe se o vinga dos homens, se o deita no tumulo, se o sacrifica á justiça de Deus.
O atheu pensára longas horas antes de erguer-se o patibulo; mas, nos seus ultimos instantes, não era philosopho: era um algoz.
A desesperação enervára-lhe o entendimento, e robustecera-lhe o braço.
O cutello, no braço do algoz, não tem nada com o espirito. Um e outro são machinas de morte.
E o coronel ***, e sua esposa, e seus filhinhos eram christãos. E oravam na desgraça, e sorriam no infortunio, e esperavam.
Esperança, filha dos céos! eterno cantico dos anjos!... bemdita sejas tu.
E, quantas vezes, acarinhados pelas brandas lisonjas de uma esperança, nos possuimos d'aquelle inoffensivo orgulho de felicidade, e tão perto nos persuadimos que ella vem com toda a formosura real de um bello sonho? E quando assim nos apressamos ao encontro d'essa linda chimera, gerada nas entranhas do infortunio, não será tão triste deparar-se-nos uma nova desgraça?
Muito triste. É uma luz que se apaga. Um horisonte que se fecha. Uma colheita de lagrimas na seara das esperanças.
E o sorrir da resignação, e o levantar das mãos em fervente amor de Deus, é a mais grandiosa attitude na desgraça. O infeliz é então um rei no throno das angustias. O manto de retalhos tem a magestade da purpura. Ignacio, o mendigo de Monserrate, é maior que o gentil-homem de Loyola.
O coronel soffria muito; porque, a par do grupo querido de esposa e filhos, nunca de seus olhos se afastava o aspecto da penuria.
Á escuridade da indigencia não chega a luz do amor: deixar falar os poetas.
Ha sentimentos de miseria que os sentimentos da gloria não podem eclipsar. A felicidade tem exaltações intermittentes de jubilo. Mas a desgraça pensa sempre, fala sempre; vela á cabeceira do infeliz; desperta-o com o aguilhão de um sonho mau; desmente-lhe as illusões; ri-lhe a cada esperança; embrutece-o; retráe-lhe as expansões do espirito.
Onde a desgraça emmudece com a consciencia do penitente, que se levanta dos pés do ministro dos perdões, é na presença da cruz.
O coronel orava um dia com sua familia. Maria balbuciava as mesmas palavras do pae, e parecia, com os olhos fixos n'elle, tomar-lh'as dos labios como um beijo e um segredo de muita felicidade na muita desventura.
A sua oração era a dadiva do Christo: era aquella, que pendera dos labios divinos do Mestre como orvalho para todos os ardores, como balsamo para todas as chagas, como herança de amor para todas as gerações de ingratos.
Era esta a sua oração:
«Padre nosso, que estaes no céo, sanctificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade...»
Alguem procurava o coronel. Amigo ou inimigo? O homem da honra nunca se nega. O que fôra christão antes de politico, e pedira a Deus a paz de seus irmãos, antes de mostrar-lhes, ao sol das batalhas, o lampejo de uma espada escrava da obrigação, esse poude ser exauctorado de titulos ás grandezas, de direito ao trabalho, de pão, e de liberdade, mas o opprobrio não o desanima, nem o envergonha.
A valentia moral não tem capitolios na sociedade immorigerada; mas tem-os na consciencia do proprio que a experimenta. Um homem assim, decaído do que fôra, apresenta-se altivo de certa soberania que parece um triumpho, ultraje dos oppressores.
O coronel, se tivesse a receber as felicitações vendidas á sua patente de general, talvez não consentisse que tão depressa fosse aberta a sua porta.
Abriram-n'a.
O homem que entrára, sem dar o nome, era uma figura que, sem articular palavra, impunha silencio aos que o recebiam. Trajava pobremente.
Quem buscasse um modelo para a estatua da imagem do infortunio, acha'-la-ia n'aquelle homem.
E, sorrindo, offerecia a mão ao coronel, que viera, chamado por sua esposa, a contempla'-lo rodeado dos filhos, que pareciam perguntar-lhe quem era o extranho hospede.
Aquelle silencio, precursor de lagrimas, não podia conter muitos minutos corações anciosos.
—«Quem é o senhor?» perguntou o coronel.
—Quem sou eu?! respondeu o desconhecido.—Trinta annos de clausura, e alguns mezes de trabalhos desfiguram a face de um irmão!...
O coronel correra aos braços do hospede. Maria, organisação melindrosa, que presentia já os calefrios de um enthusiasmo juvenil, estremecia d'aquelle tremor nervoso, em que as lagrimas da alegria denunciam alma vehemente, apaixonada por tudo que é grandioso. Sua mãe tomava a mão de seu cunhado entre as suas, que pareciam erguidas em graças ao Altissimo. As outras creanças volteavam alegres em redor do grupo, e figuravam outros tantos anjos a solennisarem aquella festa na tristeza, e aquelle jubiloso alvoroço do sangue, quando o espirito se confrangia na dôr.
Fr. Antonio dos Anjos fôra um oraculo de sciencia, e um exemplo de santidade no seu mosteiro. Filho de paes opulentos, de virtudes, herança de avós corajosos de braço e espirito, o seu patrimonio de resignação não pudera a politica espoliadora apregoa'-lo na praça. Affeito a encaminhar, com mão segura, pelas margens do abysmo, os que a dôr extraviára, o monge amparava-se na altura da dignidade de martyr. No centro d'aquella familia, quem mais paz e alegria soboreava no coração era elle. Elle, sim, que trinta annos havia, despira as galas do mundo, e envergára o habito que desfigura as fórmas do corpo, e as feições da alma. Elle, sim, que trinta annos vivera pobre d'aquelle ouro que afervora a adoração das multidões; e, então expulso da sua enxerga, e do seu refeitorio, não geme a falta de um ouro, que nunca possuira.
—«Quereis a historia dos meus trabalhos, não é verdade?» perguntava o monge, com sua sobrinha Maria sentada nos joelhos, e com dois dos outros abraçados.
—«Sim, sim, queremos» respondeu Maria com extranha vivacidade.
—«Não—replicou o coronel—não recordes penas que te não alliviam o receio de outras maiores...»
—«Não é assim...—tornou Frei Antonio—As afflicções, que se recordam com serenidade, parecem zombar das afflicções por vir...»
—«Conte, conte... meu tio» instou Maria com muita doçura, dando á voz a terna inflexão de uma supplica.
E frei Antonio, alegre como se contára apraziveis lances da fortuna, contou assim o transito doloroso dos ultimos mezes da sua vida:
«Viver trinta annos, vendo todos os dias o leito onde se espera morrer, e a sepultura onde o repouso do corpo continuará, foi a minha vida do mosteiro. Ao lado d'esse leito, e d'essa sepultura, vigia quasi sempre o espirito, porque na terra nem ao justo é permittida completa tranquillidade. Vigiar, é entregar ao espirito a guarda do coração; é pôr os olhos em Deus, alonga'-los ao mundo da esperança, enxugar-lhes o pranto por homens, que o desprezam e o desprezam porque o não comprehendem. A vigilia de um monge, tem, ás vezes, dôres, que ninguem póde imagina'-las, sem sentir-se abrasado do santo interesse da humanidade, que se espedaça.
«Não me viste saír da casa do nosso pae, meu irmão!... Eras creancinha, e do colo de nossa mãe me deste um beijo, que me fez chorar, porque era o ultimo, que me davas com labios de innocencia. Nunca mais te vi; mas essas lagrimas, que te vejo agora, são as do meu irmão... é impossivel que o não sejam. Sabias tu que eu existia?»
—«Sabia, mas ha doze annos que não tive novas tuas» respondeu o coronel.
—«Ha doze annos... é verdade... Ha doze annos que frei Antonio dos Anjos descera a um tumulo... O espirito vivia... mas o espirito do penitente, vinculado pela expiação á imagem do seu crime, quebra os vinculos do sangue, se os tem no mundo.
A voz do padre balbuciava estas ultimas palavras, cortadas de pausas, que traíam a sua serenidade contrafeita.
Seguiram-se o silencio, e a anciedade.
Frei Antonio, á custa de um grande sacrificio, e de uma penosa recordação, explicou a seu irmão o extranho silencio de doze annos.
Doze annos tinham sido o prazo em que as noites eram veladas pelo remorso do homem, que tentára uma vez quebrar a alliança que fizera com a renuncia de todos os gosos terrenos. Doze annos de purificação para quem se manchara, um minuto, na rebeldia aos estatutos da sua ordem, fôra um grande prazo, uma longa expiação, um zelo suicida, talvez!
É que os homens não o comprehendem. Doze annos de crimes, e um momento de remorso... isso sim, que, se não em todos os criminosos, em alguns pelo menos, é verosimil e explicavel.
Esses prodigios explica-os facilmente a philosophia materialista: não é o remorso, nem os gemidos do bem torturado pelo mal, nem o temor de Deus: é a organisação com seus mysterios. Mysterios na escola da materia, onde a natureza, positiva e carnal, é tudo! Como é que da seiva do erro se nutrem viçosas as vergonteas da verdade? As luzes faiscam do seio das trevas. Ha máximas preciosas que brilham ao clarão dos incendios philosophicos.
Frei Antonio continuou:
«Entro pobre em tua casa, meu irmão; porém a desgraça é uma riqueza, quando com ella suavisamos desgraças alheias. Contando-te as minhas amarguras não adoçarei as tuas?
—«Deus—respondeu o coronel—suavisou-m'as antes de ti, meu irmão.»
—Bemdito seja Deus!—tornou o padre—era essa a resposta que eu pediria a Deus que te inspirasse!... pois bem... seja a minha historia um passatempo... Peregrinareis comigo n'estes infernos da terra que os homens crearam. Aqui me tendes com a tunica, e com esparto de Dante... Serei para vós o que foi o poeta para a humanidade... recrear-vos-hei...»
O frade afastára as bandas do capote, e deixára vêr o habito de S. Francisco. A magestade da sua postura excitára um calefrio respeitoso em todos, e elle mesmo, tocado pela consciencia do effeito religioso d'aquelle acto, não susteve a lagrima do enthusiasmo, que é sempre revelação de espiritos ardentes. Maria, alma tão cedo estreada na poesia da dôr, cedo principiára a enlevar-se n'aquelles transportes, que a tragedia excita em pessoas que vêem o theatro pelos olhos da innocencia, e não podem desmentir o que vêem pelos calculos frios da razão. Maria, pois, impressionára-se mais que seu pae e sua mãe da attitude pathetica de seu tio. Mais tarde confessou ella que sentira dobrarem-se-lhe os joelhos, e de certo ajoelhára, se frei Antonio lhe não tomasse as mãosinhas que pareciam ajustarem-se em adoração extatica.
Esta scena fôra muda. O silencio é o desafogo das grandes emoções, que nos abafam o espirito, enturvando-nos a razão. Parece que a consciencia precisa digerir esses alimentos extraordinarios, que são a vida energica das almas flexiveis.
Proseguiu o frade:
«Quando, ha quatro mezes, os religiosos de *** viram approximar-se a hora de entregar as suas cellas á revolução, ajuntaram-se para deliberarem sobre a sua vida, como homens que d'ahi a pouco não tinham posição alguma no mundo, que lhes valesse um bocado de pão. Alguns eram de casas remediadas, outros irmãos de fidalgos, sacrificados ao partido que lhes assegurava os seus privilegios; mas nenhum contava com asilo seguro no tecto paternal, porque o temor da perseguição fazia-nos pensar que eramos homens expulsos da familia, e da sociedade. Entregámo-nos a Deus. E, depois, no meio de nós estavam uns homens cobertos com o nosso habito, vivendo comnosco ha muitos annos, ajoelhando comnosco ao mesmo crucifixo, e comendo comnosco no mesmo refeitorio. Eram os nossos maiores inimigos. Velavam-nos desde matinas a completas; desde a oração commum do côro até ao ultimo padre nosso rezado no isolamento da cella. Eram como os pretorianos de Nero syndicando os actos religiosos dos agapes de Christo. Chamavam-se liberaes, illustrados e amigos dos homens. De Deus sabia eu que elles o não eram. Dos homens, cruel amizade era a sua, que precisava enfeitar o seu altar com o sangue dos seus companheiros!
«Nos ultimos mezes da nossa communidade... deixae-me dizer-vos uma prophecia amarga: nos ultimos mezes das ordens religiosas em Portugal, apresentaram-se aquelles padres ao prelado, e pediram a sua liberdade. Prevenindo alguma ligeira censura, em nome da regra do patriarcha, lembraram ao guardião que o punhal era a arma do homem livre, quando os algozes da humanidade não accediam aos augustos preceitos da razão natural.
«O prelado era um justo, que chegára aos oitenta annos, com os cilicios nos rins, vergando sob o peso de austeridade, alliviando quanto podia esse gravame dos hombros menos rijos dos seus subordinados. A morte, porém, era-lhe menos afflictiva que o pesar de uma tibieza de disciplina. A sua resposta foi simples:
«Deixemos vir a mão da liberdade bater á porta do mosteiro e seremos todos livres então. Uns, livres para morrer no desamparo. Outros, livres para viver de vergonha. Todos seremos livres. Em quanto a vós, meus irmãos, pedirei aos servos de Deus n'esta casa que peçam ao Senhor para vós as consolações e a prudencia que não posso dar-vos. Retirae-vos, que sou chamado ao côro.»
«Retiraram-se; mas, dois dias depois, ao amanhecer, foi aberta por violencia a portaria. Alguns homens d'alli sahiram vestidos, e armados como guerrilheiros. O padre porteiro, que subira á cella do prelado a annunciar-lhe o acontecimento, encontrou um cadaver. Ao passar-lhe a mão pela face topou um crucifixo inclinado sobre o seio. Ao agita'-lo, humedeceu as mãos no sangue que borrifára os lençoes. Gritou. Acudiram os monges. Em volta do seu leito ajoelharam homens que choravam. Não tinham outra supplica, nem balbuciavam uma palavra. Um justo estava ali morto: mataram-n'o seus irmãos, em nome de uma liberdade, que não consentiu ao venerando ancião a liberdade de viver mais alguns dias.
—Era preciso matarem-no para fugirem?—perguntou Maria com os olhos turvos de lagrimas.
—Não seria preciso, minha filha, mas as chaves do mosteiro são entregues ao prelado: mataram-n'o, tirando-lh'as.
—Mas o crucifixo,—replicou ella quem lh'o poria sobre a face?
—Foi o moribundo a quem os assassinos deixaram tempo de pedir a Deus o perdão dos seus matadores.
—Que acontecimento tão triste, minha mãe!—exclamou assombrada a menina, tomando entre as suas as mãos de sua mãe. E continuou: Eu não pensei que os homens podiam fazer isso!... Quem me déra o céo para meus paes e meus irmãos!
—E para o tio padre, não, meu anjinho?
—Meu tio tem certo o céo, porque tem soffrido muito, não é verdade?
—Muito, minha menina; mas não é já bastante o que tenho soffrido?
—Penso que sim... Eu não sei ainda a sua vida, mas lembra-me que meu tio póde fazer que os homens sejam bons, dizendo-lhes historias que os façam ter dó dos que soffrem.
Olharam-se todos com admiração. É que Maria contava sete annos de edade; e alguns mezes de soffrimento. Predestinação!?...
«Ao anoitecer de um dia passado em orações e suffragios por alma do nosso chorado prelado—continuou frei Antonio—ouviram-se tiros ao longe do mosteiro. Eramos quarenta e tantos os monges assombrados pelo terror não sei se da morte, se das injustiças da humanidade a quem não offenderamos. A egreja, escura e silenciosa, afigurava-se-me um grande tumulo, e um doce repouso. Ajoelhei. Ajoelharam todos. E lembra-me com emoção o fervor d'aquellas preces murmuradas como a derradeira supplica do que vae apparecer na presença de Deus. Os tiros avisinhavam-se, e o alarido, ao principio confuso, era já perto um grito distincto: morram os frades! abaixo os ladrões!
«Eram 23 de Outubro de 1833. Que noite aquella, santo Deus!...
«As balas ouviamo'-las zumbir, e bater na parede da egreja, e nas vidraças do zimborio. Todos os servos empregados na casa vieram ajuntar-se ás nossas orações, acobertando-se com a protecção dos ministros de Deus, como debeis mulheres, em semelhante lance, buscando o invalido apoio de seus maridos. Nós não podiamos nada, quando á debilidade de nossas forças moraes ajuntavamos a resignação, o abandono de nossas vidas aos decretos da Providencia. Os paroxismos tinham sido longos e trabalhosos. Uma hora de preparação para receber a morte, que sentiamos avisinhar-se com a vozeria, e com os tiros, devera quebrantar-nos o espirito, aniquilando-nos lentamente a esperança.»
—E não tinham esperança nenhuma? Deus não podia salva'-los ainda? perguntou Maria.
—Nós, minha filha, não pediamos a Deus a vida: pediamos-lhe a salvação, a vida da alma. A morte não nos atormentava: poderia a natureza estremecer em nós com o terror do ferro, que no'-la daria; mas o Eterno manda que o espirito proteja as fraquezas da materia. É muito grande a providencia do Altissimo! Quando a morte se nos apresenta como um decreto irresistivel, sentimo-nos tanto mais longe da terra, tanto mais perto da eternidade, quanto a esperança da vida nos foge, e o frio da morte se chega. O que seria a morte do impio, apegada á vida, se não fosse esta resignação providencial, este esquecimento proprio, este mortal entorpecimento do corpo, antes que o espirito se deprenda das algemas, que parecem aperta'-lo mais na hora final?... Maria, tu entendeste-me?
—Penso que sim, meu tio. Deus quiz que a morte lhe parecesse um bem, em comparação do mal que estava soffrendo: não é assim?
—Sim, meu anjo. Deixa-me beijar-te que és uma boa parte da indemnisação que a misericordia divina me dá pelos meus padecimentos.
«O mosteiro estava cercado de povo, attraído alli por um homem, que, depois de conspurcar uma patente no exercito realista, e avexar com despotismos os constitucionaes, viera buscar refugio entre nós.—Algumas balas bateram contra a porta principal da egreja mas não puderam vara'-la. Outras vinham, através das frestas, encravar-se nos altares. Uma, batendo na lampada do SS. Sacramento, apagou-a, espargindo os estilhaços de vidro sobre nossas cabeças. Não se ouvia uma exclamação de dentro, nem um ai afflictivo dos que alli rezavam ajoelhados, quando um de entre nós proferiu em voz alta o acto de contricção. Então, sim, as lagrimas rebentaram de todos os olhos: o espirito resurgiu da prostração em que caíra, e as vozes harmonisaram n'um murmurio profundo, arrebatado e magestoso como um de profundis.
«Os gritos de fóra eram ameaças de morte, sem excepção de pessoa, senão abrissem a portaria. Nenhum de nós abandonou a sua humilde postura de martyr. Sentimos que se arvoravam escadas ás janellas lateraes do templo: ouvimos um machado, cem machados lascando as portas. O echo das pancadas reboando pelas naves tinha em si um não sei que de terrivel, que fazia arripiar os cabellos e gelar o coração!
«Rasgada uma fenda na porta, entraram alguns poucos que franquearam as portas á chusma de povo.
«Era noite alta. Não se via ahi um homem grave sobre quem pesasse a responsabilidade d'esta sacrilega violencia. O relogio do mosteiro dera onze horas, e nunca tão melancholico me pareceu o som d'aquelle bronze, que, havia quinhentos annos, chamava as turbas á oração, e n'aquelle instante, assignalava a hora da carnificina dos ministros de Jesus Christo. O tropel d'aquella gente denunciava uma multidão grande. Sentimo'-los approximarem-se amotinados, gritando, uivando, rugindo, como tigres que partiram as grades da jaula, como possessos que deliram na sede febril de sangue. E, topando-nos de joelhos, virados para Deus, e quietos como phantasmas immoveis, pararam. Reinou um silencio de minutos. O anjo bom d'aquelles homens calou-lhes por momentos o grito sanguinario. O pensamento do bem, a idéa de Deus passou-lhes pelo coração instantanea e fugitiva como a restia do sol por entre as nuvens torvas da tempestade. Os instrumentos do mal não podiam renunciar a sua missão. Cada um de nós sentiu a mão de um inimigo arranca'-lo com violencia á sua immobilidade. Um grito deu alento a todos os gritos. Morram! era o mais distincto, era o bramido sinistramente harmonioso de muitas vozes. Senti algumas cronhadas d'arma acurvarem-me a cabeça para as lageas do altar, salpicado do sangue que me resaltára do nariz e da boca. Dos meus companheiros ouvi alguns gritos que me pareceram de estertor; e senti que alguns vinham arrastados.
«Não pude presencear as agonias de meus irmãos mixturadas com as minhas. Uma bayonetada, varando-me uma perna, fez-me perder os sentidos, e cahir com a cabeça no degrau do altar de Nossa Senhora, onde despertei depois.»
—No altar de Nossa Senhora... no altar de minha madrinha!... exclamou Maria, com a face coberta de lagrimas.—E, depois, meu tio—continuou ella—que lhe succedeu, quando tornou a si? Não lhe fizeram mais algum mal?
«Os flagellos não tinham ainda principiado, minha querida menina. Tu verás que a dôr de um golpe, não punge tanto como o escarneo de uma affronta moral. Quando recobrei o sentimento, pedi a Deus que me fechasse os olhos, e logo em seguida lhe pedi perdão da minha supplica. Compreendi nos meus padecimentos a expiação dos crimes da humanidade e a redempção dos meus peccados. Fui ahi trazido a pontapés, quando o sangue me escorrria da ferida. Fizeram-me, e aos meus companheiros, servir canecas de vinho áquella gente, que se movia em ondas pelos dormitorios, bramindo na embriaguez do seu odio. Quando a custo me pude desviar do tumulto, comprimi com o meu lenço a ferida, e esperei ensejo de poder fugir para morrer em paz debaixo de algum tecto piedoso. Não pude. Ao amanhecer fomos levados á casa do noviciado, e fechados á chave com vigias á porta, para não tentarmos o arrombamento.
«Olhavamo-nos com uma especie de idiotismo doloroso. Não sabiamos palavras de consolação, porque a amargura era extrema em todos. Em tamanha afflicção tinhamos só a linguagem da afflicção: oravamos. E nem um só reclinou a cabeça no chão para adormecer a agonia. Parece que o travo da morte, assim demorada, adoçára o coração de tantos infelizes. Nunca eu senti em mim tão santa, tão divina a influencia do temor de Deus. Esperava amanhecer na eternidade, á luz da justiça eterna, e da misericordia do Summo-Bem. A oração pelos meus inimigos era de um sabor indizivel, de um allivio intimo, que tanto mais se prende á creatura quanto ella se resigna nas tribulações! Bemdito seja nosso Senhor Jesus Christo, que por cada afflicto reparte uma faisca d'aquelle incendio de caridade em que expirára na cruz, pedindo a seu Pae o perdão para seus matadores!»
Frei Antonio não pudera, se quizesse, represar as lagrimas. A sua familia chorava, porque a voz convulsa, soturna, e sombria do padre, entrava no coração dos ouvintes, como as ultimas palavras do sacerdote no espirito do christão agonisante.
«O sol—proseguiu o padre—coava pelas frestas do noviciado uma restia pallida, que illuminava um crucifixo, esquecido pela populaça. Se cada um de nós fosse particularmente consultado em seu coração, no momento em que aquelle raio do sol nos allumiou, dissera a devoção fervente com que saudou a luz do céo, irradiando-se na effigie augusta do Creador do céo e da terra.
«Decorreu uma hora, sem que o silencio nos fosse quebrado por alguma voz. Julgámos abandonado o mosteiro como cidade viuva de seus filhos e espoliada das suas alfaias. Um de nós foi á porta escutar, e desmentiu as nossas conjecturas. Junto á porta resonavam profundamente as nossas guardas.
«Soaram nove horas, quando os primeiros echos reboaram pelos dormitorios. Como atalaias nocturnas, os brados reproduziram-se, reforçaram e subiram ao alarido compacto com que principiaram. Os vituperios vinham, como ondas sobrepostas, bater á porta do nosso carcere.
«A porta foi de improviso aberta. Mandaram-nos enfileirar. Cercaram-nos como a animaes extranhos, que movem a curiosidade. Emquanto eramos insultados por palavras de um outro menos soffrido e mais ultrajador, cuspiam-nos na face, e arrancavam-nos os cabellos. As mulheres, com as faces rubras do vinho, e com as linguas afiadas no sarcasmo villão e truanesco do seu officio, soltavam-nos aos ouvidos risadas ferozes, mixturadas com empuxões que nos davam ao capello, e aos cordões do habito. Esta situação penosa e indizivel durou meia hora.
«Mandaram-nos saír, escoltados, e fazer alto no pateo do mosteiro. Ahi lançaram ao primeiro uma corda ao pescoço, que vinha encadeando um por um até ao derradeiro monge. Depois mandaram-nos curvar o pescoço tanto quanto fosse preciso para assentar uma albarda. Penduraram-nos algumas campainhas ao pescoço, e mandaram-nos andar.
«Caminhámos uma legua, e fizeram-nos parar para reconhecermos um cadaver que se dizia pertencer ao brigadeiro realista Pessoa. Era effectivamente o seu. Dias antes estivera elle em nossa casa, já de retirada para a sua, visto que as forças sitiantes do Porto começavam a dispersar. Pedimos-lhe que se acautelasse porque os seus maus feitos tinham excitado o odio, e a vingança. Respondeu-nos, que tinha um salvo-conducto na sua honra, e na sua consciencia pura. A sua consciencia não devia estar tranquilla... Este mau homem fôra morto n'uma ribanceira pedregosa que nos ficava ao lado esquerdo da estrada.
«Caminhámos outra legua, e fomos mettidos n'uma cadeia, onde mal nos podiamos mexer. As prisões do pescoço affligiam-nos muito; e a sentença de morte fôra-nos lida quando entrámos, no caso de quebrarmos a «arreata» como elles nos disseram.
«Não vos posso contar com miudeza que tormentos provámos durante vinte dias que ahi vivemos. O frio, a fome, a insomnia, a falta de respiração, todas as privações que pode soffrer um homem, bemdito seja Deus, complicaram-se ahi... Que padecimentos! A piedade tremia de approximar-se do nosso infortunio. Homens bem trajados apiedavam-se; mas temiam o povo esfarrapado. Algum boccado de pão vinha através de difficuldades, e no ardor da sede as lagrimas serviam-nos de refrigerio aos labios queimados da febre.
No fim de vinte dias foi-nos dada a liberdade, sob a condição de não caminharmos para o sul. A infracção d'esta lei implicava pena de morte. Pensavam que viriamos procurar o exercito do sr. D. Miguel. A condição era escusada para mim. Ministro de Deus, jurado á caridade e ás humilhações, o meu braço, consagrado á elevação da hostia, não levantaria o ferro contra homens, ou barbaros, ou portuguezes. Eu maldigo em nome de Deus os meus irmãos que borrifaram de sangue a tunica legada pelos apostolos. A arma do sacerdote é o coração votado a abrandar a justiça do Altissimo, que faz dos homens o instrumento de sua vingança contra homens. Se me chamassem ao mais perigoso de um combate para acalmar, em nome de Deus e da caridade, as iras sanguinarias dos partidos, eu cruzaria as balas, e as baionetas travadas, corajoso, como um filho da patria, e um sacerdote de Christo. Viria, meu irmão, viria ajoelhar-me na frente do teu regimento, e pedir-te em nome da tua esposa e de teus filhos, que me deixasses fallar ao rei antes que mandasse voar a morte das espingardas dos teus soldados.[1]
Estás anciosa pela continuação da historia, minha menina? Olhas tanto para mim!... Tens entristecido com as desventuras do teu pobre tio?
—E tenho chorado... o tio não vê?
—Vejo, vejo, menina. E sabias que no mundo havia homens que fizessem assim padecer outros de quem não receberam alguma offensa?
—Pensei que não... Meu pae, e minha mãe, e meus irmãos são todos tão bons, tão meus amigos, tão dados uns com os outros... e eu não conhecia mais ninguem. E como é possivel ser-se assim tão cruel, diga-me, meu tio?
—Digo... direi, minha filha... mais tarde... Queres agora o fim da minha triste peregrinação até á casa de teus paes?
—A tua casa, meu irmão—atalhou o coronel.
—Sim, sim, a sua casa, meu caro irmão—disse a esposa do coronel.
—Pois não somos nós todos a mesma familia?!—perguntou Maria com um sorriso de candida alegria e admiração.
—Graças vos sejam dadas, meu Deus!—-exclamou o padre.
Notas
[editar]- ↑ Se Fr. Antonio ampliasse um pouco mais estas suas reflexões muito judiciosas, invectivaria os frades que, fóra das linhas de Lisboa, despejavam fogo para os de dentro com uma coragem e disciplina digna de granadeiros da guarda imperial. Alguns d'esses estavam ahi provando pela pratica as theorias vociferadas do pulpito, desde 1828 até 1832. Não foi mais do que lançar um correame sobre o habito, e substituir ao som da palavra incendiaria o som do arcabuz homicida. Se não receássemos desnaturalisar o romance pondo na bocca de frei Antonio censuras inverosimeis aos da sua politica, se é que elle tinha alguma além da do Evangelho, seria elle o que nos poupasse o trabalho d'esta nota para que se não diga que o auctor acoberta um pensamento hostil á liberdade, afeiando o quadro inevitavel, no conflicto d'ella com o despotismo em paroxismo. A leitores de má fé respondemos com a boa fé de imaginarmos, antes de começar o romance, que os não teriamos... [N. do Autor]
«Eramos vinte e dois homens abandonados á Providencia, sós com a nossa desgraça, sem futuro e sem esperanças de alcançar um bocadinho de pão mendigado. Eis a nossa situação. Era forçoso separarmo-nos. Companheiros de noviciado, quasi amigos de infancia, condiscipulos, presos ao céo e ao sacrificio por um laço commum, affeitos a harmonisar as nossas vozes em acção de graças, a dobrar os joelhos no mesmo chão, a comermos á mesma mesa, a soffrermos ao mesmo tempo os flagellos que attrairamos sobre nós, porque em todas as nossas frontes fôra escripto o caracter indelevel de nossa humildade... Eu não tento dizer-vos como foi amargo, como foi chorado aquelle adeus... para sempre! «Antes o martyrio, e que nos apartem!» exclamava um em quanto outro, debulhado em lagrimas nos braços de seus compaheiros, pedia um tumulo para todos nós! Foi um lance cheio d'aquella nobre dôr, que tanto honra o coração humano. O supplicio da separação d'aquella pequena sociedade cujos membros, não cançados, não egoistas, amavam-se como virgens na esphera innocente dos seus amores de collegio... podereis vós comprehende'-lo, meus amigos? Não! Deus quer que não! É sentir-se a morte, que parece deixar no coração um alento de vida para o tormento da saudade; mas aniquila todas as alegrias, todas as esperanças... que são a vida na terra.
«E separámo-nos!... que irresistivel imperio tem a desgraça, meus filhos! Recuavamos a cada passo para um novo adeus, para um novo gemido, convulso, apertado na garganta, como se a dôr nos fosse prohibida. Este doloroso trance demorou-se muito. Alguem, condoído de nós, avisou-nos dos rumores que corriam a nosso respeito na villa proxima. Dizia-se que tencionavamos, reunidos, caminhar para onde nos fosse possivel pegar em armas. A calumnia podia tudo então. O odio foi fertil em pretextos... Ora o amor da vida fez calar o grito da saudade. Demos o ultimo Adeus. O ultimo... foi o ultimo, meu Deus!... Diz-me o coração que sim.
«Entrei n'uma aldeia, onde fôra prégar um anno antes. Pedi gasalhado na casa de um lavrador. Foi-me negado. Não instei. Fui á porta de um jornaleiro: achei-a franca. Era assim o seu coração, porque o pobre, sem vergonha nem pesar de o ser, tem uma alma cheia de bondade. Pedi-lhe umas palhas: deu-me a sua cama, a sua manta e o seu lençol de estopa. Não lhe pedi mais nada: mas o pobre deu-me o seu caldo, o seu pão amassado em suor, e o seu apresigo, producto das economias da semana para solemnisar o dia do descanço. E adormeci abençoando o pão do pobre, em quanto elle, sentado ao lar, rezava o seu rosario, ou espertava a fogueira para me ser menos sensivel a pouca roupa da cama; O pobre será sempre o eleito, o ente privilegiado para as virtudes praticas do evangelho. Jesus Christo adoçou-lhe o travo da penuria, dando-lhe ao espirito o antegosto das riquezas que enthesoura no céo.
«Adormeci.
«E alta noite, fui acordado em sobresalto pelo meu hospede. Ouvi tiros. «Que é?» perguntei eu. Não sei ao certo, senhor. Ha pedaço que ouço estes tiros, e estou com medo... «Que venham ter comnosco?» perguntei eu. «Sim, senhor; mas eu vou ver o que é» respondeu o bom homem.
«Eu quiz conte'-lo; mas elle convenceu-me da segurança da sua empresa. Quando voltou, disse-me que tinham sido mortos dois frades do meu convento em casa de um tal lavrador. Imaginae o meu terror. Quiz saltar fóra da cama, trocar o meu habito por alguns farrapos e fugir; mas o jornaleiro estorvou-me com boas razões. «A casa de um pobre, disse elle, é mais segura.» Não a perseguem as grandes desgraças, porque tambem a não procuram as grandes felicidades—disse eu na minha consciencia. Orei por alma dos meus infelizes amigos, se o seu martyrio não era expiação bastante de suas faltas.
«Amanheceu, e tive mais informações. Dizia-se que dois monges desfigurados vieram bater á porta do lavrador que me tinha recusado a entrada. A porta fôra-lhes aberta, porque ninguem de casa os conheceu ao principio. Recolhidos, foram logo conhecidos; mas era tal o seu contentamento, e a sua linguagem que o lavrador adormeceu descançado com os seus dois hospedes, que, por mais de uma vez, declararam com arrogancia que já não eram frades. O lavrador não os comprehendeu. Mas, alta noite, uma guerrilha forçara a porta, entrára e matára os dois desgraçados que tiveram a louca ousadia de resistir com bacamartes, depois de malogradas as suas razões. Surprehendeu-me esta noticia! parecia-me um conto disparatado!
«O jornaleiro arranjou-me um fato semelhante ao seu. Desfigurei-me. Providencia de Deus! No instante em que me vestia, olhei para a ferida que recebera na perna, e encontrei-a quasi cicatrizada! É quando o atheu o reconheceria o anjo do Senhor, pensando as chagas da alma e do corpo áquelles que o confessam!
«Saí. O quinteiro do lavrador estava a trasbordar de povo. Conheci que os cadaveres estavam no centro.—Atravessei a multidão, até junto do carro onde os mortos estavam... recuei horrorisado! Senti precisão de gritar: «justiça de Deus!» mas cedi a um sentimento egualmente grande. Do meu peito saíu outro grito: «misericordia, meu Deus!»
«Informei-me. Estes dois infelizes caminhavam para suas casas, com o cofre das economias do convento. Eram os assassinos do venerando prelado.
«Aquelle sangue escrevera na face de taes homens uma lugubre sentença de punição. Quem seriam os instrumentos de vingança? Ignora-se.
«Meus amigos, erguei a Deus as mãos, e os corações. Oremos pelas almas dos meus desgraçados companheiros!»
E oraram de joelhos. Maria tremia como de susto.
Não me demorei tempo algum n'esta aldeia—disse frei Antonio—Pedi ao meu pobre bemfeitor que me guardasse o meu habito, e prometti pagar-lhe o seu, que elle me deu com lagrimas de contentamento.
«Caminhei incognito, pedindo esmolas. Atravessei dez leguas para o norte, e assim assegurava cada vez mais a minha vida, não infringindo a condicional de morte, se eu caminhasse para o sul.»
O padre soltou aqui um sorriso de ironia inoffensiva e continuou:
«Achei-me no Valle d'Aguiar, ermo de paz, de tristeza santa. Cercado de montanhas pedregosas, a planicie abrange duas leguas, e perde-se na pittoresca Villa Pouca d'Aguiar. Tão profundo foi o meu desalento quando ahi me vi. Quanto depressa me afiz áquellas varzeas, e áquelle céo que parece firmar-se nas cristas das montanhas.
—E como vivias ahi, Antonio? perguntou o coronel.
«Vivia á sopa de um lavrador... Pasmas, meu irmão.
—Entristece-me de ver a miseria a que póde descer um homem do teu nascimento.
«Do meu nascimento! disse o padre, sorrindo—O que é o meu nascimento!... Essas jerarchias são filhas da nossa miseria; a desgraça não conhece nem o fidalgo nem o jornaleiro... Não me lamentes, meu irmão. O homem só reconhece a sua dignidade quando vive pelo trabalho do braço ou da intelligencia. Que maior nobreza querias tu que eu tivesse? Eu antes queria grangear assim nobremente o meu pão com o meu braço, e o coração, cheio de vontade. E pensas tu que a sociedade estaria corrupta pela jerarchia, se a ociosidade não estivesse em guerra constante com o trabalho? Medita, meu irmão, e verás que este paiz tinha excrescencias, que o obrigaram a deitar-se no doloroso leito de Procusto em que o ouvimos gemer... e gememos todos.
—Deixemos philosophias. A minha querida sobrinha quer que eu lhe diga como vivia...
—Isso já eu sei... era trabalhando...—atalhou Maria.
—Trabalhando, sim, por um salario de jornaleiro, e agradecendo ao Altissimo a robustez com que me dotara sentindo-me até com forças para poder lançar mão da enxada, e roçar um carro de tojo. Roçar um carro de tojo é sentir a gente a cada instante a precisão de arrancar espinhos que se cravam nas mãos e nos pés. É ir com as gabelas ás costas empasta'-las no carro, arfar de cançado, limpar com a manga de uma vestia de borel a face alagada de suor, carrear outra e outra gabela, durante um dia inteiro interrompido por uma hora do dia em que se come um caldo de couves, e umas batatas salpicadas de sal. Ajoelhava a pedir a Deus coragem, forças e resignação: não lhe pedia melhor pão, nem melhor vida. Sabei que o temor de Deus é uma renuncia, que a materia do homem faz ao espirito, que é do Creador. A Providencia transfigura o infeliz, ao passo que o infortunio lhe vae mudando em dôr as lagrimas. E, se não, dizei-me: quem me obrigou a mim a occultar o nome que poderia alliviar-me de alguns rudes trabalhos de lavoura? Não poderia eu ser mestre de meninos? Não tenho eu o meu caracter de ministro do altar, e a minha pobre intelligencia para remediar n'um pulpito o ministerio apostolico? Tinha, e vivia em terra que me daria protecção. E, com tudo, nunca me escasseou o alento para trabalho mais pesado, nunca me senti doente ao levantar-me da minha enxerga, antes de amanhecer, para vigiar os fructos, em que me estava garantido pela omnipotencia do Senhor o premio do meu trabalho. Os monges primitivos da minha ordem como é que viviam? Não cultivavam elles os seus campos, e não cosiam os pannos da sua tunica? É que ainda então não viera o privilegio e a classe sanctifiar a inercia do corpo em virtude da varia côr dos sangues. Santo Deus, como são pasmosos os caprichos que rebaixam a magestade do homem trabalhador, alteando ao fastigio do acatamento o ocioso por mercê de uma herança!...
«Finda a guerra, expirava a condição da minha liberdade: caminhar sempre para o norte. Comecei a soffrer saudades da minha familia. O coração vaticinava-me que vós existieis. E, depois, a vontade era energica, e irresistivel. Pareceu-me sobre-humano o estimulo. Despedi-me dos meus bemfeitores. Rodearam-me os filhos, e chorámos todos. Traí-me em algumas palavras que soltei. Arrebatou-me a poesia d'aquelle adeus. Fitaram-me com espanto: queriam pedir-me perdão... «de que, meus filhos?» perguntei-lhe eu!... Deus permittiu que eu me desmentisse. Parti.
«Trilhei os passados vestigios da minha jornada. Paguei o vestido que o jornaleiro me vendera. Recebi o meu habito: bem o vêdes; mas o capote? perguntaes vós. O capote é a esmola de uma missa que devo ás almas do Purgatorio. A fome estorvou-me o passo muitas vezes nas sessenta e cinco leguas, que nos separavam. Á maneira do homicida, que foge á justiça dos homens, perdi-me por atalhos e devezas, que me dobraram o caminho. Os ultrajes vexaram-me quando a fimbria do meu habito me denunciava. Algumas vezes tive em resposta, pedindo, uma ameaça, uma insolencia, um epitheto injurioso.
«Está fechada a minha Illiada de lagrimas. Deixae-me engrandecer até á valentia moral do bravo capitão de Homero. Os cabellos branquearam-se-me em tres mezes; mas venci a desgraça, porque nas mãos do Omnipotente fui instrumento de fortaleza.
«Meus amigos, não quero que a minha historia descaia em sermão. Eis-me comvosco. Somos todos pobres, não é assim?»
—Ninguem é pobre, quando ama, meu irmão—respondeu a esposa do coronel.
—É uma grande verdade, minha irmã—proseguiu o frade—o amor é uma luz que não deixa escurecer a vida; é reflectida do astro eterno; irradia-se de Deus. E é verdade que me estimaes como vosso? Não vos obrigo á resposta. Deus quer indemnisar-me. Estes meninos são os queridos do Senhor: falam pelos labios da innocencia: vê-se que me amam, e me querem: é assim, Maria?
—Muito, meu querido tio!—E abraçava-o com enthusiasmo e alegria, como se quizesse consolar os pezares do venerando velho. E abraçavam-n'o todos.
Frei Antonio dos Anjos, com seus sobrinhos nos braços, ajoelhou, exclamando:
—Graças vos sejam dadas, meu Deus! Destes o amor em recompensa ao homem attribulado! Trouxestes o pobre velho pela mão ao seio da sua familia! Provaste-o em todas as amarguras; e não consentiste que o fragil barro fosse quebrado.
Tinha custado muito sangue, esterilmente derramado a solução de um problema que, havia muitos seculos a humanidade procurava resolver: a miseria. O processo escolhido em cada seculo para o mesmo resultado, tinha sido identico: a guerra ao rico, em nome do proletario. A unica situação real, que os homens podem consolidar no marulho fervente das suas utopias, é conciliar pelo soccorro-mutuo duas idéas que parece repellirem-se: a pobreza e a felicidade. Mas esta situação que as escolas da philosophia materialista chamavam absurdo, realisa-se pelo dogma da Associação que é a traducção da fraternidade, que o christianismo afervora: é a felicidade do homem do trabalho sem attentar contra o rico. Tão sublime idéa, tão grandes factos teem-se operado n'um grande centro, que, inspirado por Deus, irradia uma luz evangelica por todos os homens.
Enlaçar n'um abraço voluntario a pobreza e o contentamento, esposar estes dois predicados que luctam rancorosamente no coração da humanidade, amiga'-los, move'-los a dulcificarem-se, identifica'-los para que o divorcio os não desligue n'um repelão desesperado: tal prodigio, um consorcio assim só na pratica do soccorro-mutuo pela associação póde operar-se, porque é a genuina traducção do Evangelho que Jesus nos deixou recommendado.
O incredulo do christianismo e da associação ao passar na sua carruagem, assaltado de cuidados, pela porta do operario, sente-se affrontado pelas risadas alegres que lá vão dentro d'aquelle sotão raso com o chão. Tal homem não possue o capital que mais felicidade produz. Não sabe que a religião e o soccorro mutuo são o incentivo do trabalho. Compreende, apenas, que o trabalho é o capital unico do proletario. Julga elle que o artifice alquebrado de vigor, no fim do dia, atira com o corpo ás palhas do repouso para mentir no somno aos flagellos do dia futuro. Não sabe que o amor em todo o tempo, em todas as edades, e em toda a hora do dia, é quasi um exclusivo do pobre. Não sabe que o artista é pae, é esposo, é christão, e possue um thesouro de affectos que o deixam á beira do tumulo para entrarem no seio de Deus, como paga de um emprestimo contraído para adoçar as amarguras da terra. Não sabe que o soccorro-mutuo derivado do trabalho faz a tranquilidade do homem laborioso.
A familia do coronel... era como a familia do artista. Alli, a pobreza tinha sorrisos, a resignação um triumpho, e os desgraçados um exemplo. O coronel ensinava primeiras lettras. Fr. Antonio dos Anjos ensinava latim. A esposa do coronel com quatro filhos entrançavam cordões para dragonas e pennachos. Maria, aos oito annos, copiava musica e fazia flores.
—O trabalho! meus filhos, o trabalho!—exclamava padre Antonio, extendendo em veneranda postura o braço sobre a mesa, em redor da qual uma familia alegremente saboreava um parco jantar.
Estariam elles esquecidos do seu passado? como puderam amoldar-se aquelles espiritos ás angustiadas urgencias, ao passadio mesquinho de operarios? A soberba da educação não se rebella contra a lei oppressiva da necessidade?
Não. O anjo de Deus viera sentar-se no limiar do infeliz, e o demonio do orgulho não póde tramar as conspirações do ocio contra a familia laboriosa. Frei Antonio era o anjo dos alentos, da resignação, e das esperanças. Venturas que elle via no futuro, ninguem as via; mas acreditavam-nas todos, porque as suas promessas tinham a unção da prophecia. E não era calculando eventualidades politicas, nem thronos arruinados, nem batalhas feridas no seio da patria, que frei Antonio aventurava promessas. D'onde a inspiração lhe vinha não sabia elle dize'-lo; mas o santo homem nunca, se levantava dos pés da cruz, que não trouxesse aos seus uma palavra de esperança, um vaticinio mysterioso.
—É o céo que o tio nos promette...—dizia Maria, sorrindo para sua mãe, e recortando a folha de um lyrio.
—E que melhor promessa, minha filha?—respondeu a mãe sem levantar os olhos do seu trabalho.
—Queres dar a tua lição, menina?—perguntou frei Antonio, anediando os cabellos negros de Maria.
—Sim, meu tio, mas sem despegar do trabalho, porque tenho grande tarefa. Hoje ha de, permittindo Deus, ficar prompta esta flor; disse-o a mãe... senão... o tio bem sabe...
—Senão o que, minha filha?—perguntou a mãe.
—Senão...—tornou Maria sorrindo com graciosa malicia—não merendo.
—O teu sorriso faz-me chorar...—disse a mãe, limpando os olhos, e violentamente sorrindo.
—Temos lagrimas? Ora vamos...—atalhou o padre, dando ás palavras um tom de risonha ameaça.
—Não, que minha mãe é assim!—tornou Maria.—Não póde mesmo a gente fingir que é infeliz! Permitta Deus que todos se julguem tão venturosos como eu. Tenho pae que amo tanto, e mãe que mais não posso amar! sou tão feliz!... Minha mãe não podia ser tambem assim, se achasse a ventura no meu amor?!...
—Ó minha filha... exclamou a mãe.—Obrigas-me a pedir-te perdão... Castiga-me Deus pelos labios da innocencia... Sim... eu sou muito feliz...
E abraçou-a impetuosamente como impellida por um amor que a transportava.
O coronel viera testemunhar este lance. Parou respeitosamente diante do grupo, em que avultava o padre levantando machinalmente as mãos para o céo, jubiloso de um sorriso todo alegria, todo luz, que parece scintillar no semblante do justo. E o mais é que as lagrimas vieram solennisar aquelles extremos de alegria! Choravam ambas, mãe e filha, com as almas afinadas pela mesma emoção, pelo mesmo enthusiasmo no amor.
Frei Antonio antevia a nova organisação economica e social que ha de corrigir suavemente as velhas imperfeições da sociedade.
—Mãe, filha, e todos nós—dizia o coronel—seremos felizes com as vossas inspirações.
—O contrario seria um crime, meu irmão!—respondeu frei Antonio, tomando-as ambas, abraçadas ainda, entre os seus braços.
A vida d'esta familia correra assim tres annos. O dia de hoje, empregado em grangear a subsistencia do de ámanhã, promettia a mesma tranquillidade nos dias successivos. E assim passavam.
Frei Antonio era o mestre de Maria. A educação litteraria, que lhe dava, não era simples. Apaixonado pelos seus, e pelo esplendor da sua patria, frei Antonio affeiçoára o espirito de sua sobrinha aos moldes graves da poesia portugueza do seculo 16º. Fizera-a decorar a historia nos cantos das epopêas; afinára-lhe o gosto no arrebatamento d'aquelle genio, que deu lições de resignação aos desgraçados. Camões era mais que um poema decorado por Maria. A cada verso era interrompida, e o poema tornava-se, commentado pela eloquencia do padre, um fecundo manancial de moralidade. O sabio não se contentava com o amor exclusivo da sua litteratura. Frei Antonio amava alguns livros francezes, e os italianos de todos os seculos. Maria aos dez annos conhecia as duas linguas, e lia, nas horas vagas desoccupadas da noite, com percepção admiravel. As suas lições não interrompiam o trabalho das flôres. Em quanto de entre os dedos lhe brotava a rosa, incendiavam-se-lhe as faces, lindas como a flôr, pelo calor nervoso com que expunha episodios de historia, adaptados á sua intelligencia pelo estylo energico do seu tio. Seus irmãos, mais velhos que ella, porfiavam em imita'-la, e sentiam-se feridos no amor proprio, quando a viam voar pelo mundo da intelligencia, defeso á sua. Maria era um prodigio—dizia o pae:—era forçoso reprimi'-la na audacia das suas duvidas sobre motivos religiosos, porque frei Antonio com horror á superstição e fanatismo não tolerava senão a religião na sua maior pureza. «Maria, tinha uma razão, capaz de perder-se por muito energica» accrescentava o mestre.
Maria, aos doze annos, mostrava singular desenvolvimento de compreensão. Não se lhe difficultavam as entidades ideaes da metaphysica, e leccionava seus irmãos na arte de pensar, como se ao seu espirito descessem do céo revelações das que encaminham a razão direita ao alvo das verdades eternas. O juizo, porém, essa faculdade, que não tem ainda o nome na sciencia do coração, esfriára-lhe o enthusiasmo, que, dois annos antes, lhe acalorava a infantil eloquencia. Havia tristeza na amostra do seu talento. Parecia violentar-se quando a estimulavam a revelar a sua opinião em objectos de sabedoria. Até não queria ser galardoada com applausos, e córava, se a faziam inveja de seus irmãos. Pedia que a deixassem no seu officio de florista, dando-se por contente do pouco que sabia, pois pouco bastava a uma mulher, que não podia repousar a cabeça, e adormecer no seio da sciencia. A formosa artista tivera um piano, em que dedilhava os seus primeiros ensaios, quando seus paes o venderam. Tomara a peito um peso enorme de trabalho, esperando accumular dinheiro que lhe restituisse o seu piano; e conseguiu-o, quando o seu nome se fez celebre, n'aquelle genero de enfeites, que a moda pagava caros.
Em casa do coronel de ***, até esta epoca, nunca se reuniram a um chá pessoas extranhas. Aquellas portas fecharam-se: o habito applaudiu essa deliberação forçada pelas circumstancias; e, quando estas mudaram, não foi levemente alterada a sabia economia, que tanto concorrera para a felicidade d'aquella familia.
Não obstante, o nome de D. Maria dos Prazeres não esquecia nos grandes circulos, nos salões do luxo e da moda. A esse nome estava vinculado o prestigio de uma familia illustre, nublada pelas tempestades politicas. Pintava-se com traços exagerados, talvez, a transição da opulencia para a miseria; faziam-se romances, mais ou menos idealisados pelo gosto da epoca; contavam-se assombros de um genio que o infortunio acanhava, em forçada obscuridade. Ninguem vira de perto D. Maria dos Prazeres, ninguem a encontrára fóra da rua por onde ia á egreja; mancebos, porém, que precisavam interessar na sociedade, cançada de logares communs, diziam que a tinham ouvido um minuto, dois minutos, cinco minutos, maravilhados da sua formosura, e pequenos diante da sua eloquencia.
O nome de Fr. Antonio dos Anjos vulgarisou-se com o de sua sobrinha. A ligação de mestre e discipula apregoava as duas pessoas com egual elogio.
Um fidalgo de Lisboa quiz conhecer o egresso. Achou-o semelhante aos gabos, que o engrandeciam. Honrou-o com attenções e obsequios, que occultavam um fim honesto. O fidalgo tinha um filho de dezoito annos, rebelde aos rudimentos das boas sciencias, mas em demasia versado n'esta alchymia do mundo, em que o libertino devora primeiro o cabedal da sua virtude, e sacrifica depois a virtude alheia, como o escravo infeliz d'aquelle prestigio queimava no cadinho a sua subsistencia, e seduzia depois os outros a empobrecerem-se.
Fr. Antonio, instigado pela caridade que lhe impunha a salvação de um naufrago, acceitou a empresa, recusando a feliz perspectiva que devia remunerar-lhe o seu trabalho.
O padre considerou-se imprudente em annuir, quando viu a funesta impressão que tal noticia causou em sua sobrinha, particularmente. Roubarem-lhe o anjo da infancia, quando, adulta, mais carecia d'aquelle esteio a que o seu coração se acostumava, era penalisa'-la com saudades inconsolaveis: era uma crueza, não de um extranho, mas de seu tio, que não tinha precisão de assoldadar-se ao pão alheio. Esta sua queixa, justificada com profunda tristeza, e continuas lagrimas, pungia o coração do velho até ao extremo de o lançar no leito da doença. Era irremediavel a promessa indiscreta: a palavra de honra, que lhe fôra pedida pelo fidalgo: a obrigação que se impoz de arrancar á libertinagem, que dominava grande parte dos antigos fidalgos, um mancebo perdido.
Maria, quando viu adoecer seu tio, ministrou-lhe o balsamo da ferida. Ella mesma, repesa da severidade de seu amor, pede-lhe que vá repartir com os necessitados o pão da sciencia e da virtude, que, tão farto repartia com ella.
—Era peccaminoso o meu egoismo!...—lhe diz—Não pude vencer-me! O meu coração é impetuoso. Meu tio não quiz remediar-me este defeito, reprimindo-me a dedicação com que, ha seis annos, correspondo á sua amizade. Ambos somos culpados; mas eu sou mais... Fui precipitada. Lembrei-me que era abandonada, por ser esquecida algumas horas do dia!... É forte creancisse, não é, meu tio?
—Eu!... esquecer-te... minha filha!...—balbuciou o padre.
—Bem o disse eu! É muito meu amigo... leva a minha imagem no seu coração para onde fôr... tem-me ao seu lado nas suas orações... responde ao meu coração que lhe pergunta a adivinhação d'estes segredos que eu tenho aqui, e só meu tio me adivinha... é tudo isto... sim, meu caro tio?
—Sim, tudo, minha menina.
—Oh meu tio!—continuou ella exaltada—não nos podemos separar. A intelligencia é um fio electrico. Ha vibrações na minha alma, que, se meu tio as não ouvisse, seriam perdidas, como as notas de uma harpa tocadas pelo vento em cima de um sepulchro deserto. Meu pae, e minha mãe, e meus irmãos, quero-os para o amor, quero-os para o coração, morro pela sua felicidade se m'o exigirem; mas o meu espirito precisa de alimento, a minha intelligencia quer um pasto ideal que não acho aqui, se meu tio me desampara. Não vê que foi um impulso providencial, que o trouxe aqui salvando-o de tantas mortes que lhe embaraçaram o caminho? Eu não tenho sido ingrata a Deus: ergo-lhe as mãos todos os dias, reconhecida, humilde, mas venturosa de ter nascido sua sobrinha!... Não me faça persuadir que Deus olha com indifferença as minhas preces...[1]
—Maria, interrompeu o padre, tu não pensaste o que dirias antes de vires ao meu quarto!... Magoaram-me as tuas ultimas expressões... Não me pareceram tuas...
E Maria arquejava sem desafogo. Parecia não escutar o tio.
—Vem cá, minha filha—continuou elle, extendendo-lhe a mão, com um sorriso affavel—vem cá. Que queres tu de mim? Não queres que eu vá fazer um bom filho, e um bom cidadão?
—Vá, vá, meu tio!—exclamou ella, com energia.
—Não achas tão sublime a missão confiada por Deus ao padre velho, que não tem outra herança a legar-te, senão a memoria da sua beneficencia?
—Sim, sim... é o que ha de superior a tudo... ao amor, á vida, á esperança... Sim, sim...dê-me esse irmão em crenças, veja-o subir para Deus, impellido pela sua palavra inspirada... eu pedirei por elle; trocaremos as nossas orações; elle pedirá por mim, porque a conversão de um perdido enche o céo de alegria e faz exultar os anjos!... Elle ha de, inspirado pelo céo, compreender, como nós já compreendemos, desde que vivemos artistas, o que é o amor de Deus e a virtude do trabalho.
Notas
[editar]- ↑ Nem sempre é inverosimil a linguagem figurada. Mais de um critico, a estas horas, se indispõe contra as hyperboles de Maria, aos quatorze annos tão espevitada! Pois creiam que não é justo o seu reparo. Se lhes eu tivesse dito que Maria convivera nas salas onde o lyrismo do coração não tem nada a fazer com a vida positivissima que lá se vive, em linguagem chan e desenflorada de figuras inuteis, tinham razão sobeja para dizerem que nunca por cá toparam d'estas donzellas Ciceros ou donzellas Gongoras, como quizerem. Attendam, porém, ao facto, se não teem a experiencia: mulher instruida, ou presumida de instrucção, se lhe falta o trato que precisa o estylo segundo as circumstancias, fala assim, e escreve assim. Aquella filha de Manuel de Sousa e D. Magdalena de Vilhena, que o immortal Garrett faz morrer de vergonha, em Fr. Luiz de Sousa, era, com menos sete annos, muito mais espirituosa, e, se querem, mais desnatural. O inverosimil é algumas vezes verdadeiro, assim como
Le vrai peut quelque foi n'être pas vraisemblable.(Boileau, Art. poet. c. 3.^e).
Frei, Antonio mudou a residencia para casa do fidalgo. Alvaro da Silveira era o educando. São precisas algumas linhas do caracter d'este mancebo.
Nascera rico: primeira desgraça, quando um pae, herdeiro de opulencia e libertinagem, sente a precisão de transmittir a seu filho a herança, qual a recebera. Acalentado em berço de ouro, quando os primeiros annos lhe deram a convicção da sua individualidade, reclamou a sua emancipação dos carinhos maternos, que lhe eram pesados, e extremos do pae que o enojavam por muito repetidos. O elogio acompanhava-o sempre em todas as suas tentativas de independencia. Quando de seis annos rasgou o A, B, C, na presença de um professor, que o contrariava, seus paes riram-se do galhardo heroismo da creança, e exultaram de ve'-lo assim brioso em tão verdes annos. Quando aos oito annos o viram espancar a ama, que lhe prohibia apedrejar uns meninos pobres, que lhe pediam pão, disseram-lhe que era feia aquella acção em menino fidalgo, e deram-se os parabens, a occultas, de tão corajoso rasgo. Quando aos dez annos o ouviram pedir dinheiro para gastar em seus caprichos de creança, preliminares de lastimaveis depravações de mancebo, deram-lhe dinheiro, com a condicional de não caír do cavallo, nem guiar o carrinho por passagens mal gradadas. Quando aos quinze annos....
Seus paes atiraram-n'o ao tremedal de todos vicios. Deixaram medrar a planta da má inclinação no clima proprio, naquella atmosphera de Lisboa, onde os miasmas da corrupção lavravam desde que alguma classe degenerou pela ociosidade, e pelos vicios da velha organisação social. A arvore lavrou raizes até onde seus paes não previram, por mais que amigos e extranhos lhes abalassem o coração d'aquelle profundo somno de um affecto criminoso. As immoralidades do filho estamparam um estigma de opprobrio nas faces dos paes. O jogo, contrariedade unica e pungente, que na sociedade encontrava o libertino, arruinaria a fortuna d'uma familia, de muitas familias opulentas se Alvaro da Silveira não attendesse aos conselhos, ás primeiras admoestações de seu pae. Foram baldadas. Alvaro ouviu-as com enfado, çom soberania, com desprezo, e satisfez a irritabilidade de sua má indole, conduzindo á porta de seu pae novos credores e novas vergonhas.
E, depois, a intelligencia d'este mancebo era um repositorio de todos os vicios, sem ao menos quinhoarem do ouropel da urbanidade que parece ás vezes modificar a torpeza com que nos enojam em um licencioso, estupido e villão. Alvaro era grosseiro no crime. Indignava os muitos que lhe não eram somenos em dissolução mas menos brutaes que elle. As pustulas n'aquelle cadaver mostravam-se ao clarão do vicio com todo o asco. O homem perdido parecia renovar emoções, e satisfazer o instincto, provocando á nausea uma sociedade cujo abandono lhe accendia um desejo impotente de vingança.
Fr. Antonio dos Anjos fôra chamado para preparar este homem a conhecer a honra, levando-o pela vereda da religião.
Alvaro da Silveira não fôra prevenido. A presença do sacerdote, apresentado por seu pae, moveu-lhe uma curiosidade selvagem. Parecia-lhe um sonho aquella visão extraordinaria, aquelle encontro tão disparatado com a sua vida, o seu olhar idiota era eloquente ao mesmo tempo. Revelava uma interrogação natural e desculpavel:—que me quer este homem?
Fr. Antonio, limitado ao seu ensino de portas a dentro, e alheio á vida de Lisboa, não conhecia cabalmente a historia do seu discipulo. Os traços que o pae lhe revelára eram logares communs da mocidade desenfreada. Não é crivel que o padre bem informado, tentasse a empresa de conquista'-lo para a virtude. E quem póde avaliar a coragem religiosa?
Alvaro sorriu, voltou as costas ao mestre, levando em galhofa o que lhe não parecia cousa de serio alcance. Este grosseiro procedimento magoou momentaneamente o padre; mas, repreendido pela caridade, aquietou depressa os irritamentos do amor proprio. Foi então que o pae, tão culpado como desditoso, desenrolou o sudario das desenvolturas de seu filho. Chorava, arrependido do mimo com que o perdera, e perguntou ancioso se seria possivel salva'-lo da sua ruina total.
Fr. Antonio não conhecia limites á sua confiança em Deus. Convicto das mercês visiveis que recebera da omnipotencia do Senhor, sentiu-se illuminado de uma fé que lhe affiançava um prodigio. A peleja travada, em nome da virtude, com o espirito do mal, tinha muitas vezes triumphado de uma parte da humanidade, revoltada contra um só homem. Exemplos de maiores maravilhas alentaram o sacerdote. Desde esse momento, afervorou as suas preces ao Senhor, a cujo aceno a virtude, morta no coração do impio, surgiria como a lagrima do remorso nos olhos de Magdalena.
Esse dia de estreia para a missão do padre, foi mais um decorrido nas immoralidades do discipulo.
Não viera a casa, durante o dia, e metade da noite. Parece que tudo dormia no palacio; quando Fr. Antonio sentiu o rumor de um cavallo no pateo. Orava ainda, fóra do leito, ajoelhado, com o lenço ensopado em lagrimas de dorida saudade. A imagem de sua sobrinha não lhe consentia o repouso, de noite; obrigava-o ás tribulações de um amante desprezado. E, então, o ministro de Deus recolhia-se em oração, com a vehemencia de uma esperança infallivel no refrigerio do céo.
A essa hora, pois, chegava a casa Alvaro da Silveira. O seu quarto era immediato ao do sacerdote. Entrou assobiando as reminiscencias das cavatinas theatraes, e reclamou em brados imperiosos a ceia. Os servos pontuaes como escravos aos caprichos rapidos dos patricios da Roma dos imperadores, affluiam a servir o amo, que ordinariamente punia uma certa demora com a ameaça formal de quatro chicotadas. Conduzida a ceia, repellira os creados com desabrimento e ficára sósinho trauteando e comendo promiscuamente.
Alvaro acabava de cear, esquecido da apresentação do padre, quando ouviu na porta um toque.
—Entre quem é!—bradou elle.
Quem quer que era cumpriu. A presença veneranda de Fr. Antonio, um passo dentro do quarto, era uma impressão nova para o mancebo! Involuntariamente sentiu curvar-se-lhe o pescoço á cortezia grave com que o sacerdote o saudára.
—Então ainda a pé?!—perguntou Alvaro.
—Ainda a pé, e Deus sabe se me deitarei... As horas da noite são as horas da oração. Parece que o ermo e o silencio excitam a conversação do espirito com Deus... E v. ex.ª recolheu-se agora, não é verdade?
—É verdade...—respondeu o mancebo com um embaraço, que revelava a sua extranheza n'estes dialogos.
—Precisa repousar—tornou o padre—Eu, como estava a pé, quiz dar-lhe as boas noites. Agora recolho-me pedindo a Deus o seu descanço, como condição da vida, para amanhã abrir os olhos á luz que bem póde não alvorecer para nós. Fique v. ex.ª com Deus.
E retirou-se. As ultimas palavras de Alvaro pareciam syllabas desarticuladas. O frade ferira-lhe um orgão ainda virgem d'aquellas impressões. Aquelle memento, áquella hora, por aquelle homem, acordára-lhe o mais nobre dos pensamentos, que o materialismo lhe adormecera nos gelos do coração: DEUS. Os confusos projectos do dia seguinte aturdiam-se-lhe na cabeça, como alvoroçados pelo pregão da morte, que mandava calar os designios humanos na presença do destino eterno.
O abalo fôra vehemente, mas pouco duradouro. Alvaro da Silveira adormeceu. É que o som vibrado na corda da religião, devia esvaecer-se entre o estrondo das paixões ruidosas, como o vagido da creança no alarido das turbas amotinadas.
Alvaro da Silveira costumava tocar a campainha depois do meio dia, quando alguma empresa impertinente lhe não assaltava o precioso somno da manha.
Fr. Antonio, prevenido, foi visitar sua familia, cuja ausencia lhe parecia longa e incomportavel. Antes de sair trocou algumas palavras com o dono da casa pedindo-lhe que entregasse a Deus a regeneração de seu filho.
Quando entrou na sala, sua sobrinha estava ao piano. Pé ante pé firmou-se onde de longe podia contempla'-la, e surpreende'-la com palmas. Reparou que o papel de estudo não era musica. Esperou. De improviso, ao som melancolico das teclas casou-se uma melodia triste, profundamente triste, como as convulsões de um longo gemido. Aquelle papel continha a letra do canto. Que versos seriam aquelles?
E o canto parou com a ultima nota do acompanhamento. Maria firmou os cotovellos nos braços da cadeira, e escondeu o rosto entre as mãos. Ás vezes corria as mãos pela testa, e deixava-as pender enlaçadas sobre o regaço. As suas posturas eram todas afflictivas.
—Que tens, minha filha—murmurou o padre caminhando para ella.
Maria ergueu-se arrebatadamente; correu aos braços do tio, e não teve exclamação que revelasse o alvoroço d'aquella surpresa.
—Cantavas como um anjo—continuou o padre, acariciando-lhe a face pousada no seu hombro—mas tão melancolico era o canto e a musica!... Nunca te ouvi ainda esta lamentação! Vejamos que poesia é esta!...
—Não, não, meu tio!,..—atalhou Maria, querendo affavelmente desvia'-lo do piano.
—Porque não? Mysterios para o teu amigo que t'os adivinha no coração? Segredos para o teu mestre, Maria!
—Não é segredo... é vergonha...—exclamou a linda menina com a voz entrecortada—Esses versos fui eu que os fiz..
—E tens reservado para ti esse dom? Quando disseste ao teu velho tio que fazias versos?—disse o padre sorrindo com meiguice.
—Eu não sabia que o eram... Nem sei se o são...—balbuciou Maria, córando, e procurando fugir de estar presente á leitura.
Fr. Antonio levou-a pela mão ao piano. Tomou da estante a poesia, e leu:
- PRESENTIMENTO
«Minha paz no infortunio,
Minha alegria na dôr,
Quem m'a déra, qual a tive,
Qual m'a déstes, vós, SENHOR!
«Desbotou-se-me nos labios
Meu sorriso tão singelo...
E eu com elle premiava
Tanto amor, tanto desvelo!...
«Tanto amor, que eu vos pedia,
Do que os anjos tem nos céos,
Para amar meus paes, meu tio,
Como vos amo, meu Deus!
«Não scismei outras venturas,
Outros gosos não pedi:
Fui tão rica na pobreza...
Na pobreza empobreci.
«Senti lagrimas no rosto...
Sei que tenho aqui no seio
Escondida uma tristeza
Que de vós, meu Deus, não veio!
«Deu-m'a o mundo?... sim... daria...
Mas que mal ao mundo fiz!?
Serei eu de alguem inveja?
Pois que eu não seja feliz!
«Volva o tempo da penuria,
Quando eu fiz a pobre flor,
Que me dava um pão regado
Com meu pranto e meu suor.
«Dae-me as noites não dormidas
De trabalho e de alegria;
Meu orar na madrugada,
Quando, tão feliz, me erguia.
«Oh meu Deus! se a humilde serva,
Não votaste ao soffrimento,
Abafae lhe a voz, que a punge,
D'um cruel presentimento!»
Fr. Antonio lera commovido essas singelas quadras, cujo toque de sentimento não póde enternecer-nos, talvez. Nos labios d'elle, tremulos e nervosos, a poesia soava como um canto funebre. Que tristeza no declamar! Poderia ter-se como uma elegia á innocencia de Maria? Por Deus que não. O hymno, que transluzia da nuvem escura da sua tristeza, era como a luz do relampago que aclara, de repente, um amplo espaço: era a luz electrica das intelligencias privilegiadas; o abalo do presentimento que quer saír do circulo do mysterio: a adivinhação do futuro.
—Que é o que entristece a tua vida, Maria?—perguntou Fr. Antonio.
—Já me lembrou se seria a muita felicidade, meu tio.
—Não te compreendo... abre-me o teu coração sem reserva... Serias culpada se fingisses a teu tio as razões do teu soffrimento...
—Não posso mentir-lhe, meu tio... Não sei ainda o que é fingimento... nunca na minha vida menti a alguem. Eu não sei porque estou triste. O meu coração não m'o diz, e a minha tristeza nasce-me do coração, esconde-se lá como um segredo afflictivo... E eu que mais hei de dizer-lhe, meu caro amigo? Que peço muito a Deus que me não quebre este calix de amargura, se a sua divina vontade ordena que eu o exgote.
Maria enxugava as lagrimas copiosas, que pareciam esfriar-lhe o calor febril das faces. Fr. Antonio, contemplativo, olhava para a sobrinha silenciosa, como querendo ler-lhe no rosto a ultima palavra d'aquella revelação confusa.
O coronel entrou na sala, e correu a abraçar seu irmão, e dar a mão a sua filha, que lh'a não beijara ainda. Maria, surpreendida, quiz, á custa de um sorriso violento, converter em alegria aquella saudação; mas a dôr de filha é necessario que seja peccaminosa para esconder-se aos olhos de pae. O coronel e sua esposa velavam as tristezas de Maria como lhe velariam perigosa enfermidade. Consultaram mutuamente os seus temores; e a severa experiencia do mundo alguma vez lhes inspirou bem tristes receios. Aos quatorze annos ha melancolias no coração de uma virgem, que apenas tem de mysterioso a tendencia irresistivel, que Deus lhe imprimiu para o ideal de um amor terreno, que, no altar da innocencia, recebe uma adoração, senão semelhante, ao menos perfumada com o mesmo incenso do amor divino. E a mãe de Maria recordava-se da sua infancia, e perguntava a seu marido se as lagrimas da filha seriam as precursoras de alguma paixão infeliz. Era indiscreta a pergunta. Não se dera nunca o incentivo de suspeita. A vida de Maria não tinha um instante mysterioso a seus paes. Trabalho e oração—não tinha outro desvelo desde o amanhecer até á ultima benção pedida a seus paes.
Maria, valendo-se da conversação do pae com o tio, retirara-se da sala. O coronel assim o queria, para consultar o irmão, homem de Deus, que via o coração dos outros com os olhos puros da probidade. Mas não são esses olhos os mais penetrantes para devassar segredos, que se escondem no coração apaixonado pelo mundo. Quem adivinha as luctas intimas do espirito, escravisado aos caprichos das paixões, é o homem das paixões, encanecido na amarga experiencia d'ellas. Bem pudera Maria dos Prazeres agonizar nas tribulações de um amor criminoso, e sua morte ser um mysterio para o padre que não sentia acordar em sua alma o echo dos gemidos de sua sobrinha. O amor de Deus preenche todas as necessidades, responde a todas as aspirações do coração de um justo. Não é o justo de uma longa vida irreprehensivel quem póde arrancar ao penitente, que se lhe ajoelha, uma revelação pungente, que o pejo emmudece nos labios. É necessario profunda'-la com a sonda das proprias agonias. É necessario adivinha'-la no espirito do penitente, a favor de um symptoma que revela outro, de uma palavra solta que vae prender-se á explicação de um longo silencio. E esta dolorosa syndicancia não póde exerce'-la a simples theoria das paixões.
A arte, que ensina a levantar o véo das paixões silenciosas, era desnecessaria para Maria. A virgem não tinha segredos para alguem. Podesse ella entender a transfiguração da sua alma, a magua confusa dos seus novos pensamentos, que, bem feliz, pediria conselhos e consolações á sua familia.
—Mas aquelle silencio!...—dizia o coronel, replicando ás santas convicções do padre, a respeito da innocencia de sua sobrinha.
—Aquelle silencio...—dizia frei Antonio, consultando a consciencia, que lhe respondia de prompto—aquelle silencio... é a falta de palavras com que possamos fazer sentir aos outros uma idéa, que só a Divindade nos compreende... As horas de tua filha não são empregadas como d'antes na oração, no estudo e no trabalho?
—São, de certo, e mais continuadas na oração. D'antes orava em commum. Agora, encontramo'-la na hora do descanço, ajoelhada no sanctuario; mas vejo-a perturbada, quando reza. Ha lagrimas, e até aqui só lhe viamos o sorriso de consolação... Parece que n'aquelle orar, ha a supplica do perdão para o crime que a accusa.
—É impossivel!—exclamou o padre, energicamente commovido.—É impossivel... não quero que em minha sobrinha se esconda um crime... uma falta! É uma injuria, meu irmão! Peccaste contra a innocentinha, e feriste-me a mim, que tenho formado aquelle coração, que Deus me confiou para crear-lhe um anjo.
—Meu irmão... não te afflijas... isto em mim é um receio.
A interrupção do coronel era tardia para evitar a exaltação nervosa do padre. As lagrimas davam-lhe ao rosto uma religiosa magestade. Assombrava-o o terror de uma conjectura cruel, como se visse caír á voragem do vicio a virtude, que elle, com sua propria mão, collocára em throno tão perto do céo. O coronel, tambem commovido, sentia-se nobremente exaltado pelo modesto orgulho de ter uma filha, cuja innocencia merecia tão fervorosa defesa. Abraçando seu irmão, parecia pedir-lhe carinhosamente desculpa do zelo paternal, que lhe inspirara receios por aquella que pertencia menos a seu pae, que a seu mestre. O lance era sublime; e o sentimento de ambos, vibrado na mesma corda, e acalorada pelo mesmo amor, elevava-se até Deus em oração de graças por Maria, anjo que lhes fôra dado como galardão á paciencia de muitos soffrimentos.
Quem poderia consolar a triste nas suas amarguras?
Quem póde cá da terra dissipar a nuvem, que escurece a face de uma estrella?
Quem póde, ao descair da tarde, reverdecer a corolla da flor desbotada pelas sombras da noite?
O futuro é o presente perpetuo da Divindade. Mas o espirito que se enlucta, sem lamentar a viuvez de illusões perdidas, veste-se de negro, como a virgem violentada a desposar no altar das lagrimas uma tribulação futura. É o presentimento.
Para as almas provadas em supplicios immerecidos, mas secretamente providenciaes, o presentimento não é uma palavra sem significação.
O cantico de Maria, cadenciado pelas quadras do seu hymno, era a unica resposta, que ella podia dar se lhe perguntassem:
—Anjo, porque soffres?
Decorreram algumas horas, e Fr. Antonio não podia demorar a sua visita. Alvaro da Silveira, fiel a seus habitos, deveria despertar ao meio dia. O padre retirou com uma saudade profunda, e uma dôr nova. A ultima afflicção de um justo quer Deus que seja a agonia do pensamento. A vida n'elle é uma cadeia de pesares, que tem no esquife o ultimo élo. Fr. Antonio, feliz com esta certeza, poderia fraquear na primeira lucta com o soffrimento, mas a sua queda era sempre de joelhos aos pés da cruz. E esta foi a sua postura, apenas entrou no quarto que lhe fôra dado em casa de Silveira.
A oração foi-lhe interrompida pelo toque da campainha. Esse som, que provocava pragas aos servos da casa, como signal de estar acordado o tigre familiar, foi para frei Antonio um despertador da oração em favor d'aquelle, que tão longe de Deus, sem um decreto do céo, mal poderia ser lá encaminhado pela debil mão de um peccador. E, terminada a oração, o padre chamou o creado, que saía do quarto de Alvaro, e mandou a s. exc.ª pedir licença para fazer-lhe companhia ao almoço. A resposta, qual era de esperar, deferiu a humilde supplica, e Frei Antonio, insinuante de brandura e civilidade, apresentou-se, pela terceira vez, ao seu educando.
A face d'este homem tinha uma alegre severidade, que não podia fitar-se sem respeitosa sympathia. Alvaro da Silveira ao ve'-lo sentia uma impressão extraordinaria, como não sentira na presença d'algum homem celebre em valentia, em talento, em devassidão, em prodigalidades, e em riqueza. A distincção da virtude ou do fanatismo, como elle dizia da religião, parecia-lhe uma cousa nunca vista na boa sociedade! Para não deixar-se vencer pelo panico da religião, Alvaro da Silveira dava-se uma explicação muito natural d'aquelle phenomeno: era a falta de convivencia com a classe dos padres.
Na verdade o jesuitismo e a hypocrisia pelos seus abusos interesseiros, tornando a religião instrumento innocente de uma politica facciosa, tem dado causa a todos os homens de consciencia conspirarem a expulsa'-los como vendilhões do templo. Essa a razão por que os falsos religiosos blasphemam quando presentem que uma minima centelha da razão illumina o campo da religião que elles pretendem pôr em trevas. Todo o homem sensato e sãmente religioso soffre uma intima dôr quando os falsos religiosos impellem os ignorantes, e alguns immorigerados como Alvaro da Silveira, a irem lançar-se na impiedade, fugindo da hypocrisia, que elles não sabem discernir da purissima religião do crucificado.
Mas, a seu pesar, a entrada de Fr. Antonio, e as palavras urbanas, e poucas, com que o saudára, continuavam a impressiona'-lo.
—Dormiu v. ex.ª socegadamente, não é assim?—perguntou o padre.
—Deliciosamente—respondeu Alvaro, apertando cortezmente a mão do sacerdote.—E v. s.ª como se deu no seu novo quarto?
—O melhor possivel. Um egresso, affeito a dormir na casa de um lavrador, acharia boa pousada em todos os logares debaixo do céo. Uma boa cama não abona sempre uma noite deliciosa ao que se deita n'ella. O melhor gasalhado, senhor, é o que nos dá a consciencia quando francamente se abre para receber-nos, e velar-nos o somno com o anjo da paz. Deus defenda v. ex.ª de revolver-se um dia nos espinhos, que perturbam o somno do mau, deitado em leito de cortinas douradas.
—Então v. s.ª—tornou Alvaro—tem andado por casa de lavradores? Eu cuidei que os frades eram ricos, e amigos das commodidades. Pelo menos é o que se diz por ahi...
—Os frades, senhor, não só eram ricos, mas tambem opulentos; procuravam todas as commodidades, gosavam todas as delicias, todos os prazeres que podem ser desfructados na vida material da terra. A ociosidade e a riqueza perverteu-os. As excepções choravam tal aberração. Como que olvidados do céo mergulharam-se n'uma politica inconveniente e injusta. Em pena de Talião, a politica por elles hostilisada, por todos os meios, tão obstinadamente, puniu-os expulsando-os das casas que não deviam mais pertencer-lhes.
Estava na mesa o taboleiro do almoço. Fr. Antonio pedia licença para servir o discipulo.
—Então v. s.ª não almoça?—perguntou Alvaro, offerecendo ao hospede uma chavena, não recebida.
—Almocei já, sr. Silveira.
—Com o pae, não é verdade?
—Não, senhor: com a minha familia.
—Então v. s.ª tem familia em Lisboa?
—Nasci em Lisboa, e tenho uma familia numerosa.
—Naturalmente pobre...
—Naturalmente, não, sr. Silveira; mas Deus indemnisou-a. Deu-lhe o amor do trabalho, e a noite e o dia, para grangear o pão de uma hora. Tem sido feliz, penso eu. O temor de Deus é a coragem com que se vencem os infortunios...
Alvaro, com a chavena esquecida na mão, escutava-o religiosamente. A novidade da linguagem, e o gesto religioso apraziam-lhe, e creavam-lhe desejos de ouvir o padre longo tempo.
—A sua familia é conhecida?
Esta pergunta de Alvaro da Silveira é textualmente o inquerito galhardamente fidalgo, que a nobreza d'estes reinos faz, antes de deixar approximar-se por algum desconhecido, duvidosamente inscripto no livro dos costados. Perdôe-se-nos o estylo; mas, desgraçadamente, tudo que é ridiculo traz inçadas certas classes, e não sabemos, quando se farão sérias, quando se approximarão um dia as familias, de modo que não possamos sem offender a Deus, perguntar a nosso irmão se seu pae é conhecido...
—A minha familia—respondeu frei Antonio—foi conhecida; mas não é de lamentar que seja hoje obscura. Mal d'ella se quizesse manter as vans regalias da sociedade, que v. ex.ª chamou conhecida! Penso que a minha familia não é conhecida.
—Mas deve estar aparentada...—replicou o fidalgo, instando nas perguntas inauferiveis da pragmatica heraldica.
—Creio que sim... O coronel ***...
—Já sei—interrompeu Alvaro—pois não!... é muito fidalgo, e está aparentado com boa gente; mas não apparece. Então v. s.ª é tio de uma menina muito falada?...
—Muito falada!?—atalhou o padre com sobresalto.
—Sim, senhor, dizem que é poeta, romantica, e muito linda.
—É virtuosa, senhor Silveira. Não lhe conheço outra qualidade, que valha a pena de mencionar-se. V. ex.ª já viu poesias ou romances, ou o retrato de minha sobrinha?
—Não, senhor, mas creio que não é mentira o que se diz. A opinião de virtuosa tambem a tem; se não falei de virtude, é porque não sei verdadeiramente o que é virtude; mas acredito que ella é uma excellente menina a todos os respeitos.
—A virtude, meu caro senhor, é a censura pratica do crime. Sabe v. ex.ª o que é crime?
—Tambem não—respondeu Alvaro com uma vaidosa entoação de espirito-forte.
—Eis ahi—disse Fr. Antonio sorrindo—uma violencia que está fazendo á sua alma, sr. Silveira. V. ex.ª disse que minha sobrinha era dotada de bellos attributos. Falou pela bôca da fama, e chamou-lhe poeta, romantica e formosa. Se minha sobrinha, apesar d'estas decantadas prendas e dons, que a sociedade encarece tanto, fosse má filha, e má irmã, poderia ella cegar os olhos da sociedade com a sua formosura e talento, para que lhe não vissem os defeitos...
—De certo não.
—Então é verdade, que a sociedade reprovaria o procedimento de minha sobrinha?
—Creio que sim.
—E v. ex.ª?
Alvaro ficou suspenso, e balbuciou, depois:
—Eu... eu... naturalmente...
—Juntava a sua voz á opinião publica—interrompeu o padre—embora v. ex.ª não antipathisasse com os actos repreensiveis de minha sobrinha.
—Assim é sempre—disse Silveira, com uma forçada resolução.
—E assim será sempre, porque ha um juiz incorruptivel, chamado a «verdade». As sentenças d'este juiz, embora fulminem as paixões desatinadas, são sempre recebidas, senão pelo espirito de uma sociedade gasta e immorigerada, ao menos por a consciencia d'essa sociedade. Ora a innocencia é invulneravel ao contagio da corrupção, como a lampada do templo ás exhalações pestilenciosas dos tumulos. A consciencia é o pregoeiro das sentenças que a verdade profere, e v. ex.ª, insensivelmente, apregoa. Será necessario dizer-lhe eu que sentimento é esse que se serve de v. ex.ª, como de uma machina para se exprimir? É a virtude, sr. Alvaro, é a virtude que faz realçar os dons de minha sobrinha, que lhe dá a soberania de um anjo, que o crime não póde encarar sem curvar-se servilmente: é a virtude, galardão ao principio do bem, que triumpha na lucta incessante com o principio do mal. A verdade não se desmente porque é o Evangelho identificado nos corações, e Christo ha dezoito seculos, encarnado na humanidade...
Alvaro parecia alegrar-se conforme ia perdendo o terreno, diante de um tão generoso como irrespondivel adversario.
Como se anciasse pela continuação da resposta do padre, quando este se calou, tambem Alvaro não teve uma syllaba, das que se pedem á «philosophia» irreconciliavel, para responder.
—Crê na virtude, sr. Silveira?—perguntou o padre com summa bondade e modestia.
—Tinha-me dito que o crime e a virtude eram relativos—respondeu o mancebo com ar de quem desacredita as doutrinas de um mestre que respeita.
—Tinham-lhe dito, senhor, que a consciencia universal era uma mentira. Mentiram-lhe cruelmente, porque v. ex.ª não podia, sem horror, encarar um filho que matou seu pae; um homem que traíu o seu bemfeitor; um juiz que entregou um innocente ao carrasco; um seductor que atou uma pobre mulher a um poste de ignominia eterna. V. ex.ª não póde, com indifferença, apertar a mão a este homem, não é assim?
—De certo: eu sou um extravagante, um vicioso, mas detesto infamias...
—Que todo o mundo detesta; mas o mundo onde a luz da verdade venceu as trevas do erro, que a palavra do Christo condemnou.
—Mas diga-me v.ª sr.ª... não dizem que ha paizes onde os paes matam os filhos, e os filhos os paes, legalmente?
—Houve, e haverá ainda. Mas sabe v. ex.ª o que é permittido ahi pela lei? É justamente o que é reprovado pelo christianismo.
—Mas a consciencia não se revolta contra taes actos sem que seja preciso que o christianismo os declare criminosos?
—Revolta, sim. Quando as virgens indianas se lançavam nos tumulos dos maridos, ou nas fogueiras legalmente accesas, as lagrimas, vencendo a coragem da superstição religiosa, desciam nas faces de uma familia, que seria injuriada se não cedesse em holocausto a desgraçada viuva. Os gritos d'esta eram os gritos da consciencia contra a lei barbara; eram a adivinhação da verdade denunciada pelo filho de Deus. Os filhos, que matavam os paes, eram algozes que a lei fizera, como entre nós a lei faz um carrasco. Poderemos nós argumentar contra a piedade, contra a virtude, e contra o amor porque um justiçado morre entre os braços de um homem, que executa a sentença de um juiz?! Persuade-se alguem que o homicidio legal, na consciencia do algoz, é um acto de amor e caridade?
—Penso que não.
—Pois bem, senhor Silveira; respeite a sua propria dignidade, já que os homens sem crença, sem Deus e sem esperança, lh'a quizeram aviltar, dizendo-lhe que o crime e a virtude são relativos...
Fr. Antonio fez menção de levantar-se e continuou:
—Tenho-o talvez privado dos seus divertimentos...
—Não, senhor... pelo contrario tem-me dado momentos de muita satisfação...
—Encho-me de prazer, se o consegui... E como tenho a honra de ser hospede de v. ex.ª...
—Mestre...—interrompeu Alvaro com alegria sincera.
—Não posso acceitar esse lisongeiro titulo;—amigo, se v. ex.ª me quizer honrar com este parentesco.
—Não me embaraça... Tenho muito prazer em que esteja...—disse Alvaro, apertando-lhe cordealmente a mão.
—Tenho obrigações a cumprir para com Deus: não faltará tempo proveitoso para os meus deveres com o proximo. Não sabe v. ex.ª que os padres teem um breviario, que a cada hora do dia lhe recorda o dever de orar por aquelles, que não cedem alguns minutos á oração? Filhos de Deus, pedimos uns pelos outros; e Jesus Christo beneficiou-nos com a riqueza da prece, com este patrimonio commum a todos os irmãos... E não é isto uma consolação para os que são atheus por contagio e não por convicções; fanaticos e supersticiosos por ignorancia e por estupidez?
—A respeito de atheismo... tenho... minhas... duvidas...—disse Alvaro com palavras entrecortadas por aquella pausa emphatica, semelhante á ironia dos sabios, segundo a moda.
—Pois bem... Temos zelo e vontade para acertarmos... Deus hade conceder-nos o tempo, que é o desengano de todas as duvidas... Até outra occasião...
E retirou-se contra os desejos de Alvaro. Mas fr. Antonio conhecia o coração do homem. Chamara-o Deus para uma empresa trabalhosa. A força descia-lhe do céo. Não era em si que elle confiava.
Mal o padre saíra, entrou Gonçalo da Silveira. Era o pae que procurava o filho: cumprimentou-o com a sua habitual frieza: mas o que de outras vezes era proposito, poderia então suppôr-se distracção. Alvaro absorvido nos seus pensamentos, quaesquer que elles fossem, parecia meditar uma das suas heroicas façanhas, sobresaltado, como quem recua diante de algum perigo assustador. Julgara-o assim o pae, julga-lo-iam assim os domesticos, e os cumplices, elle proprio, talvez, se se visse n'um espelho.
—Que tens?... pareces-me somnambulo!?—disse o pae.
E Alvaro affavelmente respondeu:
—Pelo contrario: estou acordadissimo... muito accordado, penso eu.
—Falaste com o egresso?
—Sim, senhor.
—Que te pareceu?
—Um homem bom, virtuoso e extraordinario.
—É realmente... que a virtude tornou-se em nossos dias uma apparição extraordinaria, e milagrosa,.. Gostaste d'elle?
—Quem me dera ser o que elle é...
—Isso é que é extraordinario, meu filho—exclamou o velho.
—Amar um bem, que não podemos possuir, é tão proprio do homem... Que acha o pae de extraordinario, n'este meu desejo:
—Muito, muito, meu caro Alvaro!... Tu hontem não falavas assim...
—Tambem meu pae não amava a formosura de minha mãe, antes de conhece'-la... A virtude é como a virgem, que um homem estragado vê na vertigem de uma orgia, mas não póde ama'-la sem approximar-se realmente do original d'essa sombra phantastica. Sabe meu pae o que eu amo em padre Antonio? É a transparencia d'aquella face, que deixa vêr um bello coração. Amo-lhe a paz, a firmeza, a confiança com que censura os crimes, sem irritar o amor proprio do criminoso. Amo-lhe a independencia com que falla, e a soberania com que responde. Parece que Deus o manda falar! É um bello caracter! A sociedade, se conhecesse este homem, adorava-o!
O jubilo de Gonçalo da Silveira era um delirio. Parece que lhe não ouvira as ultimas palavras. A emoção sublimára-se até ás lagrimas. Alvaro tocado por uma scena, que nunca elle se julgára capaz de estimular, recebera seu pae nos braços, com vehemencia, com transporte, com amor de filho, sentimento para elle novo!
Do abalo á conversão vae um grande espaço, eriçado de espinhos, que, primeiro, medram nas lagrimas, e, no fim, se transformam em flores.
Amar a virtude não é esposa'-la. Rainha de dois mundos, com formosura immortal, a sua posse custa muitos sacrificios. No estrado do seu throno, pisam-se as paixões do mundo. Os labios, que a saudam, devem ter sido abrazados pela oração contricta.
Os olhos que a contemplam, devem ter sido manancial de lagrimas purificadoras das maculas hediondas do vicio.
Mas ha muito que soffrer desde o amor á posse.
Alvaro da Silveira enamorou-se do anjo do bem, que lhe transluzira de entre a nuvem com que o ministro de Deus lhe escondia um novo mundo. Agitára-se-lhe o sangue no coração, e, no scepticismo, a esperança, que é a vida do espirito. Sentia-se com mais vida, mais alentos e idéas novas. Aprendera a pensar. Mas o pensamento é o gerador das convicções; e as convicções são absolutamente um dom exclusivo da verdade; e a verdade é a perpetua conversação de Deus com o homem. Para Alvaro existia DEUS!
A incredulidade tem um sorriso de escarneo para estas transfigurações. Erma do coração, e fistulada nas entranhas pela podridão do epicurismo, ri-se, ri-se, ri-se como um demente a quem ninguem contesta o direito de rir.
Fr. Antonio dos Anjos concluira a sua reza. Gonçalo da Silveira esperava anciosamente o ensejo de visita'-lo. Mal ouviu passos no quarto, entrou. Riam-se-lhe as feições, e pulava-lhe o coração na face. O sacerdote achou-se nos braços do velho pae, que soluçava expressões de reconhecimento.
O padre maravilhava-se.
—Pois a que devo eu esta commoção de agradecimentos?—perguntava elle enternecido.
—Salvou meu filho!—exclamava o fidalgo, beijando-lhe as mãos.—Amenisou-me a velhice... Deu-me um bom fim de vida, e uma boa morte. Vós arrancastes meu filho do mau caminho.
Era bem justificado o pasmo de frei Antonio! Gonçalo da Silveira contara-lhe o que vinha de passar com Alvaro. Exagerára, talvez, as suas expressões, as palavras do filho, os elogios do mestre, e as esperanças da sua boa alma. Frei Antonio, que não podia attribuir-se a rapida mudança do neophito, agradecia tacitamente a Deus o raio luminoso de graça que fizera baixar ao coração escuro do convertido. Depois, quando a commoção do contentamento serenou em Silveira, o padre, magestoso como um propheta, apontou para o crucifixo.
—É alli—exclamou com uma voz vibrante e pathetica.—É alli, que v. exc.ª deve ajoelhar e agradecer.
Gonçalo da Silveira ajoelhou. Pouco mais atraz ajoelhára o padre.
O lance era sublime, o que ha de mais sublime debaixo do céo. Adorar com mais fervor, só os anjos na presença immediata do Altissimo!
Alvaro entrava no quarto do padre, cuja porta ficára meio aberta. Ao ver seu pae n'aquella postura extranha, e mais atraz, o vulto immovel do levita, recuou machinalmente.
Que sentimento o fez recuar? Não saberia elle dize'-lo! Susteve-se irresoluto. Ergueram-se os que oravam, e ambos olhavam para a porta. Viram Alvaro, que parecia ceder ao pejo. Pejo! um tal sentimento nas faces petrificadas pelo gelo da libertinagem! Pejo no mancebo, que se vangloriava de um cynismo inalteravel!
—Não quer entrar na sua casa, sr. Alvaro?—perguntou Fr. Antonio, collocando-se cortezmente fóra da porta do quarto.
—Vim perturba'-lo...—murmurou Alvaro, hesitando entrar.
—Não era possivel...—O espirito quanto mais se avisinha de Deus, menos cede ás perturbações... Nós oravamos com fé, e ardor. E, demais, a entrada de v. exc.ª não podia distrair-nos para mal.
Alvaro tinha entrado.
Agitou-se uma conversação variada entre as tres pessoas. Fr. Antonio, que vivera na casa do agricultor nas provincias do norte, falava de agricultura. Gonçalo parecia versado n'este ramo, e applaudia os melhoramentos, a que elle devia um duplicado rendimento das suas grandes propriedades. Alvaro escutava, pela primeira vez, um discurso serio, especialmente sobre agricultura, que elle ignorava desde a estação das sementeiras á das colheitas. E não parecia enfastiado, com quanto guardasse um justificado silencio na materia.
Era já outra a conversa. Frei Antonio estudava a maneira de entreter a attenção do discipulo. Falou d'esta litteratura amena, que se tornou universal por ser perigosa, por ser destruidora dos costumes, e dos estudos sérios. Falou de romances, como falaria de livros canonicos.
Conhecia-os como um vigilante examinador da origem da immoralidade. Alvaro conhecia alguns e honrava-os com a posse privilegiada de uma pequena estante que decorava no seu quarto. Fr. Antonio reparava nas encadernações de marroquim douradas, e nos titulos com que os licenciosos Paulo de Kock e Pigault Lebrun assignalaram os seus thesouros de libertinagem, escandalos da prevertida arte de imprimir.
Alvaro que não podia impugnar os argumentos do padre, e tivera a louvavel modestia de ouvi'-lo apenas, não quiz deixar-lhe plena gloria de triumpho, sem uma observação que elle julgava um golpe certeiro:
—Mas sua sobrinha—diz elle—é romantica...
—Que é ser minha sobrinha romantica?—atalhou o padre, sorrindo.
—Lê romances, escreve romances, pensa como nos romances... emfim, não vive, nem pensa, nem fala como a maior parte das mulheres...
—Ora ahi está uma definição de mestre!—disse o padre, soltando uma risada que parecia um motejo, se não fosse sua.—O romancista deve ser uma coisa bem extraordinaria!—proseguiu elle, batendo levemente no hombro do discipulo.—Quem me parece romantico, segundo a arte, é v. exc.ª, sr. Alvaro.
—Eu!?—interrompeu Alvaro com innocente admiração.
—Sim, meu caro senhor. Não póde assim fazer-se uma idéa tão singular de uma pobre rapariga, sem contempla-la pelos olhos de uma imaginação maravilhosa! Minha sobrinha é uma artista que trabalha muito para sustentar-se, e vestir-se. Ora isto é muito positivo, muito trivial, muito commum com a vida do pobres, onde nunca entrou a palavra romance. Minha sobrinha nas horas furtadas ao trabalho, lê os livros que eu escolhi para a sua cultura espiritual, mas todos elles conselheiros da virtude, da probidade, da paciencia, e do temor de Deus. A sciencia profana, que eu affeiçoei ás necessidades do seu espirito, é muito pouca, porque, se fosse muita, seria um desperdicio de tempo, e de canceira inutil. A sciencia de ser boa filha, boa esposa e boa mãe, limita-se a muito poucas regras; e uma mulher não precisa outra sciencia. Minha sobrinha não leu ainda romances. Sabe que existem enredos torpes, escriptos em bella linguagem, como os cadaveres fetidos envoltos nos velludos prateados da eça; mas os seus dedos não levantaram ainda esse envoltorio de podridão. Minha sobrinha fala esta linguagem, senão geral, a melhor que os filhos podem aprender para falarem a seus paes, porque minha sobrinha conhece apenas o metal de voz de sua familia... É isto que v. ex.ª chama «mulher romantica?»
Alvaro demorou a resposta.
—Eu pensava—balbuciou elle—outra cousa... O mundo engana-se muito nos seus juizos.
—Pois—tornou o padre com tristeza—que juizos são os do mundo a respeito d'ella?
—Eu lhe digo... O mundo chama romantica uma mulher, como muitas mulheres, que os romances nos pintam. Por exemplo, uma virgem, que vive n'um sonho continuado; que vê anjos onde as mulheres prosaicas não vêem nada; que scisma em continuas tristezas, ao lado dos que vivem n'uma continua gargalhada; que busca a solidão, encosta a face pallida á mão direita, como a estatua da melancolia, e se devora incessantemente sem poder explicar o motivo por que se devora. É o ideal que a mata; é a febre d'uma paixão indefinivel que a consome, é a esperança de um sonho, de que não acorda; é finalmente, a poesia, o romantismo.
Frei Antonio ouvira religiosamente este harmonico de palavras, que algumas vezes lhe pareceram desapegadas, e vasias de sentido. Respeitador das conveniencias, fez calar a verdade austera, que o mandava pedir uma definição logica de todo aquelle espiritualismo, de toda aquella linguagem refolhuda. Absteve-se da sua auctoridade, e transigiu discretamente.
—Serão esses—diz elle—os predicados da mulher romantica; mas o que eu posso conscienciosamente asseverar a v. ex.ª, é que minha sobrinha está tão longe de ser romantica, quão longe de compreender a definição que o meu amigo acaba de dar.
Duas occorrencias vieram interromper a pratica: um creado, entregando uma carta a frei Antonio dos Anjos; outro participando a chegada do sr. conde de ***, que procurava Alvaro da Silveira. Este fez um gesto de enfado, e saíu. Aquelle, pediu licença, e abriu a carta. Gonçalo da Silveira retirou-se menos alegre, mas esperançado na mudança de seu filho.
Em quanto o padre lê a carta, entremos no quarto de Alvaro.
O conde de *** era um homem de trinta annos, typo de galhardia na libertinagem, esbelto, gentil, apesar de resequido, na face, por certa aridez da dissolução, que requeima o corpo, ao passo que o viço da alma vae fenecendo.
O açor, pairando sobre a avesinha desprevenida, apenas viu que um rapaz de quinze annos transpozera o limiar do grande mundo, abateu o vôo, aferrou-o com as garras das paixões licenciosas, e desappareceu com a presa através de uma atmosphera, onde o veneno se respirava pelo filtro do prazer. Alvaro da Silveira foi a presa.
Muitos dos mais apontados em certa sociedade libertina de Lisboa, mescla de beaterio, hypocrisia, e despejo, quando viram Alvaro da Silveira ligado ao conde de ***, disseram: «está perdido!» E quem o não diria?
O conde tinha uma instrucção mediana, que puzera ao serviço da sua immoralidade. No seu principio, quando a favor do seu nascimento, era bem recebido nos salões de Lisboa, o conde insultava graciosamente a sã religião e a piedade. Lera com pertinacia alguns d'esses livros immoraes e grosseiros aos vinte annos, para grangear um bom cabedal de motejos contra a religião, e emancipar-se com elles de uma leitura a que sacrificava as longas horas da noite, como um sobrinho que se violenta, em noite de orgia, a ficar em casa com o velho tio, porque é esse o preço de uma herança, que deve, á farta, indemnisa'-lo depois.
Aos vinte e cinco annos sabia tudo quanto era preciso para insultar a Deus em nome de uma sciencia impia. Apostolo infatigavel da immoralidade, não respeitava sexo, nem edade, quando vibrava a ironia, pungente como uma frecha de fogo, ao seio da moral christã. A donzellas, a mães, a creanças, a velhas, a religiosas, e a devassas falava sempre no mesmo estylo. Se acontecia ser mal recebido, assumia uma auctoridade pedagogica, dava-se um ar de respeito, e justificava o que dissera em tom de mofa discursando contra o christianismo que elle dizia sepultado para sempre no tumulo que lhe abrira a sciencia.
Alvaro da Silveira descreu espontaneamente. Não deu trabalho ao companheiro, nem quiz profundar uma questão que lhe não importava. A negação formal era a ultima palavra da impiedade constituida em sciencia. A Alvaro bastava-lhe saber essa ultima palavra.
Todavia, a assiduidade da companhia, e o habito de escutar o seu amigo em polemicas, animadas pela fé de uma parte, e da outra pelo orgulho, deixaram-lhe uma tintura scientifica de atheismo.
Alvaro não recebera de seus paes educação religiosa. Esta falta desmentia a classe d'onde viera. A jerarchia dos brazões em Portugal, com quanto viciosa, parece gloriar-se com o seu privilegio de fé, e de virtudes christãs... extra-muros. A educação ahi é mais religiosa que scientifica: é mais para Deus que para o mundo. Não é milagre encontrar cá fóra o representante de oito seculos de heroes virtuosos e bravos, enxovalhando-se na lama das covardias e das torpezas: mas raro encontrareis no colo materno, uma creança de sangue illustre, como lá se diz, cuja primeira palavra articulada não seja DEUS.
Alvaro da Silveira era uma excepção; o instrumento—quem sabe?—de um acto providencial.
Os esplendidos festins da depravação não se fechavam para alguem. Ponto era que o conviva fosse bem apresentado, e fechasse os labios da critica com mordaça de ouro. Já sabeis que Alvaro era rico, e quem o levou pela mão até o ultimo degrau da escada da immoralidade, fôra um conde tão rico e tão nobre como elle.
Este homem pavoneava-se de ter conquistado um nome, que exprimia uma seita. Chamavam-lhe cynico, e elle gloriava-se do nome. A sociedade nunca o maltratára, mas elle dizia que tinha uma vingança solemne a tirar da sociedade. Algoz da honra de muitas familias, a sua guilhotina era a calumnia, quando não podia mostrar as mãos salpicadas do sangue das victimas. Velava alta noite a porta de um amigo, que o recebera de dia, para que os passageiros, ao ve'-lo, o considerassem amante de sua irmã. Quando o murmurio do descredito chegava aos ouvidos do pae, que rejeitava a mão de um traidor que o visitava, o conde não tinha duvida em offerecer galhardamente a esse pae uma pistola, ou um florete. Se o ancião recuava diante da morte, ou da idéa do abandono em que ficava sua familia, o cynico ria-se-lhe na face, e chamava-lhe cobarde nas praças, ou nos salões.
Assim como conduzira pela mão Alvaro da Silveira ás bachanaes, mais de uma virgem fôra conduzida por elle á ultima estação da licença. E, depois, o maldito de Deus, e dos homens, aprazia-se de contemplar o desenfreamento d'essas mulheres, como se fossem feras, restituidas á sua liberdade.
Estas linhas, esboçadas á pressa e com repugnancia, traçam a physionomia moral do conde que entrára para o quarto de Alvaro da Silveira.
A carta que Frei Antonio recebera, era de sua sobrinha. Era este o seu conteudo:
«Pedi licença a meus paes para escrever-lhe, meu caro tio, e sorriram á minha supplica. Como não pude adormecer a noite passada, trabalhei e conclui a ultima encommenda de flôres que tinha. Graças ao Senhor, já vieram novas encommendas; mas eu sinto-me fatigada dos braços, e não posso continuar. No espirito sinto eu muita vida, e não posso nem quero vencer esta consoladora força que o impelle para meu tio. Penso que o não verei hoje; mas... cedi agora á maneira commum de se exprimir a gente... eu vejo meu tio em todos os instantes e logares... Deixa-me escrever uma verdade, que não teria forças de dizer-lhe?... Deus quer que meu tio seja o prisma por onde eu devo contempla'-lo. Será isto uma fraqueza de razão, ou uma liberdade peccaminosa? Peccado seria eu calar este pensamento, que o meu querido mestre pode repreender.
«Estou triste, como ha pouco. Eu adivinho alguma infelicidade. Sinto-me com tanta coragem para ella!... Mas a natureza humana, e especialmente o espirito da mulher, e especialmente o meu espirito, é muito fraco. Espero tanto em Deus!... tanto em Maria Santissima!... e parece que uma voz, nem humana, nem divina, me diz que fuja, que trema, que recue ao combate do infortunio contra a paciencia! Muito triste é isto, meu caro tio! A minha vida tem faltas, que eu devo expiar? Porque m'as não dizem, se me amam?!
«Persigo-o muito, eu bem o sei! Não o deixo em paz, quando tão necessaria lhe é para estudar a grande lucta em que está empenhado! Não sei as forças do seu discipulo, mas eu admiro mais a conversão de Santo Agostinho que as victorias de Alexandre. Aqui estou eu a fazer-me vaidosa e sabia diante de meu tio, que tambem conhece a minha humilde ignorancia!... É que estou affeita a conversarmos como escrevo.
«E a minha melancolia? E os meus versos? Nem me disse se tinham as syllabas todas, ou quantas deviam ter mais! Nem valia a pena... Adeus, meu extremoso amigo! Meu pae, e minha mãe, e meus irmãos estão muito saudosos. Não se esqueça um instante da sua familia que o ama tanto como a sua sobrinha
Maria.»
—Coitadinha!...—murmurou padre Antonio, dobrando a carta—És um anjo!
O conde tomára uma postura comica de pasmo, quando Alvaro entrou no quarto. Alguma cousa o impressionára; mas em homens taes as impressões são fugitivas, e frouxas, porque não ha ahi enthusiasmo, nem grandeza n'essas almas caídas do sublime para o raso dos sentimentos grosseiros e triviaes.
O procedimento do seu amigo devia maravilha'-lo. Era extraordinario! Apenas entrou no quarto, Alvaro extendera-lhe friamente a mão, e mandára-o sentar-se com um gesto, muito significativo de fastio. Que o hospede lhe era aborrecido, bem o denunciava elle no franzir da testa, onde por força vem á luz da physionomia sentimentos que a delicadeza quizera algumas vezes abafar.
—Doe-te a cabeça?—perguntou o conde.
—Não... doe-me o espirito—respondeu Alvaro.
—As dôres do espirito, matam-se com espirito... mas é de vinho... Bebe... Obriga a materia a pensar de outra maneira, como diz Rousseau.
—E diz Rousseau que a materia pensa?—perguntou Alvaro, com um sorriso motejador.
—Que duvida!... A materia organisada, chamada homem, é uma cousa que pensa. Quando pensa mal, isto é, quando nos apoquenta, modifica-se a materia, imprimindo lhe uma acção nova. A maneira de modifica'-la é simplicissima. Disseste que estavas triste, não é verdade?
—Sim.
—Pois bem: bebe cognac, come fiambre, afoga-o em vinho de Setubal, que é de mais a mais um triumpho patriotico sobre o Champagne e Bordeus. Seja o que fôr o bolo alimenticio, que alojas no estomago, é materia: esta, posta em contacto com a materia que pensa, altera-a; e d'esta alteração chimica e physiologica resulta um novo ser pensante, uma solemne pirraça á tristeza.
O conde esperava merecer uma risada com a sua dissaborida theoria. Foi para elle uma segunda surpresa o silencio de Alvaro da Silveira. N'este silencio transparecia o desprezo a que nos movem as chufas desengraçadas de um truão, invita Minerva, que nos noja, quando pensa recrear-nos. O conde não estava affeito a estas decepções. O orgulho doía-se. Alvaro seria o ultimo de quem elle devia esperar um mau acolhimento.
—Agora vejo eu—disse elle contrafazendo o pejo, que mais acertadamente chamariamos despejo.—Agora vejo eu, que o teu cerebro de hoje conspira contra a tua felicidade de hontem... que tens tu, mancebo gentil? A brisa da noite desfolhou-te a rosa, que te embalsamava o olphato do coração? Sonhaste alguma virgem de olhos garços, que não pudeste realizar em materia corrente e sonante n'estes reinos?
Alvaro, nem um sorriso! Era demais para tanto espirito! O conde só agora compreendeu que os seus ditos causticavam a paciencia do discipulo. Este, apesar de molestado, não queria ser incivil. O predominio do conde sobre o seu genio não estava inteiramente extincto. Era-lhe necessario justificar-se de algum modo. Qualquer evasiva podia servir-lhe; mas a transfiguração do seu caracter, n'aquelle momento, não lhe permittia uma mentira. Bem podera Alvaro queixar-se de um padecimento physico, e tinha bem justificada a sua indolencia para as caricias folgazãs do conde; mas não o fez assim, e, se consultarmos o coração humano, ouviremos um applauso á franqueza que depois ostentava Alvaro. É que, se, por ventura, um sentimento novo acorda em nós desejos bons, o primeiro d'esses desejos é communicar aos outros uma felicidade, que tanto menos egoista, tanto mais perfeita se nos afigura. A passagem da indifferença para a observancia da religião revela-se sempre com esses symptomas. O zelo de um neophito manifesta-se mais corajoso e ardente que o apostolado de um orador feito, e encanecido em desalojar a impiedade dos seus ultimos reductos. E depois, no espirito illuminado pela effusão rapida e imperceptivel da graça divina, ha um desejo forte, uma vaidade santa de attrair espiritos contumazes, de curvar os joelhos arrogantes, e de vencer razões, cuja pertinacia nos parece impossivel na presença dos argumentos que humilharam a nossa. O que então se dá na alma é uma paixão sublime. A eloquencia do que fala, convicto de verdades que lhe promettem uma aspiração immortal, parece um emprestimo da linguagem dos anjos. Ei'-los ahi, de repente, credulos, os apostolos, que extendiam ha pouco as redes no lago de Gethsemani, e surgem agora entre os interpretes da lei, nas praças da Galiléa, falando linguas que nunca ouviram.
Alvaro da Silveira sentira-se capaz de converter um impio. Ha pouco ainda, balbuciára as primeiras palavras de fé, e crê-se já robusto para vibrar a funda contra o gigante do materialismo cuja arrogancia não vencem forças de homem, sem o impulso divino, que arrojára a pedra que prostrou o gigante philisteu.
—Que tens tu?—repetiu o conde.
—O que eu tenho—respondeu Alvaro—é o desejo de um amigo; mas queria um amigo, que nascesse n'este momento, e n'um momento me comprehendesse. Não podes avaliar-me, conde. Se pudesses, ser-te-hia bastante uma só palavra...
—Pois bem—replicou o conde—diz ao menos essa palavra... ou diz sequer tres palavras conceituosas como as de Cesar...
—Ora attende-me. Tendo nós vivido sempre juntos nunca me persuadi que pudesse estar tão longe de ti como estou agora.
—Serás tu romantico?! atalhou o conde dando-se uns ares grutescos de espanto.
—Se ouvisses—tornou Alvaro sorrindo—a definição que ha pouco ouvi do que é ser romantico, e se concordasses com ella, respondia-te que estava romantico.
—Pois quem anda cá por casa a dar definições? Teu pae deu agora n'essa?
—Não foi meu pae... Meu pae o que soube foi definir a minha posição.
—Apre! Estás mysterioso como o boi Apis! Vou-me embora, que não sei ler geroglyphos humanos. Palavra de honra! Soletra lá o conceito d'essa charada, do contrario vou-te mandar preparar quarto na enfermaria de S. José.
—Então queres saber quem define os homens e as cousas cá em casa?
—Quero conhecer esse escolastico; deve ser um monstro de paciencia humana!
—É um padre!
—Um padre? exclamou o conde, erguendo-se, e apertando as mãos á cabeça—um padre em casa de Alvaro da Silveira! Malagrida em 1844 a fazer exercicios espirituaes contra os exercicios da materia!...
N'este momento, abriu-se a porta do quarto. Os que a abriram eram o pae de Alvaro, e fr. Antonio dos Anjos.
A presença do sacerdote devia augmentar o pasmo comico do conde; mas a impressão foi diversa. Este homem do grande mundo perdia muito da sua altivez sarcastica, se não tinha em redor de si um rancho que lhe applaudisse as chufas. A unica pessoa de sua confiança, n'aquelle momento, era Alvaro, mas este apostata do «grande tom» não era hoje o homem de hontem. E, por tanto, o desenvolto conde na presença do padre sentiu-se embaraçado, como devera sentir-se o padre na presença de tres cavalheiros da força moral do conde.
Frei Antonio dirigiu sua humilde saudação ao cavalheiro, que não conhecia. Alvaro apresentando-lh'o, disse:
—Tenho a honra de lhe apresentar o meu amigo conde de ***. É mais velho do que eu, mas posso dizer affoutamente que sabe menos do que eu da verdadeira sciencia.
—A verdadeira sciencia—disse o padre—é um exclusivo de Deus, e não tem academias cá na terra.
—Concordo absolutamente na negativa—disse emphaticamente o conde.
—Então em que é que concordas? perguntou Alvaro.
—Em que não se sabe nada a respeito da verdadeira sciencia.
—E em que é que não concorda, senhor?—interrompeu frei Antonio, com risonha benevolencia.
—No exclusivo divino em que vossa reverendissima monopolisa a sciencia—responde o conde sorrindo sardonicamente á palavra reverendissima.
—Não me parecem respeitosas as palavras da resposta—retorquiu o padre—mas nem por isso hesitarei em fazer-me comprehender melhor, para depois avaliar a opinião de v. ex.ª. Quando eu disse que a verdadeira sciencia era um exclusivo de Deus, poderia fazer-me entender melhor se dissesse que o objecto do estudo que promettia consequencias seguras de principios certos, é Deus. Se v. ex.ª quizer insistir na primeira intelligencia que deu ás minhas palavras «que a verdadeira sciencia é um exclusivo da divindade, porque só Deus é omnipotente...»
—Assim reza a cartilha do padre Ignacio—interrompeu o conde com acatamento ironico.
—É verdade—replicou o padre—a cartilha do padre Ignacio, que v. ex.ª citou em ar de mofa, assim o diz e deve dize-'lo, porque essa cartilha, por onde estudam os meninos, contém as verdades eternas como ellas foram recebidas pelos sabios e illustrados doutores da egreja. E como é possivel que não sôe bem aos ouvidos de v. ex.ª esta minha linguagem, buscada de emprestimo na cartilha do padre Ignacio, eu não poderei, falando-lhe a sciencia de Deus, empregar os termos que a falsa philosophia emprega contra Deus.
—V. s.ª faz uma grave injustiça á philosophia. Sem a philosophia—disse o conde, assumindo um ar de séria profundidade—sem a philosophia não poderiam os padres da seita christã seduzir o espirito dos homens, a ponto de convencer alguns menos reflectidos, da divindade do christianismo.
—E por tanto—acudiu o padre—deixe-me v. ex.ª concluir que a philosophia é uma mentira, por isso que os padres da seita christã, como v. ex.ª gratuitamente appelida a egreja catholica, se serviram d'ella astuciosamente para convencer os menos reflectidos. Ora pergunto eu agora, quaes são os mais reflectidos?
—São os que vêem as cousas pelos olhos de uma rasão illustrada!
—Mas a rasão illustrada não é a philosophia?
—mdash;É.
—Logo a rasão illustrada é uma mentira, por isso que a philosophia é uma mentira, que seduz os menos reflectidos a julgarem divino, o que não passa de uma humana impostura. Póde v. ex.ª elucidar-me n'esta grave questão, que não vem resolvida na cartilha do mestre Ignacio?
O conde embaraçado, e surprehendido pela argumentação escolastica do padre, parecia engasgar-se n'uma resposta, cuja frivolidade lhe estava bem denunciada no rubor que lhe subia á face. Este rubor era a arrogancia despeitada. Frei Antonio, repeso de assolar tão cedo o fragil edificio do seu adversario, remediou o mal que, segundo a sua humildade, tinha feito, dando elle proprio a mão ao fraco contendor.
—Estou como v. ex.ª persuadido—disse elle—que ha uma philosophia á qual faria grave injustiça, se não dissesse que muito lhe devemos por nos ter aplanado algumas difficuldades em sciencia. Estas difficuldades vencidas serviram a causa de Deus, e confirmaram verdades claras que a razão humana julgára mysterios. Citar-lhe-ei um exemplo. Ha um seculo escreveu-se contra o christianismo, e disse-se que a religião assim chamada era um encadeamento de embustes desde Moysés até Jesus Christo, desde o Genesis até o Evangelho. Os que assim escreviam eram philosophos, sr. conde?
—De certo, porque os que assim escreveram foram Voltaire, d'Alembert, Holbac...
—E outros muitos que não é força citar. Pois, senhor, esses reputados philosophos disseram que Moysés era uma impostura, por isso que a philosophia não podia consentir que a relação dos successos da creação do mundo, descripta no Genesis, fosse verdadeira. Passados annos, as academias scientificas, especialmente a sociedade de Calecut, expressamente organisada para testificar ou destruir o testemunho de Moysés, declara que é impossivel compreender a cosmogonia, isto é, a formação do mundo, sem admittir as infalliveis bases de sciencia, escriptas ha cinco mil annos nos livros do povo hebreu. Agora pergunto eu se devemos julgar philosophos os primeiros que negaram Moysés, ou os segundos, que, partindo das veredas da incredulidade para o caminho recto da sciencia, declararam, após cem annos de progresso em sciencias naturaes, que a narração do Genesis era a unica admissivel em verdadeira philosophia. Se acreditamos os primeiros a sciencia é uma mentira, por isso que tanto mais progride tanto mais se afasta da verdade. Se acreditamos os segundos, os primeiros eram os mentirosos, e por tanto eu proclamarei a philosophia progressiva como aquella que conduz ao conhecimento de Deus, tanto quanto é possivel ás indagações da limitada razão do homem.
—A razão do homem não é limitada—retorquiu o conde.—Á razão do homem é que devemos o vasto terreno da sciencia, grangeado pelos esforços d'esses homens que conquistaram verdades axiomaticas, sem as armas do Evangelho, e sem as esterilisadoras argucias da theologia. A razão do homem é amplissima e immensa com Deus, porque Deus é a razão.
—Não estamos já na questão que discutimos—tornou o padre.—V. ex.ª devia destruir os meus argumentos, provando-me que os verdadeiros philosophos eram os do seculo passado que desthronaram Moysés do seu prestigio de legislador inspirado directamente de Deus. Devia provar-me que a sciencia moderna, restaurando as tradições da historia antiga, e restituindo Moysés ao patriarchado das primitivas verdades, era uma nova impostura, ou a continuação d'aquella sordida ignorancia que Voltaire combateu triumphantemente, segundo a maneira por que v. ex.ª vê as cousas. E, estando eu muito convencido da impossibilidade que v. ex.ª ha de encontrar em provar-me as theses que lhe apontei, vou responder á apologia que fez á razão do homem.
Não ha duvida que a razão humana procura todos os dias tirar, em sciencia, novas consequencias de velhos principios; e effectivamente esse incansavel trabalho do espirito humano, ancioso de progredir, tem conseguido tudo isto que nos maravilha nas sciencias e nas artes. Já vê v. ex.ª que eu concedo grandes fóros, e sublimes honras á razão; mas, já que tão opulenta a considero, não terei escrupulo em pedir-lhe que me explique os principios de que ella tira as suas consequencias scientificas. Pedirei aos chimicos, que me expliquem o seu grande principio axiomatico da «affinidade». Responde-me v. ex.ª em nome d'elles?
—Eu de certo não, porque ninguem soube dizer o que era affinidade.
—Não é tanto assim. Os chimicos dizem que a affinidade é a força que attráe as moleculas de differente natureza. Respondem assim, porque observaram a combinação d'essas moleculas; mas queria eu que me fosse explicada a natureza d'essa força, o segredo d'esse movimento de corpos inertes, sem que a mão do homem lhe imprima tal movimento. É a «attracção» dizem os physicos, mas o que é a attracção? D'onde vem a força impulsiva que faz girar o globo que habitamos em redor de um outro globo, que não conhecemos?
—Não temos precisão de conhecer até á evidencia esses segredos da creação.
—Mas v. ex.ª concede que o Creador não os ignora?
—Seria um absurdo não o conceder.
—E a razão humana não póde conhece'-los?
—Já disse que não.
—Mas v. ex.ª disse que Deus é a razão humana! Eu sinto grandes difficuldades em combinar a sua these com as consequencias que se tiram d'ella. Se a razão humana é Deus, o homem é forçosamente divino pela celeste razão que o illumina. Se o homem, com a sua razão, não póde profundar os segredos da creação, eu não posso conceder que Deus, pelo facto de modificar-se em «razão» unindo-se á humanidade, reservasse para si certos mysterios como «Deus», e cedesse a si proprio o conhecimento de certas e determinadas verdades como «razão.»
—Não combinamos em principios, meu caro senhor, e d'ahi vem a desintelligencia em que estamos nas consequencias. Eu vou explicar-me com clareza: Eu digo que a razão do homem é uma emanação de Deus.
—Mas eu não entendo, sr. conde, o que é, e como se opera essa emanação de Deus. Deus é indivisivel; Deus é inalteravel; Deus é immutavel. Não posso, por mais abstractas que sejam as minhas intuições, imaginar que a emanação de Deus não seja uma parte de Deus; e, por tanto, não concebo como essa parte seja substancialmente diversa do todo. Deus considerado em si, segundo v. ex.ª, é omnisciente, e vê os segredos da sua obra: Deus, convertido em razão pelo effeito da emanação, segundo os mesmos principios, perde os attributos de Deus omnisciente, e restringe-se ao conhecimento de algumas verdades, por meio das quaes é impossivel conhecer os mysterios, que ha perto de seis mil annos, os homens debalde tentam descortinar.
—Pois v. s.ª não admitte que todo o ser creado é uma emanação de Deus?
—Não, senhor, não admitto.
—Essa é boa! Pois a creação não é uma producção de Deus?
—E a producção é por ventura uma emanação? A estatua de barro que sáe das mãos do esculptor é uma emanação de esculptor? Deus incorporeo poderia materialisar-se nas massas inertes, que foram producto de sua omnipotencia, tanto como o homem que foi feito á sua imagem?
—Ahi está um grande embaraço para mim. Não comprehendo como o homem corporeo foi feito pelo modelo de Deus incorporeo.
—A imagem de Deus, sr. conde, é a alma, não é o involucro material da alma. Memoria, vontade, intelligencia são os traços d'essa physionomia espiritual affeiçoada pelo typo divino. Attribuimos á memoria tudo o que sabemos, diz S. Bernardo, posto que esta sciencia não seja a causa de nossos pensamentos; attribuimos á intelligencia, e algumas vezes á memoria, tudo o que o pensamento nos mostra verdadeiro; imputamos á operação da vontade tudo o que reconhecemos ser bom e verdadeiro pelo soccorro da intelligencia. A memoria nos assemelha ao Pae, a intelligencia ao filho, a vontade ao Espirito Santo. Seja-me permittido citar Santo Ambrosio, em quanto v. ex.ª invoca os textos de Voltaire. «Do mesmo modo que Deus, diz elle, creador do homem á sua semelhança, é caridoso bom e justo, doce e soffredor, puro e misericordioso... assim o homem foi creado para possuir a caridade, ser bom e justo, doce e paciente, puro e misericordioso. Quanto mais o homem sente em si essas virtudes, mais se approxima de Deus, e mais semelhança tem com elle. Mas, se ulcerado pelo crime e pelo vicio, elle se afasta e degenera d'esta nobre semelhança com o seu Creador, descerá á realidade d'estas palavras escriptas em predicção bem desgraçada: «O homem não compreendeu a sua elevada posição; comparou-se aos irracionaes, e assemelhou-se a elles.»
—Parece-me muito metaphysica a sua explicação, sr. padre. Eu gosto da geometria em todas as demonstrações, e não admitto verdades sem evidencia mathematica. O seu Santo Ambrosio e S. Bernardo explicariam perfeitamente a semelhança do homem com o seu Creador, mas foi n'esses tempos em que falavam ás turbas credulas, que juravam em suas palavras sem entende'-los. Hoje é muito perigoso esse assumpto, e não me consta que desde o seculo do grande Rei, desde Bossuet até Frayssinous, algum orador christão torture a intelligencia do seu auditorio, querendo á força persuadir-lhe que o homem foi creado á semelhança de Deus!
—V. ex.ª não tem obrigação de ter lido tudo; mas tambem a não tem de calumniar Bossuet. Se a memoria não me falha, eu lhe cito as palavras textuaes do grande orador: «Façamos o homem; e proferidas estas palavras, a imagem da Trindade appareceu. Ostenta-se luminosa na creatura racional: semelhante ao Pae tem o ser; semelhante ao Filho tem a intelligencia; semelhante ao Espirito Santo tem o amor; semelhante ao Pae, e ao Filho, e ao Espirito Santo, tem, no seu ser, na sua intelligencia, e no seu amor uma mesma felicidade, uma mesma vida. Feliz creatura, e verdadeiramente semelhante, se ella se occupa unicamente d'elle! Então, perfeita no seu ser, na sua intelligencia, e no seu amor, conhece quanto é, ama quanto conhece: seu ser e suas operações são inseparaveis; Deus torna-se a perfeição do seu ser; a nutrição immortal da sua intelligencia, e a vida do seu amor... Ditosa creatura, se sabe conservar a sua felicidade!»
—Esta é a doutrina de S. Bernardo, de S. Ambrosio, de Bossuet, de Frayssinous, e de todos aquelles que bebem o leite da fé no seio da esposa de Jesus Christo.
—Não duvido; mas não compreendo. O que eu sei é que repugna com a menos desenvolvida razão a semelhança espiritual do homem com Deus. Eu conheço homens tão degradados da honra, tão hediondos de crimes, que reputára-me blasphemo se os considerasse semelhantes no typo divino.
—Ha de ter paciencia de escutar-me com a attenção de philosopho, se não póde prestar-me outra.—A revelação figura-nos o homem, não só como o mais perfeito de todos os seres animados, mas ainda como o rei da natureza, para o qual foram feitas todas as cousas. Por ella aprendemos que Deus fez o homem á sua imagem e semelhança, para que presidisse ao universo. Sabemos ainda que, depois de dar-lhe uma companheira, disse a ambos: «Crescei e multiplicae, enchei a terra da vossa posteridade, submettei a vossas leis tudo o que respira; pois tudo é feito para vós.» «Vós o fizestes senhor de todas as vossas obras!—exclama o psalmista—todos os entes vivos são submissos ao seu imperio, e destinados para seu uso.» É verdade que a escriptura varia a linguagem, quando lembra ao homem a sua construcção de terra, que em terra se tornará. Assim era necessario para suffocar os orgulhos do coração. Não é, porém, o longo viver sobre a terra que constitue a dignidade do homem. Não é sobre a terra, que a felicidade lhe sahirá ao encontro. Creado para Deus e para a eternidade, só no seio de Deus, e no seio da eternidade poderá ser feliz d'esse goso inalteravel que não se finda. É aqui onde começa a cadeia de objecções por parte da incredulidade. Nega primeiramente que o homem fosse feito á semelhança de Deus. Quem quizer, porém, convencer-se d'esta verdade, observe com attenção o modo como a alma exerce suas funcções, e o dominio que ella tem sobre o involucro de materia inerte, que lhe obedece: Consideremos a variedade infinita das nossas idéas, a rapidez com que ellas se formam, a communicação por intermedio da palavra, a fidelidade da nossa memoria, esse presentimento que raras vezes nos engana, tudo parece approximar-nos da suprema intelligencia, que abraça de um lance o céo e a terra, as passadas, as presentes e as futuras revelações da humanidade. A alma, quando furiosas paixões a não agitam, é capaz de reprimir seus desejos; de acalmar seus movimentos desordenados, de dirigir sua vontade, e ahi se observa uma, posto que imperfeita, imitação do imperio que Deus exerce sobre todos os seres. O sentimento que ella tem de sua immortalidade, seu olhar penetrante nas profundidades do futuro, e suas esperanças anciosas além do tumulo, são indicações do seu destino, assignalado por Deus.
—Essa imagem de Deus—atalhou o conde—está bem degenerada; e, se o não está, Deus é um ente bem imperfeito.
—Concordo—tornou o padre—que não é muito semelhante esta imagem do homem imperfeito com a do seu perfeito Creador; era-o, comtudo, no momento da creação; foi o peccado que o desfigurou. Mas se o homem degenerou por causa do peccado, lapso da sua innocencia primitiva, foi depois regenerado pelo sangue do Salvador, e, assim resgatado, tornou-se pela graça filho de Deus. O homem, no estado de innocencia, devia dominar-se, dominar as creaturas todas, e viver perfeitamente com Deus, seu creador. Eu quereria poder aqui especificar a substancia da alma, para satisfazer plenamente ás duvidas do sr. conde, mas, se eu posso provar que a sua espiritualidade está provada pela sua origem, devemos convir que tudo mais nos é desconhecido. Porque Deus soprou o barro que amassára, não se segue que a alma humana é uma porção de Divindade, como os antigos egypcios acreditavam: esta supposição levar-nos-ia ao pantheismo, de todos os systemas o mais insensato. Deus é um espirito, o espirito é indivisivel; e, recebendo cada homem no halito creador uma porção de Divindade, cada homem seria um Deus. O que devemos entender do sopro de Deus não é uma emanação da substancia, mas sim a creação de uma substancia semelhante, isto é, espiritual, mas nunca identica ao Supremo Espirito.
—Não existe entre o corpo e essa substancia espiritual uma união real?—interrogou o conde.
—Certamente, existe, porque o corpo é o instrumento de que a alma se serve para obter o conhecimento dos objectos.
—Mas qual é a natureza d'essa união?
—Essa questão não póde ser solvida pelos homens: é um mysterio d'aquelles em que a Divindade se manifesta com mais magestade ao debil entendimento da humanidade. Se, porém, não é possivel chegar á ultima consequencia d'essa pergunta, não é difficil provar-lhe que uma tal união existe. A alma possue sobre o corpo a soberania e a independencia da vontade; rege-o pelo pensamento, sem comprehender a disposição dos órgãos que rege, e sem que perceba a potencia que move e anima as fibras. Sabe, por ventura, v. ex.ª explicar-me a natureza de certas operações incognitas, que se passam em si? Sem a degradação produzida pelo peccado, este imperio da alma não acharia estorvos no seu exercicio; mas, no estado actual, a vontade é muitas vezes vencida pela resistencia dos sentidos.
—Pois bem, tornou o conde—eu ponho de parte a esteril pretenção de querer saber onde está a alma, e peço que me diga, sr. padre, que culpa tenho eu no peccado de Adão, para estar pagando as suas dividas? Isto parece-me uma flagrante injustiça!
—Deus é soberanamente sabio, bom, e misericordioso; disse-nos que o peccado de Adão era uma herança de culpa para todos os seus descendentes; devemos acredita'-lo. São-nos desconhecidos os motivos d'esta responsabilidade; mas não se segue que possamos, como ignorantes, alcunhar de injusto o Altissimo. N'este mundo ha alguma cousa semelhante. Diz-se que as faltas são pessoaes, e que a vergonha de uma acção criminosa deve só recair n'aquelle que a pratica. E, quando um crime estrondoso se dá que é o que nós fazemos? perseguimos com odio e com desprezo o condemnado e a familia do condemnado, até lhe cortarmos os vinculos que a prendem á sociedade. Não quero dizer que Deus sinta estas repugnancias proprias dos homens, porque não sabemos o motivo porque elle produziu obras, que apenas podemos contemplar; o que dizemos é que Deus é infinito, eterno, e que a pena do peccado, para estar em proporção com a sua natureza, deve ser eterna e infinita. No estado de innocencia, o homem tinha a luz da sua intelligencia, e, degradado pela culpa, caíu nas trevas; de senhor absoluto da sua vontade tornou-se escravo dos sentidos; pelo repouso e felicidade que possuia, trocou a tristeza e o tumultuar das paixões, que o infelicitaram: em logar da vida espiritual e eterna, encontrou a vida material e a morte.
O conde atalhou as razões do padre, espreguiçando-se rudemente, abrindo a boca, esfregando os olhos, com a mais sensivel ostentação de escarneo. Fr. Antonio sorriu-se com bondade, e disse para o pae de Alvaro:
—Eis aqui como a philosophia do orgulho, esta rainha comica do mundo, responde aos que lhe perguntam pelos seus fóros de realeza...
—Não é isso, sr. padre—interrompeu o conde.—É que eu passei uma noite pouco orthodoxa e não posso digerir o succo nutriente da sua theologia sem dormir algumas horas, para restabelecer a boa harmonia entre as funcções do entendimento e as dos sentidos. Bem sabe v. s.ª que os apostolos dormiram, e mais era Christo quem lhes pediu que velassem. Ora eu não tenho a audacia de comparar-me a Cefas, e vossa reverencia não quer de certo tambem comparar-se ao Mestre... Meus senhores, a minha noite começa agora... Vou dormir, naturalmente sonharei com S. João Chrysostomo, e S. Bernardo... Boas noites.
As argucias galhofeiras do conde não agradaram a algum dos ouvintes. Alvaro pareceu vexar-se d'aquella despedida, mais insultuosa que engraçada, ao padre. Este, porém, supposto que vexado, não se denunciou pelo mais ligeiro gesto de enfadamento. A coragem para receber impassivel as ironias sarcasticas da incredulidade, dera-lh'a a desgraça, e aconselhára-lh'-a a caridade.
Na ausencia do conde, Alvaro e seu pae esperavam do padre palavras resentidas; e maravilharam-se quando lhe ouviram dizer com profunda compaixão:
—O desgraçado precisa muito das orações de um justo!... Quem me déra sê-lo para que a luz do céo lhe descesse ao espirito, antes que o desalento do mundo lhe aconselhasse a religião como refugio das extremas desgraças da vida! Oh! quando isso acontecer... muito infeliz deve elle ter sido!...
Desde este momento apertaram-se os vinculos de piedade, de sympathia religiosa que prendiam Alvaro e o frade. O mancebo vira a vergonhosa retirada do seu antigo mestre de atheismo, e decidira-se de coração a favor do modesto triumpho do humilde padre. Como espirito illuminado pela fé, Alvaro precisava formar a sua razão pelos elementos de uma philosophia que Fr. Antonio lhe dissera existir, mas que não era aquella do seu amigo conde.
O estudo attencioso, reflexivo, e continuado tornou-se a vida, quasi invariavel, do educando. Uma transição, assim rapida, assentava o padre que não podia, sem intervenção divina, explicar a improvisa regeneração de um homem, que deixára no mundo mil incentivos de paixões que o não tinham enfastiado ainda.
A vergonha da virtude, que não pudera vingar n'um coração ulcerado de vicios, principiou a desabrochar flôres que enfeitavam a conversão do mancebo d'essas galas de educação, que parecem vindas do berço e herdadas dos paes. Era o imperio da religião, e unicamente da religião.
Fr. Antonio dos Anjos, vaidoso com razão da obra, cujo instrumento elle fôra, não cessava de agradecer ao Altissimo a escolha que fizera de um peccador para a conversão de outro peccador, para quem o remorso seria tardio.
Na «grande roda», falava-se muito da conversão de Alvaro. Infelizmente, porém, esta conversão tomaram-na irrisoriamente a maior parte d'aquelles que se occupavam d'ella, por não terem um caso semelhante de que se occuparem. Os da sua plana, particularmente, pareciam vexados da religiosidade do seu antigo camarada, que tão bellas esperanças dava de correr parelhas no cynismo philosophico do conde.
Na incerteza de semelhante boato, muitos vieram procurar Alvaro, e acharam-no prompto sempre a recebe'-los; se, todavia, os seus hospedes tentavam chama'-lo ao assumpto, que ali os trouxera, Alvaro contava-lhes uma historia assim resumida:
«Eu era discipulo do conde ***, assim como vós o sois. Casualmente o meu mestre de philosophia falsa encontrou-se com outro que me dizia ser o mestre da verdadeira philosophia. Disputaram por algumas horas: o primeiro, quando se viu esmagado no seu orgulho, fugiu, cantando um hymno em seu triumpho, mas um hymno injurioso ao modesto vencedor. Sabeis o que depois me fez alistar na escola do frade, e fugir á escola do conde? Foi, talvez, muito pouco: vi que o frade pediu a Deus a conversão do conde que o insultára, e insultára a Deus.»
Os que o ouviram diziam depois: «Aquelle pobre Alvaro endoudeceu!... Coitado!... Seria uma paixão infeliz? Seria desorganisação do cerebro?... Seria alguma grande perda no jogo?»
Eram passados seis mezes depois que frei Antonio dos Anjos tomára a seu cargo a educação de Alvaro. Este mancebo, vivendo uma vida quasi de reclusão e de immobilidade corporal, fazia grande violencia ao corpo, se bem que á alma não fazia nenhuma. É que a materia, posto que sujeita á vontade do espirito, adquire certos habitos, que não seguem facilmente as modificações do espirito, principalmente quando estas são bôas e aquelles máos. É como o relevo aberto no marmore pela mão do homem, cuja imperiosa vontade não póde desfigurá'-los sem que a mão os destrua.
E a passagem da vida agitada para a meditação sedentaria fôra em Alvaro rapida, talvez de mais. Fr. Antonio conhecia a inconveniencia d'esta transição; mas superior a taes receios, o religioso esperava que, na conversão do seu discípulo, se operasse um continuado milagre.
A Providencia, porém, imprimira no espirito do mancebo o impulso da graça, e deixára-o sósinho na lucta do bem e do mal, para que as fadigas do seu triumpho lhe fossem expiações das cobardias em que se deixára vencer.
Ao cabo de seis mezes, Alvaro da Silveira dera sensiveis mostras de um abatimento, não de espirito, não de coragem, mas d'essa languidez de todos os orgãos, que parece o cançasso de uma febre intermitente. A melancolia fizera-o mais concentrado, mais solitario, e até mais aborrecido de si e dos outros. O estudo não lhe valia já de distracção, nem as praticas eloquentes do mestre lhe captivavam o espirito. Quasi sempre fechado no seu quarto, Alvaro, por fim, repellia os alimentos que lhe levavam, e carregava o sobrolho ás admoestações que o pae ou o mestre lhe faziam. Frei Antonio quiz ver n'este estado critico os elementos ainda não inflammados de uma reacção. Tremeu com a idéa de não vingarem os fructos da boa semente que elle, com tanto esmero e tanta esperança, cultivára n'aquelle coração desbravado, ao que parecia, dos espinhos da impiedade. Orou fervorosamente, pediu com anciedade a tutella do céo para aquelle orphão de pae, de amigos, e de mestre que pudessem ampara'-lo na sua recaída no abysmo, d'onde parecia ser salvo. O santo homem chegára a persuadir-se que os seus trabalhos seriam inuteis, porque o senhor queria puni'-lo da vaidade que elle tivera em faze'-los proveitosos.
N'este conflicto de doridos pensamentos em que a alma do padre andava trabalhada, inspirou-lhe a sua afflicção um pensamento que longas e veladas noites lhe alvoroçou o espirito, antes que seus labios o proferissem.
Fr. Antonio lembrou-se de conduzir Alvaro á sociedade; leva'lo elle proprio ao mundo, e buscar ahi em roda de pessoas que se interessassem, tanto como elle, na regeneração d'aquelle mancebo.
Mas as relações do egresso eram muito poucas, e quasi se limitavam ás do parentesco, e ás novas que adquirira na casa em que vivia.
Onde elle, cheio de confiança, poderia apresentar seu discipulo era em sua casa, na roda de sua familia, onde desde 1834 não tinha entrado uma pessoa extranha dessas que são apresentadas pelo seu nome, pela sua posição, ou pelo seu dinheiro. Ahi, porém, vivia uma menina que não sabia ainda distinguir o homem que nascera bom, e bom perserverára, do homem que fôra mau e parecia bom.
A consciencia do padre não lhe aconselhava confiadamente esse passo, cuja firmeza era toda responsabilidade sua, porque bem sabia elle que Alvaro da Silveira, apresentado ao coronel, seria recebido como filho, e, apresentado a Maria, seria recebido como irmão.
E foi por isso que em sua alma se debateram com violencia dois sentimentos oppostos: a confiança e a prevenção.
Ou porque do céo lhe descesse a inspiração, ou porque as propensões de sua indole lhe fizessem ver a face do bem empanada pelo véo da maliciosa suspeita, frei Antonio convidou Alvaro para acompanha'-lo a casa de sua familia, onde, se quizesse, encontraria as affeições que se encontram n'uma familia recolhida, que, de ordinario, parece desvelar-se em communicar aos extranhos a felicidade de amor que lhe trasborda do seio.
Alvaro, sem fingir-se, não apreciou muito o convite, mas não se recusou a elle. O habito de obedecer aos insinuantes conselhos do padre foi talvez o unico movel, que o fez acceitar um offerecimento, que lhe não promettia distracção á profunda tristeza que se lhe entranhára no espirito.
Frei Antonio compreendera esta hesitação, e n'ella viu um prospero agouro. Seriam illusões de uma boa alma?
O padre prevenira sua familia da proxima visita que lhe era destinada. A mãe de Maria, tão innocente como sua filha, e tão confiada na prudencia de seu cunhado como na de seu proprio marido, recebeu a noticia com jubiloso assentimento. O coronel fitou em seu irmão um olhar de interrogação, que devia ser uma pergunta intima, que os labios tinham medo de balbuciar: «Por ventura nada receias tu, meu irmão? Sabes que ao pé de minha filha só póde sentar-se um anjo como ella? Tens a certeza de que esse mancebo entra em minha casa como no sanctuario da honra?» Frei Antonio lêra estas perguntas nos olhos de seu irmão, e, como se precisasse de empregar a palavra que o coronel não ousava pedir-lhe, o padre apertou-lhe a mão com ternura, e murmurou a meia voz: «Não temas!... tu és honrado, tua mulher é uma santa, tua filha é um anjo... Eu serei um peccador, mas não sereis vós os que haveis de expiar as minhas culpas... Não temas, meu irmão.»
Maria, quando a nova lhe foi dada, experimentou uma sensação, d'essas raras sensações que não hão de ter nunca na terra uma palavra fiel que as defina. Ao ver que nos labios de sua mãe estava um riso de beneplacito e contentamento, Maria sorriu tambem machinalmente, e ficou silenciosa, durante a longa conversação que se travára a este respeito.
Recolhida, comtudo, ao calado abrigo do seu quarto, ao mystico colloquio das suas tristezas com a imagem de Maria Santissima, a melindrosa menina consultava-se, com doloroso interesse, no que seria essa nuvem escura de melancolia, que viera turvar-lhe o espirito, quando ouviu dizer que Alvaro da Silveira, por cuja conversão tantas vezes ella orára, ia ser recebido como amigo no seio de sua familia.
Esta interrogação era como as consultas que nós fazemos do nosso proprio destino; era como a anciedade vã de levantarmos a cortina do nosso quadro de existencia d'aqui a annos. Maria quando uma vez escrevera uma poesia intitulada presentimento, dissera tudo quanto podia dizer, vira o futuro quanto podia ve'-lo, caminhára através da vida quanto podia caminhar; e, como se os passos lhe cançassem, parou, chorando. É que o seu poema fôra uma prophecia de lagrimas nunca represadas.
A apparição de Alvaro em casa do coronel impressionou extranhamente aquella numerosa familia, cuja maior parte não se recordava de ver na sua sala um extranho.
Maria foi como sua mãe cumprimenta'-lo, e, pela hesitação em que ia, pudera julgar-se que a violentavam. O acanhamento das suas maneiras, a inflexão tremida das suas poucas palavras, denunciariam uma inculta rapariga d'aldeia, a quem por passatempo aparamentaram de vestidos senhorís. Na grande roda seria fertil assumpto de risos e gracejos.
Alvaro, por uma d'essas incoherencias da natureza humana, revelava um acanhamento quasi semelhante ao de Maria. A prevenção em que o vimos a respeito d'ella, o conceito sublime que a religião lhe ensinára a fazer das suas virtudes, e, mais que tudo, a belleza d'essa menina, que elle nunca encontrára nos bailes, nem, semelhante a ella, se recordava ter visto outra, foi por ventura tudo isto a extranha emoção que o sobresaltou e collocou, como costuma dizer-se, n'uma falsa posição.
E, demais, quem sabe se assim ficam explicados os embaraços de Alvaro?
Qual de nós não teve na vida uma situação semelhante, d'onde melhor possa ver a de Alvaro da Silveira?
Quem é o homem forte e senhor de si, quando a virtude e a formosura, illuminando a mulher de um santo prestigio, lhe fascinam os olhos da face e os da alma?
E, quando o espirito, purgado das fezes da irreligião, contempla a mulher virtuosa como a depositaria de sentimentos que mais genuinamente simulam o amor de Deus, é tão natural esse enlevo, esse culto, essa idolatria no homem que poude encontrar um anjo, onde não esperava já encontrar senão estimulos de paixões materiaes!...
Nem se explica de outra maneira a surpresa de Alvaro na presença de Maria dos Prazeres.
A virtude tem uma fascinação particular sobre o homem, que não desceu, na escala da depravação, a ponto de negar a existencia de corações immaculados. Anojado de estudar a mulher, modelada nas fórmas invariaveis do salão, onde todas são semelhantes a cada uma, Alvaro da Silveira, abaixou os olhos diante da primeira mulher, que, em outros tempos, poderia abater-lhe o orgulho.
Foi n'esse respeitoso silencio, n'esse involuntario acanhamento de maneiras, que o mancebo justificou a regeneração do seu caracter. Mezes antes, se o tivessem apresentado a Maria, ve'-lo-iam empregar todos os recursos da eloquencia, adaptada a todas as mulheres do «grande mundo» intimamente persuadido de que aquella, deslumbrada pelos ouropeis da phrase, saudaria em sua alma a apparição de uma sympathia ardente pelo genio, pelo talento palavroso, e pelos arrebiques da lingua estudada.
O coronel, attencioso observador da approximação de Alvaro, gostou do pejo com que sua filha foi recebida. Frei Antonio a quem competia encetar uma conversação em que respirassem aquellas duas almas retraídas, principiou a elogiar modestamente as qualidades do seu amigo. Alvaro, silencioso, principiava a affligir-se da sua absoluta esterilidade de idéas, quando, em boa civilidade, lhe convinha agradecer o acolhimento com que era especialisado n'aquella casa. Não se acreditaria esta perplexidade, se cada qual não pudesse justifica'-la com um momento semelhante na sua vida.
Alvaro achou a inspiração na propria fraqueza, que o mortificava. Voltando-se para frei Antonio, com as faces rosadas, disse com voz tremula:
—Eu creio que perdi na solidão os habitos do mundo, meu caro mestre. Nem já sei falar, e era d'antes um falador importuno!... A sua familia deve fazer de mim uma idéa triste...
—Porque?—interrompeu a mãe de Maria, com insinuante delicadeza.
—Porque, minha senhora?—retorquiu Alvaro—porque me acho aqui coacto, entrei aqui grosseiramente, como um saloio que vestiram de casaca, e de um modo que v. ex.ª de certo não esperava receber um hospede que vive na roda onde as etiquetas chegam a ser enfadonhas pela demasia de reparos.
—Ora, sr. Alvaro—interveio o coronel—nós sabemos o que são essas cortezias, e palavreados da tal roda, que v. ex.ª frequentou. Minha filha Maria, essa não as sabe de certo; mas pouco lucrariam, ella, se as aprendesse e v. ex.ª se lh'as ensinasse. Aqui, a unica pessoa exigente—continuou o coronel, sorrindo—exigente das genuinas etiquetas da côrte é talvez v. ex.ª que de lá vem. Tenha, porém, paciencia, se nos encontra sem o polimento com que se envernizam os mimosos da fortuna, alegres sempre e sempre cuidadosos de ensaiar-se, quando a ociosidade os enfastia, na arte de agradar. Aqui tem v. ex.ª as idéas a respeito dos galhardos faladores de salão, que, segundo ouvi dizer, por ahi se chamam fazedores de espirito. Sejam lá o que forem, eu aprecio muito a economia de palavras com que v. ex.ª abriu as relações com esta familia ignorada. Até por generosidade, nenhum hospede, chegado a esta casa deve exigir de nós os tratamentos apurados de uma refinada delicadeza. Não os sabemos, nem poderiamos sustenta'-los. Tudo isto vem a serenar a impaciencia com que o sr. Alvaro da Silveira parece queixar-se das idéas, que lhe não abundaram, quando tivemos a honra de o receber.
Em quanto o coronel prendia os olhos attenciosos de Alvaro, Maria, cobrando novos alentos d'aquella especie de familiaridade adquirida pelas franquezas de seu pae, levantava os olhos meio timidos para frei Antonio, que até então não desviára os seus das faces encarnadas de sua sobrinha. Alvaro continuou com o coronel um dialogo sobre o assumpto das etiquetas, que ambos julgavam, umas vezes, indispensaveis, e, outras, fastidiosas, em quanto Maria, convidada por seu tio, foi sentar-se contrafeita ao piano e suspendeu a travada conversação dos dois, que á primeira corrida do teclado, levaram instinctivamente os olhos e os corações para o rosto incendiado da formosa menina.
O que ella tocou não se recordava Alvaro de o ter ouvido. A meia voz perguntou á mãe de Maria a que opera pertencia aquelle rico trecho de musica. Em resposta teve um sorriso de modestia, a que o mancebo achou duvidosa explicação, e, pouco depois compreendeu, quando frei Antonio, alma franca, e sem reservas de falsa modestia, declarou que a musica era de sua sobrinha. Maria córou, e apressou-se a declarar que não era absolutamente original aquella composição modelada por alguns fragmentos de musica, que ouvira no orgão das Theresinhas. A evasiva não era de todo inexacta. Maria, affeiçoada á musica do templo, nas suas composições, procurava sempre como texto as notas que mais lhe afinassem com o profundo sentimento de terna melancolia, que a dominava, nos ultimos mezes da sua existencia.
Frei Antonio estava sendo penoso á natural modestia, filha do pudor, que a cada instante, se manifestava no rosto purpurino de sua sobrinha. Homem extranho ás mil conversações com que a sociedade consome as horas em inutil trocadilho de palavras, entendia que o mais judicioso passatempo, e até o mais commodo ao espirito de sua educanda, devia ser a litteratura. Por isso chamou a campo sua sobrinha, e obrigou-a pela obediencia a entremetter-se em questões, que o proprio Alvaro de bom grado não quizera quinhoar, com receio de não sair-se bem. Maria, quando os primeiros terrores se desvaneceram, era sublime aos olhos do hospede, que a não concebera tão elevada a respeito de certas cousas, que se dizem, quando a auctoridade dos annos, gastos em aprender, lhes dá um tom de certeza que, quasi sempre, ajusta mal com a natural simplicidade de uma senhora.
Falava-se em romances. Frei Antonio dos Anjos empenhava os seus vastos recursos scientificos em condemnar esse genero de leitura. Alvaro abraçava a opinião de seu mestre, e citava-se a si como victima das perniciosas leituras da sua infancia. O coronel e sua esposa applaudiam a rejeição dos romances. Maria, porém, e só ella, cheia de humildade, sem levantar os olhos dos dedos rosados, que se distraiam correndo a bainha do lenço, contrariava as opiniões dos inimigos dos romances, depois que a cada um ouvira as razões, mais ou menos fortes, com que a leitura do tempo era votada ao exterminio. A sua argumentação era concisa, e quasi sempre balbuciante d'aquelle temor tão proprio em annos verdes, em presença de um extranho, de um pae, e de um sabio.
Uma hora de convivencia entre pessoas, que sinceramente se communicam em francas manifestações do que são, é bastante para a familiaridade, para a estima, e para isto que o coração ambiciona, este bem-estar, nascido da confiança, inteira e desprevenida, que depositamos em uma roda de amigos. Raro, porém, estas rodas se deparam. Amigo é uma palavra profanada pelo uso, e barateada a cada homem que se nos apresenta, como a palavra de honra, que por ahi anda desvirtuando a honra e a amizade.
As delicias da conversação, expansiva como a confidencia, e despreoccupada como a ingenuidade, essa não se conhece nos salões, onde o epigramma recebe os louros da eloquencia, e o espirito acerado e cortante conquista as ovações do talento. A murmuração, bem salgada de ironias galhofeiras, é a raínha das conversações, coroada pelo diadema da hilaridade, que, muitas vezes, não poupa o primeiro da roda, que se retira, nem o dono da casa, que fica, pela sua parte, cotejando os vicios dos seus hospedes espirituosos.
D'esta feição eram as praticas, em que Alvaro da Silveira, adestrado pelo conde de *** primára como bom artista de equivocos, e trocadilhos, em que o sarcasmo acre e engenhoso, pegava delicadamente pelos cabellos da victima, e a empalava nos tractos da zombaria, iguaria saborosa, a unica, talvez, para os paladares estragados.
Era, pois, uma novidade para o seu espirito aquella franca exposição de sentimentos, de mais a mais interessantes pelo lado da intelligencia, e sympathicos para o coração de todos, e especialmente do mancebo, que se extasiava, na presença de um talento de mulher, flôr aberta em exhalações de um novo perfume, para elle, que nunca a vira tão bella e tão fascinadora no dom da palavra.
Maria compartira de sentimento de confiança, que viera dissipar os temores de Alvaro. Sem a candura, e a innocencia, na franca exposição das suas idéas ácerca de romances, Maria não diria tanto, nem se lançára tão seguramente na opinião contraria á de todos. A sincera menina, ingenua como as suas intenções, viu no mancebo, que tão aceite era aos seus, um amigo digno de se lhe dizer tudo o que, em cousas litterarias, se diria a frei Antonio dos Anjos.
Alvaro da Silveira estava sendo digno da sua confiança. E tanto o era, que uma nobre vaidade lhe alegrava o espirito, ao ver-se, tão depressa, merecedor da franqueza com que o recebiam, e da irmandade, com que Maria dos Prazeres lhe respondia aos seus argumentos na questão em que todos se interessavam.
Frei Antonio era um sabio; mas os sabios de todas as posições sociaes, e particularmente os sabios creados no claustro, sustentam prejuizos, que as mediocridades lhes combatem com as debeis armas de uma sciencia superficial. Frei Antonio pensava mal dos romances, por que lera um ou dois, ou mil d'esses que por ahi envergonham a arte, e indignam o pudor. Alvaro da Silveira, que devorára tudo quanto os ultimos annos tinham creado de mais licencioso na litteratura franceza, odiava então os romances aos quaes erradamente imputava os seus desvios. O coronel e sua mulher jurava nas palavras de frei Antonio. Maria, porém, que não lera romances, nem mostrára o mais leve desejo de os ler, apresentava na defesa de tal leitura o instincto da adivinhação, a presciencia do talento, que um relampago, ás vezes, parece alumiar de improviso.
—Eu não sei—dizia ella—como os romances possam perturbar a minha tranquillidade! Que é o que elles dizem? Contam a vida como ella é; matam as illusões de quem a suppõe melhor; antecipam o conhecimento da realidade? Isso que tem? Um bom mestre, encarregado de levar pela mão o discipulo na estrada do mundo, cheia de precipicios, que é o que faz senão apontar ao innocente os abysmos, que se escondem debaixo das rosas seductoras? Que é o que tem feito meu tio a meu respeito? não é levantar-me a cortina do que são segredos para mim, e mostrar-me a triste realidade do que por ahi ha, apenas agradavel aos olhos da innocencia? Eu penso que o romance, espelho fiel das boas e más situações da vida, não póde fazer-me desejar o que é vicio, nem aborrecer o que é virtude...
—Mas se o romance—interrompeu Alvaro—descreve o crime com as bellas tintas da seducção?
—Não importa, o escuro do quadro lá está no crime: as fezes do absyntho lá estão no fundo do calix—retorquiu Maria—não sei se digo a verdade: mas imagino que ha nos romances um mau principio, que só deve prejudicar as pessoas, que os lêem com o coração arruinado, e os olhos fartos já de ver a realidade de tudo o que ha mau. É natural que o romance, para fazer bons certos actos do seu heroe, precise de aniquilar a moral religiosa d'esses actos, e justifica'-los pela moral da falsa philosophia. Isto me tem dito meu tio muitas vezes, e eu tenho pensado, outras tantas, na influencia que poderiam exercer sobre o meu espirito essas más doutrinas, revestidas de seductoras falsidades. Nenhuma, creio em Deus e em mim, que não. Mal de mim, e da minha fé, se o primeiro incredulo, com talento de bem escrever, e falsificar a verdade, pudesse alvoroçar a minha consciencia, a ponto de destruir com a pagina de um livro o que eu recebi pela educação, pela meditação, e pelo estudo!... Tomára eu saber tudo o que o mundo tem de bom e de mau... que me dissessem a flôr em que a aspide se esconde, e o espinho que muitas vezes, soffrido com resignação, nos póde dar depois momentos de prazer. O que eu acho triste e perigoso é crescer, tocar a altura em que a intelligencia raciocina, e o coração se emancipa dos descuidos da mocidade, ser mulher, entrar no mundo, julga'-lo a continuação do seio de sua familia, e ter de perguntar a cada instante á cabeça, que não sabe, até que ponto são razoaveis os preceitos do coração...
Maria foi de improviso tocada pelo receio de se ter excedido. Córou, e abaixou os olhos, como se sua mãe lhe significasse, em um gesto, o desgosto de ouvi'-la.
Alvaro, suspenso dos labios d'ella, fascinado pelo som d'aquella voz, que parecia exercer o imperio do silencio sobre o coração de todos, sentia-se elevado a um assombro de admiração, onde quasi sempre o respeito profundo, ou o amor repentino se assenhoreiam do talento e do espirito.
Era um amor, que nascia, e respirava uma atmosphera embalsamada de perfumes, amor, que nunca, em suas passadas affeições, lhe coára no coração a vida suavissima da paixão tranquilla, sem sobresaltos de remorso, sem temores de culpa, e sem receios de insultar a Deus ou aos homens. No coração de Maria, o que se passava era uma sensação de ternura, o desabrochar de uma nova flôr de amizade para offerecer a Alvaro, como a offertaria a um seu irmão, que viesse de longe, pela primeira vez, reconhecer a sua irmã. Se, todavia, lhe perguntassem o segredo mais intimo da sua existencia desde aquelle dia, ella não teria nenhum a revelar. O mais que poderia accrescentar ao que a sua familia sabia do seu coração, a respeito de Alvaro, é que desde o dia, em que o viu, as suas orações por elle foram mais repetidas, mais fervorosas, e mais tocadas pelo interesse de uma amiga, que quizera gloriar-se de ter concorrido para a regeneração de um anjo.
Á primeira visita succederam outras.
Alvaro realisára as esperanças do padre. A sombria tristeza, que assustára o mestre, cedeu a uma alegria doce que sorria no semblante do discipulo. O pae d'este, compartindo no contentamento do filho, quiz tambem conhecer o asylo de paz santa onde Alvaro fôra encontrar a felicidade, que o mancebo dizia não ser cousa impossivel na terra, desde que visitara a obscura familia de frei Antonio.
Redobrou o prazer do padre. O velho fidalgo foi acolhido como pae de um moço que era alli estimado como parente e recebido sem vislumbre de suspeita má. As noites passavam rapidas para todos. Cousas pequenas, passatempos quasi pueris, entretinham velhos e moços. Silveira, tão zeloso da honra do coronel como elle proprio, espionava as intenções de seu filho, como quem receia que a virtude não esteja ainda tão enraizada n'aquelle coração juvenil, que o torne frio para os mil encantos de Maria dos Prazeres.
Eis aqui um dialogo entre o pae e o filho, quinze dias depois que frequentaram juntos a casa do coronel.
—Parece-me que és feliz, Alvaro.
—Sou, meu pae, sou muito feliz. Se eu dissesse que não sou, era ingrato a Deus.
—Pois, filho, sê digno das mercês que Deus te faz. Põe da tua parte a força e a virtude para continuar a Merece'-las. A virtude, Alvaro, a virtude. Nunca te esqueça esta palavra: seja sempre a tua ancora, se a tempestade vier depois da bonança...
—Nunca a esquecerei, meu pae. Cada dia se me dobram as forças para vencer o mal. As reminiscencias do passado affligem-me e envergonham-me. Em quanto eu olhar assim para o homem que fui, nunca me será preciso luctar com as tempestades, em que o refugio está na ancora da virtude.
—Pois sim, filho; mas por mais risonho que esteja o céo e calmoso o mar, não largues nunca a ancora: tem-a sempre apertada ao coração, porque é lá d'onde rebentam as maiores tempestades.
—No coração? Eu creio, pae meu, creio que é nas tempestades do coração que se morre...
—Se a virtude nos não vale...
—A intenção com que me diz essas palavras...
—É boa, Alvaro; é a intenção com que um bom pae aconselha um bom filho, e até um mau filho. Que perda para todos nós se o coração que se te renova hoje, meu filho, obedecesse a uma impressão das que se não deixam vencer por pequenas resistencias...
—Fale, fale, meu pae... tenho precisão de ouvi'-lo porque preciso que me anime a falar-lhe.
—Adivinhei a tua alma?
—Não sei o que vae dizer-me... Quer-me falar da...
—Da filha do coronel... quero falar-te d'esse anjo que nos tem captivos a ambos, e nem eu sei qual de nós daria mais depressa a vida para que nunca um desgosto por nossa causa lhe banhe de lagrimas a face.
—Que desgosto podemos dar-lhe, meu pae?
—Que sentes por ella, Alvaro?
—O pae adivinhou-me... é um anjo que nos tem captivos a ambos; mas o meu captiveiro é cheio de consolações, é uma prisão que me não custa desgostos nem frenesis... Não vê que sou tão feliz assim? Se me dão a liberdade, fazem-me desgraçado. Amá'-la...
—Amá-la!?...—interrompeu o pae com sobresalto.
—Amá'-la, sim, pois não é isto amá'-la? O que sinto, o que senti, vendo-a uma só vez, tem alguma semelhança com tudo o que me fez vertigens do coração n'outro tempo? Amá'-la, sem que eu lh'o diga, adorá'-la, com a devoção dos justos, recolhe'-la em segredo á minha alma, e tão em segredo que nunca ella possa temer uma só palavra menos innocente que todas as nossas conversações... ama'-la, assim, meu pae, provocar as tempestades do coração?
—É, filho.
—É? então, meu Deus, não ha virtude que resista ao impulso de uma mulher! O homem, que quizer viver em boa paz com o céo, ha de renunciar a tudo que está na terra proclamando a grandeza de Deus. A religião, que nos não veda o amor, está em contradição com a virtude...
—Não está, Alvaro. A religião creou um sacramento para santificar o enlace dos corações que se inclinam para um fim justo, para uma união em que a virtude é o vinculo de cuja quebra ha tremendas contas a dar, e grandes expiações a soffrer na terra.
—Pois bem, meu pae...
Alvaro sustára o pensamento que vinha aos labios, em quanto as lagrimas se mostraram.
—Diz, Alvaro. Tu ias dizer alguma cousa que te fez chorar. É sensibilidade ou arrependimento?
—Melhor é que o não diga, meu pae... Eu preciso estudar-lhe o coração.
—De D. Maria dos Prazeres? não é necessario, filho. O coração d'essa menina não é um livro fechado, é um espelho. Vê-lh'o na face, nas palavras, na educação...
—Não é o coração de Maria dos Prazeres.
—Pois qual?
—O de meu pae.
—É o coração de um pae... que mais queres que te diga?
—Gosta de Maria dos Prazeres?
—Se gosto!... Não te tenho eu dito que o coronel não deve queixar-se das injustiças dos homens em quanto lhe deixam o throno d'aquella filha?
—O pae quereria ter uma assim?
—Quizera assim dar-te uma irmã, filho... Oh se queria!...
—E uma esposa?—disse Alvaro balbuciante.
O pae não respondeu. As palpebras cerraram-se-lhe, que era esse o seu costume na meditação. Com os dedos da mão direita comprimiu o labio inferior, tirando por elle. Passou a mão esquerda por entre os cabellos; e, depois de alguns segundos, disse:
—Queria.
—Queria assim dar-me um esposa?
—Queria. E serias tu digno d'ella?
—Não ouso responder.
—Pois medita.
Silveira ergueu-se. Tomou a mão do filho, e apertou-lh'a com commoção, dizendo-lhe como quem profere um juramento na presença de Deus:
—O homem que maltratar aquella mulher deve dar terriveis contas da sua crueldade. Medita, Alvaro.
E deixou-o.
Ao mesmo tempo, Maria dos Prazeres, e sua mãe, tinham o seguinte dialogo:
—Se tivesses uma amiga muito do coração, minha filha, não terias pesar se ella te adivinhasse um segredo que tu deverias ter-lhe confiado?
—Pesar... conforme, minha mãe... Ha segredos...
—Que se não dizem a uma amiga?
—Que se não dizem por que se não sabem dizer...
—E sentir, sim?
—Porque me faz semelhante pergunta, minha querida mãe? Não se queixe de mim, não?
—Pois eu vou queixar-me, Maria?!
—Falou-me em pesar... e eu começo a senti'-lo...
—De que?
—Se eu pudesse... se eu soubesse dizer-lhe o que sinto... Deus sabe que o meu coração é incapaz de se esconder aos seus olhos, e mais depressa se esconde aos meus.
—Nada tens dito a teu tio, filha?
—De que?... diga, mãe, eu que devia ter dito a meu tio?
—Tudo o que sentes hoje, assim como lhe dizias tudo o que se passava em tua alma.
—E eu sei!...
—Sei eu, Maria. Olha, filha.. O amor de tua mãe, de teu pae, de teu bom tio, de teus queridos irmãos é um amor immenso; é, eu e tu sabemos que é; mas... olha... ha no teu coração espaço para mais amor... Córas, Maria? Vês como a tua alma vem falar-me no teu semblante?
«Pois porque não, se essa alma é a minha, a da minha filha que não póde estar calada diante de mim, ainda que os labios se não abram! Sei tudo, Maria. Agora, se não queres que te fale como mãe, aqui me tens como amiga. Vamos... levanta para mim os teus olhos... conversemos sósinhas. Tu amas Alvaro. A tua melancolia é amor. Esse córar, quando não accusa uma culpa escondida, é amor. Na tua edade, se o contentamento foge do coração, é que não cabem lá os gosos serenos da innocencia, mixturados com as esperanças vagas, com os desejos desconhecidos, com as saudades de não sei que recordações de uma outra vida em que todas as nossas se povoam de anjos.
«Ha um mez, filha, não me entenderias esta linguagem. Hoje sou eu a que falo por ti, e cada palavra que me ouves, é um peso que te levanto de sobre o coração, não é? Assim é que tu querias falar-me, e eu desopprimo-te, explicando a confissão que tens nos labios, e não confessas. Pois bem, Maria, louvores sejam dados á tua bella alma! A tua sensibilidade não póde ser só da tua familia: deve extender-se a tudo que te rodeia.
«Eu esperava isto desde o momento em que vi entrar n'esta casa um homem protegido pela confiança de meu cunhado. Sem virtudes, Alvaro não seria aqui trazido; e, sem virtudes, Deus não quereria que tu sentisses por elle a sympathia que prende a innocencia á honradez. Poderei enganar-me eu, que sou velha? Posso, filha... E que farás tu que és creança? Estaremos ambas enganadas, amando-o ambas. Porque eu tambem o amo, filha; estou familiarisada com elle, vejo-o aqui entrar sem me sentir constrangida. Custa-me a crer que o conheço ha tão pouco tempo!...
«E teu pae? Fala-me d'elle com certo interesse que me parece providencial. Nunca me disse que reparasse nas tuas acções, nem reflectisse nas palavras de Alvaro. E eu, reflectindo, ainda lhe não ouvi uma que desdiga das primeiras. Sempre a mesma bondade, o mesmo acanhamento honesto, a mesma docilidade, e não sei que interesse de filho por mim, e de irmão por ti. Teu tio, cada vez mais alegre com estas relações; teu pae, nem a mais ligeira sombra de desconfiança; teus irmãos querem-lhe como a ti; o pae d'elle quer por força que sejamos seus parentes, e diz-me que veiu saber entre nós o que era a felicidade domestica... Jesus! é impossivel que tudo isto seja engano!
«Oh minha filha, o teu coração é puro, e eu quero ouvi'-lo mais a elle do que ouvir-me a mim. Diz-me se não agouras uma grande felicidade para ti, e para os teus? Confessa-me o que pensas quando estás triste... Diz, diz, Maria...
A filha atirou-se a chorar ao seio da mãe. Balbuciava palavras sem sentido. O coração batia forte, e o tremor convulso dos braços, em redor do collo de sua mãe, suppria a falta de expressão.
Assim as encontrou frei Antonio entrando sem se annunciar.
—N'esta casa chora-se mais do que se reza—disse o padre.
—Não são peccaminosas as nossas lagrimas, meu irmão...—disse a mãe de Maria.
—Pois então dizei-me por que choraes.
—Logo, logo...
Maria beijou a mão do tio, e saía, enxugando as lagrimas.
—Onde vaes tu, menina?—disse o velho.
—Vou trabalhar, meu tio.
—Havemos de falar logo.
Ella saiu, e o frade disse a sua cunhada:
—Vá chamar seu marido e venha com elle.
O coronel entrava n'este momento.
—Ei'-lo aqui. Ora vinde cá ambos; temos muito que dizer e que pensar. Dizei-me cá: o que vos diz o coração a respeito de Alvaro?
—Bem; parece-me um bom moço.
—E o vosso, minha irmã?
—Tenho-lhe affeição de mãe, estou familiarisada com elle como se o conhecesse desde creancinha.
—E sabeis o que Maria pensa a respeito d'elle?
—Soube-o—disse a cunhada—no momento em que meu irmão entrou. As lagrimas que viu nos olhos d'ella eram a confissão do seu segredo.
—Pois que disse ella?—atalhou o coronel.
—Nada, quasi nada... Vendo que eu lhe adivinhava o coração, lançou-se-me ao pescoço, chorando. Disse quanto podia dizer.
—Ama-o, em summa—disse o frade—Não admira; o moço é digno d'ella, e a Providencia quer que se amem...
—E que tem ella que esperar d'esse amor?—interrompeu o coronel.
—Tem que esperar as consequencias de uma affeição approvada por seus paes...
—Se elles a approvarem, meu irmão.
—Pois tu reprovas o amor da tua filha a Alvaro da Silveira?! Eu fico por elle... Quereis melhor fiador? Dou-vos a virtude de Maria. Se a nós não defendermos, defende-se ella.
—Sabes pouco do mundo, meu irmão—redarguiu o coronel.
—Não sei muito, não; mas o que é preciso saber para o nosso caso, sei-o de auctoridade certa, que é o presentimento bom que me dá resolução. O pae de Alvaro diz-me que seu filho quer Maria para sua esposa, e elle pede-a para sua filha. Que respondeis?
—Eu respondo que sim, que lh'a dou com toda a vontade, com todo o coração—disse a mãe de Maria.
—E eu—disse o coronel—respondo que estudes bem o caracter d'esse moço, e quando, passados mezes, não vier algum accidente inopinado alterar a opinião que tens do seu merecimento, virás então consultar a minha vontade.
—Dizes bem, meu irmão—tornou o egresso—Penso ter-me enganado, e ainda agora caí em mim, e na fraqueza dos meus juizos. Disseste bem: eu conheço pouco do mundo.
—E não sabes—continuou o coronel—-que certos homens, sem serem hypocritas, apparecem inesperadamente bons; ás vezes uma pequena alteração no seu modo de pensar, produz grandes mudanças na vida exterior. Eu recordo-me de um grande phenomeno na minha vida de mancebo. Aos dezoito annos era eu rapaz desenvolto, vicioso, desobediente a nossos paes, e desprezador de alguns deveres bem sagrados. Amava o escandalo estrondoso; e a publicidade das minhas loucuras desvanecia-me. Vi esta mulher, que é tua cunhada, e amei-a. Os paes d'ella eram exemplares de virtude, e quem houvesse de merecer-lh'a devia ser virtuoso. O talvez menos habilitado para lh'a pedir era eu. Resolvi ser hypocrita; deu nos olhos a minha improvisada virtude, e consegui levar a nova da minha conversão ao conhecimento da familia de minha mulher. Senti augmentar-se o meu amor ao passo que a violencia, que eu me fazia para ser bom apparentemente, ia deminuindo. Até cheguei a convencer-me de que os virtuosos sem mascara eram felizes. Pedi minha mulher, e concederam-m'a. Casei... e depois...
—Foste sempre um bom marido...—interrompeu ella.
—Se tu o dizes, devo acredita'-lo, e a consciencia tambem me diz que o fui; porém, a explicação da minha reforma tem alguma cousa singular. Fiz-me bom por orgulho, primeiro. Os nossos conhecidos, e particularmente os meus rivaes, diziam que eu te faria desgraçada. Entrou o meu amor proprio no combate, e tu foste feliz. Quando o mundo já não reparava nos meus actos, e calava envergonhado os seus vaticinios, era eu teu amigo, teu verdadeiro amigo, sentia-te muito dentro do coração, e já não poderia, se quizesse, expulsar-te de lá. Appliquemos o conto: Alvaro da Silveira, com quem sympathiso, foi o que tu sabes, meu irmão.
«Ainda não ha quatro mezes que o encontraste entregue aos prazeres de um gosto pervertido. Em poucos dias mudaste-lhe as inclinações; mas o aborrecimento em que o viste, deu-te receios de que o teu balsamo fosse inefficaz. Conduziste esse homem a minha casa; conheci que Maria o impressionára, e, depois de dois mezes de frequencia constante, Alvaro quer casar com minha filha. Quando se ama, meu irmão, é facil fingir dois mezes uma virtude que não tem raizes no espirito, e as que tem sómente no coração morrem, quando o amor acaba. Não duvido que Alvaro ame extremosamente minha filha; mas receio que não seja amigo d'ella: cousas muito diversas, cuja diversidade só bem se conhece dos trinta annos em deante. Um casamento rico não me lisongeia. Habituei-me a esta pobreza, e sou feliz, não sei até se alguma vez o fui mais do que hoje. Maria tambem é feliz. Vê, sem deslumbrar-se, os esplendores da sociedade. Sentiu privações em creança, e hoje, não as sentindo, agradece a Deus uma prosperidade que seria indigencia, se ella tivesse conhecido a abundancia, o fausto, e as demasias de prazeres e dissabores que sua mãe conheceu. Não a casemos para a fazermos rica. Se esse moço póde dar-lhe ao espirito novos gosos, seja elle embora seu marido; eu, porém, não creio que elle possa communicar-lhe o que não sente. Estuda-o, meu irmão; estuda'-lo é esperar. Entretanto Maria aprenderá de sua mãe as lições que deve receber uma menina que vae ser mulher.
Frei Antonio era esperado anciosamente de Alvaro. Dos labios do frade pendia a sua felicidade. Fôra elle encarregado por Silveira de propor ao coronel o casamento, com que o pae queria recompensar as virtudes de uma familia, á qual devia a regeneração de seu filho.
O egresso recebera com tristeza o enthusiasmo do discipulo. «Esperemos»—foi a sua unica palavra. Alvaro sentiu-se ferido no seu amor-proprio, e experimentou um abalo do seu genio. Se o padre soubesse ler nos olhos o coração, veria mover-se a areia sobre que fôra levantado o edificio da virtude de Alvaro.
O velho Silveira não se doeu menos das reflexões do coronel. Irritára-lhe a sua fidalga susceptibilidade. Pretextando-se incommodos de Alvaro, suspenderam-se alguns dias as visitas.
Maria, porém, extranha aos reparos de seu pae, não vendo em tres noites seguidas Alvaro, denunciou a impaciencia da saudade.
Silenciosa em sua magua, Maria deixava-se adivinhar, mas não gemia, nem perguntava a causa do ar sombrio de seu pae. Esperava anciosa as noites, via entrar seu tio só, e nem por um lanço de olhos lagrimosos lhe perguntava que mal fizera ella a Alvaro.
A pena, porém, era grande, e sem desafogo. Maria sentiu a desdita que presentira, um anno antes; compreendeu a significação amarga d'aquelles singelos versos que fizera nascer uma musica triste, filha da sua imaginação.
Adoeceu, sem queixar-se; caíu no leito, quando já não podia esconder de seu pae a febre constante que a extenuava.
Veiu o medico do corpo, e conheceu que a dor estava na alma. Frei Antonio sabia que ella podia morrer d'aquella febre. Foi, com sua cunhada ao pé do leito de Maria, e disse:
—Menina, o nosso amigo Alvaro vem hoje visitar-te, se tiveres forças, sáe da cama e vem agradecer-lhe o cuidado; se não, outro dia será.
Aumentou o rubor nas faces das enferma. Voou-lhe um innocente sorriso de ventura nos labios. Parou-lhe de repente, a vertigem do sangue. Reappareceu-lhe o sol do coração, a florescencia da phantasia, o céo dos seus extases, e a claridade radiosa do seu ar balsamico. Era a que fôra, quando se lançára a chorar de feliz nos braços maternaes.
E dizia o coronel a seu irmão:
—Deus me livre de ser cruel para minha filha... Os homens muito experimentados na desgraça vêem tudo pela face peor. Póde ser que sejam dignos um do outro. Casem embora, e queira o céo que eu me arrependa mil vezes de ter agourado mal d'este casamento. Diz a Alvaro que lhe dou minha filha, e diz-lhe mais—que vae com ella a minha vida, vida que eu lhe dou, pois antes quero perde'-la, se hei-de um dia vê'-la infeliz. Que elle me mate, antes de fazer chorar Maria as primeiras lagrimas de arrependimento.
—Não sabes como elle lhe quer...—disse o padre.
—Tambem eu queria muito ás flores em quanto o viço d'ellas não desmaiava na minha mão. Depois, que valia uma flor sem perfume, sem seiva, amarellecida? Via-a caír sem dó, folha a folha, e, descuidado d'ella por amor das outras, punha-lhe em cima um pé indifferente. Compreendes o que é o homem, meu irmão? Melhor o compreenderás assim; não t'o quero pintar na linguagem propria... Na mão de Alvaro será Maria o que as flores foram na minha?
Foi restaurada a confiança entre as duas familias. Consentiram-se expansões sem testemunhas aos dois amantes.
A nuvem que lhes encobrira alguns dias o bello horisonte do seu destino, afervorára-os para mais da alma saudarem a reapparição, para mais se quererem.
Alvaro apressava o enlace. O coronel não o retardava nem o accelerava. Entrára-lhe profundamente a desconfiança na alma. Sua mulher tentava em vão destruir-lh'a. O frade chegava até a considera-la peccaminosa e ingrata aos favores do céo. Maria nem sequer imaginava que podia ser-se infeliz na situação d'ella; e contristava-se por não ver seu pae alegre como todos.
Frei Antonio foi o ministro do sacramento. Abençoou-os na capella de Alvaro da Silveira. A um dia de jubilo, seguiram-se muitos dias de felicidade intima. Em casa, porém, do coronel, chorava-se muito. Faltava alli a alma d'aquella familia. Os irmãos de Maria, alguns ainda creanças, estavam affeitos ao seu regaço, ás suas lições, e ás suas carinhosas repreensões. O coronel não queria ver a cadeira em que Maria se sentava, o piano, o açafate da costura, tudo que parecia chorar com elle a falta da sua dona. Sentava-se a familia triste e taciturna em redor da mesa. Olhavam todos, sem consolar-se, para o logar de Maria, e rompiam de todos os olhos as lagrimas. Erguiam-se, vendo o pae erguer-se; apenas a mãe ficava, com o coração partido, dando o exemplo da resignação, e consolando com palavras animosas, esforço mais intenso na dôr que a dôr de todos. Ao oitavo dia a esposa veiu visitar sua familia. Foi recebida em alvoroço. Queriam beija'-la todos ao mesmo tempo. Os irmãos mais novos perguntavam-lhe se ficava para sempre. Maria, entre risonha e lacrimosa, repartia-se em affagos por todos, desejando alguns instantes de solidão com sua mãe.
—És feliz, minha filha?—perguntava-lhe o coronel.
—Sou, meu pae, quanto se pode ser, longe dos seus. Falta-me lá esta familia; ainda não pude, nem poderei considerar-me desligada d'esta casa. Parece-me até que sou mais d'aqui, e que a outra é uma casa de emprestimo.
O coronel voltou-se para sua mulher, e disse:
—Sentias isto quando casaste comigo? Tinhas assim saudades de tua familia?
—Não...—disse a mãe de Maria.
—Então...—tornou o coronel—tua filha é menos feliz do que tu foste! No goso da abundancia tem occasião de sentir saudades da pobreza que deixou.
—O pae—replicou Maria—engana-se, ou não póde sentir como sente uma mulher. Minha mãe havia de sentir o que eu sinto; é que já se não lembra... Pois haverá felicidade que me faça esquecer a minha familia?! Eu não sei o que é abundancia nem pobreza. Ainda não pude ver a differenca que vae do que deixei ao que hoje tenho, senão pelo coração. Sou feliz com Alvaro, mas seria mais feliz se Alvaro vivesse como irmão dos meus irmãos, aqui...
Alvaro entrava n'este momento, repartindo por todos amabilidades, chamando manos a seus cunhados, queixando-se de que o não tenham visitado, convidando-os para o seu camarote, offerecendo-lhes as suas carruagens.
—Cousa notavel!—dizia o coronel, tirando á parte frei Antonio que tambem concorrera á primeira visita de sua sobrinha.—Cousa notavel! As maneiras acanhadas de Alvaro desappareceram. Todos aquelles modos, a munificencia com que nos dispensa os seus favores, tem um ar de orgulhoso triumpho que me intimida. Ha alli alguma cousa que parece dizer. «Casei com vossa filha pobre, e tenho a fidalga generosidade de vos querer elevar com ella!» Não te parece?
—Parece-me que estás contaminado da má fé do mundo.
Felicidade, o que és tu? Engano providencial que nos alimentas na alternativa do desejo e do desengano. Amiga cruel que nos foges com a esperança, apenas os labios sentem o travo do absyntho que a taça do prazer esconde no fundo.
Quem te encontrou n'esta vida, felicidade? O que eras tu, quando eu te via espargindo flôres desde o meu obscuro cantinho até aos imaginados horisontes do meu destino?
O que és tu hoje, phantasma severo que desdobras o teu manto negro sobre a esperança, que, momentos antes, mandaste luzir no meu despertar de infeliz?
Felicidade, o que serás tu, se não és a filha dos homens, morredoura como elles, soberba do teu nome, embaindo, com a mascara do opulento, os pobres que te esperam, cavando, cada vez mais fundo, no coração do ambicioso, o vácuo da cobiça, chegando aos labios do sequioso, que te busca na terra, a esponja acerba do desengano?
Porque te não vejo eu debaixo do docel dos principes da terra? Enfloraste os berços de Carlos I e Luiz XVI: porque deixaste borrifar de sangue no cadafalso as tuas grinaldas?
Busquei-te no seio da familia laboriosa, que aceitou humildemente a condemnação do eterno trabalhar, do suor copioso das fadigas. Não estavas lá. O braço trabalhador enervou-o a fome, no anno da esterilidade, e as creancinhas d'esse homem, sem cobiça de mais pão que o necessario á sua familia, vagiam pendentes dos seios aridos de sua mãe.
Busquei-te na mediocridade honesta, na alegria da independencia. Era falso esse existir na vida. A mediocridade anciava saír da sua esphera; a alegria da independencia era um sonho de infelizes servos; a independencia era uma situação mentirosa como o teu nome.
Estarias tu na gloria das batalhas? Se fizeste Cesar o primeiro de Roma, porque o não salvaste do punhal de Bruto?
Na gloria da virtude? E a cicuta de Socrates? e a guilhotina de Malherbe? Como estremaste os destinos de Séneca e Nero? de Virginia e Aggripina? Quando és tu o galardão da virtude, a socia fiel do nobre espirito, o premio benemerito do coração immaculado?
Na gloria da sabedoria?
Entraste, por ventura, na alma do philosopho, que tentou levar as multidões ao teu sanctuario? Orvalhaste-lhe a aridez do espirito abraseado em ancias de achar-te aqui? Déste a Cicero, teu apostolo inspirado, a resignação na morte? Estará o teu busto levantado sobre as ossadas de centenares de homens prodigiosos, poetas que fizeram seculos, honras perpetuas das nações, pisados pela desgraça, mortos de fome de pão e de ti, que lhes mandaste arrastar a mortalha por toda a vida?
Passarás ao menos uma primavera, no coração da virgem, que te chama do céo, que te crê filha de Deus, que se acolhe ao teu regaço como a asylo inviolavel de innocentes, que te vê na ternura maternal, que te beija nos labios de seus irmãos, que te respeita nas palavras ungidas de um velho, que te abraça soffrega na idolatria de um amante, que aperta ao seio todos os teus dons, cingindo-se ao seio do esposo estremecido?
Não, maldita da esperança, tu não estás entre nós. Existirias na terra, se entre os homens e Deus não estivesse o infinito.
—Maria vive triste...—dizia padre Antonio dos Anjos a sua cunhada.—Não diga isto a seu marido, minha irmã. Poder-me-hei ter enganado, e não lhe antecipemos um dissabor.
—E porque não vem ella a nossa casa?!—perguntou a mãe afflicta.—Ha um mez que nos não visita, disse aos irmãos que não tornassem lá sem ella os chamar... Alvaro já a trata mal? já a não amará?!
—Alvaro vive triste como ella. Encontram-se poucas vezes; ainda se não deram as mais ligeiras desavenças entre elles; mas o silencio quando nos reunimos todos á mesa, é profundo entre ambos. Fogem de encontrar-se nos olhares; e, sem causa proxima, as lagrimas caem ás vezes sobre o prato de Maria. O pae de Alvaro pergunta-me o que tem seu filho. Interroga-o, e elle responde-lhe que não tem nada. Eu interrogo Maria, e ella pede-me que rogue a Deus por ella.
—É pois muito desgraçada a minha filha!—exclamou a lagrimosa senhora—Fomos nós que fizemos a infelicidade d'ella. Fui eu, fui eu só! Era eu quem devia destruir-lhe este amor no seu principio. Fiz o contrario... Dei-lhe azo para que tudo me confessasse, applaudi-lhe o puro sentimento que a levava ao coração de um homem que eu julgava digno d'ella; animei-a até a proferir palavras que o pudor lhe não deixava saír do coração! Minha pobre filha, é tua mãe quem te fez infeliz! Que direi eu a meu marido, quando elle me pedir conta da felicidade do nosso anjo, d'aquella santa que tantas lagrimas nos enxugou, e nós não podemos enxugar as d'ella... Podemos, podemos...—proseguiu ella com exaltação.—Que venha para a nossa companhia; vá, meu irmão, vá dizer-lhe que o coração de sua mãe só póde achar allivio ao seu remorso, sentindo-a chorar no meu seio... Vá, vá, antes que meu marido saiba que ella vive assim... Traga-m'a, póde ser que meu marido se não queixe na presença d'ella... Não se lembre que ella é casada... Não ha lei divina que obrigue uma mulher a ser victima de seu marido...
—Basta, minha irmã!—interrompeu com brandura o padre—Não multiplique com o seu amor de mãe os soffrimentos de Maria... Ella não se queixa. Quer que a sua dôr seja um segredo para seu proprio tio, e bem sabe que minha sobrinha me fez o confidente das suas alegrias e pesares... Póde ser que esta sombra de melancolia seja uma nuvem. Não vamos nós precipitadamente desafiar uma tempestade, que nem se quer nos ameaça. O anjo do Senhor está ao pé de Maria, e um desgosto passageiro é muitas vezes uma experiencia que Deus manda para a purificação das suas escolhidas. Confiança na justiça divina, minha irmã. Alvaro tem de responder hoje ás perguntas de seu pae, e talvez ás minhas. Póde haver n'esta melancolia de ambos uma causa dada por ambos. O silencio de Maria faz-me suspeitar que ella não tem bastante confiança na razão da sua tristeza. Póde ser que a demasiada saudade dos seus, manifestada ao marido, o tenha desgostado. Se tal fôr, é preciso dizer a minha sobrinha que o sacramento do matrimonio opera uma suave mudança nas ligações de familia. O amor de esposa tem uma santidade superior ao de filha: augmentam as obrigações, e vem com ellas o dever do sacrificio. Eu conheço pouco do coração humano; mas o de Maria sinto-o pensar, e sentir, e desejar dentro do meu. Maria deve amar e ama deveras seu marido; porém esse amor sem fausto, sem bailes, sem theatro, sem jantares, e sem visitas importunas e ociosas ser-lhe-ia mais grato, mais em concordancia com o seu natural. Ora, pois, minha irmã, menos lagrimas, e mais reflexão. Repito que não diga a seu marido que eu vim aqui fazer-lhe o mal que não imaginava.
O velho Silveira chamou seu filho, e disse:
—Que tristeza é a tua, e a da tua mulher, Alvaro?
—Não falemos n'isso, meu pae. O soffrimento calado é o mais nobre, o soffrimento irremediavel é creancice expo'-lo á piedade dos outros.
—Soffrimento irremediavel!? De que soffres? Estás arrependido de casar com esta menina que adoravas tanto?! Aborreces... enfastiou-te este anjo?!
—Não me enfastiou... receio que venha a enfastiar-me... Está bom, meu pae, mudemos de pratica. Para onde vamos nós a ares este anno?
—Que modos são esses, Alvaro! Entrou outra vez em ti o demonio da perdição!? Foi, pois, uma mentira, uma impostura, uma infame astucia a tua emenda?
—Não dou motivo para semelhantes suspeitas, meu pae. O meu proceder é hoje como era ha quatro mezes. Ouvi'-lo-hei, senhor, mas v. ex.ª não me accuse sem fundar a sua accusação.
—É possivel que já não ames Maria?!—replicou o pae—Em que desdiz ella do que tu e eu esperavamos, Alvaro?
—Pois eu não a amo?! O pae que quer que eu faça? Ser-me-ha preciso trazer ao collo minha mulher para o persuadir de que a amo?! Eu não sei fazer carinhos piegas... Creio que ella não dirá que a trato mal, nem a privo dos seus prazeres...
—Que prazeres! Pois a pobre menina raras vezes sae do seu quarto, raras vezes, ha quinze dias a esta parte, se encontra comtigo... que prazeres lhe dás, Alvaro? É isto o que tu planizavas quando me pediste que empenhasse ao coronel a minha palavra de honra como abono do teu procedimento para que elle te não negasse a filha? Vejo que preparas para os meus ultimos dias uma grande deshonra, e um grande remorso! Com que cara me apresentarei ao coronel logo que elle saiba os surdos padecimentos da nobre menina, que não solta um gemido queixoso! Explica-te, Alvaro; não te offendo, sequer, pedindo-te, como pae, uma explicação d'essa frieza para com ella... O que é isto?
—Pois eu obedeço, senhor, respondendo em toda a verdade da minha alma. Creia que soffro, respondendo assim; mas eu preciso dizer a terrivel verdade que me esmaga o coração. Maria não é a mulher, que eu devia procurar. Enganei-me. Foi um desencontro, uma desgraça, uma horrivel illusão! Eu não sou digno d'ella. Fui atraiçoado pelo amor que Maria me inspirou; julguei-me capaz de occupar, toda a vida, o coração com a posse d'ella. O demonio venceu. Sinto-me enfastiado; tenho o gelo da indifferença na alma, violento este sentimento amargo a confessar as virtudes de minha mulher: vejo-a formosa, reconheço que é um anjo, mas não posso, ao pé d'ella, passar um quarto de hora sem fastio. Parece que o meu arrefecimento lhe passou á alma. Vejo-a triste, responde-me chorando se lhe pergunto que motivos tem de tristeza, evita-me quando eu faço sobre mim um grande esforço em mostrar-lhe agrado... Em fim, meu pae, não era eu o homem que devia fazer a felicidade d'esta mulher... Sou incapaz de a maltratar, terei com ella todas as attenções de irmão; mas... é necessario que deixe de sentir o que sinto... A violencia é inutil... o amor não se crava no coração como quem crava um punhal... Basta-me o meu infortunio de não poder ama'-la. Os desgraçados como eu são amaldiçoados pela sociedade, e Deus sabe se elles não são mais dignos de piedade que de maldição!... Não poder ama'-la como a adorei ha tres mezes! Isto é angustioso, meu pae! Por quem é, não me aggrave as minhas dôres com as suas censuras... Não receie nada por ella... Eu tirarei da delicadeza todos os pretextos para que ella se capacite de que ainda a amo. É uma piedosa mentira em que meu pae, por meu bem, e d'ella, e de todos nós, deve consentir, e até empregar a sua influencia auxiliadora. Consiga v. ex.ª que ella saia do quarto, que vá aos theatros, que vá aos bailes, que frequente as nossas immensas relações, que aprenda na sociedade com outras mulheres a esquecer os infortunios domesticos, que eu farei o mesmo...
—É uma alliança infame, que tu queres que eu proteja?—interrompeu o velho.
—Como alliança infame!—redarguiu o filho.
—Sim! consentes a tua mulher...
—O que? queira dizer, meu pae!
—Tenho vergonha de o proferir!...
—Então não me comprehendeu, ou me julga um homem destituido de honra. Lembre-se que sou seu filho, senhor! Eu não quero fazer com minha mulher allianças infames. Quero que ella não faça consistir a sua felicidade sómente na minha convivencia de todas as horas, e de todos os instantes. Quero que ella reparta os seus desejos, e as suas idéas por tudo que possa dar-lhe uma distracção honesta, e concedida ás senhoras da sua posição. Não quero que o seu amor á solidão me force, me algeme a um gosto que não tenho. Estamos na sociedade, eu sou um rapaz, e quero viver para a sociedade. Gosar não é offender a Deus, como lhe incutiram a ella. Nunca a levei aos theatros, aos bailes, a uma visita, que não tivesse primeiro que destruir-lhe os preconceitos com que a crearam. Está sentada ao piano, ou ao bastidor: quer meu pae que eu esteja alli constantemente ao pé d'ella, repetindo-lhe as phrases cançadas de um amor de convenção? É hypocrisia com que não posso...
O velho voltára as costas ao filho, e confundira as lagrimas com as de padre Antonio que se fizera annunciar.
Alvaro falára pela bocca de todos os maridos maus ou infelizes, quando a libertinagem os não cura do veneno do desgosto com o veneno da deshonra. Era de certo o enojo, esse desfallecimento de alma incuravel, esse morrer do amor que nunca mais resuscita, quando a mulher que o causa é esposa, e quando o homem que o recebe não tem a força de virtude que converte a piedade em estima.
A paciencia de Maria azedava ainda mais o desgosto de Alvaro, porque as lagrimas em silencio eram a mais pungente censura que ella podia fazer ao seu procedimento.
A melancolia do padre, cuja convivencia elle afastava, e o sobrecenho do pae, irritavam-n'o até ao frenesi de raiva ás algemas que lhe queriam lançar á sua liberdade.
O padre aconselhava-lhe os bailes, e os passatempos que a sua indole apreciava. Pedia á sobrinha que o acompanhasse para compartir dos prazeres de seu marido; mas a pobre menina, se alguma vez accedia ao que lhe era imposto como dever de mulher casada, ia levar á sociedade o espectaculo da sua tristeza, e dar incentivo de arguições, umas justas, outras exageradas ao procedimento de Alvaro da Silveira.
Menos instada por seu marido, e por seu tio, e por seu extremoso sogro, que lhe era segundo pae, deixou de saír, e mui raras vezes visitou sua mãe, porque não podia mentir ás suspeitosas perguntas de seu pae, a respeito da felicidade que o marido lhe dava.
Alvaro, pouco a pouco, foi-se absolvendo de seus deveres, e respeitos á sociedade. Estudou o viver e o sentir dos maridos no circulo das suas brilhantes relações, e viu que entre tantos havia só um que pudesse atirar-lhe uma pedra. Entendeu que podia ser-se um homem importante aos homens, e importante ás mulheres, embora casado, embora propenso a esquecer-se todos os dias que o era. Relaxados os deveres, seguiu-se a tibieza nas apparencias do decoro, e da delicadeza, ultima ferida que uma mulher com dignidade póde receber de um mau marido.
O seu antigo amigo conde de *** foi reintegrado na sua particular estima. Era já recebido no seu quarto, era o seu confidente em segredos dignos de ambos, era tudo o que póde ser um amigo intimo, menos relação de sua mulher. Maria regeitára com imperio, pouco natural ao seu caracter humilde, a apresentação do conde. Ouvira falar d'este homem em casa de seu pae, ao tio, e ao sogro, de modo que lhe ganhou asco, e não podia vencer o sobresalto com que ouvia annunciar um tal nome, que seu proprio marido, tres mezes antes, banira das suas relações.
Na primavera d'esse anno, Alvaro partiu com o conde, e outros de egual porte para o campo, em busca de touros para as corridas do campo de Santa Anna. Demoraram-se vinte dias n'essa gloriosa expedição digna dos netos de Vasco da Gama e de Affonso de Albuquerque... Durante esse tempo, Maria não teve de seu marido um bilhete, nem uma saudade. De volta, Alvaro achou sua mulher gravemente enferma d'essa molestia que entra no coração, e filtra de lá o veneno da morte por todas as fibras.
Disse-lhe palavras consoladoras, instigadas pelo espinho do remorso, palavras calculadas na frieza do seu desamor; mas a idéa satanica da viuvez entrou-lhe na alma com a esperança de uma felicidade imprevista.
É horrivel! mas não duvideis... Olhae de redor de vós...
Foram aconselhados a Maria ares do campo. Saíu de Lisboa para Collares, acompanhada por seu tio, e dois creados. Alvaro partira para Villa Franca, e de uma quinta, muito conhecida nos arrabaldes d'aquella villa, fazia as suas excursões á caça, em que entreteve um mez, distraído de tudo; e embebido no seu affecto remoçado ao inseparavel conde.
Entretanto, Maria déra largas ao coração abafado. Padre Antonio sabia a causa do soffrimento, mas affectava extranheza, para não auctorisar queixumes de mulher casada. Fazia grandes rodeios aconselhando a sua sobrinha a resignação, porém, simulando, sempre, que não conhecia motivo para tristeza tão inconsolavel.
Uma vez, Maria, cançou na lucta comsigo mesma, e fixou no tio os seus grandes olhos arrasados de lagrimas. Era um olhar de soffrimento que reage, uma accusação ao homem que concorrera para o seu infortunio, e parecia impor-lhe a violencia da mudez, a morte surda sem a inoffensiva respiração de uma queixa.
Frei Antonio entendeu-a, e disse:
—Fala, minha querida sobrinha, accusa-me, e depois pediremos ambos ao Senhor que nos dê melhor vida a ambos.
A mulher de Alvaro da Silveira balbuciou:
—Não o accuso, meu tio; peço-lhe sómente que me deixe chorar. É bem pouco pedir; mas eu sinto um grande conforto n'este unico prazer dos infelizes.
—O da oração é maior, minha sobrinha...—atalhou o padre.
—Pois eu não oro, meu tio? É quando sinto mais dentro do coração a doçura das lagrimas. Ou peça a Deus paciencia para soffrer até ao fim, sem que a minha familia o saiba; ou peça que se digne tocar o coração de meu marido, choro sempre, e fico sempre mais desopprimida.
—Mas os teus dias são sempre eguaes, filha. Estás cada vez mais abatida, mais magra, e mais febril.
—Que importa o corpo? O que eu recebo de Deus é a força da alma... A morte não lh'a peço, por que sei que não faria com ella a felicidade de Alvaro... É impossivel que o remorso o não castigue depois... Isso é que eu não queria... O Senhor me livre de ser o instrumento das torturas d'alguem... E, se eu morresse, a nossa pobre familia soffria muito... minha mãe, seguir-me-ia, e os meus irmãos pequeninos nos braços de meu pobre pae... matal-o-iam com carinhos... É por isso que eu não peço a morte...
—Não peças, Maria. Diz-me o coração que terás melhores dias da tua existencia, e que eu hei de ve'-los ainda.
—Oxalá... e como serão esses dias, meu tio?
—Será quando teu marido voltar ao que era quando te queria tanto.
—Pois esse amor póde por ventura tornar?
—Pois não póde, filha?! Estás passando por uma dolorosa provação; é impossivel que não recebas n'este mundo o premio da tua constancia. Assim como Alvaro passou do mal para o bem, e depois recaiu no mal, o anjo, que o alumiou uma vez, ha de alumia'-lo outra, minha sobrinha. Quando menos o esperarmos, estará comnosco, para nos restituir o bom coração que nos roubou. Crê, e ora, minha filha. Oremos ambos. As nossas supplicas sejam por elle, e deixemos ao senhor apiedar-se de todos, quando a sua bondade quizer.
Padre Antonio, horas depois, enviava um proprio com uma longa carta a Villa Franca. Era um humilde requerimento ao coração de Alvaro. Lembrava-lhe, com delicadeza, os seus deveres. Contava-lhe o viver attribulado de sua sobrinha, pedia-lhe encarecidamente que viesse vê'-la, ou consentisse que algumas pessoas da familia d'ella a acompanhassem no ermo em que vivia.
O fidalgo recebera a carta no pospasto de um festim em que se banqueteavam os caçadores, commemorando as façanhas venatorias do dia. O conde de ***, chamado por Alvaro a conselho redigiu e escreveu a resposta á carta, visto que o seu amigo, turbado de vinho, apenas tinha entendimento para conhecer que o frade o incommodava, como parapeito dos tiros de sua mulher. A resposta, por tanto, foi simples e peremptoria. Alvaro agradecia muito os pios conselhos do padre, sentia muito os incommodos de sua mulher; recusava, porém, acceder á convivencia pedida, e approveitava a occasião para observar a sua reverendissima que a sua pertinaz assistencia em casa d'elle Alvaro era pouco delicada, provando-se que não havia n'essa casa meninos para educar. Terminava, ordenando que sua mulher se recolhesse a Lisboa quanto antes, visto que os ares campestres não conseguiam alliviar os seus padecimentos.
Esta carta foi lida a Alvaro, que deu no hombro do seu secretario uma sonora palmada, como signal de applauso e gratidão.
Frei Antonio fôra assistir ao trespasse de um moribundo, e não estava em casa quando chegou o conductor da resposta. Foi Maria que recebeu a carta, e vendo a letra inesperada de seu marido, sobresaltou-a tanto o prazer, que nem sequer reflectiu para abri'-la.
Leu... E mal viu as ultimas linhas. Entrou em tremuras, escondeu a carta no seio deixando uma parte visivel; luctou como querendo segurar o alento que lhe fugia; mas debalde. Padre Antonio ergueu-a desmaiada de um canapé, quando voltou. Tirou-lhe do seio a carta; leu-a, e tornou a insinua'-la sem a sobrinha dar fé. Esta, recuperando os sentidos, viu ao pé de si o tio, com ar risonho, trahindo-se em algumas palavras confortadoras; mas a pobre senhora, de momento a momento, levava a mão ao seio para certificar-se de que a carta lhe não fôra tirada.
—Então o que foi isso, minha filha?—perguntou o padre.
—Um desmaio, resultado da grande fraqueza que tenho, de um passeio que dei longo de mais para as minhas forças...
—Pois tu saíste, Maria? Não enganes o teu tio.
Aqui, Maria córava, e o frade vinha logo com o remedio, fugindo para outra idéa.
Depois de uma hora em que dois corações angustiados estiveram a enganar-se mutuamente, padre Antonio abraçou sua sobrinha; e disse:
—Olha, menina, o extremo do soffrimento não se póde dizer qual é, nem quando chega; por isso não direi ao certo que as nossas penas estão a passar por serem culminantes. Mas é de fé para mim, filha, que isto assim não póde demorar-se muito. A piedade do Altissimo está por instantes a amercear-se de nós. Maria, fica no teu quarto; pensa n'essa carta que tens no seio, eu vou pensar tambem; e, passada uma hora estaremos juntos. Antes, porém, de decidir, Maria, pede ao senhor a luz da graça.
Maria ficára como engolfada em profundo pasmo com a mão no seio. O frade saíra.
Passada uma hora e um quarto, foi a sobrinha, atemorisada pela falta, que entrou subtilmente no quarto de seu tio. O velho estava de joelhos diante de uma cruz. Sentiu-a entrar, voltou um pouco a face, e disse:
—Espera um bocadinho, menina; eu falo-te já.
Maria ajoelhou ao pé d'elle.
—Pois sim, oremos juntos: disse o padre—se já resolveste, pede comigo ao Senhor que mude a tua tenção, se ella não é do seu agrado.
Decorridos alguns minutos ergueram-se ambos.
—Pensei, meu tio—disse Maria.
—E então?
—Creio que Deus permitte a minha vontade: o tio me dará a certeza da minha fé, se não se oppuzer.
—Pois diz, filha.
—Eu fujo a meu marido.
—Como? foges a teu marido?!—atalhou o velho espantado.
—Acolho-me ao seio de Deus, para morrer tranquilla.
—Entendi; minha filha!—exclamou elle com jubilo abraçando-a.—Queres dizer que entras n'um convento.
—Sim, sim.
—Foi a minha idéa, quando orava...
—Sim? então, bemdito seja Deus!—disse Maria erguendo as mãos com arrebatamento.—Já vejo que o Senhor approva a minha resolução. Eu pedi muito á Virgem que lh'a inspirasse, meu tio. Vou para as Therezinhas. Tenho lá muitas amigas que me hão de fazer digna de orar com ellas. Trabalharei para viver em flôres, em recorte de papeis, em tudo, por que pouco me basta. Poderei ve'-lo todos os dias, meu tio, e verei meus paes, e meus irmãos. Se Alvaro um dia me quizer, elle irá procurar-me, e eu serei sempre o que sou e o que fui. Não lhe tenho odio, não tenho. Sei que elle ha de ser ainda muito infeliz, e talvez seja eu, depois de meu tio, quem lhe restitua a boa alma que elle tinha quando o conheci.
—Tu choras. Maria?—interrompeu o padre carinhosamente—Levas saudades de Alvaro, não levas?
—Saudades? não sei que sentimento é este!... parece-se mais com o da compaixão. É como se eu dissesse: podiamos ser ambos tão felizes!.. e assim não se sabe qual de nós será o mais desgraçado! É o que eu sinto, meu tio. Já vê que o estimo ainda como se fosse um meu irmão perdido de vicios, que maltratasse sua familia, e que eu tivesse conhecido enchendo de carinhos minha mãe e meus irmãos. Lembra-me que elle era tão amigo de todos! entrava na nossa casa como se fosse nosso... agradecia tanto o nosso bom agasalho, sem saber que nós ficavamos sempre tristes quando elle nos deixava... É porque eu choro, meu tio... Isto é saudade do que elle foi, e compaixão do que é.... Paciencia... Vou para as Therezinhas... Imaginei-me sempre lá desde creança, não se lembra? No tempo em que eu cantava aquellas palavras tristes, pensava tanto em pedir a minha mãe que me deixasse entrar no convento, ainda que fosse como creada...
—E hoje, Maria... talvez... tenhas de entrar como creada...
—E isso que tem, meu tio?! Pois nas Carmelitas não entravam tantas senhoras distinctas que faziam a cozinha ás semanas? Que tem que eu seja creada? Alvaro não póde envergonhar-se d'isso; porque ha muitas situações vergonhosas para um marido, mas esta—a de servir—não é uma d'essas... pois não?
Maria córou proferindo algumas d'essas ultimas palavras. Fr. Antonio depois de abraça'-la, disse:
—Eu vou para Lisboa, minha sobrinha. Falarei com a prioreza; veremos como has de entrar; antes, porém d'esse passo, é preciso que escrevas a Alvaro.
—Pedindo-lhe consentimento?
—Sim.
—Se m'o nega?! não vou?
—Vaes, Maria. A petição é a humildade da esposa; mas a fuga é o ultimo direito da victima. Onde ha algoz não ha marido.
Era assim a carta de Maria a seu marido:
«Foste enganado por uma chimera, Alvaro. Não era eu a mulher digna do teu amor. Quando vi apertar-se o teu coração á dôr do arrependimento, tive mais compaixão de ti do que de mim. Eu, pobre mulher, posso soffrer e chorar, sem ser vista. Tu, Alvaro, nascido para os prazeres do mundo, cuja privação o meu amor não podia recompensar-te, soffrerias muito, se não tivesses animo de affastar com a ponta do pé os deveres, e esquecer que eu sou, ao mesmo tempo, tua escrava e tua tyranna.
«Felizmente que adoptaste o melhor expediente.
«Penso que as distracções, longe de mim, te deixam sentir as doçuras da liberdade. És, talvez, feliz. Se o és, Alvaro, olha que esse bem peço-o eu constantemente a Deus para ti. Não te deixes vencer jámais do remorso. Os meus padecimentos, bem o sabes, não se alliviam em queixas. Nunca te pedi explicação da tua frieza, nem te dei uma palavra aborrecida por outra. Até as lagrimas te escondia, não é verdade? Se me surpreendias chorando, antes queria mentir-te uma invenção, que exacerbar-te com as minhas lastimas o pesar de me teres dado o direito de te arguir. Quando assim se soffre, Alvaro, não ha idéa de vingança, nem se aceita com prazer a expiação de quem nos mortifica.
«Vamos tratar da tua felicidade, meu caro irmão. Deixa-me dar-te este titulo que tem tanto do affecto como da razão. Entre nós já não existe o grande amor, que me parece ser inflexivel aos dictames do juizo. Podemos suavemente caminhar cada um para seu lado, sem voltarmos as costas com arremesso. É o que eu queria, e espero consegui'-lo, porque, sendo eu tão fraca, a força que sinto para dar um passo em teu bem, é Deus que m'a dá, e dar-m'a-ha até ao fim.
«Deixo-te mais livre do que vives, Alvaro. Vou entrar n'um convento, e vou pobre como vim para tua casa. Sentirei lá que és meu marido, porque não cessarei de orar por ti, e offerecer em desconto das minhas e das tuas faltas o tempo que Deus me der de vida.
«Conheço que nasci para a solidão e para os prazeres ignorados da vida obscura. Esta consciencia e a absolvição de algumas cruezas do teu caracter para comigo. Tu precisavas de uma mulher que te disputasse na sociedade uma parte da tua gloria. Querias, talvez, abrilhantar-me aos olhos dos outros com o reflexo da tua luz. E eu, educada na pobreza e na simplicidade, não pude, por mais que quiz, contrafazer a minha indole. Fui arrastada pelo dever aos raros bailes onde me levaste; voltava de lá contente com a esperança de estar sósinha comtigo, e muitas vezes me deixaste sósinha com a minha saudade; e tornaste aos bailes a aproveitar as horas que eu te aguava com a minha inexoravel melancolia.
«Era então que eu te lastimava, por teres sido enganado pelo coração, quando me dizias que a vida no ermo, só comigo, era o teu sonho de ventura, e amaldiçoavas o brilho perfido da sociedade que te não deixára mais cedo ver o que é este mundo, com os olhos da razão.
«Se me não tivesses dito isto, Alvaro, eu seria muito culpada por aceitar o sacrificio da tua liberdade. Fomos enganados ambos. Pensava eu que era verdadeiro o teu fastio dos prazeres ruidosos e vãos; cuidei até que o meu maior merecimento para ti estava no desprezo com que eu ouvia lá fóra do meu cantinho o bulicio da vida opulenta. Aqui está porque eu não te peço perdão de ter querido ser, contra a vontade de meu bom pae, tua mulher. D'esta culpa quem me ha de perdoar é o pobre velho, e eu conto com a bondade da sua alma.
«Aqui tens, pois, o meu destino, Alvaro. Vou para um convento; não devo, porém, sahir de tua casa sem praticar este acto de humildade, rogando o teu consentimento. Quasi certa de que m'o dás, vou fazer os meus ligeiros preparativos. Ainda não disse tudo, Alvaro... Se um dia sentires a penosa necessidade de falar a alguem que te diga palavras de allivio, procura-me, vae sem receio de encontrares uma queixosa. Eu farei quanto puder em teu bem contra o mal que o mundo te houver feito. Chamarei á tua alma as reminiscencias do que ella foi, quando eu t'a mereci, furtando-a ás outras paixões. Vae procurar-me, Alvaro, e acharás sempre uma irmã.
«De tudo o que te disse n'esta longa carta, deves tirar a certeza de que, muito longe de odiar-te, estimo-te, sou tua amiga, offereço a minha vida pelo dom da tua ventura; mas quizera, Alvaro, que essa ventura não fosse mentirosa. A que presentemente gosas não póde ser duradoura, nem filha do espirito.
Adeus.
Tua mulher
Maria dos Prazeres.»
Maria entrou no quarto do padre. Estava elle ajuntando n'um sacco os seus livros, e uma pouca de roupa branca.
—Já escreveste, filha?! Vamos ver a tua cartinha...—disse elle continuando o seu serviço—Eu estou aqui ajuntando estes farrapos, e estes quatro livros. A nossa bagagem, Maria, é tão pequena, que a póde um frade velho transportar debaixo de um braço. Ora vamos lá; lê a tua cartinha.
Maria leu, affectando serenidade. Não podia, comtudo. De instante a instante, havia embargo de soluços, lagrimas pertinazes, e alterações na côr. Padre Antonio tomou-lhe das mãos a carta, e leu-a em voz alta.
—Está muito boa—disse elle, afagando as faces de Maria—Vou mandar o proprio a Villa-Franca. Ámanhã por noite, está cá a resposta. Eu virei então saber qual ella foi.
—Pois meu tio, já hoje me deixa?!—interrompeu Maria com vehemencia.
—Pois então, menina? A minha licença acaba logo que a trouxa esteja prompta. Eu não extranho isto... Quando me mandaram saír do meu convento que era a minha casa, saí logo; agora mandam-me saír de uma casa, que não é minha, que hei de eu fazer? Saír mais depressa ainda, se é possivel, e sacudir á saída da porta o pó dos meus sapatos. De mais a mais, bem sabes que preciso falar á madre prioreza das Therezinhas no teu agasalho, que ainda não sabemos como será, e todo o tempo é pouco... Nada de lagrimas! Pelo amor de Deus, recebem-se todas as amarguras com olhos enxutos. O merecimento aqui não é chorar, é rir para o céo. Ha uma só causa justa para lagrimas, Maria: vem a ser a offensa a Deus, que é Pae, ou aos homens, que são nossos irmãos. D'estes peccados, absolvo-te eu, menina, que os não tens. A offendida és tu, e, por conseguinte, perdão para os homens, e oração de graças ao Senhor.
Alvaro da Silveira recebeu a carta, quando saía para Santarem, onde o esperava um brilhante sarau, em que era rainha uma nobre dama que se deixara ferir do nobre caçador. Era, portanto, muito improprio o ensejo da carta, cuja generosidade tinha para elle o valor odioso de uma accusação mascarada. Foi esta a opinião do seu amigo conde.
Alvaro respondeu vocalmente que mais tarde responderia por escripto. O portado, industriado pelo padre, replicou humildemente que não voltava sem resposta, ou signal de ter sido recebida a carta. Perguntou-lhe Alvaro quem lh'a tinha dado. O creado falou a verdade. «Pois esse hypocrita ainda lá está?» exclamou irado o fidalgo... «Leva—continuou elle—ahi vae o signal de que recebi a carta».—E entregou-lhe, aberta, a carta de sua mulher.
Tal foi a resposta que Maria recebeu. Diga quem puder as lagrimas que este desprezo lhe custou. O frade respeitou-as tanto, que em logar de consola'-la com a paciencia, eloquente sempre em seus labios, chorou tambem.
—Vamos, filha—disse elle por fim.
—Já?! de noite?—reflectiu ella.
—Tens medo, Maria? A noite vae melhor ao estado da nossa alma... Chegaremos de madrugada á tua nova casa. Passarás o dia no locutorio com a nossa familia.
—Pois está tudo arranjado?
—Tudo, Maria, tudo providencialmente arranjado. Vaes ser hospeda da sr.ª escrivã, em quanto eu não posso por meios certos que Deus me ha de deparar comprar-te uma cella no convento. Depois, o teu trabalho dar-te-ha uma subsistencia certa. Fallaremos, fallaremos... Vamos embora.
Maria foi, quasi desfallecida, encostada ao hombro do padre, até entrarem n'uma sege de praça que os esperava no portão. Grande, porém, foi a surpresa da attribulada senhora, quando ao entrar na sege, foi apertada por uns braços que só podiam ser de mãe pelo afago com que lhe bebiam as lagrimas da face.
O choro de ambas embargava as palavras soluçadas. O que ellas, porém, queriam dizer-se era pedirem-se perdão mutuamente; a mãe á filha, por lhe haver afervorado e absolvido o amor a Alvaro; a filha á mãe porque fraqueava no martyrio, e, sem pedir-lhe conselho, abandonava aos juizos da sociedade a explicação da sua fuga, talvez bem infamada.
A sege parou defronte do mosteiro.
Rompia a manhã. Tão lindo estava o céo, tão balsamico o ar ao pé do arvoredo do convento, as aves deleitavam tanto o coração, o múrmuro despertar da natureza tão meigos arrobos filtrava ao seio de Maria, que, enlevada em mudo regalo, docemente lhe marejavam nos olhos as lagrimas de um contentamento infantil, se não eram antes o respirar suavissimo da abafação angustiosa em que penára.
Aberto o portão exterior, frei Antonio entrou com sua cunhada e sobrinha. Algumas religiosas desceram á portaria, e levaram comsigo mãe e filha, felicitando esta com grandes jubilos, e inventando graças para a desassombrarem da sua tristeza. Sabiam-lhe bem a maguada vida, e a virtude santa, aquellas servas do Senhor. A Mãe de Jesus, protectora sempre invocada de Maria, tocou talvez o coração das carinhosas freiras que parecem porfiar qual mais mimos e agrados fará á querida hospeda.
D'ahi a pouco volveu ao mosteiro Fr. Antonio com a familia toda. O coronel esmoreceu d'aquelle seu grande animo vendo a magreza cadaverica da filha. O velho, alimpando as lagrimas, fez que nenhuns olhos ficassem enxutos. Diante d'aquella magestosa dôr, não houve uma só pessoa que tivesse espirito para consola'-lo. O padre, esse, o que mais ali soffria talvez, abaixava humildemente a cabeça diante de seu irmão, como quem confessa a maior culpa de tamanha desventura.
Uma das religiosas, querendo consolar, censurou sem asperidão, ainda assim, o proceder inhumano de Alvaro da Silveira.
Maria fez um gesto de desagrado, e, sentindo amargamente que lh'o não entendesse a freira condoida, disse:
—Alvaro da Silveira é meu marido, minha senhora. Deus é que julga as nossas acções... Eu preciso a piedade de toda a gente; mas não queria que ella custasse a Alvaro a sua condemnação. Meu marido não é mais feliz que eu. Por isso que estou muito certa d'isto, peço ás senhoras d'esta casa que roguem a Deus por elle, quando lhe rogarem por mim.
Ficaram como assombrados todos os animos, e apiedados todos os corações. Ninguem, durante aquelle dia, proferiu o nome de Alvaro.
Á tarde houve um adeus de muito chorar; mas, ao dia seguinte, lá estavam os irmãosinhos e a mãe da secular, e o tio padre, uns para chorar com ella, outros para distrai-la com as suas innocentes graças.
Maria trabalhava em flores, em costura, em tudo que fazia independente o seu parco passadio; e, desde o segundo dia, oração e trabalho alternavam-se, afóra as horas das lagrimas, que eram de noite, sósinha, a occultas das consolações, ás vezes importunas, das amigas—que todas o eram.
Frei Antonio foi um dia mui alegre ao locutorio, e disse isto a Maria:
—O pae de Alvaro foi hoje a nossa casa, attribulado que fazia dó! É homem honrado, e quer-te como a filha. Sabia tudo, e abraçou-se a teu pae, pedindo-lhe compaixão para o mais desgraçado dos paes. Queria vêr-te, não se afoutava a vir sem licença nossa. Concedemos-lh'a todos com muito prazer. D'aqui a pouco está comnosco, filha. Pede uma grade para o receberes.
E, ditas estas e mais algumas palavras da alvoroçada Maria, o velho Silveira chegou-se ao locutorio, dizendo que queria abraçar sua filha. O claustro negava-lhe satisfazer tal desejo e d'ali foi para uma grade onde foi pathetica a scena. Maria não se queixava, ao mesmo tempo que o velho amaldiçoava o filho. Ella, então, punha as mãos supplicantes, pedindo-lhe que levantasse a maldição de sobre o infeliz Alvaro.
Siveira apertava a mão do padre, e dizia:
—Com este nobre e santo coração recompensa o Senhor todos os padecimentos de uma familia; esta virtude, porém, exacerba a minha magua, porque eu sou pae de um monstro, e este anjo é victima d'elle, e... talvez minha. Fui eu que lh'a pedi, sr. padre Antonio...
Occorriam então as pacientes reflexões de Maria, querendo absolver todos os que promoveram o seu casamento. E, sem affectação de virtude, a christã de coração e ensino, dizia que mais devia agradecer a Deus as provações em que puzera a sua fé, e a sua esperança no premio celestial.
Silveira quiz saber que vida era a da sua nora. Contou-lh'a o padre. O velho, pasmado de tanta resignação, quiz logo alli chamar a prioreza para dizer-lhe que n'aquelle mesmo dia, a esposa de seu filho era uma secular com fartos meios de subsistencia, e com todas as regalias possiveis n'um convento.
Maria atalhou a liberalidade do sogro, dizendo que não acceitaria um ceitil em quanto pudesse trabalhar.
Foram, pois, baldados esforços de sogro e tio. Não havia, com razões, demove'-la do seu proposito. As que se lhe davam eram frivolas. Silveira queria que sua nora tivesse alli a grandeza do seu nascimento. A isto replicava ella que nascera mui pobre, e cria que o saír da sua obscuridade fôra infelicitar-se, e rebuscar novas pompas seria reincidir na desgraça voluntariamente. Só no trabalho esperava allivio—dizia ella; e por misericordia pedia que a deixassem com os seus recursos, porque a aptidão para o trabalho fôra o seu inexhaurivel patrimonio.
Desde 1835 até 1842, a historia de Alvaro da Silveira é a historia de todos os homens perdidos.
A reclusão de sua mulher, no principio, recebeu-a como um ataque aos seus direitos de marido, e quasi esteve, por orgulho, a requerer um divorcio, ou, ainda mais, a annulação do casamento.
Outras idéas vieram desenlea'-lo d'esta preoccupação periodica. O seu amigo conde chasqueava-lhe a demasiada susceptibilidade, dizendo-lhe que poucos maridos deviam tanto á fortuna, que por tão suave processo, o descartára a elle do tropeço conjugal.
O velho Silveira saíu d'este mundo, um anno depois que Maria entrára no convento ralado de penas, infamado pelas immoralidades de Alvaro, que, de collaboração com o conde, redigira os famosos estatutos para a chamada sociedade do delirio. Ao estrondo das primeiras impudencias, o pobre pae correu a querer salvar o filho. Foi recebido com desdém, e repellido com o desprezo ás suas instancias. O velho coração não podia com o golpe. Morreu sem filho ao pé do leito, quasi desamparado dos parentes que o inculpavam na educação licenciosa de Alvaro. Quem lhe ministrou as consolações do trespasse, foi um extranho. Frei Antonio dos Anjos, ao qual o senhor de uma grande casa disse á hora da morte, que as dissipações de Alvaro não lhe tinham deixado seis vintens para mandar dizer por sua alma uma missa.
O marido de Maria viajava então por França, onde lhe foi a nova da morte de seu pae. Alvaro melhorava de meios, porque os recursos, que seu pae lhe dava com quanto superiores ao rendimento de sua casa, não bastavam á dissipação.
Veiu prestes a Lisboa tomar conta dos seus vinculos.
Procurando um usurario que lh'os acceitasse como hypotheca de alguns contos de réis, ninguem os queria por mais do valor dos rendimentos de tres annos, porque a magreza livida de Alvaro aterrava os agiotas.
Um mercieiro, antigo creado de seu pae, sabendo que o fidalgo barateava á usura os seus bens, apresentou-se-lhe para acceita'-los como hypotheca de uma somma quasi egual ao valor d'elles.
Alvaro abençoou o seu destino, e receoso de que o mercieiro se arrependesse, apressou o contracto.
O comprador, porém, clausulou que em sua mão ficaria uma certa somma para acudir ás necessidades da esposa do vendedor, se ella um dia as sentisse. Alvaro acceitou essa hesitação maravilhado de que o inepto logista não pedisse a assignatura consentanea de sua mulher!
Este mercieiro conhecia frei Antonio dos Anjos. Captivo do benevolo interesse d'elle, o padre fôra-lhe contando os infelizes acontecimentos d'aquella casa. O velho creado de Gonçalo da Silveira, quando soube que seu amo expirára, quasi desamparado, sem seis vintens em dinheiro para uma missa, chorou, e protestou valer ao filho, quando o soccorro lhe aproveitasse depois de uma lição amarga.
Em 1842, Alvaro fugindo aos credores de Pariz, de Londres, de Madrid, de onde quer que desbaratou o seu e o alheio, appareceu em Lisboa pedindo ao mercieiro que lhe valesse. A desgraça quebrára-lhe a soberba. Alvaro pedia com humildade, se não era antes relaxamento, soccorro ao creado de sua casa. O logista deu-lhe a quantia que ficára, como em deposito, para ser dada a Maria, dizendo que ella a mandára entregar a seu marido.
Recebeu-a com indifferença, e consumiu-a obscuramente em uma roda que não era a sua, na convivencia de individuos que, sómente no abysmo da desgraça, sem honra, se encontram.
Padre Antonio dos Anjos não sabia dizer a Maria, onde seu marido estava. O mercieiro é que não perdeu de vista o filho de seu amo, com a mira de levanta'-lo, quando elle abrisse os olhos no extremo caír de perdição.
Foi elle, pois, quem deu ao frade miudas novas de Alvaro de Silveira. Umas vezes recebia dos parentes uma dadiva, como esmola. Outras, achava-se entre a gentalha, buscando nas fezes sociaes esquecer os explendores que dissipára. Eis ahi que chegava a mão mysteriosa do logista.
Um dia, Alvaro da Silveira quiz annullar o contracto feito com o desconhecido bemfeitor. Aconselharam-n'o que a acção de dolo devia ser intentada por sua mulher contra o comprador fraudulento dos vinculos. Alvaro escreveu a sua mulher uma carta, onde se via um espirito embrutecido pela desgraça, um ar de cynica indifferença, não affectada, porque é ella o caracteristico do homem a seus proprios olhos desprezivel. N'esta carta, pedia Alvaro a Maria que o coadjuvasse a resgatar os bens de que dependia a farta subsistencia de ambos.
Maria respondeu que não podia demandar o comprador de uns bens que ella nunca julgára seus. Accrescentava que os unicos bens de sua posse eram a propriedade do trabalho; e o resultado d'elle reparti'-lo-ia irmãmente com seu marido, se elle o acceitasse. O padre quiz ser portador d'esta carta.
Alvaro não poude evitar a presença do tio de sua mulher. Estava elle vivendo em um quarto de emprestimo na casa de um homem, que lh'o offerecera, não conhecido seu. A providencial espionagem do mercieiro preparára-lhe esse quarto, ao mesmo tempo que o avisavam das intenções de Alvaro, ácerca dos rendimentos comprados.
Eis aqui o que disseram Alvaro e o padre.
—Que futuro será o seu, sr. Alvaro?
—A continuação do presente, quando sua sobrinha não queira tirar-me d'elle.
—Minha sobrinha?!
—Sim. Se minha mulher annullar a escriptura que assignei do trespasse dos meus rendimentos por vinte annos...
—Já viu o que minha sobrinha lhe diz.
—Então, seremos ambos desgraçados, e eu mais de que ella, porque fui creado na opulencia, e ella...
—Na miseria: póde v. ex.ª acabar a phrase que nos não envergonha. Maria offerece a seu marido um quinhão da sua miseria.
—Não entendo...
—Reparte com seu marido o salario de seu trabalho.
—Está zombando? Que póde minha mulher repartir?
—Migalhas.
—Eu não vivo de migalhas, nem queria que ella vivesse. Agradeço-lhe esse offerecimento que me faz. Se é castigo com que me pune, bem castigado estou, sr. frei Antonio. Diga-lhe que aos desgraçados da minha especie perdôa-se, porque a necessidade é um supplicio infernal para o homem que teve.
—E, comtudo, a honra na pobreza rehabilita o desgraçado.
—Não é n'este tempo, nem n'esta sociedade... E, de mais, eu não sou deshonrado. Tenho gasto muito, tenho dissipado tudo, mas esse muito, esse tudo era meu.
—Tem v. ex.ª orgulho do seu feito!
—Tenho; tenho legitimo orgulho de ter fugido á sociedade antes que ella me repellisse.
—E se ella o abraçasse na sua pobreza?
—O senhor não conhece os homens. Se os conhecesse, sua sobrinha seria hoje a feliz virtuosa que foi.
—E é, se não feliz, virtuosa... mais, pela paciencia, e pela esperança...
—Esperança!...
—Esperança, sim, de o ver rehabilitado perante ella e o mundo. Ouça-me, sr. Alvaro. Comece hoje a ser amigo de sua mulher, se póde. Verá o que é um anjo. Verá como ella o faz esquecer da sua posição infeliz n'este mundo. Aquelle poder de Deus, que as minhas mãos indignas não souberam empregar na sua regeneração, verá v. ex.ª o que é nas mãos da pobresinha recolhida de Sant'Anna. Queira ve'-la, que ella não lhe fugirá. Vá ve'-la. Não cuide que tem de pedir perdões, accusando-se de ingratidões e crueldades. Vá como se não tivessem corrido seis annos sem se verem, sem se escreverem. A sua salvação é ella que a tem no thesouro da nobre alma que Deus lhe enche todos os dias de conforto e esperança...
Alvaro escutára o longo discurso do padre, sem quebrar-lhe a successão de palavras qual d'ellas mais tocante.
Frei Antonio por fim, abraçando-o com carinhosa effusão, perguntou:
—Vae, sr. Alvaro?
—Irei, se assim o quizer.
As muitas lagrimas de Maria, as de sua familia, as orações religiosas que pediam a Jesus Misericordioso a regeneração de Alvaro, começaram a florir, para fructos abençoados.
O padre separára-se no caminho, por suppor que a sua assistencia constrangeria Alvaro na presença de Maria dos Prazeres. Alvaro, porém, desde que se viu só, e á porta do mosteiro, desanimou.
Não foi o receio de ser accusado de ingrato e cruel que o susteve. Essas accusações já o frade lhe tinha dito que as não ouviria. O que lhe esfriou o alvoroço com que ia, foi um sentimento de vergonha de si proprio. Acostumado a deixar-se sempre guiar, sem combate, pelas primeiras impressões, boas ou más, Alvaro, depressa annuira a procurar sua mulher, e mais depressa foi vencido pelo orgulho que lhe dizia quanto elle ia ser pequeno diante de sua mulher.
A soberba apraz-se, ás vezes, escarnecer as suas victimas, depois que as acha despenhadas na miseria. É quando ella se converte em castigo duro, tormento incomparavel. Em quanto rico, Alvaro, mordido pela serpente da soberba, acudiu á dôr da chaga com o balsamo do ouro, essa alavanca poderosa do capricho e da vingança. Pobre, a ferretoada da vibora entrava-lhe até ao coração, e d'ahi lavrava ulcerosa, porque a miseria constante lh'a estava descarnando sempre.
Por isso o pobre orgulhoso será entre os mais desgraçados o primeiro. Se Deus se não amercear das angustias, que espedaçam o homem caído em miseria do alto da grandeza, o inferno das dôres indescriptiveis estará no coração d'esse Lucifer despenhado.
Maria recebeu esta carta:
«É o teu amor, ou a tua piedade que me chama, Maria? Se amor...! como hei de eu acredita'-lo? que fiz eu que te não mereça odio? onde póde estar esse amor, depois de seis annos de ingratidões, e esquecimento, a peor de todas?! Esquecimento, não. Lembravas-me, Maria, e sabes quando, e com mais amargura? Quando me sentia caír. A cada empurrão que o destino, ou o Deus da vingança, me dava para este abysmo, era então que eu te via, despenhada por mim, vendo-me caír; mas que differença entre as nossas quedas! Eu a precipitar-te e um anjo do céo a erguer-te para onde a minha alma desesperada não póde já desafogar as suas afflicções!
—Não pódes amar-me, Maria, não pódes. A compaixão, se outro affecto me não tens, essa não a acceito. Além de certo extremo de infortunio, está o egoismo na desgraça, o desprezo da piedade vã se não é antes humilhadora. Deixa-me esperar a mórte, n'este lodaçal em que vivo. A esperança não póde mais entrar em minha alma. Adeus.
Alvaro».
As lagrimas de Maria desfaziam as linhas que ella escreveu, em seguida á leitura d'esta carta. A penna obedecia ao ardor do coração. Era a primeira vez que ella o escutava, e lhe obedecia sem consultar primeiro o padre.
Era assim a resposta que Alvaro recebia pelo mesmo portador:
«Vem, meu amigo. Deus te guie o coração que a sua divina mão abriu ao arrependimento. Tu és ainda muito rico: do thesouro de amor que te dei, e tu rejeitaste, não dissipei um só dos carinhos com que heide restituir-te..., restituir-te, não digo bem, com que heide dar-te uma felicidade nova, nunca experimentada. O infortunio fez-te bom. Tu precisas de mim e eu hoje tenho um santo orgulho de ser a unica pessoa que tens por ti, um coração amigo. Esse egoismo na desgraça é uma soberba blasfema. Deus não te desamparou, meu amigo. Se de mim não queres consolações, vem ao menos ver como eu choro a perda das tuas esperanças.
Maria».
O orgulho de Alvaro succumbiu. No dia seguinte, procurou Maria. Desta vez, não o abandonou o animo á porta do mosteiro. A primeira pessoa que viu no pateo foi o seu mestre, o tio de sua mulher.
Eram oito horas da manhã. Frei Antonio entrava no templo para sacrificar, e convidou Alvaro a segui'-lo, porque Maria estava no côro, e, só depois da missa, viria ao locutorio.
O abstrahido moço, entrou ne egreja e ajoelhou. Maria soltára, no seio de uma amiga, um ai que o denunciára. A amiga, electrisada pelas lagrimas felizes da secular, pediu á prelada se lhe consentia que tocasse o orgão durante a missa. Obtido o consentimento, fez soar, magestosa de tristeza, tristeza suavissima que dulcifica as lagrimas, a musica do Te-Deum laudamus.
Na fronte de Alvaro eriçaram-se os cabellos: a felicidade trasbordava-lhe do seio em lagrimas, corria-lhe o corpo o calefrio do arrebatamento, esse phenomeno inexplicavel que tantas vezes abala as organisações delicadas.
Soube-se logo a causa da perturbação de Maria. A prelada quiz saber porque chorava assim. A docil senhora não podia nem devia esconder o motivo das suas lagrimas. Pediu uma grade para receber seu marido, e a prioreza, ensinada pelo coração que adivinhava os desejos de Maria, pediu-lhe para acompanha'-la á grade. A mulher de Alvaro apertou-a ao seio com alvoroço de contentamento.
—Venha comigo, minha mãe,—disse ella—Eu preciso que elle ouça as palavras que Deus manda ao seu coração. Dê-lhe a elle a felicidade no infortunio como m'a deu a mim. Não espero que elle me dê um amor como eu o esperava antes de experimentar as angustias do desprezo; mas se for possivel converte'-lo ao temor de Deus, elle ha-de estimar-me, e com a minha estima soffrerá os trabalhos da vida, sem a impaciencia que o faz blasfemar. Oh! meu Deus! elle é tão novo e tão desgraçado! Que longa vida de desesperação será a d'elle, se não conseguirmos mostrar-lhe que se póde ser pobre e feliz!
A prelada pediu cinco minutos de espera. Recolheu-se em oração ao seu oratorio, e voltou com o sorriso de esperança para Maria, e a confiança em Deus no coração.
Entraram na grade.
Alvaro estava em pé, com os olhos fitos na porta por onde Maria devia entrar. A prioreza, apenas entrou com a secular pela mão, disse mui affavelmente:
—Eu não esperei que me apresentassem o sr. Alvaro para ter o prazer de cumprimenta'-lo. Conheci n'esta casa suas tias-avós, conheci sua mãe, e seu pae e toda a sua familia. Até conheci um anjinho do céo, que me disseram ser esposa de v. ex.ª Tratei de averiguar se era verdade. O mundo dizia que sim, o anjinho tambem dizia que sim, e eu disse sempre que não, porque não acho natural que o possuidor de um thesouro, vindo do céo, o lançasse de si. Teima a minha Maria em dizer que é sua, e eu digo que não póde ser senão de quem eu quizer. Agora é minha filha e não póde ser sua esposa, sem que v. ex.ª m'a venha pedir com todas as formalidades de noivo.
—E dar-m'a-ha v. ex.ª?—perguntou Alvaro correspondendo com jovialidade á graça risonha da prelada.
—Dou-lh'a—replicou a prelada—com uma condição. Há de vir viver ao pé de nós.
—Como, minha senhora?!
—Ha-de vir viver comnosco. Aposto que está lá fazendo seus entes de razão contra a violação do claustro? Eu lhe digo, meu genro, uma freira, que tem uma filha como esta, dá um testemunho de que se deixou arrastar por alguma d'essas paixões feias que são a origem d'estes anjos tão lindos! V. ex.ª está-se rindo?! Então ouça-me agora seriamente, e esta Maria, que está chorando e rindo ao mesmo tempo, escute tambem. O sr. Alvaro vem viver comnosco, não é bem comnosco, porque entre a nossa casa e a sua ha uma parede. Então já sabe para onde vae?
—Não, minha senhora; espero as ordens de v. ex.ª.
—Vae para casa do nosso capellão, que é um egresso chamado Antonio dos Anjos, um santo, que foi algum tempo mestre de uma creança traquinas, que andou por esse mundo de Christo a fazer travessuras, e me dizem que ainda aqui ha-de vir para ser muito meu amigo, e talvez para me pedir contas de um coração que eu, sem sua ordem, recolhi ao meu, para ambos pedirem juntos ao Senhor das misericordias a redempção de um escravo do mal, tão digno de ser o que eu sei; e Deus quer que elle seja.
Maria rompeu em soluços e lagrimas. A prelada tomou-lhe para o seio a face, como se afagasse uma creança. Alvaro estava immovel, com os olhos rasos de lagrimas postos no sympathico grupo da encanecida prioreza e da ainda formosa Maria.
—Assim a chorar (continuou a freira mudando para o tom jovial) não podemos combinar as nossas escripturas de casamento, nem as precedencias que hão de dar-se antes de se unirem os meus filhos. O sr. Alvaro ha de estar dois mezes na companhia do nosso capellão: ha de vir todos os dias a esta grade almoçar com a sua velha sogra e com a sua futura esposa; ha de vir todas as tardes saber como está o rheumatismo da decrepita prelada, e traduzir-me do francez um sermão do padre Massillon, porque eu já não posso ler. Quando não estiver para ler á velha, ha de me contar o que viu nas suas viagens. Para tornarmos bem amena esta santa vida que projectamos, ha de vir para esta grade o dote que eu dou á minha menina: é um piano, e ella ha de perder o seu natural acanhamento e tocar umas musicas tristes que levam a consolação ao espirito, e trazem de dentro um tributo de lagrimas aos olhos. Ora, pois, meu genro, responda se está pelas condições que eu acabo de propor-lhe.
—Minha senhora...—balbuciou Alvaro.
—Não está?!—interrompeu a prelada.
—Se estivesse ao pé de v. ex.ª... beijar-lhe-ia essa mão, que sinto no coração arrancando-me os espinhos que m'o rasgavam. Deixe-me verter este pranto que é uma respiração de homem que se salva da morte de asfixia. Respondam as minhas lagrimas, senhora, eu não posso dizer mais nada.
—Eu vos agradeço, meu Deus!—exclamou a freira erguendo as mãos, e ajoelhando, com a face pendida para o seio. Fôra como um toque celeste o d'aquella transição do sorriso para a humildade magestosa d'aquella postura, em que Alvaro e Maria pareciam absorvidos, contemplando-se, e contemplando-a, mudamente.
Fr. Antonio dos Anjos, sabendo que a prelada o mandára entrar na grade passados alguns minutos, chegou no ensejo em que a veneranda senhora limpava as lagrimas.
—São lagrimas de felicidade...—exclamou ella—Venha compartir do nosso jubilo, Fr. Antonio. Ahi tem o seu discipulo, que vem do mundo mais instruido do que foi das suas lições. Traz a sciencia da desgraça, e entende que para ser um sabio completo só lhe falta a sciencia da resignação. Essa é que o padre capellão lhe ha de ensinar. Já sabe que o seu quarto ha de ser mobilado por mim, e conforme fôr do meu agrado? Pois ha de ver como uma freira caduca tem ainda o gosto apurado. Hoje ha de remediar-se com a cama que o padre lhe der; amanhã ha de ter um quarto que nem um palmito. Os quadros hão de ser os que a minha filha me deu; são flôres que significam o aroma que vae da oração até Deus; são um cãosinho que é o symbolo da amizade; é uma cruz que significa o throno onde todas as angustias são coroadas soberanas da gloria eterna... em fim, são obras de muito lavor e de muita paciencia, desbotadas quasi todas pelas lagrimas. Ora pois, está tocando ao côro; eu vou lá pedir a Deus que abençoe a escolha que fiz de um genro, e a minha filha, que está mais para chorar, qual quer, vir enxugar essas lagrimas aos pés da cruz, ou ficar aqui?
Maria não respondeu. Frei Antonio interrogou com os olhos a vontade de Alvaro, e conheceu-o opprimido.
—Vão, vão—disse o padre—Nós voltaremos.
—Maria!—disse Alvaro—eu ainda te não ouvi uma palavra. Seja só uma... diz-me: «perdôo-te.»
Maria exclamou entre soluços:
—Deus sabe que nunca te accusei; se me tivesse queixado com ira, pedia-te perdão agora.
—É, pois certo, meu Deus?—disse Alvaro.
—O que?—perguntou a prioreza.
—É certo que é possivel a felicidade para mim?
Alvaro da Silveira hospedou-se em casa do capellão. As suas horas eram repartidas conforme o programma da prioreza. Frei Antonio já não ousava confiar em si, e suffocava sempre a alegria do coração que exultava com a rehabilitação de Alvaro.
Maria, porém, acreditava-o, e a prelada tambem. Alvaro parecia feliz com ellas, feliz com o padre, feliz com a leitura em que empregava o tempo livre.
Ninguem lhe falava no seu passado, nem elle proferia palavra que despertasse recordações. Tambem não falava no futuro, e, se Maria vaticinava delicias na pobreza, o melancolico moço revelava um soffrimento doloroso como a vergonha ou como o remorso.
O passadio de Alvaro era superior ás posses do egresso. Um dia perguntou elle se a capellania consentia tanto. Frei Antonio respondeu que podia muito o trabalho de Maria. Alvaro chorou, ergueu-se da mesa, e exclamou:
—Estou punido, meu Deus!
Alvaro, procurando Maria, disse-lhe:
—Não abusarei das tuas bondades, anjo. Vivo do teu trabalho, agradeço-te de joelhos a esmola, e não posso continua'-la a receber.
Maria soltou um grito do coração e disse a Alvaro que a não matasse.
—De joelhos sou eu que te peço, meu amigo—exclamou ella—que me não abandones. Recompensa-me do muito que soffri, permittindo que eu sinta a santa felicidade de trabalhar para nós ambos. Oh! tu não sabes avaliar que ventura é esta! Se tivesses nascido pobre como eu, se tivesses ajudado com o teu talento a comprar o pão de teus paes e teus irmãos, não tinhas a crueldade de me roubar este prazer. Ó Alvaro, diz-me que é certo viveres para mim e para a esperança de melhores dias. Diz-me que entre a minha alma e a tua não ha uma linha de distancia que separe as nossas ultimas migalhas de pão.
Passados dois mezes encontraram-se frei Antonio e o mercieiro que tinha emprestado dinheiro sobre os rendimentos da casa de Alvaro.
—Já sabe tudo?—perguntou o padre.
—Sei tudo—disse o lojista—O rapaz está outro. Vae ver sua mulher todos os dias, e ouvi dizer que chorava os seus peccados. Que faz elle agora se está arrependido? Porque não tira a pobre senhora do convento? Que se arremedeiem com pouco, e vivam juntos.
—É pouco de mais o que elles têem para viverem.
—Eu darei o que lhes faltar; mas requeiro debaixo de juramento que nunca a minha protecção seja sabida por algum d'elles.
Oito dias depois, Maria dos Prazeres, ou dos Anjos como a chrismaram no convento, para que o sobrenome não fosse uma falsidade, saiu do convento para uma pequena casa, onde seu marido a esperava com a face inundada de lagrimas felizes.
Aquelle viver dos tres era um santo frenesi de amor; Vinham compartir d'aquella alegria o coronel, a mãe de Maria, seus irmãos, e até a prioreza quiz acompanhar sua filha para lhe conter (dizia ella) os impetos amorosos da lua de mel. O padre estava sempre em continua acção de graças. Ria e chorava ao mesmo tempo o bom do velho. No arrebatamento da alegria abraçava a prelada que tinha sempre um equivoco mui engraçado que dizer-lhe n'esses expansivos abraços: riam-se todos e o coronel rejuvenescia da intempestiva velhice.
—Quem dá os meios para esta casa?—perguntava elle.
—A providencia de Deus—respondia o irmão.
—D'onde vem este dinheiro no principio de cada mez?—perguntava Maria.
—Da Providencia de Deus—replicava o tio ás repetidas instancias.
Alvaro da Silveira inspirava receios de reincidencia ao padre. A sua primeira conversão parecia sincera e firme, e o anjo do bem abandonára-o ás presas do vicio resurgente. A segunda, semelhante á primeira, com quanto abonada pela experiencia de duras penas, poderia, chegando ao extremo, não vingar. Fr. Antonio temia o tempo, tremia em segredo; e não ousava dizer os seus temores á sobrinha ou á irmã.
O marido de Maria, penetrando o coração do padre, dissera-lhe:
—Conheça o coração humano, meu caro bemfeitor. A minha conversão religiosa foi um abalo que devia parar. Eu era um homem que achava pequeno o mundo. Scismára muitas vezes na eternidade, quando voltava com enojo as costas aos vicios satisfeitos. O meu espirito, immergido no lodo, não podia voejar acima do que os olhos abrangiam, e os sentidos confirmavam. Refazia-me novamente de forças para a libertinagem, procurava-lhe com cynica avidez as faces novas e, desesperado de encontra'-las, invocava outra vez a idéa confusa do meu destino.
«Quando frei Antonio me appareceu, a minha alma era um vacuo horrivel. Ouvi-o, era a primeira vez que a voz de um homem respondia ás minhas perguntas a Deus. Affiz-me a considera'-lo um justo, alteei-me onde os seus vôos me chamavam, e sentia rejuvenescer a minha alma de viço e alentos nunca experimentados. Maria, este anjo de Deus, fez que o meu coração se purificasse ao mesmo tempo que o espirito se regenerava. O amor que lhe dei, immenso e fervoroso, não era mentira; nem podia sê'-lo, por que a mentira não se sustenta á custa do sacrificio da liberdade.
«O amor d'ella era para mim uma emanação do amor divino. No dia em que aquella ardente fé nos divinos preceitos se entibiasse, arrefeceria tambem o amor a sua sobrinha. Estavam vinculados ambos os affectos: dependiam um do outro. A religião era como a lampada suspensa no meio do templo que reflecte o seu clarão em todos os altares. Logo que se apagou, fizeram-se trevas em todas as minhas affeições nobres, em todas, até vergonha senti de haver tido remorso dos meus vicios. Foi por isso que a sua presença, padre Antonio, me aborrecia, que os conselhos de meu pobre pae me enfastiavam, e que as lagrimas de minha mulher me levavam desde o desagrado até ao odio. Isto foi horrivel, mas verdadeiro.
«Como a luz da religião se extinguiu em minha alma, não sei. Lembra-me que me assaltaram saudades de uma sociedade que me ridicularisava a conversão e o casamento. Saudades de uma vida mesclada de tedios e de alegrias. Necessidade de alargar o circulo de ferro que me apertava a respiração. Era o crime que me visitava com todas as suas galas perfidas. Era o anjo mau da tentação que triumphava, pintando-me insignificante de espirito, de «fortuna», e de belleza uma mulher que parecia violentar-me a adquirir os seus habitos mesquinhamente caseiros e de baixa condição.
«Ultrajei a minha pobre victima com o desprezo, e depois pensei que a mataria com o abandono. Fui um infame dos infames que se não definem.
«Nenhum homem experimentou affrontas semelhantes ás que eu devorei. Todos os meus haveres hypothequei-os ao vicio, e ao crime. Nunca tive uma alegria de alma por um punhado de ouro. Arrojava-o com desesperação aos abysmos onde me diziam que era possivel arrancar-se das mãos do diabo uma sentença de prazer novo. Nunca, nunca! Tocaria a ultima balisa da indigencia, se o meu fausto não apparentasse uma riqueza. Pedi quantias, algumas das quaes não pagarei jámais, porque estou pobre, e outras paguei-as com o vilipendio merecido de um carcere.
«Algumas vezes vi uma sombra veneranda, padre Antonio, e pavorosos sonhos eram aquelles em que eu via minha mulher a expirar-lhe nos braços.
«Revivia-me então a necessidade de gritar pela misericordia divina; mas o grito de contricção era suffocado por um riso blasphemo. Quando o infortunio é superior ás forças humanas apaga-se a luz da razão, fica o espirito na escuridade da demencia, e já não ha alma que se refugie na esperança de uma vida melhor.
«Hoje, sim, frei Antonio. Já não é uma organisação susceptivel de impressões que obedece á eloquencia da sua palavra religiosa. Hoje é o desgraçado, que sente no coração fendido de golpes o poder do balsamo divino, ministrado pela mão d'aquella que victimei. O perdão da martyr é o que me está testemunhando a misericordia do céo. Vejo n'ella a omnipotencia de Deus: não a procuro nos livros, não a preciso da argumentação; não quero que me combatam com o raciocinio a impiedade que o meu coração rejeita. Creio em Deus, meu caro mestre, creio no céo, creio no inferno, creio em tudo que preciso crer para caír de joelhos aos seus pés, e supplicar-lhe que não duvide um momento da minha rehabilitação.»
Padre Antonio recebera-o nos braços, soluçando palavras de benção, e de felicidade inexprimivel.
N'um dia de 1839[1], frei Antonio é chamado a casa de Joaquim Nunes; o lojista, antigo creado de Gonçalo da Silveira. Vae, e acha-o enfermo.
—Sr. frei Antonio—disse o merceeiro—chamei-o para me ajudar a saldar as minhas contas com o mundo, para levar diante de Deus os meus livros de rasão sem nodoa. Estou muito doente, e não espero nada da medicina. O que eu tenho a dizer-lhe, não é o receio da morte que m'o faz dizer. Ha dias que eu preparava esta occasião, e oxalá que sendo a vontade de Deus, eu sobrevivesse á resolução que tomei. Ora diga-me; como se porta o sr. Alvaro?
—Melhor do que as minhas ambições.
—Já não teme que elle torne ao caminho da perdição?
—Confio em Deus, não é n'elle, nem em mim, confio em Deus que não.
—Elle sabe que sou eu o que lhe dou as mezadas?
—Não sabe: cumpri religiosamente a sua vontade.
—Deve ter dito muito mal do avarento creado de seu pae...
—Nem uma palavra, desde que está em minha companhia. Parece que confessa com o seu silencio gratidão á mão generosa que o soccorre.
—Ora diga-me, sr. fr. Antonio, envergonhar-se-ha elle de vir visitar um creado antigo da sua casa, doente?
—Ó senhor, isso é duvidar do coração de meu sobrinho; essa licença estava eu para pedir-lh'a...
—Pois que venha, e venha tambem sua mulher, desejo ve'-los, e o mais breve que possa ser.
Notas
[editar]- ↑ Nota de Transcrição: No original aparece 1839, apesar de não estar coerente com a linha temporal do romance. O ano de 1849 é referido mais adiante na obra pelo que deve ser esta a data correcta.
No mesmo dia, Alvaro, Maria, e frei Antonio dos Anjos visitaram o merceeiro Joaquim Nunes.
As lagrimas inexplicaveis deslisavam copiosas pelas faces do enfermo. Maria, cuja sensibilidade respondia logo á dôr extranha, acariciou o velho, e fez que Alvaro esquecesse a diminuta repugnancia que sentia em afagar um homem que possuia os seus bens, e o imaginaria capaz de humilhar-se para rehavê'-los.
—Estou quasi só—disse o lojista—Tenho sido só toda a minha vida, e agora sinto necessidade d'uma familia. Queria eu pedir á sr.ª D. Maria e ao sr. Alvaro, e ao sr. fr. Antonio que me deixassem ir morrer a casa do filho de meu amo. Fazem-me a caridade de me acceitar em sua casa?
—Deus permitta que as suas forças o deixem ir para a nossa companhia!—exclamou a sobrinha do padre.
—Poucas forças tenho; mas transportar-me-hei n'uma cadeira, e o sr. padre Antonio tomará conta das chaves d'esta casa. O meu commercio acabou; não devo, e os que me devem fôram riscados dos meus livros. Os meus negocios da vida estão fechados. Agora queria morrer vendo duas pessoas felizes ao pé de mim, e tendo á minha cabeceira um santo homem que me ajude a pedir a Deus o perdão das minhas culpas. Se eu vencer a doença, viveremos todos, ponto é que o sr. Alvaro tenha a bondade de sentar á sua mesa um homem do povo que foi escudeiro de seu pae.
Alvaro apertou-lhe, commovido, a mão. Maria, do outro lado do leito, limpava-lhe com o seu lenço o suor que lhe inundava a fronte e fr. Antonio, com palavras de jubilo, annunciava ao enfermo que não morreria ainda para testemunhar e ter quinhão na felicidade de seus sobrinhos.
Joaquim Nunes passou para a residencia de frei Antonio.
Nos primeiros dias a sua doença recrudesceu, consequencia do abalo physico e moral da mudança.
Depois, um ar de melhora fez crear esperanças aos facultativos. Esperanças não mentidas fôram essas, porque ao cabo de um mez de alternativas, o enfermo entrou em convalescença, e veiu a restabelecer-se.
No primeiro dia que saíu a passeio, de sege, trouxe comsigo um tabellião.
Chamou á sua presença os consortes, e fez ler um testamento, em que instituia Alvaro da Silveira e sua mulher seus universaes herdeiros. O testamento foi alli rasgado e o tabellião lavrou uma escriptura de doação de todos os seus bens a Alvaro e sua mulher, com a condição de o alimentarem na sua companhia. As especies sommadas dos bens doados excediam a meio milhão.
Esta dotação não alterou a felicidade d'aquella familia. Correram muitas lagrimas de alegria, mas essa alegria era a da gratidão, era o expansivo respirar das quatro nobres almas que alli se vincularam n'uma só vontade.
E a vontade de Joaquim Nunes respeitavam-n'a todos. Quiz elle que Alvaro fosse viver no palacete de seu pae, quiz que revivesse o antigo fausto d'aquella casa, quiz que a familia de Maria fosse a de todos. Cumpriram-se os seus bons desejos.
A felicidade d'esta numerosa familia é indescriptivel. Até 1849, em que todos viviam, nenhum d'aquelles semblantes fôra annuveado pela tristeza.
Alvaro é um modelo de honra. Frei Antonio um santo, que está constantemente agradecendo ao Senhor o galardão de tamanhas angustias. Maria, a amiga intima da baroneza de Amares, como o leitor a veria no HOMEM DE BRIOS, é um anjo que anda em cata de soffrimentos para consola'-los. Joaquim Nunes no centro d'aquella familia, é um homem adorado, que, em 1849, jogava a bisca de nove com o coronel.
Bemdito seja Deus que tem estes apostolos a glorifica'-lo na terra!